Mercantilização da vida, suprassumo da religião capitalista
Alder Júlio Ferreira Calado
Em tempos de COVID-19, aparecem mais evidenciados os sinais da barbárie do capitalismo, em sua fase/face atual, hegemonizada pelo capital fetichista, pelo espírito financista. Nestes primeiros meses de 2020, temos acompanhado o espalhamento progressivo do novo Coronavírus, pelo mundo, pelo Brasil... enfrentamos, com efeito, uma verdadeira guerra, em escala internacional, a afetar as mais diversas esferas da realidade. Também a esfera religiosa assume relevante posição, nesta guerra. O propósito destas linhas prioriza o exercício de uma reflexão crítica em torno da esfera religiosa, em especial das manifestações declaradamente cristãs, examinando seu comportamento diante da profunda crise que a humanidade vem atravessando. Instigado também por reflexões emblemáticas desenvolvidas por alguns pesquisadores e pesquisadoras de grande respeitabilidade, dentro e fora da Academia, dentre os quais a figura do Sociólogo Michael Loüwy, sentimo-nos fortemente motivados a compartilhar algumas intuições acerca do papel de igrejas cristãs, conhecidas mais frequentemente como igrejas neopentecostais, diante dos desdobramentos e da crise sanitária.
Enquanto avança a onda ameaçadora e letal da COVID-19 pelo Brasil e pelo mundo, importa conhecer como os diversos sujeitos sociais (econômicos, políticos, culturais e também religiosos) se colocam diante desta adversidade. No caso dos grandes agentes econômicos, capitaneados pelos financistas e seus aliados, podemos acompanhar sua voracidade incessante, buscando auferir vantagens e lucros também no transcurso desta crise, como, aliás, este setor tem feito em todas as crises precedentes. No caso específico do Brasil, podemos observar a voracidade com que os bancos e os grandes fundos de investimento se assanham, a procura do governo brasileiro, especialmente dos dirigentes da Economia, à cata de maquinarem seus ganhos astronômicos, ainda que à custa da enorme crise que se abate sobre o Brasil e o mundo. A este respeito, resulta escandalosa a notícia dando conta de uma “entrevista” concedida, pelo presidente do Banco Central do Brasil, a agentes financeiros da corretora XP Investimentos. Em tempos menos despudorados, esse tipo de entrevista se concedia a jornalistas, não a diretamente a agentes do Mercado... Mais uma vez, os grandes agentes financistas dão prova de extrema insensibilidade e despudor em relação ao sofrimento indescritível de centenas de milhares de pessoas atingidas pela atual crise. Neste sentido, cuidamos de entender o caráter fetichista, religioso, como se comportam os grandes sujeitos econômico -financeiros, pelo mundo afora, inclusive no Brasil.
No âmbito das forças políticas, também observamos o comportamento necrófilo com que atuam estas forças, que aparentemente se apresentam dissociadas da corrente política mais extremada, a do bolsonarismo, que congrega em torno de si da terça parte da sociedade brasileira - com maior ênfase no segmento dito evangélico nas Milícias e em setores expressivos das próprias Forças Armadas -. A corrente da direita tradicional desponta, especialmente no que diz respeito ao programa político do desgoverno Bolsonaro, bem representado na figura do Ministro da Economia, Paulo Guedes, como forte aliada e defensora de seu programa. A direito tradicional, aí tem um relevante papel de sustentação, não obstante seu queixume contra os “excessos” do desvairado presidente Bolsonaro. Este segmento da direita tradicional, composto pelos principais dirigentes e líderes das forças da câmara e do senado, tem contado com o apoio, por vezes entusiástico, da mídia corporativa. Com efeito, foram estes mesmos segmentos da direita tradicional que, movidos pelo ódio contra o lulopetismo, acabaram votando na figura repulsiva de Jair Bolsonaro, cujo tenebroso histórico era evidenciado, inclusive durante a campanha presidencial. Este nunca escondeu seu verdadeiro projeto autoritário ditatorial de simpatia com figuras tenebrosas defensoras da tortura e do retorno da ditadura militar, sem esquecermos sua absoluta falta de conhecimento de economia e de gestão pública. Pois bem, foi esta figura, a que mereceu apoio e votos vergonhosos dos setores tradicionais da direita, no Brasil.
