CONTEMPLATIVAS NA AÇÃO: notas em busca de
entendimento da Mística feminina, no Medievo
Alder Júlio
Ferreira Calado
Encerrou-se,
no dia 14 próximo passado, o IV Seminário de Estudos Medievais, promovido pelo
Grupo Interdisciplinar de Estudos Medievais (GIEM), na Universidade Federal da
Paraíba (UFPB), tendo como tema dos trabalhos “Utopias Medievais”. Entre
conferências, Mesas de debate, minicursos e outras atividades, prevaleceram
amplamente os trabalhos acerca das místicas medievais, dentre as quais: Hildegard
de Bingen (1098-1179), Hadewijch de Antuérpia (1190-1240), Mechthild de
Magdeburg (1207 –1282/1294), Marguerite Porete (1230-1310), Christine de Pizan
(1363-1430). Duplo é o objetivo das notas que seguem: 1) destacar aspectos
biobibliográficos de algumas protagonistas da Mística feminina medieval, e 2)
buscar compreender quais componentes principais movem ou estão por trás da
Mística exercitada por algumas mulheres ligadas ao, ou protagonistas do
Movimento das Beguinas, no Medievo.
1) Traços
biobibliográficos de algumas Místicas medievais
A chamada
Idade Média (conceito atribuído pelos modernos ocidentais, em especial, a baixa
idade media, é pródiga em movimentos e experiências de caráter utópico. Com
efeito, do século XI ao século XV, prosperaram fortemente tais experiências.
São deste
período os movimentos pauperísticos – os Cátaros, os Fraticelli, os
Albigenses, os Valdenses, os Goliardos, os Begardos, as Beguinas... Eis um
conjunto de experiências comunitárias de contestação ao poder clerical,
reinante durante a Idade Média. Tais experiências constituíram relevante
prenúncio da Reforma que aconteceria alguns séculos depois. Tinham em comum,
não apenas um protesto contra os hierarcas eclesiásticos, como também
significativos elementos de rebelião em busca de uma nova sociabilidade,
alternativa ao regime feudal protagonizado pela nobreza e pelo alto clero.
Nestas características, encontram-se preciosas sementes de Utopia, revestidas
de formas diversas de libertação - autonomia, liberdade, justiça,
prosperidade, dignidade dos desvalidos, que animam experiência do Divino...
(cf., a propósito das atividades beguinais, por ex.:
Tratamos, em
seguida de sumarizar alguns elementos sobre a vida e a obra de algumas místicas
medievais, mulheres que cultivavam uma íntima experiência de Deus, vivenciada
de maneia muito pessoal e independente do controle da hierarquia eclesiástica.
Tratava-se de mulheres contemplativas na ação, na medida em que sabiam aliar
sua experiência mística ao trabalha artesanal , bem como ao serviço aos
desamparados da época – doentes, crianças, pessoas idosas, mulheres
marginalizadas.
A) Hildegard
de Bingen - Começamos pela figura de Hildegard de Bingen,
uma beneditina alemã que viveu entre 1098 e 1179, considerada uma
precursora das Beguinas, ao menos no que toca ao reconhecido potencial
intelectual, como escritora, como compositora, como filosofa e como mística.
Como abadessa beneditina, Hildegard de Bingen foi também fundadora de alguns
mosteiros. Como compositora, é de sua autoria um antigo drama litúrgico, “Ordo
Virtutum”, além de mais de 70 poemas e cantos litúrgicos. Escritora prolífica,
escreveu obras teológicas e textos de temas medicinais e de Botânica. A ela é
atribuída um número expressivo de cartas. Fala-se em três centenas! Fato
curioso foi sua canonização pelo Papa Bento XVI de q (cf. http://en.wikipedia.org/wiki/Hildegard_of_Bingen ). Fato que reforça suas multifacetadas
potencialidades, que atraíam, em seu tempo, a admiração de papas, de bispos, de
príncipes.
