segunda-feira, 20 de junho de 2022

THOMAS MÜNTZER: EVANGELHO E REVOLUÇÃO

 THOMAS MÜNTZER: EVANGELHO E REVOLUÇÃO


Alder Júlio Ferreira Calado


A barbárie na qual o necrófilo Desgoverno tem mergulhado o Brasil e sua gente, nos impõe redobrar os esforços de resistência e de busca incessante de superação deste quadro sombrio. Para tanto, somos historicamente convocados a recorrer a vários meios, inclusive, o exercício contínuo da memória histórica dos oprimidos, no Brasil e no mundo. 


Há 60 anos, em uma conjuntura de grande efervescência, no Brasil e alhures, e em que a Igreja Católica iniciava seus passos numa perspectiva libertadora, importa lembrar, entre outros feitos, a publicação do livro “Evangelho e Revolução Social” de autoria do Dominicano Frei Carlos Josaphat (São Paulo, Ed. Loyola, 1962). Sete anos mais tarde, em 1969, já em um contexto ditatorial (além do golpe de Estado de 1964, a decretação do AI-5, em 1968), sob o mesmo título, Dom Antônio Batista Fragoso também publicava, na França, outro livro memorável. No ano seguinte, seria a vez de o Pe. José Comblin publicou o primeiro volume de sua “Théologie de la Révolution” (Puf, 1970) e poucos anos depois, “Teoria da Prática Revolucionária” (publicada em Portugal). Estes registros vêm à memória por remeterem a figura de Thomas Müntzer (Allstedt, 1489 - Frankenhausen, 1525), tendo vivido em um contexto de grande opressão sob os camponeses na Alemanha, nas primeiras décadas de 1500. É precisamente sua saga que tomamos, nas linhas que seguem, como alvo de reflexão.


Em dois mil anos de sua história o cristianismo tem sido  - e continua sendo marcado pelo contraste de duas tradições antagônicas: a da cristandade (até hoje dominante) e a protagonizada por minorias proféticas (Dom Helder chamava as minoria abraâmicas) ainda nos primeiros séculos do cristianismo, durante a partir da era constantiniana (séc IV) prosperou a ação de um segmento minoritário do Clero, que, para se impor como grupo dominante, e graças a uma crescente helenização da proposta de Jesus de Nazaré e seus discípulos e discípulas, componentes das primeiras comunidades cristãs, conforme inclusive o relato dos atos dos apóstolos, testemunhavam um especial empenho e compromisso de uma fraterna partilha de bens - “e todos repartiam o pão e não havia necessidade entre eles”.


O princípio, séculos depois formulado por Marx, segundo qual “de cada um conforme suas possibilidades, para cada um conforme suas necessidades”, se inspira direta ou indiretamente nas relações descritas nos atos dos apóstolos, todo um contexto histórico que se pode interpretar como dizendo respeito apenas ao modo de consumo e não como aos meios de produção. Ainda sim uma narrativa a ser positivamente tomada em conta.


Sucede, contudo, que nos séculos seguintes ao do relato dos atos dos apóstolos e outros registros relativos àquela época, diversos letrados, especialmente fascinados pelo platonismo pela filosofia helenista - até mais do que pelo espírito do evangélico - em busca de seu protagonismo, passaram a empenhar-se na elaboração de uma teologia da Cristandade, crescentemente afastando-se do ethos comunitário, característico do Novo Testamento, especialmente do Evangelho, com argumentos e arrazoados, da lógica helenista, que acabaria conquistando hegemonia, ao longo dos séculos seguintes. Nesse período ganharam força especial os escritos de figuras como o do teólogo Eusébio de Cesaréia em sua vasta obra Historia Ecclesiae (com 10 volumes), fazendo toda uma reinterpretação fundada em novas narrativas de inspiração helenista, com pouca base no espírito do Novo Testamento.


Narrativa que se fincou na recusa teológica e filosófica elaborada por Agostinho no século IV. Com Agostinho emerge vigorosa a ideia do dualismo platônico entre corpo e espírito entre corpo divino e humano. Divisão bem presente em seu tempo em seu famoso livro De Civitate Dei. Desta temática, ocuparam-se bem, entre outros autores, José Comblin e Eduardo Hoornaert.


