JOSÉ COMBLIN: MEMÓRIA, COMPROMISSO E REINVENÇÃO
Alder Júlio Ferreira Calado
Texto iniciado em 22/03/2019, somente hoje
compartilhado, devido a perda de parte do artigo, num desses acidentes não
raros do mundo digital.
Celebramos, hoje, a data natalícia de Pe. José Comblin
(22/03/1923), que fez sua páscoa definitiva a 27/03/2011, apenas quatro dias
após haver celebrado seu aniversário natalício. Também hoje, celebramos o Dia
Mundial da Água, elemento vital do qual Pe. José também se destacou como exímio
cuidador. Num contexto de tanto obscurantismo necrófilo, faz-nos bem trazermos
à memória vivificante figuras como a de Pe. José Comblin. É o que nos propomos,
a seguir, de modo breve.
Em seus bem
vividos oitenta e oito anos, José Comblin nos brindou com sua incansável luta,
em várias frentes, pela defesa e promoção da vida - dos humanos e do Planeta.
Em função desta meta, dedicou-se completamente: em sua vocação, em seus estudos
e pesquisas, em sua missão na América Latina.... Desde cedo, aparecem
convincentes os sinais de sua vocação de servir à vida, sob múltiplos aspectos.
A este respeito, também, a Missionária Mônica Muggler, na bem elaborada
biografia que compôs deste "Profeta da Liberdade" - "José
Comblin, uma vida conduzida pelo Espírito" (São Bernardo do Campo: Nhanduti
Editora, 2013) nos traz preciosos elementos a este respeito. Vale a pena *revisitar
este livro! Nestas linhas, limitamo-nos a três frentes de contribuição a que se
entregou José Comblin: a ação do Espírito Santo no mundo, a causa libertadora
dos pobres e a formação continuada.
Contribuição à
compreensão da ação do Espírito Santo no mundo
Na literatura teológica contemporânea, tem sido
amplamente reconhecida a qualidade extraordinária da contribuição do teólogo
José Comblin, um dos fundadores da Teologia da Libertação ( participou do
primeiro grupo de teólogos da Libertação, juntamente com Gustavo Gutiérrez,
Juan Luiz Segundo, Hugo Assmann, Enrique Dussel e outros ), no que toca
especialmente a pesquisa pneumatológica. Dos seus mais de setenta livros e mais
de quatrocentos artigos publicados, cerca de uma dezena é dedicada
especificamente à ação do Espírito Santo no mundo, dentre os quais: O Espírito
no Mundo. Petrópolis: Vozes, 1978; OTempo da Ação: Ensaio sobre
o Espírito e a História. Petrópolis: Vozes, 1982; A Força da Palavra.
São Paulo: Paulus, 1986; O Espírito Santo e a Libertação . São Paulo: Loyola,
1988;Vocação para a Liberdade. São Paulo: Paulus, 1998 ; Povo de Deus . São
Paulo: Paulus, 2002; A Vida em Busca da Liberdade.São Paulo: Paulus, 2007; O
Espírito Santo e a Tradiçaõ de Jesus. São Paulo: Nhandutti Editora, 2013. Estas e outras obras focam, com efeito, a ação libertadora do
Sopro Fontal, do Espírito Santo. Isto não quer dizer que tantas outras obras de
sua lavra não enveredem por semelhantes trilhas, como a que o nosso Grupo
Kairós está arefletir – “O Caminho” (São Paulo:Paulus, 2008). Na verdade, todo
o percurso existencial de José Comblin se acha marcado por uma força
ubíqua do Espírito Santo, como muito bem o retrata a mencionada biografia. O
que dizer, em poucas linhas, sobre o cerne desta contribuição? Restringimo-nos
a sublinhar o seguinte. Qual verdadeiro profeta da Liberdade, Comblin
especialmente como teólogo, trata de denunciar os graves descaminhos de nossas
Igrejas Cristãs, em relação ao cerne de nossa fé: o Evangelho, tal como
anunciado, vivido e testemunhado por Jesus, em sua caminhada pelas aldeias da
Palestina, acompanhado de seus
discípulos e discípulas. Graves desvios que quase sempre têm sua raiz mais
funda na avidez do poder, o que nos põe às antípodas da Boa Notícia de Jesus:
“Entre vocês, não seja assim! Sucumbindo a esta tentação, o segmento clerical
foi cada vez mais distanciando-se do espírito de fraternidade reinante nas
primeiras comunidades cristãs. Durante séculos, as Igrejas, a começar da Igreja
Católica Romana foram tomando distância da Tradição de Jesus, por meio de
estratégias vulpinas, inclusive pela via teológica, helenizante a urdir uma
sucessão de doutrinas estranhas aos ensinamentos do Ressuscitado, sucumbindo às
alianças com o poder reis e imperadores. Confortante, ao mesmo tempo, é saber
da resistência profética conduzida pelo Espírito Santo junto com o povo dos
pobres, em diferentes momentos da história, a exemplo dos movimentos
pauperísticos do Medievo, inclusive sob a inspiração de Francisco de Assis. Em
vários de seus textos, Comblin rememora esses testemunhos proféticos, inclusive
em Vocação para a Liberdade.
