A Educação Popular na Universidade: Conquistas e Desafios
Alder Júlio Ferreira Calado*
A produção de saberes constitui uma marca fundamental do processo de humanização, desde tempos imemoriais. Da Ásia (China, Índia, Oriente Médio...), África, civilizações tais como a dos Astecas, dos Maias, dos Incas e, tempos depois, Europa, sucederam-se ou coexistiram múltiplos e diferenciados centros de produção de saberes: populares, filosóficos, artísticos, no campo do sagrado, científico - tecnológicos…
Parece consenso o reconhecimento de que, desde o século XI - e principalmente depois do século XVI - os centros de produção científica, em especial as Universidade, vêm ocupando lugar privilegiado ou exclusivo. A par das Universidades, estes centros se têm dedicado à produção de saberes técnico-científicos, voltados à preparação de quadros profissionais representativos dos interesses dos setores dominantes, secundarizando ou mesmo excluindo de seus espaços estudantes das camadas populares.
Os Estados Modernos aprimoraram esta função desenvolvendo especialmente a produção de saberes científicos, mas sempre na perspectiva de formação dos seus quadros da burguesia dos quais restaram excluídos, os setores populares, mantendo excepcionalmente parcelas insignificantes. Esta é uma marca precípua do Estado, organismo essencial destinado a viabilizar a dominação de uma classe social sobre as demais.
Nessas condições, sócio-históricas, que vêm prevalecendo na organização da vida acadêmica, não há como e por que estranhar-se objetivos e planos aí vigentes. Neste sentido, seguem cumprindo seu papel. Desde a Idade Média, as Universidades se têm prestado aos setores dominantes e dirigentes, o que as torna um espaço proibitivo ou fortemente restritivo ao acesso das camadas populares e em especial das mulheres. As universidades, sendo como eram - e como ainda são, em grande medida! - espaços destinados a prepararem os quadros dirigentes da classe dominante, revelam-se hostis ao protagonismo das classes populares e outros grupos sociais,tais como os quilombolas, os povos originários, as comunidades LGBTQI+.
Nos tempos Modernos, tal como sucedia desde a Antiguidade, o Estado segue sendo um instrumento fundamental, ao lado do Mercado, para viabilização do domínio de uma classe sobre as demais (dos antigos senhores sobre os escravos; dos senhores feudais sobre os servos; da burguesia sobre os trabalhadores e trabalhadoras…). Isto continua, ainda que de forma nuançada, no presente.
Nisto não há surpresa: ontem como hoje o Estado - ao lado do Mercado - segue cumprindo seu papel, inclusive na organização da Cultura e da Educação refém, que é das políticas governamentais (infraestrutura, saúde, transporte, legislação trabalhista, mídia, religião, segurança pública, organização fundiária, produção agrária, papel dos bancos, agronegócio, produção de commodities…). Da Educação Infantil à Pós-Graduação, sejam governamentais ou particulares, as Universidades são organizadas pelo Estado…
Conquistas/desafios; no caso do Brasil
Todavia há de se reconhecer que este modo de organização não se dá de modo linear, mas com idas e voltas, resultante de lutas e concessões que favoreceram aos interesses das camadas populares. Foi isto, por exemplo, o que se deu, mais recentemente, durante os governos Lula (1º e 2º) e Dilma, durante os quais diversas conquistas, inclusive no campo educacional, se registraram.
No que diz respeito, especificamente, à Educação Popular, numa perspectiva marx-freire-dusseliana, resulta imperioso manter-se vigilante quanto aos limites da Educação Popular na Universidade, sem que se menosprezem suas potencialidades, a depender das circunstâncias histórico-culturais prevalecentes.
Neste sentido, sem negar ou subestimar o papel transformador da Educação Popular na Universidade, em tal contexto, importa ter sempre presentes suas potencialidades e seus limites. Comecemos pelos seus limites. Partindo do entendimento de que a Educação Popular corresponde ao processo de humanização, por conseguinte, do desenvolvimento do ser humano como um todo e de todos os seres humanos, esta Educação Popular supõe a construção processual de condições que permitam o exercício de um conjunto de dimensões - dimensão cósmica, dimensão de espacialidade, das relações sociais do Trabalho, de gênero, de etnia, geracionais, de dimensão econômica, da dimensão política, da dimensao cultural, ética, estética, erótico-afetiva, entre outras. Apostar, com todas as fichas, em que isto seja exequível a contento no atual modo de produção, de consumo e de gestão societal, não parece razoável.