A despeito de tal hegemonia teológica importa lembrar a presença de resistência profética oposta por sucessivas minorias, a exemplo dos testemunhos já no séc IV e V, de figuras como João Crisóstomo, Basílio e outros, mas é sobretudo no sec XII - e estendendo pelos séculos seguintes que ressurgem novas vozes proféticas. Com efeito, seja por meio de denúncias e contestações verbais contundentes, seja graças a atitudes radicais, figuras proféticas vão inaugurar um novo tempo, a era do espírito santo, como evocam a figura do monge Calabrês Gioacchino da Fiori cuja obra profundamente fundada nas escrituras propagava a chegada de uma nova era, a era do espírito santo que deveria suceder as duas anteriores, a do pai em que vigia a disciplina; a do filho, tempo de graça e o tempo de Jesus, vem a do espírito santo caracterizada pelo amor e pela liberdade. Logo em seguida ao novo protagonismo dos pobres trazido pela proposta de Gioacchino da Fiori que surge a figura de Francisco de Assis, cuja principal contribuição é a promoção da fraternidade no chamamento de volta às fontes de Jesus, expressa bem mais pelas suas atitudes proféticas, em relação ao que ele costumava afirmar aos seus companheiros: “vão anunciar o Evangelho, se necessário, também com palavras.”. 


Tal a força do testemunho evangelho de Francisco e seus primeiros companheiros de irmandade, que o papado e o alto clero de tudo fizeram para cooptá-lo para estrutura eclesiástica. Em vão, enquanto ele viveu.  Mesmo assim,  a instituição e seus apoiadores acabaram por obter o controle da ordem.


Ainda sim a semente evangélica disseminada por Francisco e seus poucos companheiros, além da relevante participação de Clara, cai em terra fértil, fazendo brotar mais tarde, seguidores seus, a exemplo dos Valdenses, dos Albigenses, dos Begardos, das Beguinas, entre outros. Em memória do testemunho de Francisco, sempre fiel à Dama Pobreza, também surgiram os “Apostolici”, tais como grupos liderados por figuras proféticas como de Gerardo Segarelli e Fra Dolcino. Diversos outros grupos e movimentos deram prosseguimento ao discipulado de Jesus. Dentre eles especial atenção merecem os Albigenses, os Begardos as Beguinas acerca dos quais já tivemos oportunidade de refletir. 


Também no Séc XIV, XV e XVI essas minorias proféticas voltariam a levantar sua voz e a protagonizar edificantes testemunhos. Com efeito, importa evocar o denso legado de figuras como John Wycliffe, Jan Hus e em especial ao alvo-mor deste texto a figura de Thomas Muntzer.


Cenário sócio histórico da Irrupção da Reforma:


A Europa quinhentista - especialmente a Inglaterra, Países Baixos, a França e com menor intensidade a Alemanha, viviam um tempo de glória com as grandes aventuras oceânicas e o desenvolvimento das grandes navegações, com os relevantes investimentos financeiros nos “descobrimentos” e exploração de povos americanos e outros continentes. Vivia-se, entao, se costuma chamar de acumulaçõa primitiva do Capital, ao tempo em que grandes avanços tecnologicos eram também registrados, a exemplo da invenção da Imprensa. 

No plano religioso, o papado e o alto clero protegidos pela inquisição seguiam protagonizando crescentes escândalos sobretudo quanto à abominável campanha das indulgências. Sob a promessa feita aos aderentes, de proporcionar-lhes a redução de suas penas no purgatório, conforme o valor de suas ofertas. Iniciativa que ao lado de profunda corrupção do clero, provocava a ira profética, dos que, conhecendo as Escrituras, consideravam como alta traição ao Evangelho. Entre estes, destacava-se a figura de Martinho Lutero (Eisleben, 1483 — Eisleben, 1546), de quem no início se aproximou o jovem sacerdote Thomaz Müntzer, por volta de 1519. Ambos sentiam-se profundamente indignados contra os malfeitos do papado e do alto clero, por conta da venda de indulgências e da ampla devassidão do Clero, inclusive por proibirem a divulgação, em línguas populares, da Bíblia. Neste sentido, convém sublinhar, a exemplo do que um século antes, fizera o Wycliff (traduzindo a Bíblia para o inglês), a iniciativa de Lutero, de traduzir a Bíblia para o Alemão, a partir da Vulgata. Vale sublinhar, quanto a Müntzer, que empreendeu a tradução para o alemão dos textos litúrgicos, inclusive da Missa. 