Quanto aos agentes culturais, o governo Bolsonaro, já desde a campanha presidencial, apontava claramente quais seriam suas preferências: os segmentos mais obscuro santistas ditos evangélicos, negacionistas a valores científicos já consolidados - parte desses setores não hesita em manifestar-se contra a constatação da esfericidade da terra... A partir, então, da chegada a presidência de Jair Bolsonaro, com o ministério escolhido a dedo, estas forças obscurantistas e negacionistas, atuantes nos ministérios chave (educação, cultura, direitos humanos, entre outros, passam a normatizar, nas diversas esferas governamentais, medidas e procedimentos completamente afinados com suas crenças tenebrosas.
Outra sanha necropolítica se dá no âmbito sócio-ambiental já no primeiro semestre do seu governo, eis que se multiplicam as denúncias de incentivo aos incêndios das florestas e as invasões de terras indígenas, quilombolas e de áreas socioambientais legalmente protegidas. E, multiplicam-se os mecanismos de desmonte dos organismos responsáveis pela vigilância e pelo cuidado socioambientais, ao mesmo tempo em que se sucedem declarações oficiais e oficiosas de incentivo aumento da extensão de terras agricultáveis (para a pecuária do agronegócio), ainda que à custa da devastação da cobertura florestal, bem como do incentivo a invasão de terras indígenas, em busca da exploração ilegal do subsolo, de minérios, sob a orientação de grandes empresas de mineração trata-se da instalação e do fortalecimento da necropolítica de uma cultura de morte atacar forças culturais estabelecidas e de grande respeitabilidade nacional uma devastação cultural!
Nas linhas que seguem, nosso objetivo é o de compartilharmos algumas indagações que nos perseguem, ao tempo em que ousamos enunciar algumas intuições, em vista de uma compreensão mais objetiva das Profundas raízes destes impasses.
Em oportunidades precedentes, cuidamos de tentar compreender a complexidade e a extensão da Realidade Atual, por meio de textos antes compartilhados (http://textosdealdercalado.blogspot.com/). Este tem o propósito específico de concentrar a atenção sobre o lugar da religião, tal como representada pelos principais líderes de igrejas neopentecostais e outras expressões ditas cristãs, claro apoio a devastação a civilização, tudo feito em nome dos valores religiosos, do modo como pastores e outras lideranças religiosas os entendem entendem e vivenciam.
Situando a posição de agentes religiosos a serviço da religião capitalista
Ao buscarmos situar o pensamento de importantes lideranças de igrejas neopentecostais, tais como Edir Macedo, Silas Malafaia, entre outras lideranças religiosas, percebemos a vertiginosa influência do seu apoio a necropolítica levada a efeito pelo atual desgoverno Bolsonaro. Já durante a campanha presidencial, estes atores religiosos não escondiam sua simpatia e seu apoio a candidatura Jair Bolsonaro. Diversos são os links que constituem exemplos ilustrativos desta posição. Cumpre ter sempre presente que o comportamento adesista a campanha de Jair Bolsonaro, do ponto de vista dos grupos religiosos, não se restringe às vertentes neopentecostais - que alguns preferem chamar de pós-pentecostais -, vários outros grupos cristãos, reformados e católicos, também aderiram ao bolsonarismo, mesmo tendo amplo conhecimento dos vídeos que sua campanha fazia circular, apresentando-o frequentemente a simbolizar com as mãos sua aposta nas armas, seu desdém pelos pobres (pelos negros, pelos povos indígenas, pelos membros da comunidade LGBT e pelas mulheres... ), além de sua sólida afinidade com os ricos, com os poderosos, com o mundo financista. Nada disto, contudo, conseguiu sensibilizar pastores, bispos, padres e outros ministros, pelo menos para uma posição de aparente neutralidade, inclusive entendendo estar ao seu alcance a oportunidade de não apoiamento a nenhuma das candidaturas finalistas. Não foi este o seu caminho, não foi esta sua escolha. O que se viu e se tem visto, de lá para cá, é uma sucessão de apoios diretos e indiretos à figura do então candidato Bolsonaro. Isto pode ser compreendido, à luz das próprias fontes bíblicas - vétero e neotestamentária? Depende