Intérpretes do Brasil (XVIII): A compreensão da formação histórica do Brasil, na perspectiva de Nelson Werneck Sodré
Alder Júlio Ferreira Calado
Acabamos de rememorar, neste 1º de Abril próximo-passado, o 61º aniversário da instalação do Golpe de Estado de 1964, que nos custou tenebrosos 21 anos de retrocessos civilizacionais. Ao mesmo tempo, também rememoramos, no dia 02/04, o 63º aniversário do martírio de João Pedro Teixeira, líder da Liga Camponesa de Sapé a quem rendemos nossas homenagens, agradecidos pela doação de sua vida à causa da Reforma Agrária.
Não é segredo que, desde suas origens, as Forças Armadas se têm revelado como uma instituição marcadamente golpista, anti-popular, subordinada aos interesses imperialistas e aos setores mais retrógrados da classe dominante brasileira, de tal sorte que constituem exceção figuras de militares que escapam deste perfil. Mas eles existem, a exemplo de Luís Carlos Prestes, Apolônio de Carvalho e Nelson Werneck Sodré, para citar apenas três nomes. A um deles, dedicamos as linhas que seguem, tomando-o como um dentre os intérpretes do Brasil: Nelson Werneck Sodré. Nesta série de revisitações a diferentes intérpretes do Brasil, nosso propósito segue sendo o de exercitarmos a memória histórica dos oprimidos, seja em sua dimensão coletiva seja na singularidade de sujeitos particulares, como uma motivação e fortalecimento do nosso compromisso com o processo de libertação da terra e das gentes do Brasil.
Desta vez, tratamos de revisitar a figura de Nelson Werneck Sodré, um pensador, um escritor prolífico que, por várias décadas, se dedicou à tarefa de compreender as mais profundas raízes históricas de nossa sociedade, recorrendo a componentes econômicos, políticos e culturais de nossa formação histórica, inclusive ao componente literário, com o qual iniciou seu protagonismo de intérprete, mediante o conto “Satânia” publicado na revista Cruzeiro em 1929, com apenas 18 anos. Daí por diante, e durante mais de meio século, Nelson Werneck, tendo seguido a carreira militar, não cessou de participar, seja como autor de numerosas publicações na imprensa brasileira, seja produzindo uma vasta e qualificada bibliografia, fazendo parte de uma rede de grandes intérpretes da formação social do Brasil.
Nas linhas que seguem, cuidamos de oferecer breves anotações bibliográficas sobre o autor, tratando, em seguida, de apontar suas contribuições mais relevantes. No final, buscamos realçar o que dele aprendemos de seu denso legado.
Breves notas bibliográficas sobre Nelson Werneck Sodré
Nelson Werneck Sodré nasceu em 27 de Abril de 1911 e faleceu em Itu-SP, 13 de Janeiro de 1999 aos 87 anos. Filho de Heitor de Abreu Sodré e de Amélia Werneck Sodré. Cedo escolheu a carreira Militar nela trilhando até passar para a Reserva, não sem antes haver enfrentado sérios obstáculos em razão de sua posição política. Era um intelectual Marxista que, a partir dos anos 40, passa a revelar, por meio de seus escritos, clara influência marxista. Autor de uma vastíssima obra, tanto como articulista de diversos periódicos de alcance nacional, quanto de dezenas de livros - estima-se que seja autor de mais de 50 livros e de centenas de artigos. Em seu intenso e incansável tirocínio de escritor, Nelson Werneck Sodré também se destaca por haver percorrido uma notável diversidade temática, tendo sido autor de livros e artigos sobre Literatura brasileira, sobre a formação social do Brasil, sobre a Economia brasileira, sobre a Política, sobre assuntos militares, entre outros temas por ele exercitados. No âmbito da Literatura e da Estética, por exemplo, a ele se atribui a divulgação, no Brasil, da contribuição especial prestada por Lukács, antes mesmo dos trabalhos de divulgação desenvolvidos por Carlos Nelson Coutinho, a propósito de Lukács e Gramsci.
Do vasto conjunto de seus livros, podemos destacar os seguintes:
· Oeste: ensaios sobre a grande propriedade pastoril” (1941)
· Formação da Sociedade Brasileira (1944)
· História da Literatura Brasileira" (1938) - livro revisado e atualizado, em diversas oportunidades, tendo alcançado dez edições.
· As Classes Sociais no Brasil (1957)
· Raízes Históricas do Nacionalismo Brasileiro (1958)
· Introdução à Revolução Brasileira (1958)
· A Ideologia do Colonialismo (1961)
· História da burguesia brasileira (1964)
· A História da imprensa no Brasil (1966)
· Memórias de um soldado (1967)
· Fundamentos da economia Marxista (1968)
· Síntese de História e Cultura brasileira (1970)
· Memórias de um escritor (1970) – em seis volumes.