Ao mesmo tempo, até para ousarmos superar o atual sistema, importa começarmos desde já, por meio da Educação Popular, posta em prática, nos limites das atuais possibilidades, ainda que de modo molecular.
A despeito de uma conjuntura sócio-histórica consideravelmente adversa, do ponto de vista das classes populares, no Brasil e em outros países, algumas conquistas merecem destaque. Limitamo-nos aqui a realçar avanços, no campo universitário, da Educação Popular e da Extensão Popular. Mesmo sabendo tratar-se de um espaço em disputa, de consideráveis desvantagens para as classes populares, diversas Universidades Públicas, localizadas nas 5 regiões brasileiras, dentre as quais, nos permitimos, destacar a Universidade Federal da Paraíba que tem logrado avanços significativos no campo da Educação Popular e da Extensão Popular.
Há algumas décadas, vêm atuando instâncias significativas nessa área, dentre as quais o NUPPO, Núcleo de Pesquisa e documentação da cultura popularhttps (//ufpb.br/nuppo), o SEAMPO, Serviço de Educação e Assessoria a Movimentos Populares (http://www.prac.ufpb.br/extelar/), a (TCI ) Terapia Comunitária Integrativa (http://www.cchsa.ufpb.br/cchsa/editores/noticias/rodas-de-terapia-comunitaria-integrativa-tci-online-do-ambito-da-ufpb), o NEDET, Núcleo de Extensão em Desenvolvimento Territorial e Agroecologia (https://issuu.com/nedetufpb/docs/_revista_01_ago_21_revis_o_fillipe/8), e aqui ressaltando, a atuação do Extelar - Grupo de Pesquisa em Extensão Popular.
O EXTELAR, trabalhando em rede com outros grupos de pesquisa, especialmente na área de Educação Popular em Saúde e em Economia Solidária Popular, vem apresentando avanços significativos no campo da pesquisa em Educação Popular e em Extensão Popular. Vasta tem sido a gama de atividades desenvolvidas por este grupo de pesquisa associado a outros com semelhantes objetivos. Diversas publicações protagonizadas por pesquisadores e pesquisadoras do Extelar dão uma amostra da qualidade destes trabalhos.
A despeito desta e de outras conquistas similares, nunca é demais lembrar os sérios limites de se trabalhar Educação Popular e Extensão Popular no âmbito acadêmico, controlado que é pelo Estado. Mesmo assim, sempre é possível contar com um certo percentual de docentes, pesquisadores e extensionistas, junto com estudantes e membros do corpo técnico-administrativo, empenhados em levar adiante vários projetos de Educação Popular e de Extensão Popular.
Quanto aos desafios que a conjuntura nos apresenta, destacamos alguns deles. Um primeiro tem a ver com o enfrentamento de uma conjuntura pandêmica, agravada por todo um pandemônio sociopolítico, no Brasil e no mundo. Pandemônio que já dura alguns anos, protagonizado por fortes correntes ultradireitistas, com nítidas marcas neofascistas. Não bastasse o desafio de se trabalhar a educação popular e a extensão popular no campo acadêmico, cumpre acrescentar o peso especial da atual conjuntura sócio-histórica.
Em tempos menos desfavoráveis para os interesses das classes populares, a Educação Popular e a Extensão Popular já contariam com adversidades significativas. Uma das razões para lhe dar-se com Educação Popular nas Universidades - especialmente as Universidades mantidas pelo Estado, por lidarem com mais nitidez, com o entrelaçamento desejável entre docência, pesquisa e extensão. Sendo, como são, as Universidades, governamentais ou particulares controladas pelo Estado, parceiro orgânico do Mercado, dificilmente se pode apostar todas as fichas no trabalho da Educação Popular e da Extensão Popular, visando certa hegemonia. Com efeito, quando trabalhamos com Educação Popular, numa perspectiva marx-freire-dulceliana, parece uma tarefa complexa por em prática marcas relevantes de uma Educação Popular, que tome como prioridade balizas tais como: uma dimensão cósmica, uma dimensão ecológica, uma dimensão espacial, uma dimensão econômica, uma dimensão política, uma dimensão cultural, um trabalho a partir das relações com o sagrado, com a ética, com a estética, com a dimensão erótico-afetiva, com a dimensão das relações sociais de gênero, de étnia, de gerações, a dimensão do trabalho, entre outras. Neste sentido, importa igualmente reconhecer nos movimentos sociais populares aquele sujeito histórico mais apropriado para dar conta destes desafios. Referimo-nos, especialmente, aos movimentos sociais-populares e, particularmente, aqueles que trabalham com uma perspectiva de construção societal alternativa ao modo de produção, de consumo e de gestão societal dominante.