B) Fragmentos
biobibliográficos acerca de Hadewijch de Antuérpia (1190-1240) - Uma vez mais, cabe reiterar, de
início, também em relação a Hadewijch de Antuérpia, a praxe histórica de
invisibilização das mulheres medievais, em especial das místicas e das sábias. Não
poucas delas foram vítimas de múltiplas práticas misóginas: desde a ocultação
de seus escritos, passando pelo plágio, pela desfiguração parcial de seus
escritos, pela apropriação indébita de suas idéias, à perseguição sistemática,
à prisão e à condenação. No caso de Hadewijch, cenas se repetem. Dela se dispõe
de poucas informações, em grande parte graças à extração desde seus próprios
escritos, que lograram chegar aos dias de hoje. Tem-se seu período de vida como
sendo proveniente de Antuérpia ou de Brabante, região dos Países Baixos, tendo
vivido entre 1190 e 1240. Trata-se de uma mística e poetisa de grande talento,
a cujos escritos se atribui a fundação da língua flamenga. Além de escrever
poemas, relatos de suas visões de Deus, também escreveu numerosas cartas,
endereçadas a um público seleto. Diz-se também tratar-se de alguém muito
viajada,
mulher
erudita, portadora de vastos conhecimentos de Teologia, de línguas clássicas,
mas fazendo questão – como, aliás, as demais Beguinas – de escrever em vernáculo.
Seu objetivo também era de compartilhar seus escritos, poemas, relatos de
visões, produção litúrgica, etc. com as pessoas leigas de seu tempo. Eis uma
empreitada considerada das mais ousadas e ofensivas, pelos hierarcas de então.
Eram interpretadas como demasiado atrevidas, por diversas “razões”: ousavam
confessar uma relação pessoal com Deus, sem a necessidade da mediação
eclesiástica;
- atreviam-se
a “viver religiosamente” sem pronunciarem votos ante a Instituição controlada
exclusivamente por homens que se pretendiam proprietários do Espírito Santo e
exclusivos produtores dos bens simbólicos;
- nutriam
pesadas suspeições contra as mulheres, associadas a eterna fonte de diabólicas
tentações...
Eis algumas
das “razões”, que se podem destacar para o cometimento de diversos atos contra
também Hadewijch de Brabante. Ainda que pouco se saiba quanto às circunstâncias
mais precisas, é tida como uma mulher perseguida pela Instituição eclesiástica.
Fato bastante verossímil, a considerar-se que seus escritos foram silenciados
durante cerca de seis de séculos, “guardados” que foram a sete chaves... E ao
reaparecerem, nem todos foram recuperados, sem mencionar o fato de trechos
questionáveis, enquanto outros “aliviados” pelos guardiães dos referidos
escritos. A este respeito, ver, por ex., o depoimento de Jacqueline Kelen:
Tal
“atrevimento” custou-lhe – a Hadewijch bem como às beguinas sem vínculo eclesiástico
– muita perseguição, prisão e exílio – preço característico da profecia, em
todos os tempos e lugares...
C) Brevíssima
notícia biobibliográfica sobre Mechthild de Magdeburg - - À semelhança de outras Beguinas,
também despontam relativamente escassos os dados sobre o percurso existencial
de Mechthild. Consta ter suas raízes fincadas em Magdeburg, Alemanha, onde
nasceu em 1207. Desde os doze anos, começa a ter visões místicas, que mais
tarde viriam a ser registradas. Trata-se de uma pessoa movida por uma forte
espiritualidade marcada por uma experiência de intimadade pessoal com o Divino.
Também à semelhança de outras beguinas, vocacionadas a uma vida contemplativa
na ação, Mechthild não pronuncia votos convencionais, como costumavam fazer as
mulheres que escolhiam consagrar-se à vida religiosa do seu tempo. As beguinas
– Michthild, por igual – preferiram exercitar sua mística, sem necessitarem
subordinar-se a normas de vida consagrada ditadas pelo clero. O fato de não se
contraporem explicitamente – até por uma eventual razão estratégica: a
correlação de forças seria extremamente desigual... – aos ditames masculinos,
não raramente de caráter misógino – não queria dizer que não fossem
profundamente contemplativas, sem prejuízo de sua multiforme ação no mundo,
seja como pessoas dedicadas ao trabalho manual (artesanato), seja ao trabalho
intelectual (estudiosas da teologia, da liturgia, das línguas clássicas e
modernas, das belas letras..., seja ainda, e não menos, ao serviço dos
desamparados do seu tempo.
No caso de
Mechthild de Magdeburg, também manteve-se, ao longo da vida, com bastante
autonomia. Sua obra, composta de sete textos que recolhem seus escritos,
relatos de suas visões e diálogos com o Divino, caracterizados por uma densa e
profunda experiência de intimidade pessoal com Divino, enseja um visível
mal-estar a membros da hierarquia eclesiástica, inclusive a quem eventualmente
se mostrava “simpático” aos seus escritos Um deles acabou reunindo seus
escritos e publicando-os, mas não sem antes estabelecer critérios seletivos, de
modo a omitir ou a mitigar aspectos dos escritos considerados menos palatáveis,
aos olhos clericais do seu tempo. Em especial, incomodavam passagens mais
fortes de uma experiência pessoal de profunda intimidade com Deus,
interpretadas como algo estranho, se não desbordando para algo erótico...