Ambos comungavam da mesma indignação e iracùndia proféticas, contra o Papado e o alto clero, que levaram Lutero, com o assentimento de Müntzer, a denunciar publicamente tais aberrações, tendo Lutero tomado a iniciativa de afixar, na porta da igreja de Wittemberg, suas famosas 95 teses protestando contra os demandos eclesiásticos. Ou seja: do ponto de vista estritamente teológico estavam de comum acordo, comungavam do mesmo sentimento. Sucede que, diferentemente de Lutero, Müntzer percebia e se indignava igualmente contra os príncipes alemães, que oprimiam brutalmente os camponeses. Daí nasce entre os dois uma profunda e crescente divergência, chegando a um inevitável antagonismo. Por um lado, Lutero e Müntzer seguiam concordes quanto às críticas contra os desmandos eclesiásticos. Mas por outro lado se afastavam diametralmente, quando se tratava de sua posição em relação aos príncipes. Da parte de Lutero, por se sentir cada vez mais ameaçado pela perseguição do papado, do Alto Clero e seus apoiadores, entendia necessário proteger-se junto aos príncipes. No que diz respeito a Müntzer, compreendia que, do mesmo modo que a sua denúncia era dirigida à estrutura eclesiástica, devia fazê-lo igualmente em relação aos opressores dos camponeses. 


Razões da oposição de Müntzer também contra os principes


Como visto, a ruptura de Müntzer contra Lutero não se deu por acaso. Há, com efeito, uma série de motivos que a explicam, dentre às quais:


- Conforme a fé cristã, o Deus da Bíblia é o Deus da vida, e vida em plenitude (“Eu vim para que tenham vida, e vida em abundância”, Jo 10,10); Um Deus que escuta os clamores dos oprimidos, como se constata no caso dos camponeses (cf. Ex 3,7);

- Os camponeses viviam cada vez mais asfixiados pelos pesados impostos que lhes eram cobrados pelos príncipes; 

- Para tanto, viam-se obrigados a trabalharem como escravos;

- Os camponeses, para cozinharem e para não morrerem de frio, eram obrigados a pagar o dobro do que antes pagavam pela retirada da lenha das florestas de propriedade exclusiva dos príncipes;

- A apropriação indébita pelos príncipes das florestas impunha aos camponeses, para sobreviverem, de terem que caçar o mínimo para sua alimentação, o que se constituía num motivo de protesto e de contestação desse e de outros privilégios, condenados por Müntzer e por seus apoiadores, em especial os anabatistas;

- As próprias viúvas e órfãos de camponeses eram igualmente vítimas da ganância e da atrocidade cometida pelos príncipes, o que suscitava também a iracúndia de Thomas Müntzer e de seus companheiros.

Diante dessa situação Müntzer se punha a cultivar uma profética espiritualidade do conflito que o fez mergulhar nos textos sagrados, em especial, elaborando uma exegese sobre a profecia de Daniel(Cf: Lefebvre, Joel “ THOMAS MUNTZER (1490-1525), ECRITS THEOLOGIQUES ET POLITIQUES, LETTRES CHOISIES. Christianisme et révolution dans l'Allemagne du XVIème siècle, 1982), inspirando-se também em místicos como Mestre Eckhart, aí encontrando força para o bom desempenho da missão profética. 

Ordenado em 1513, antes de tornar-se um pregador itinerante, ordenado em 1513, desempenhara diversas funções como presbítero, pelo menos uma delas por recomendação do próprio Lutero. Por um período exerceu a função de confessor, em uma congregação feminina. Oportunidade em que se sentiu amplamente favorecido pelo tempo, podendo se dedicar profundamente aos estudos das escrituras beneficiado inclusive pelos seus conhecimentos de hebraico, do grego e do latim. Exerceu em outras regiões diferentes atividades, em especial a de prestigiado pregador. Era amplamente apreciado pelas pessoas inclusive por setores privilegiados pela força e inspiração de suas homilias. Como parte componente de sua espiritualidade - uma espiritualidade exercitada no contexto de conflitos intensos -, e como fruto de seus estudos escriturísticos e da partilha com interlocutores e parceiros de suas convicções políticas, Müntzer prosperava, a olhos vistos em seus achados e descobertas, que fazia questão de expressar em suas homilias. 