A despeito deste desafio, importa lembrar que estas dimensões já vêm sendo trabalhadas no chão do cotidiano das classes populares e dos movimentos sociais populares, ainda que de modo molecular. Com efeito, podemos observar, nas correntezas subterrâneas, diversas experiências de alternatividade que se acham em curso. Como exemplos ilustrativos, podemos citar as associações que compõem a ASA (Articulação do Semi-Árido), a qual se acham vinculadas dezenas de entidades comunitárias e de movimentos populares. Na esteira deste evento, podemos destacar como experiências inovadoras o empenho de vários desses grupos e comunidades em criar alternativas de convivência do Semi-Árido. Diversas são as tecnologias alternativas que vêm sendo utilizadas, nesta direção. É, também, o caso de muitas experiências de caráter agroecológico, bem como de catadores e catadoras de resíduos sólidos, coletivos feministas, de experiências inovadoras protagonizadas por movimentos populares ligados aos povos originários, das florestas, das águas, bem como por diversas comunidades quilombolas.
Exemplos ilustrativos de tais conquistas/desafios
Educação Popular na Universidade é, sim, possível e necessária. São múltiplos os exemplos que podem ser enumerados, no Nordeste, ao longo do país, da América Latina e do mundo. Por outro lado, é prudente não superestimar o lugar da Educação Popular e da Extensão Popular no campo das relações universitárias. Se isto é um horizonte auspicioso testemunhado por docentes, discentes e técnicos administrativos, por outro lado, convém não esquecer que estes correspondem a um percentual simbólico, ainda longe de caracterizar as ações hegemônicas vivenciadas no campo acadêmico.
Outro aspecto importante a enfrentar, tem a ver com o misto de conquistas e desafios, apresentado por algumas experiências exitosas, no plano da educação popular e da extensão popular, vivenciadas pela Inar Universidade. Aqui nos limitaremos a alguns desses desafios com um misto de conquistas. Ainda nos anos 90, experiências de educação popular e de extensão popular eram vivenciadas no campo acadêmico, em relação com as escolas públicas, com alguns movimentos populares e pastorais sociais e até com alguma referência sindical, a exemplo do conhecido e apreciado projeto Zé Peão, em uma fecunda parceria com os trabalhadores da construção civil, junto aos quais dessas experiências eram compartilhada, principalmente com os trabalhadores da construção civil em processo de letramento ou de alfabetização. Nos prédios em construção, reuniam-se regularmente dezenas de trabalhadores, à noite, acompanhados e orientados por professores e professoras da UFPB, membros do projeto Zé Peão. Experiência que tem atravessado décadas. Ainda neste campo, entre educação popular e extensão popular, também nos anos 90 e anos seguintes, alguns professores da UFPB, ainda quando os laços institucionais relativos às experiências de extensão popular eram bastante vagos, trabalhos de formação eram realizados, principalmente em Serra Redonda, com estudantes provenientes das pastorais de juventude e outras, com o objetivo de vivenciarem um processo formativo, do qual faziam parte estudos de realidade social, de psicologia, de dinâmica de grupo, além de outros temas relativos à formação cristão, dada a pertença de vários desses membros, ao campo das pastorais sociais. A Fundação Dom José Maria Pires, sediada no antigo Centro de Formação Missionária, em Serra Redonda, organizava essas experiências a partir de finais dos anos 90 e vários anos no correr dos anos 2000.
Mais recentemente, em confluência com movimentos sociais populares do campo e algumas pastorais sociais, trabalhos de extensão vêm sendo realizados. Por meio de ofertas de cursos de formação, de reflexões sobre uma diversidade temática, compreendendo análise de conjuntura, educação popular, em saúde, agroecologia, direitos humanos, educação em saúde popular, economia solidária popular, trabalhos em conjunto com povos originários da região (potiguaras e tabajaras), trabalhos de educação popular e de extensão popular com os camponeses e camponesas da região do Vale de Mamanguape constituem exemplos ilustrativos de experiências fecundas realizadas em parceria entre a UFPB e comunidades de povos originários, comunidades quilombolas, camponeses da região, pastorais sociais, a exemplo da CPT, com suas enriquecedoras feiras agroecológicas , testemunham um trabalho fecundo e desafiante da UFPB com vários setores da sociedade civil paraibana.