Mechthild viveu até por volta de 1283.
D) Dados do
perfil de Marguerite Porete (Valenciennes, França, 1250-1310) – Um dos obstáculos que se interpõem às
pesquisas de personagens ou coletividades vítimas da sanha do poder tem a ver
com a escassez de fontes ou dados provenientes das mesmas vítimas. Não raro,
tem-se que trabalhar com os dados fornecidos pelos sujeitos que as perseguiram.
É o que também se passa em relação a Marguerite Porete. De todos os modos,
sabe-se que viveu entre 1250 e 1310, tendo vivido em Valenciennes (França)
adjacências. Trata-se de uma das místicas mais destacadas da Baixa Idade Média,
sobretudo pela força de sua heterodoxia, interpretada como heresia, razão de
sua condenação à fogueira, em 1310. Mística notabilizada pela sua coragem e
coerência em não ceder aos apelos dos perseguidores, que, após aprisiona-la por
um período, dela exigiam retratação, sobretudo pela imputação de cometer
heresia, já que, em seus poemas e meditações, entendia que tal eram seus liames
íntimos com Deus, que não necessitava de mediação eclesiástica nem do clero...
Ter-se-ia
livrado da fogueira, caso abrisse mão de suas convicções. Dela pretendiam que
renegasse sua principal obra – O Espelho das Almas Simples – e
que aceitasse tirá-lo de circulação, e teria livrado a pele. Coerente, serena e
confortada por seu Amado, ousou enfrentar a pena maior.
Não apenas no
caso de Marguerite Porete, vale destacar o alcance da corrente de
espiritualidade conhecida como a do Livre Espírito, associada ao pensamento de
Giocchino da Fiore, em sua interpretação bíclico-apocalíptica da Idade do
Espírito Santo, que se seguia à Idade do Pai e à Idade do Filho, numa
interpretação das funções específicas de cada pessoa da Santíssima Trindade. A
Idade do Espírito Santo é a era da Liberdade – “Onde o Espírito Santo se faz
presente, aí renia a Liberdade.”
E) Breve
notícia sobre a vida e da obra de Cristine de Pizan (1363 – 1430 ) - Outra personagem medieval que sacudiu a
consciência do seu tempo, e para além do mesmo. Como sugere seu nome de
referência geográfica (Pizzano), Cristina da Pizzano provém da região em torno
de Bologna (Itália), nascida em 1363 e tendo vivido até 1430. Em virtude da
profissão do pai, médico do rei da França, é educada na França, onde é
conhecida como Christine de Pizan. O pai, além de médico, era um homem
cultivado, professor universitário, astrônomo. Detentor de uma vasta biblioteca,
onde a adolescente Cristina passava parte expressiva do seu tempo a ler
distintas obras, inclusive os autores greco-latinos. Como era praxe, à sua
época, casou-se muito cedo – aos quatorze ou quinze anos. Filhos aparecem, em
seguida. Mas, cerca de dez anos após, seu marido vem a falecer. Para sustentar
os filhos, decide não se recasar, mas, antes, dedicar o melhor de si a escrever
profissionalmente. Foi a primeira mulher a manter-se dos livros publicados.