A realização do Concílio Vaticano II constituiu-se
uma oportunidade preciosa de exame crítico deste modo de agir eclesiástico,
pouco conforme à inspiração do Espírito Santo. Um sinal desta atitude
profética foi o chamamento do Papa João XXIII para um concílio, com propósito
não de imposições dogmáticas, mas com intuições e propostas pastorais, pondo o Povo de Deus, e não a
hierarquia, como centro do processo organizativo da Igreja. Intuições e
propostas ainda mais aprofundadas, de modo inédito, quando da realização em
Medellín, 1968, da II Conferência Episcopal Latino-Americana, marcada pelo
chamamento ao protagonismo dos cristãos, especialmente dos católicos, em
direção a uma Igreja dos Pobres, fazendo inclusive o que passou a ser conhecido
como “Opção pelos pobres”. Sucede que, passados mais de cinquenta anos, ainda
estamos longe desta meta. As incansáveis contribuições do atual Bispo de Roma,
Francisco, ainda não têm sido suficientes para despertar o segmento clerical de
sua pose principesca, denunciada na bela exortação apostólica do Papa
Francisco, “Evagelii Gaudium”.
Nessa trincheira de resistência profética, animada
por Francisco, vale a pena ressaltar as profundas confluências observáveis entre
o Bispo de Roma e o legado de José Comblin. Trata-se de personalidades em
constante diálogo (implícito).
Em defesa e promoção
da vida, a começar dos mais vulneráveis
Outra marca inapagável do legado de Comblin reside
em sua dedicação incansável à defesa e promoção da vida, em sua plenitude, a começar
por aqueles que vivem sob constante ameaça de negação de sua dignidade. Em um
de seus tantos escritos – aqui me refiro ao intitulado Um novo amanhecer para a
Igreja? (Paulus, 2001) - Comblin afirmava que os pobres não constituíam apenas
uma questão a mais, dentre as importantes, para os cristãos, mas “a” questão
central de nossa fé. Lida/ouvida esta frase, sem a devida atenção, pode até
soar aos ouvidos de cristãos por demais aferrados a uma rotina confessional,
muito apegada a ritos e devoções doutrinárias, como se tratasse de algo
chocante, uma espécie de reducionismo, cometido pelo teólogo Comblin. Ou seja:
soa-lhes como algo novo, quando, na verdade, se trata do grande critério
ensinado e praticado por Jesus, inclusive um critério definidor de nossa
verdadeira adesão à Sua Mensagem, como se acha tão explícita, por ex., no cap.
25 de Mateus: “Eu tive fome..”, “Eu tive sede....”, “Eu estava esfarrapado...”,
“Eu estava enfermo...”, “Eu estava preso....”. Em outras palavras, como é
comum entre os verdadeiros profetas e profetisas do Reino de Deus e do
Movimento de Jesus, cabe-lhes sacudir nossas consciências adormecidas pelo
excesso de acessórios que acumulamos, no dia-a-dia de nossas relações
eclesiásticas, de modo a escantearmos o essencial de nossa vocação e de nossa
missão: a fidelidade ao Evangelho.
De fato, ao
acompanharmos os passos de Comblin, percebemos como não se limitou a pregar o
Evangelho, mas a testemunhá-lo, das mais variadas formas. Quem o conheceu, pode
bem testemunhar sua fidelidade profética à causa do povo dos pobres. Ao
conversarmos sobre ele com pessoas mais simples de nossa gente, são unânimes em
destacar, de pronto, algum de seus feitos: sua capacidade de escuta, seu
empenho em aprender com os mais simples, sua disposição sincera em insistir
junto às pessoas mais simples, de pouca ou nenhuma letra, em que cada uma
delas, ao ler a Palavra de Deus, buscasse escutar o que lhe falava a Palavra ao
seu coração, à sua mente, especialmente em contexto de círculos bíblicos,
sempre partindo de sua realidade concreta e dos demais participantes.