· Radiografia de um modelo (1974)
· Introdução à Geografia (1976)
· Vida e Morte da Ditadura: vinte anos de autoritarismo no Brasil. (1984)
· História da História Nova e A Intentona Comunista de 1935. (1986)
· A República: uma revisão histórica, (1988)
· O Populismo, a confusão conceitual. (1989)
· Capitalismo e Revolução Burguesa no Brasil (1990)
Além de ter escrito seus 56 livros e mais de 2000 artigos, também cumpre assinalar diversas entrevistas e outros pronunciamentos seus. Em uma de suas entrevistas, por exemplo, acerca do Movimento Tenentista, Nelson Werneck Sodré discorre sobre seu caráter reformista que o situava à esquerda do contexto histórico de então. Rememorava a faceta progressista daqueles oficiais, entre os quais figurava Luís Carlos Prestes, renomado líder da famosa Coluna Prestes, bem perfilado por Jorge Amado, em seu clássico “O Cavaleiro da esperança” de (1945). Perguntado se estava de acordo com a expressão “Revolução de 30” tratou de contestar o caráter revolucionário daquele movimento protagonizado fundamentalmente pela aliança entre a nascente burguesia industrial e o setor descontente da oligarquia rural de então, fazendo questão de lembrar a ausência efetiva do proletariado neste Movimento. Tratava-se, segundo ele, de uma contestação dos processos organizativos da Velha República, marcada por vícios econômicos e políticos vinculados aos setores oligárquicos dos principais Estados brasileiros.
Em razão de sua condição de militar, Nelson Werneck Sodré teve a oportunidade de conhecer a maior parte das unidades federativas do Brasil, inclusive o Oeste brasileiro, período durante o qual escreveu “Oeste Brasileiro ( Mato Grosso, inclusive): ensaios sobre a grande propriedade pastoril” (1941). De acordo com a análise de alguns autores, a exemplo de Paulo Ribeiro da Cunha, cuja tese de doutorado dedicada a Sodré “A utopia tenentista na construção do pensamento marxista de Nelson Werneck Sodre” (UNICANP/SP, 2001) - https://repositorio.unicamp.br/acervo/detalhe/207043) -, assinala uma questão que suscitou um vivo debate e mesmo crítica ao que Sodré interpretava como traços feudais presentes no Brasil. Questão que lhe rendeu vivos embates teóricos com outros autores brasileiro, a exemplo de Caio Prado Júnior.
O desafio de monta enfrentado por Sodré foi o de conciliar sua condição de marxista com sua carreira de militar. Ao longo da vida, foi reiteradamente questionado e mesmo perseguido. Por outro lado, no que diz respeito à Academia, teve igualmente que enfrentar maus humores de certos acadêmicos, inclusive da USP, como lembra Paulo Ribeiro da Cunha, em na exposição por ele feita a convite da Universidade Federal Fluminense, RJ, em 31/10/2024, intitulada “Nelson Werneck Sodré e sua Contribuição à Historiografia Militar” (https://www.youtube.com/watch?v=Vx3YEkrLOtg).
Realçando traços mais densos do legado de Nelson Werneck Sodré
Além de sua longevidade (87 anos), devemos tomar em conta sobretudo a qualidade e o seu ritmo de trabalho, o que também atesta o grau de compromisso com as lutas por um projeto de sociedade e de Brasil, que respondesse aos anseios populares mais legítimos. A densidade de sua obra há de ser reconhecida também pelo rigor teórico-metodológico - o materialismo histórico-dialético - por ele adotado, principalmente a partir dos anos 1940. Um outro traço a merecer realce, no percurso existencial e na vasta obra de Sodré, tem a ver com o exercício de autocrítica, que pode ser conferido, por exemplo, pela sua atitude frequente de atualizar e de melhorar a qualidade de seus livros, não constituindo um acaso sua decisão de testemunhar tal atitude, por ocasião das reedições de alguns livros seus a exemplo de “História da Literatura Brasileira”, sempre buscando incorporar novos achados e aprimorar suas análises.
Nelson Werneck Sodré impacta, igualmente, pela tenacidade ético-política que sempre testemunhou, em diversas ocasiões de conflitos - e até de perseguição - que teve que enfrentar, em razão de sua posição de marxista diante de uma corporação (Forças Armadas) hegemonicamente controlada, quase sempre por forças conservadoras e reacionárias, subordinadas ao imperialismo.
Como se percebe, aqui esboçamos apenas ligeiramente alguns traços do itinerário intelectual de Nelson Werneck Sodré, em razão do que possam, estes breves traços, abrir o apetite de nossas organizações de base e respectivos militantes, no sentido de aprofundarem seus estudos, não apenas sobre o legado Nelson Werneck Sodré, como também de diversas outras figuras de referência, na interpretação de nossos dramas histórico-sociais, em especial no que se refere a memória histórica dos Movimentos Sociais comprometidos com a construção de uma nova sociedade e de um novo modo de produção, de consumo e de gestão societal.
João Pessoa 03 de Abril de 2025