Escreve poemas, depois textos ou livros, sob encomenda, que passam a fazer
crescente sucesso. Mas, sem prejuízo dos escritos encomendados, também investe
em textos de sua iniciativa, e com bem mais afinco. É o caso de sua obra-prima,
A Cidade das Damas (1405). É, ademais, digno de nota seu talento
não apenas de escritora. Ela própria cuida de todas as etapas requeridas na
confecção de um livro, inclusive das imagens. Uma artista completa. (cf. sobre
isto:
Em sua obra
mais conhecida – A Cidade das Damas -, Christine de Pizan
entrega-se a um labor de grande alcance edificante: o de recobrar a memória de
mulheres de distintas épocas históricas, com o propósito de fazer um estratégico
contraponto à tendência de ocultação, de invisibilização, de plágio, de
apropriação indébita da produção literária, filosófica, teológica, científica
de mulheres de várias épocas, em favor do pretenso monopólio dos homens na
produção de saberes. Na mencionada obra, Christine de Pizan põe em cena três
Damas – Razão, Retidão e Justiça – a dialogarem, acerca da autoconsciência a
ser exercitada pelas mulheres, quanto às suas efetivas potencialidades
intelectuais, éticas e políticas, a partir da rememoração de importantes
figuras femininas do passado e do
presente. No primeiro livro desta obra, dedicada à Dama Razão as personagens em
cena tratam de se queixar do desprezo sofrido pelas mulheres, por parte dos
homens, por considerá-las desprovidas de inteligência e de saber. No livro II
entra em cena a dama Retidão, em que prossegue o diálogo entre as mulheres
acerca dos preconceitos e das violações por elas sofridos da parte dos homens,
sempre contando com o aconselhamento criterioso da Dama Retidão. No livro III
entra em cena a Dama Justiça, a rememorar diversos exemplos de mulheres sabias,
cientistas e de grandes virtudes, tendo como propósito principal encorajar as
mulheres a construírem uma cidade só de mulheres, em vista de assegurar-lhes as
condições de pleno desenvolvimento de suas capacidades e virtudes
2) Considerações em busca de entendimento de
componentes da Mística feminina do
Medievo
Há, com
certeza, passos animadores, quanto ao reconhecimento da densa contribuição ao
pensamento crítico das Místicas e das Mulheres da chamada Idade Média. Mas,
convenhamos, resta ainda muita estrada a percorrer, nesse sentido.
Debruçando-nos sobre o sua densa e vasta obra, cuidamos de ressaltar, nas
linhas que seguem, cinco dimensões que entendemos presentes no exercício da
Mística feminina do Medievo: a) uma
primeira, relativa a certa conotação erótica,
presente em alguns de seus diálogos com o Divino; b) uma segunda, atinente
a uma dimensão estética; c) uma
terceira dimensão prende-se à sua postura ética;
d) uma quarta dimensão concerne a um modo específico de lidar politicamente; e e) uma quinta dimensão
está ligada à esfera econômica de organizar-se. Cumpre, todavia, tomar em conta
a dinâmica interação dessas cinco dimensões, que nunca agem, em separado, ainda
que cada qual possa ser observada mais fortemente do que outras, em certas
circunstâncias.
a) Apelo erótico no exercício da Mística de figuras
femininas medievais - Há ou não uma Erótica subjacente ou implícita
em trechos de obras das Místicas medievais? Eis a questão que nos ocupa. Em se
tratando de mulheres que se queriam consagradas a uma vida de intensa espiritualidade,
mas, ao mesmo tempo, sem tutelas eclesiásticas ou da família, não se deve desprezar
sua vivência específica de Espiritualidade, desde uma perspectiva integral ou
integrativa, isto é, de conceberem a vida humana (e dos demais seres) como dom de
Deus, como um todo harmônico, composto de Natureza e Cultura, de modo a abraçar
toda a vida humana. Neste sentido, não só não lhes aparece estranha a dimensão
erótica da vida humana, mas como uma marca fundamental, um componente vital, associado
a outros componentes igualmente fundamentais – a contemplação, o lúdico, o
artístico, a dimensão econômica, etc. Aqui, convém alertar de que Eros não se
confunde com erotismo, o que descambaria para uma apreciação reducionista e
distorcida da função vital de Eros, em complementaridade com tantas outras
dimensões do (co)existir humano.
Por outro lado, cumpre lembrar que as Místicas medievais eram mulheres
eruditas, conhecedoras também da Teologia, familiarizadas com a Bíblia, com o
Antigo e o Novo Testamentos, inclusive com os Salmos e o com o Livro do Canto
dos Cânticos (Cantares). Tal
familiaridade permite-lhes, não apenas ler com naturalidade passagens do Canto
dos Canticos como as adiante citadas,
como também nutrir-se de metáforas similares em seus diálogos com a
Divindade. Com efeito, versículos tais como: “Ah! Beija-me com os beijos de tua boca! Porque os teus amores são mais
deliciosos que o vinho” (Cânticos 1:2); “e suave é a fragrância de teus perfumes; o teu nome é como um perfume
derramado: por isto amam-te as jovens.” (Cânticos 1:3); “Arrasta-me
após ti; corramos! O rei introduziu-me nos seus aposentos. Exultaremos de
alegria e de júbilo em ti. Tuas carícias nos inebriarão mais que o vinho. Quanta
razão há de te amar!” (Cânticos 1:4) Terão exercido provável influência em
momentos mais densos desses diálogos. Nesse sentido, não nos surpreendem
trechos de poemas ou de visões por elas relatadas, tais como:
“Este laço une
aqueles que amam
de forma que um penetra inteiramente no outro,
na dor ou no repouso ou na ira de amor,
e come a sua carne e bebe o seu sangue:
o coração de cada um devora o outro coração,
o espírito
assalta o espírito e invade-o por inteiro,
como nos
mostrou Aquele que é o próprio amor,
tornando-se o
nosso pão e o nosso alimento,
e desfazendo
todos os pensamentos do homem.