Atenho-me, de passagem, a um dentre centenas de casos. Trago o caso de Nilza,
uma das Missionárias do Meio Popular, atuando em Alagoa Grande. Com que
entusiasmo e admiração Nilza nos conta da solidariedade de Pe. José à sua
condição de missionária acampada, em rancho de lona preta. Em solidariedade a
toda aquela gente do mesmo Acampamento, lá ia Pe. José, a levar uma palavra de
incentivo. Mais do que isto: quanto Nilza nos conta dever a Pe. José, pela
ajuda em construir sua casinha digna, indo visitá-la e às demais pessoas daquele
Assentamento. Nilza segue atuando, ao lado de outras missionárias, tais como
Maria da Soledade, Fátima e outras, ajudando na coordenação da Escola
Missionária de Mogeiro, uma das mais fecundas experiências formativas do legado
Combliniano, da qual nos ocuparemos em seguida, não sem antes sublinhar o lugar
especial que o povo dos pobres assume, ao lono da vida missionária de José
Comblin, conforme nos atestam também pessoas amigas, como Eduardo Hoorneat e
outras que o acompanharam mais de perto. É conhecida sua dedicação aos
trabalhos realizados, durante a já perseguida Conferência de Puebla (1979)
oportunidade que atuou como assessor de alguns bispos profetas, tendo que
enfrentar perseguição por parte de autoridades, tais como o Cardeal Trugillo.
Ainda assim, vale a pena relembrar a fidelidade aos pobres ilustrada, por
exemplo, entre os números 31 a 39 do documento de Puebla, traçando um perfil
fidedigno do rosto dos pobres da América Latina.
Traços da
inventividade da pedagogia combliniana
Uma terceira trincheira da contribuição de José
Comblin, tem a ver com sua condição de Educador, alguém profundamente
comprometido com o processo formativo das comunidades, das pastorais sociais e,
sobretudo, das organizações missionárias populares. Também, nesta trincheira,
pode-se observar a linha de continuidade de sua teologia pneumatológica. Aqui,
a criatividade ocupa lugar privilegiado. As experiências formativas que animou,
longe de reproduzirem o que ensinam as escolas oficiais ou a Catequese tradicional,
constituem iniciativas que estão sempre a convidar seus participantes, para
exercitarem o dom da criatividade. Vale a pena destacar, ainda que de passagem,
algumas marcas desse processo formativo. Em primeiro lugar, sempre se trata de
iniciativas que brotam do chão da realidade do povo dos pobres. Não se trata de
propor, de forma professoral, determinadas condutas, de cima para baixo, nem de
fora para dentro, mas de construir-se, a partir do protagonismo de educadores e
educandos, em sua dinâmica convivências uma proposta formativa, acompanhada de
marcas tais como:
- A continuidade como traço inafastável: quem chega
a participar de uma experiência formativa, é chamado a assumir o compromisso de
continuar formando-se ao longo da vida, seja no convívio comunitário, seja nos
desafios pessoais;
- uma
formação permanentemente atenta e vigilante aos sinais dos tempos, isto é, ao que
o Espírito Santo tem a inspirar, em relação aos verdadeiros desafios e
urgências do Planeta, dos humanos e de toda a comunidade dos viventes;
- uma formação cujos conteúdos e métodos se acham
profundamente articulados, em função dos compromissos libertários do povo dos
pobres e, em âmbito também local, conforme as urgências sentidas pelas
comunidades do entorno;
- um processo formativo que se dá no horizonte de
uma educação integral, isto é, do ser humano como um todo e todos os seres
humanos;
- na ousadia de superação incessante de toda
dicotomia, inclusive no combate da dicotomia entre trabalho manual e trabalho
intelectual: todos fazem de um tudo;
- um processo formativo no qual todos se assumem
como aprendentes uns dos outros, sem qualquer tom professoral, mas no
exercício do diálogo entre todos;
- no cultivo de uma memória histórica coletiva (dos
movimentos sociais populares e de nossos povos tradicionais- e também alimentado
pelo estudo de biografias de figuras de referência, cuja memória também alimenta
a mística revolucionária;
- um processo formativo atento e observante da interconexão
orgânica entre passado-presente-futuro, de modo a revestir as ações do
dia-a-dia de uma linha de continuidade, de modo a costurar os tempos da Graça;
- uma formação que cultiva, dia após dia, desde o chão das
relações comunitárias e pessoais, a criticidade e a autocriticidade, seja do
ponto de vista coletivo, seja do ponto de vista de cada pessoa, donde decorrem
responsabilidades e tarefas pessoais e coletivas, a serem cumpridas, não por
cobranças externas, mas pelo exercício de uma autodisciplina que formandos e
formadores vão aprendendo a introjetar e a testemunhar, com leveza e alegria.
Como se percebe, múltiplo e denso é o legado de Comblin,
sobre o qual se tem debruçado um conjunto cada vez mais vasto de pesquisadores
e pesquisadoras, além de tantos amigos e amigas do Padre José, a exemplo
daqueles e daquelas, como a Irmã Agostinha Vieira de Melo, que fizeram questão
de registrar seu testemunho, por ocasião da celebração dos seus oitenta anos,
sob a forma de livro, “A esperança dos pobres vive“.
João Pessoa, 12 de abril de 2019
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