Entendemos tratar-se de experiências que entendemos como conquistas, mas também como desafios. Como conquistas, pelo fato de representarem avanços consideráveis na parceria entre uma universidade pública - ufpb- e diversas organizações de base de nossa sociedade. Parceria feita com sujeitos históricos relevantes, a exemplo de vários movimentos populares, tais como o MST, o MPA, o movimento das comunidades populares, pastorais sociais do Campo, parceria com os povos originários da região, com as comunidades quilombolas, com os trabalhadores e trabalhadoras do campo, tendo a educação do campo como um horizonte de referência voltado para a educação popular e para a extensão popular.
Consideramos também, tais experiências como desafios, à medida que, não obstante seus ganhos de qualidade, ainda se desenvolvem em um ritmo, aquém do desejável, seja por conta dos limites institucionais - a universidade, como antes mencionado, é um campo de disputa, não tão favorável à classes populares - , seja pelo fato de que, como uma instituição organizada e controlada pelo estado, as potencialidades tornam-se aquém do que se deseja. Além disso, cumpre destacar, nestes últimos anos, numa conjuntura, multiplamente adversa, sobretudo a partir do golpe híbrido nos governos populares, situação agravada, pelo pandemônio do desgoverno Bolsonaro, bem como pelas graves consequências da pandemia. Aqui focamos, com mais ênfase, os trabalhos protagonizados pela UFPB, por tratar-se de uma universidade que acompanhamos com mais frequência e da qual temos mais registros, mas, cumpre lembrar que, junto com a UFPB, várias outras universidades, em diversas regiões do país, a exemplo da universidade de Goiás, também propiciam experiências de educação popular e de extensão popular, de grande alcance.
Educação Popular na Universidade constitui um desafio a ser enfrentado, com lucidez, com coragem e com audácia, por um percentual ainda simbólico do conjunto de sujeitos da Universidade, mas, de todo modo, resta o convite a que, ano após ano, mais gente se incorpore a estas práticas de Educação Popular, no âmbito da Universidade. Para tanto, cumpre inovar dia após dia, as formas de trabalho, de tal modo que, seja no planejamento, seja na vivência dos componentes curriculares, seja nas atividades de pesquisa e de extensão, seja ainda na capacidade de interagir com os movimentos sociais populares e outras organizações de base de nossa sociedade, vamos conseguindo imprimir ritmos promissores, nesta perspectiva, de tal sorte que, o que representava o “Trivium” Medieval (a lógica, trabalhada como instrumento do bem-pensar; a gramática, instrumento trabalhado como a arte do bem-escrever; e a retórica, instrumento para se trabalhar melhor o falar, o comunicar) e o "Quadrivium" (a aritmética, a geometria, a astronomia e a música), base-curricular dos inícios da Universidade, se convertam, no campo da Educação Popular, em novos componentes curriculares, em que ênfase seja dada não tanto ao “bem-pensar” (a lógica), não tanto ao bem-escrever (gramática), não tanto ao discurso-rebuscado (a retórica), mas a enfatizar-se a Práxis, a Ortopraxia, a ousadia de transformar o mundo, quanto ao modo de produção, ao modo de consumo e ao modo de gestão societal, alternativos a toda sociedade de classes, e em harmonia com o planeta, de modo a tomar estas balizas como fundamento teórico-prático da atuação da Educação Popular e da Extensão Popular.
Importa, não menos, ter presente que estes esforços devem ser compartilhados para além de cada país, para além da América Latina, sempre em conexão com outros tantos movimentos e iniciativas similares que se dão no mundo inteiro.
João Pessoa, 13 de novembro de 2021
*Alder Júlio Ferreira Calado Nordestino, de Pesqueira - PE, terra dos Xukurus, povo do qual se sente, ele próprio, um Xukuru desaldeado. Trabalhador na área da Realidade Social e da Educação Popular. Desde meados dos anos 60, vem acompanhando, como um aprendiz, como militante e como pesquisador, os Movimentos Sociais Populares, especialmente no Nordeste. Como pesquisador e membro do Centro Paulo Freire, de Pernambuco, tem priorizado estudos inter-transdisciplinares, na perspectiva de um novo modo de produção, de consumo e de gestão societal. É autor de vários livros, é assíduo no blog textosdealdercalado.blogspot.com .
PS: Este texto corresponde à transcrição (por conta das condições de vista do autor) de sua exposição a título de síntese, do tema que lhe foi proposto, por ocasião do VIII Seminário Internacional Universidade e Educação Popular.
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