Ele deu-nos a
conhecer que nisto
está a mais
íntima união de amor:
comer,
saborear, ver interiormente.
Ele come-nos,
nós julgamos comê-lo,
e sem dúvida que
o fazemos”.[1]
“Oh Dios, que
te derramas en tu don!
Oh Dios,que
resplandeces en tu amor!
Oh Dios, que
ardes en tu deseo!
Oh Dios, que te
fundes en unión con el amado!
Oh Dios, que
reposas entre mis pechos, sin ti no puedo ser!.”[2]
b) Dimensão ética na experiência existencial
de Místicas da Idade Média – Acoplada a outras dimensões da Mística feminina medieval, desponta
também uma ética, como baliza de conduta específica destas místicas do Medievo.
Sua principal característica reside da busca de uma vivência coerente entre o
sentir, o pensar, o querer, e o fazer. Procuravam viver coerentemente com o que
pensavam e sentiam da vida das pessoas de Deus. Neste sentido, a inspiração
bíblica lhes era de capital importância, especialmente no que se refere à ação
do Espirito Santo, dada a missão especificamente atribuída à Terceira Pessoa da
Trindade, conhecida como doadora dos dons e inspiradora de liberdade. Como se
dizia, “Onde está o Espirito aí há Liberdade.” (“Ubi Spiritus, ibi Libertas.”).
Em sua
experiência pessoal de Deus as Místicas medievais, inspiradas pelo Espirito
Santo sentiam-se motivadas a reconhecerem a diversidade como uma bênção, a ser
acolhida e cultivada, como primeiro passo em busca da unidade. Tratavam de
costurar os mais diferentes fios da diversidade humana e do mundo, como passo
fundamental na busca da unidade: “unidade na diversidade”. Eis um critério que
abre caminho contra preconceitos e intolerância, em especial em tempos de
intensa misoginia, como se pode observar, por exemplo, nos relatos das
personagens da obra principal de Christine de Pizan – A Cidade das Damas.
No exercício
da Mística feminina, no Medievo, observa-se um cuidado especial com a
observância de valores carregados de alternatividade aos valores hegemônicos de
então. Tal postura explica, por exemplo, seu compromisso com a causa libertária
dos segmentos mais vulneráveis daquela época: as mulheres, os enfermos, as
pessoas idosas, as crianças, a quem dedicam o melhor de sua ação contemplativa
e de suas práticas do cotidiano. Aos valores de dominação, propõem e
testemunham práticas de solidariedade, de partilha, de horizontalidade, de
fraternidade radical.
c) Incidência de uma dimensão estética entre
as Místicas do Medievo – As
Místicas medievais também se caracterizam por um especial apreço pelo belo. A
beleza constituía, com efeito, um traço dos mais importantes do seu estilo de
vida. Traços de beleza podem ser observados em várias de suas produções artístico-artesanais,
literárias, inclusive na confecção de seus livros. Um rápido olhar sobre algumas
de suas obras, será bastante para se conferir a qualidade (também) estética do
seu trabalho. Como ilustração, vale a pena conferir, de passagem, alguns
exemplos de elementos estéticos elaboradas por Hildegard de Bingen, (cf. https://www.google.com.br/search?q=hildegard+of+bingen+ilustra%C3%A7%C3%B5es+ilumin%C3%A1rias&source=lnms&tbm=isch&sa=X&ved=0ahUKEwipisK1x9TUAhXDGpAKHWrFABIQ_AUICigB&biw=840&bih=435)
Exemplos igualmente extensivos a outras
Místicas e sábias medievais, como a própria Christine de Pizan (cf.https://s-media-cache-ak0.pinimg.com/236x/a4/08/61/a408614455dafd1826914db7d4fbe237.jpg
Reiteramos o zelo de Christine de Pizan em confeccionar várias ilustrações a comporem
sua produção literária.