do modo de interpretá-las. Ao lermos textos escritos por teólogos e teólogas de referência, dentre os quais nos restringimos a mencionar apenas duas figuras - a do teólogo José Comblin e a do teólogo José Antonio Pagola - podemos observar que, em várias de suas pesquisas, eles apontam o comportamento dos doutores da lei e dos fariseus. Tinham na ponta da língua citações para as mais situações mais embaraçosas, tratavam de citar apenas aquelas passagens que lhes conviessem, ocultando ou omitindo passagens substantivas dos profeta,s tais como Isaías, Jeremias, Amós, Miquéias, além do grande profeta Jesus de Nazaré. Fingem, a todo momento, estar cumprindo os preceitos mais sagrados, enquanto, não raramente, suas atitudes constituem uma flagrante negação das fontes evangélicas, no que elas têm de mais substancioso. A esta gente, Jesus de Nazaré costumava dirigir-se com uma sagrada iracúndia, como podemos perceber em alguns episódios evangélicos: "este povo me louva com os lábios, mas longe de mim está o seu coração!" Impactante, igualmente, a este respeito, é o capítulo 23 de Mateus, onde se encontra uma lista de invectivas contra os “grandes” daquela religião:
Mas ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas! pois que fechais aos homens o reino dos céus; e nem vós entrais nem deixais entrar aos que estão entrando.
Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas! pois que devorais as casas das viúvas, sob pretexto de prolongadas orações; por isso sofrereis mais rigoroso juízo. Mateus 23:13,14 (...)
Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas! pois que dizimais a hortelã, o endro e o cominho, e desprezais o mais importante da lei, o juízo, a misericórdia e a fé; deveis, porém, fazer estas coisas, e não omitir aquelas. Mateus 23:23
Em uma sociedade composta por parcelas significativas da população envolvidas no processo permanente de formação de sua consciência crítica, essas lideranças religiosas (pastores, bispos, padres e outros) não ensejariam maiores estragos. Sucede, todavia, que não é o caso da sociedade brasileira, que apresenta alto índice de analfabetismo não apenas de letras, mas sobretudo analfabetismo funcional e político. É fundamentalmente a esta gente que se destinam numerosas e frequentes "fake news", forjadas por grupos ideológicos comprometidos com a institucionalização da mentira como forma principal de dominação, na esteira de grandes ideólogos nazi-fascistas, a exemplo de Goebbels. Por meio do uso e abuso intensivo de "fake news”, a elite escravagista, apoiada também pelo seu braço religioso, passa a transmitir uma verdadeira desfiguração da realidade concreta, para o que também se vale de sórdidos mecanismos de combate visceral à ciência, a fatos históricos , a conhecimentos já consolidados. Sendo assim, tais lideranças religiosas despontam como relevantes forças que potencializam os efeitos perversos desta necropolítica, a medida que se valem de valores religiosos de grande alcance para os segmentos mais vulneráveis e mais suscetíveis deste tipo de influência. Esta elite passa a encher-se de atrevimento, improvável em situações normais, dispondo-se a contrapor-se a orientações científicas, como a esfericidade da terra, a necessidade de seguir orientações científico-tecnológicas em relação a tratamento de saúde, a mecanismos consolidados de gestão pública, usando e abusando para tanto de interpretações religiosas, inclusive no campo das igrejas cristãs, de modo a apoiarem cegamente as orientações mais esdrúxulas de dirigentes políticos completamente alucinados. A mais recente campanha eleitoral realizada no Brasil constitui um atestado de como atuaram várias igrejas cristãs-neopentecostais, católicas e outras denominações, clamando pela votação de figuras cujo perfil já se apresentava com meridiana clareza durante a campanha presidencial, não faltaram pastores, padres e até bispos a, de modo direto ou indireto, induzirem seus fiéis a uma votação maciça na candidatura de Jair Bolsonaro, falso pretexto de que não tinham outra escolha, quando se sabe que ninguém está obrigado a votar em opções A ou B, até porque neste caso, poderiam e até deveriam ter se abstido, de algum modo.