Sua fidelidade ao Espírito do Evangelho, fortalecida pela sua inspiração em místicos como Mestre Eckhart, à medida que fortalecia o seu ânimo profético pastoral, o movia a uma solidariedade, e a um testemunho de compaixão para com os camponeses.

 Seus estudos escriturísticos de referência na história da cristandade o convenciam, cada vez mais, da traição ao evangelho ao seguimento de Jesus, cometidos pelo papado e pela alta hierarquia eclesiástica cúmplice dos desmandos e dos escândalos dos imperadores e príncipes. Quando mergulhava na leitura orante da Bíblia, especial dos profetas da prática de Jesus e das primeiras comunidades cristãs nos Atos dos Apóstolos e no Novo Testamento, cada vez mais se sentia instado a denunciar as profundas desigualdades que separavam de um lado, a vida nababesca dos papas e alto clero, dos príncipes, imperadores e da nobreza, de um lado e do outro a vida miserável dos camponeses, algo que possivelmente o remetia ao episódio evangélico de Lázaro, do rico epulão a banquetear-se e o pobre Lázaro a recolher as migalhas do banquete. Impasse que no entendimento de Müntzer, só se poderia resolver revolucionariamente a base do "omnia sunt communia" (todas as coisas devem ser comuns). Ao lermos seus escritos - coletânea de sermões, cartas e panfletos - entendemos melhor as razões do enorme interesse que a liderança de Müntzer, à frente da resistência camponesa e sua insurreição contra a ordem social desumana imposta pelos príncipes, pela nobreza, pelo papado e pela alta hierarquia eclesiástica - tanto católica quanto luterana - e falando de tal modo que Engels, entre outros, dedicou um relevante estudo seu a irrupção da Guerra Camponesa, na Alemanha, no qual atribui uma importância capital ao papel revolucionário exercido por Thomas Müntzer. Estudo que inspiraria investigações ulteriores por outras figuras como no caso de Ernst Bloch "Thomas Müntzer o teólogo da revolução". 

Traz a relevância e o impacto do trabalho de Engels que, a justo título, Michael Löwy o considera o fundador da sociologia da religião, na perspectiva marxista. 


A título de remate

Seja do ponto de vista teológico, seja do ponto de vista da práxis revolucionária, o legado profético pastoral e revolucionário de Thomas Müntzer se revela marcado pelo seu potencial transformador, pela sua força subversiva, cuja rememoração se reveste pessoal e coletivamente de um relevante sentido político pedagógico e ético, especialmente para nossas organizações de base, em particular para os movimentos sociais populares que protagonizam lutas por uma nova sociedade alternativa à barbárie capitalista e a toda sociedade de classes. Daí a importância ético-política da educação popular desde que trabalhada numa perspectiva marxista-freireana orientada/alimentada criticamente a um horizonte de alternatividade em relação ao modo de produção de consumo e de gestão capitalista, fundada numa mística revolucionária, exercitada diuturnamente pelos sujeitos históricos protagonistas e pelo exercício pessoal e coletivo da crítica precedida/acompanhada da autocrítica, e alimentada pela memória histórica dos oprimidos em âmbito Mundial, Latino Americano e Nacional, mediante uma contínua leitura de mundo seguida do compromisso pessoal e coletivo de luta ao lado das classes populares, do campo e da cidade.

Exercitar a tal memória histórica - no caso da figura de Müntzer - não significa reproduzir seus feitos, mas recolher criticamente as lições desta (e de outras) saga, tendo em vista os desafios da realidade atual. 


João Pessoa, 20 de junho de 2022. 


PS: Texto digitado (a partir de áudios) por Eliana de Freitas Calado, Gabriel Calado Bandeira e Heloise Calado Bandeira, Alexandre Soares, Águeda Calado e Antônio Souza, e revisado por Luciana Calado Deplagne.  


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