d) Aspectos da dimensão política na
experiência mística medieval – O agir político das Místicas medievais pode ser observado, igualmente,
de vários modos. Um primeiro aspecto a destacar, remete à sua concepção e à sua
prática de lidar com o poder. Diferentemente do estilo hegemônico da época, em
que vigia o poder-dominação (de exploração, de possessão, de de
marginalização...), as Beguinas e as Místicas testemunhavam um outro sentido de
poder – o do poder-serviço, o do poder-partilha, o do poder-solidariedade. À
prepotência machista reinante, opunham o testemunho do respeito às diferenças;
em oposição aos privilégios de poucos, punham em prática o reconhecimento da
dignidade de todos, a começar pelos segmentos mais vulneráveis da sociedade –
os desamparados, os pobres, os doentes, as crianças, as pessoas idosas. À
competição doentia opunham a convivência respeitosa dos direitos de todos,
sobretudo das vítimas.
A práxis
política das Beguinas orientava-se pelo respeito à diversidade, com se tratasse
de múltiplos fios existenciais a serem costurados , em busca da unidade
possível. Outro aspecto que merece destaque, na prática e na concepção de
Política, por parte das Beguinas, prende-se ao seu lidar com as relações de
poder em suas minúsculas manifestações, de que é pródiga a vida cotidiana.
Tratavam de conferir sentido às relações moleculares, por entendê-las
impregnadas de sentido tal como sucede nas macro manifestações de poder.
e) Incidência da esfera econômica na
(con)vivência de Místicas do Medievo –
Por último,
mas não menos importante, convém situar o lugar da produção no contexto da vida
pessoal e comunitária das Místicas e das Beguinas, no período medieval.
Considerando seu horizonte libertário, que implicava livrarem-se da tutela
patrimonial e eclesiástica, estas mulheres trataram de criar as condições
materiais como forma de viabilização de seu modo de vida baseado numa autonomia
relativa frente às forças hegemônica de sua época. Para tanto cuidavam de
distribuir adequadamente seu tempo e suas atividades, de modo a permitir uma
vida sem tutelas. Algumas das Beguinas puderam contar com a herança de bens familiares, que trataram de orientar em favor de sua organização. Por outro
lado, dedicavam tempo a trabalhos manuais e intelectuais, dos quais extraíam
algum rendimento. Tratava-se de trabalhos artesanais, feitos a partir de
diferentes matérias primas, aos quais se empenhavam em imprimir especial toque
de beleza. Outras, uma minoria, empregavam parte do tempo como copistas, como
compositoras, como escritoras, etc. Sobre esta última atividade, convém lembrar
o exemplo de Christine de Pizan, que viveu exclusivamente do seu trabalho
profissional de escritora.
Considerações sinóticas – Nestas notas, cuidamos de fornecer elementos
que permitam a não-iniciados na temática, uma visão de conjunto sobre algumas
alumas figuras femininas, protagonistas da Mística medieval. Nesse sentido,
buscamos entendê-las, a partir de cinco componentes constitutivos ou presentes
em seu estilo de vida, em especial em sua experiência de Deus, a quem
costumavam tratar, em seus poemas e em suas visões, como o Bem Amado. Em tais
experiências, destacamos as dimensões erótica, ética, estética, política e
econômica, chamando, porém a atenção para a dinâmica inter-relação dessas mesmas
dimensões.
Convém a
leitoras e leitores dos nossos dias a lembrança de que, ao revisita-nos essas experiências
prenhes de alternatividade ao modelo hegemônico vigente, poder vislumbrar,
também hoje, continuidades dentro das descontinuidades, de modo que possamos
descobrir que, também hoje, podemos registrar, “correntezas subterrâneas”,
experiências moleculares, similares, de algum modo, às aqui aludidas. Como
negar, por exemplo, que a densa experiência das Pequenas Comunidades de
Religiosas Inseridas no Meio Popular (PCIs) ou como a organização das
lideranças religiosas dos EUA, The Leadership Conference of Women Religious
(LCWR) não constituem experiências atualizada das antigas Beguinas?
João Pessoa, 23 de junho de 2017
[1] Cf. RÉGNIER-BOHLER, Danielle Régnier-Bohler, “Vozes literárias, vozes
místicas”, In: DUBY, Georges Duby, PERROT, Michelle, Perrot, História das
Mulheres: a Idade Média, Vol 2, Porto: Edições Afrontamento, 1990, p.578.
[2]ÉPINEY-BURGARD, G; ZUM BRUNN, É. Mujeres
trovadoras de Dios. Barcelona: Ediciones Paidós Ibérica, 2007, p. 109.
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