Associadas a estas experiências profundamente funcionais à religião do capitalismo, a mercantilização da vida, se acham tantas outras estratégias concebidas e maciçamente difundidas, tanto pela mídia corporativa, quanto sobretudo pelas redes sociais controladas pelos sumos sacerdotes do mercado. Como exemplo ilustrativo destas estratégias necropolíticas, podemos destacar as iniciativas incessantes do marketing digital, de despertar em seus numerosos destinatários vulneráveis a uma sistemática influência desta religião do mercado capitalista, criar "necessidades" mil, para cuja satisfação o mercado ou o marketing digital oferece uma infinidade de receitas, de produtos, opções fortemente consumistas. E isto é feito de modo bastante sistemático e planejado, com alto potencial persuasivo, por meio de incessantes curtos vídeos de propaganda para todo tipo de “necessidade” artificialmente criada, com a intenção de auferir lucros em cima dos destinatários desavisados ou suscetíveis a “fake news”. Intrigante nesta armadilha é a percepção de valores falsos como uma suposta generosidade, por parte destes propagandistas, oferecerem sua alquimia de felicidade "gratuitamente" a quem se disponha a comprá-las, como se operadores bem sucedidos na movimentação das bolsas de valores e outras ofertas do mercado -praticados como verdadeiros cultos a Mamon - estivessem preocupados com a felicidade de seus destinatários, razão pela qual, dizem, dedicam seu “precioso” tempo a ajudarem os seus destinatários a serem ricos, em pouquíssimo tempo, e felizes para o resto da vida...
A contribuição de Walter Benjamin, potencializada pela heurística leitura de Michael Löwy
Em busca de uma compreensão das raízes mais fundas deste comportamento, valemo-nos de pesquisadores e pesquisadoras que se tem consagrado à tarefa de buscar uma compreensão mais objetiva deste comportamento. No próprio Michael Löwy, buscamos apoio na esteira de Marx e Engels, que ele aponta como os fundadores da sociologia da religião, bem como de outros autores como Ernst Bloch (1885 - 1977), Walter Benjamin (1892 - 1940), Max Weber (1864- 1920) e outros. A este propósito, aliás, convém sublinhar o contexto propício deste tipo de reflexão, tomando em conta o período vivido por estes coetâneos, além dos quais vale lembrar Hannah Arendt (1906 - 1975), Theodor Adorno (1903 - 1969), Max Horkheimer (1895 - 1973), Karl Manheim (1893 - 1947). Além de coetâneos, vários deles eram amigos.
Com efeito, tivemos a oportunidade de acompanhar mais de uma dezena de vídeo-conferências ou de vídeo-cursos em português, em francês, em espanhol, ministrados por Michael Löwy. Em diversas circunstâncias de fato, estamos diante de um sociólogo que se tem destacado entre os mais penetrantes na compreensão do fenômeno religioso, especialmente das religiões cristãs, tornando-se uma das principais referências de autores marxistas. Nesta área dentre os autores mais destacados nos escritos e nas exposições feitas por Michael Löwy, tem um lugar excepcional os nomes de Ernst Bloch e de Walter Benjamin. Acerca deste último, por exemplo, cuidou de reunir em uma coletânea diversos escritos acerca de como Walter Benjamin lidava com a questão teológica. O entusiasmo com que Löwy vem se dedicando a décadas aos estudos da obra de Benjamin, constitui um fator suplementar de credibilidade, não bastasse o fato de ele próprio haver entrevistado interlocutores relevantes de Benjamin, como o fez em relação a Ernst Bloch e a György Lukács. A quem acompanha sua trajetória de pesquisador, não surpreende a atenção dedicada a Benjamin, não só pela tocante atualidade dos seus escritos, como também por particularidades excepcionais, seja no campo do papel teológico, seja em relação a contundente crítica de Benjamin ao capitalismo, inclusive como portador de alto potencial deletério não só em relação aos humanos como também em relação à natureza (o capitalismo como “assassino da natureza”).
Aqui, nos deteremos mais especificamente em um dos fragmentos de Walter Benjamin, dentre vários outros que Michael Löwy reuniu em uma coletânea intitulada "O capitalismo como religião", editada pela Boitempo, em 2013. Não se trata propriamente de um ensaio ou mesmo de um texto originalmente pensado a ser publicado, lembra Löwy. Em verdade, Walter Benjamin escreveu este fragmento tendo como alvo um único destinatário, o próprio autor. Trata-se de um breve texto com poucas páginas (3 ou 4 páginas), em que Benjamin se limita a fazer anotações, indicando alguns autores, dos quais citava apenas o número da página das respectivas notas, não se tratando propriamente de citações. Isto sugere as enormes dificuldades para qualquer leitor, uma vez que somente o único destinatário poderia compreender, com precisão, suas anotações. Mesmo assim, um pesquisador refinado e respeitoso como Michael Löwy conseguiu extrair relevante entendimento, que ele compartilha, seja por escrito, seja por videoconferência. Os aspectos mais fortes que Löwy acentua, passo a rememorar.
Remetendo, em suas anotações, a figuras como Ernst Bloch, Benjamin deixa perceber que, diferentemente de autores como Max Weber, que sublinhava o capitalismo como tendo sido condicionado e favorecido pelas práticas puritanas do protestantismo, para Benjamin, contudo, o capitalismo não apresentava apenas aproximações com o protestantismo, mas ele próprio (o capitalismo) se organizava em forma de religião, a religião do capitalismo.
Indo além da conhecida interpretação weberiana, segundo a qual há uma estreita afinidade entre a ética Protestante e o desenvolvimento do capitalismo, Benjamin, neste seu famoso fragmento, datado de 1921, entende que o capitalismo se comporta, ele próprio, como uma religião. O capitalismo apresenta uma essência religiosa, caracterizada por alguns elementos sublinhados por Benjamin. Um primeiro traço característico da religião do capitalismo é que ele se faz como um culto, mais do que como uma doutrina. O culto à religião do capitalismo se faz, por exemplo, no âmbito das bolsas de valores espalhadas pelo mundo, também no Brasil. O culto ao capitalismo também se presta por meio dos grandes negócios empresariais, também na instituição das indústrias como relevante fonte de renda para o Deus do capital. Acerca das ultrajantes condições desumanas das fábricas inglesas, vale lembrar a invectiva cáustica contra a religião capitalista ensaiada por Karl Marx, no “Capital”, Livro I, capítulo X, onde trata sobre a jornada de trabalho então vigente. Ao abordar o tema das fábricas, ele assinala que tais condições superam o próprio inferno dantesco (referência à Divina Comédia, de Dante Alighieri, especialmente ao verso "vocês que entram aqui, deixem fora toda a esperança exclamação". O capitalismo também se apresenta como uma religião ao prestar culto ao dinheiro, considerado seu Deus, o Deus Mamon, do qual as cédulas ou as moedas são tratadas como objeto de culto, à semelhança do que se passa em relação a imagens de Santos, no contexto do catolicismo. Não se trata apenas de um entre outros cultos, mas de um culto prestado incessantemente, dia e noite, do nascimento à morte, um culto permanentemente prestado pelo Deus do capital, “ sem trégua e sem piedade”. Convém lembrar que, no conceito de capital formulado por Marx, o dinheiro constitui uma de tantas formas, nem é a principal, em relação a outros componentes, tais como a propriedade fundiária, as indústrias, os bancos. Mas, na época em que Walter Benjamin redige este seu texto (“O capitalismo como religião”), ele ainda não se entendia como um marxista, ainda que que tivesse posição anarquista próxima da visão marxiana.
Ainda na concepção de Benjamin sobre o capitalismo atuando como uma religião, no mesmo fragmento, ele alude a um outro traço que ele considera relevante na estrutura capitalista enquanto religião: trata-se do sentimento da dívida ou da culpa (“Schuld”) - estes dois conceitos aparecem, na língua alemã, com a mesma grafia. Os diversos sujeitos que se acham envoltos na rede da religião capitalista são marcados por um profundo sentimento de culpa ou de endividamento. Todos são culpados todos se acham endividados, e de maneira insuperável, levando a todos ao extremo desespero. Eis por quê não é inapropriada a alegoria que Marx atribuira à imagem do inferno, as fábricas do capitalismo.
Em seu fragmento e em outros escritos posteriores, Benjamin sinaliza uma compreensão que se vai aprimorando sobre a realidade do capitalismo, enquanto religião. Para tanto, é relevante perceber, na bibliografia por ele citada, em seu fragmento, registra o aparecimento de figuras (quase todas representativas do movimento do Romantismo, em suas diferentes vertentes). Recorre, por conseguinte, a representantes do Romantismo, tanto a figuras identificadas com uma vertente reacionária, como é o caso do filósofo alemão Franz von Baader, como a figuras da corrente revolucionária, como é o caso de Marcel Brion. Vale a pena destacar o que de cada um deles Walter Benjamin recolhe, como inspiração, para reforçar o argumento chave de sua tese acerca da essência religiosa do capitalismo. Em relação ao filósofo von Baader, cuida de destacar passagens de sua obra dotadas de fortes imprecações e invectivas contra o sistema capitalista, tomando como um sistema de destruição dos seres humanos. Curioso é sublinhar que, em certo sentido, suas proféticas invectivas contra o sistema capitalista vão coincidir com alguns traços da posição de Karl Marx sobre o mesmo sistema. Em relação a Gustav Landauer, Benjamin também procede de modo a ressaltar passagens luminosas deste filósofo, a denunciar o caráter deletério do capitalismo, por meio também de sua dimensão religiosa.
Autor de textos de uma notável diversidade temática, alguns deles com estilo hermético, o reconhecimento do pensamento de Benjamin se dá "post mortem",
Ele figura na lista dos chamados autores de "fama póstuma" (Hannah Arendt). Mesmo assim, Benjamin alcança reconhecimento, por motivos diversos: uns acentuam nele a sensibilidade artística; outros o vêem como crítico literário. Para Michael Löwy, a avaliação recai no conjunto de seu legado, como filósofo da história, como filósofo político e como filósofo da religião. Além disto, Löwy, a justo título, entende que sua melhor recepção se deu ou se dá na América Latina, especialmente, por meio da Teologia da Libertação. Reconhece, todavia, que os principais teólogos da libertação têm com Benjamin uma afinidade eletiva, tais como Franz Hinkelammert, Hugo Assmann, Enrique Dussel, Jung Mo Sung. Antes deles, há de se notar um outro filósofo peruano, José Carlos Mariátegui (1894 - 1930). Do ponto de vista latino-americano, entendemos um ganho especial da inspiração benjaminiana, seja no que diz respeito ao ecossocialismo, seja com relação ao paradigma do "buen vivir".
Pontos de arremate
Tomemos este último item como um ponto de arremate. Quem se quer comprometido com o processo de busca e de caminhos de superação da barbárie capitalista, manifesta também por meio da religião do capitalismo, cuida de recorrer inevitavelmente à memória histórica dos oprimidos. Além disto, trata de fazê-lo junto com as forças sociais grávidas de transformação, à cata de um novo modo de produção, de um novo modo de consumo e de novo modo de gestão societal. Neste sentido, tratemos de sublinhar pontos-chave que podemos recolher desta reflexão, inclusive do frutuoso diálogo de Walter Benjamin, potencializada pela percuciente análise por Michael Löwy dos textos de Benjamin.
Em primeiro lugar, vale ressaltar a dinâmica organizativa do sistema capitalista, atuando nas mais distintas esferas da realidade social, econômica, política, e religiosa. Nunca é demais reforçar nossa memória, no sentido de entender a íntima conexão, ligando todas essas esferas da realidade, marcada pelo sistema capitalista. Aqui tomamos sua dimensão religiosa, fazemos conscientes das dinâmicas e interações que o braço religioso do capitalismo não tem com as demais dimensões deste sistema.
No caso específico de uma reflexão centrada principalmente em sua dimensão religiosa, podemos observar a força espantosa acumulada por diversas igrejas cristãs, inclusive a Igreja Católica, em várias de suas expressões, em especial a ligada mais diretamente à vertente neopentecostal. Com efeito, as principais lideranças destas igrejas vem acumulando, seja nos espaços dos templos, seja pelas numerosas emissões televisivas e radiofônicas, além de sua atuação notável nas redes sociais, seu potencial extremamente funcional ao modo de organização capitalista, inclusive em sua face mais deletéria, do mesmo. É, por conseguinte, vasta a lista de programas e emissões em que seu potencial ideológico corroborador do espírito capitalista se manifesta, de modo impactante seus cultos, não raramente, nos remetem à reflexão de Benjamin, em diálogo com outros filósofos.
Acompanhando a emissões radiofônicas, televisivas e pelas redes sociais, protagonizados por lideranças religiosas de referência, assistimos, com frequência, ao uso e às vezes abuso de estratégias de obtenção de dinheiro ou de vantagens econômicas, sempre ou quase sempre a pretexto de servir ao mesmo Deus. Iniciativas e estratégias múltiplas são utilizadas, justificativas não faltam, pois sempre retiram de sua caixa de auto justificativas explicações bíblicas para todas estas iniciativas, que vão desde a organização de grandes encontros com empresários, a pretexto de oração especial, até propaganda de produtos e objetos os mais diversos, inclusive água, que se transforma no objeto lucrativo, em não poucas destas experiências religiosas. Quando recuamos na história, inclusive na da Reforma, percebemos a força profética de figuras emblemáticas da Reforma Protestante contra as estratégias de lucro mantidas pela Igreja Católica Romana, em especial por meio da venda de indulgências. Ficamos a pensar no que figuras como a de Martinho Lutero e a de Thomas Müntzer, entre tantas outras, teriam a dizer sobre estes abusos cometidos, em Nome de Deus. Entre os textos que inspiraram Walter Benjamin, em seus escritos, se acha um, de autoria de Marcel Brion, biógrafo do Frei Bartolomeu de Las Casas. Seria fortemente recomendável a releitura das denúncias aterradoras que Las Casas faz, em seu livro ISTORIA ò Brevissima Relatione DELLA DISTRUTTIONE dell'Indie Occidentali (http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/lb000174.pdf) em relação à sanha assassina dos colonizadores espanhois contra os povos originários da América, situação ainda pior do que a atribuída a Marx ao inferno das fábricas, na Inglaterra, do século XIX. Tudo em nome de Deus… Tanto é verdade que em um dos capítulos da obra de Las Casas, vem registrado um diálogo entre um representante dos colonizadores e o cacique Hatuey, em que este, após ouvir falar de céu e inferno, “encontrou forças para perguntar: - Os espanhóis também vão para o céu dos cristãos? - Sim, claro - disse Olmedo. - Então eu não quero o céu. Quero o inferno. Porque lá não estarão e lá não verei tão cruel gente.”
Com relação à contribuição consistente oferecida pela reflexão e pelos escritos de Benjamin, entre outros, somos instados a convidar muitas outras pessoas a também se debruçarem sobre tão densas reflexões, em especial como um tema a ser priorizado pelas forças sociais historicamente vocacionadas a protagonizar as mudanças desejáveis. Entre estas forças, ressaltamos a dos movimentos sociais populares, no sentido de levarem a termo uma extensa retomada, em novo estilo, do seu processo organizativo, formativo e de lutas, junto às classes populares do campo e da cidade.
João Pessoa, 12 de abril de 2020.
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