Educação Popular e Teologia da Libertação: A contribuição de Paulo Freire e outros cristãos de Esquerda
Alder Júlio Ferreira Calado
Ainda teremos muito que aprofundar as reflexões sobre a notável confluência entre a Teologia da Libertação e a Educação Popular. Parece-nos oportuno trazer alguns elementos que reforçam tais liames de afinidade entre, de um lado, o modo como atuam as principais referências da Teologia da Libertação (ou, como preferem as novas gerações desta corrente, as “Teologias da Libertação”) e, por outro lado as principais referências da Educação Popular, das quais Paulo Freire costuma ser tomado como representante emblemático.
O “Rumor de Botas” (Eder Sader) que infelicitou por décadas, o Brasil e o Cone Sul, não conseguiu silenciar vozes proféticas de teólogos e militantes e intelectuais Cristãos. Enorme é a lista desses teólogos e teólogas da Libertação - Católicos e Protestantes - diversos dos quais também faziam interlocução com a Educação Popular. Dentre eles/elas, podemos citar, a título de exemplo: Paulo Freire (1921-1997), Ivan Illich (1926-(2002), Gustavo Gutiérrez (1928- ), José Comblin (1922-2011), Hugo Assman (1933-2003), Carlos Mesters (1931- ), Leonardo Boff (1938- ), Clodovis Boff (1944- ), Marcelo Barros (1944- ), Jon Sobrino (1938- ), Ignácio Ellacuría (1930-1989), Hugo Echegaray (1940-1979), José Severino Croatto (1930-2004), Gilberto Gorgulho (1933-2012), Ana Flora Anderson, Enrique Dussel (1934-2023), José Oscar Beozzo (1941- ), Eduardo Hoornaert (1930- ), Luiz Alberto Gomez de Souza (1935- ), Franz Hinkelammert (1931-2023), Elsa Tamez (1951- ), Ivone Gebara (1944- ), Maria Clara Bingemer (1949- ), João Batista Libânio (1932-2014), Frei Betto (1944- ), Phillip E. Berryman (1938- ), Pablo Richard (1939-2021), Ronaldo Muñoz (1933-2009), Vitor Codina (1931-2023), José Maria Vigil (1946- ), Giulio Girardi (1926-2012), Segundo Galilea (1928-2010), Juan Luís Segundo (1925-1996) (Teólogos Católicos); Richard Shaull (1919-2002), Julio Barreiro (1922-2005), José Miguez Bonino (1924-2012), Julio de Santa Ana, Jorge Pixley (1937-2023), (1934-2023), Joaquim Beato (1924-2015), Anivaldo Padilha (1940- )Rubem Alves (1933-2014), João Dias de Araújo (1930-2014), Orlando Fals Borda (1925-2008), James Wright (1927-1999), Paulo Ayres Mattos (1940-2022), Almir Santos, Waldo César (1922-2007), Jether Pereira Ramalho (1922-2020), Zwinglio Mota Dias, José Bittencourt Filho (Teólogos Protestantes).
Com efeito, por conta de uma conjuntura latinoamericana e brasileira de crescente efervescência social e política, podemos constatar um fecundo diálogo entre a então nascente teologia da libertação com a Educação Popular. As notas que seguem, tratarão de enfatizar traços relevantes desta confluência.
Teologia da Libertação dá sequência a um longo processo histórico de Libertação
Da parte da Teologia da Libertação, observamos antes de tudo, uma retomada de uma longa trajetória histórica que remonta a relatos bíblicos (Êxodo, Profetas…) e ao Movimento de Jesus, às comunidades cristãs dos primeiros séculos, as posições proféticas de teólogos como João Crisóstomo, Basílio de Cesareia, Gregório Nazianzeno; aos Movimentos Pauperísticos (Valdenses, Fraticelli, as Beguinas), os Hussitas (Jan Hus), Thomas Müntzer, Antonio de Montesinos, Pedro de Córdoba, Bartolomeu de las Casas. E outros Cristãos revolucionários, nos últimos séculos. De fato, ao falarmos da Teologia da Libertação, A despeito do nome, não se trata propriamente de uma novidade, ainda que estejamos nos referindo a “minorias abraâmicas”, no dizer de (Dom Helder Câmara), em sua ação profética ao longo da história.Trata-se, antes, de uma continuidade que comporta alguma descontinuidade, alguns traços novos (daí, falar-se hoje em “Teologias da Libertação”).
Origens recentes da Teologia da Libertação: a precedência de teólogos protestantes
Se é certo que, quanto ao nome do livro “Teologia da Libertação: perspectivas“, de autoría de Gustavo Gutiérrez, que é celebrado como o texto-referência, desde 1971, também é certo que, desde os anos 50, a temática “Revolução“ / “Libertação (data de 1953 a publicação do livro “O Cristianismo e a Revolução Social”, de autoria de Richard Shaull) foi alvo de abordagens por diversos Teólogos protestantes, a exemplo de Richard Shaull e Rubem Alves, cuja tese (orientada, inclusive, por Richard Shaull, versou sobre “Por uma Teologia da Libertação”, apresentada em 1968.)
Desde os anos 50, sobretudo em virtude do segmento progressista da Confederação Evangélica do Brasil, e mais precisamente graças à ação profética do setor de responsabilidade social, as principais lideranças e pastores da Igreja Presbiteriana, e algumas outras, protagonizaram relevantes iniciativas de estudos críticos sobre a realidade social Latino-americano e brasileira, bem como de intervenção no processo formativo do mundo jovem em que a Educação Popular constituía uma referência profundamente fecunda.
Foi também durante esse período que figuras como Paulo Freire, Orlando Fals Borda, Carlos Rodrigues Brandão, Rubem Alves, Julio Barreiro se mostraram intelectuais de grande reconhecimento nacional e latino-americano. Graças a estes e outros Educadores e Teólogos da Libertação, reconhecidos pela qualidade de suas produções, especialmente circulantes na Revista “Iglesia Y Sociedad” e no periódico “Tierra Nueva”, este sob a responsabilidade de Julio Barreiro, principal difusor dos escritos de Paulo Freire em língua espanhola. Convém assinalar, a este propósito, o empenho especial de Julio Barreiro na divulgação da obra freireana, de tal modo que, mesmo no período ditatorial uruguaio de intensas perseguições e censuras, Julio Barreiro continuou a publicar os livros de Paulo Freire, recorrendo inclusive a editoras de outros países, foi o caso, por exemplo, da editora Siglo XXI, no México. Neste sentido, deve-se reconhecer o fecundo alcance do coletivo “ISAL” (Iglesia y Sociedad en América Latina), com sede em Montevidéu.
Como reconhece José Bittencourt Filho, em seu artigo publicado no livro organizado por Wanderley Pereira da Rosa e José Adriano Filho, acerca do alcance do impacto da célebre “Conferência da Nordeste” (em Recife, em 1962), a fundação do ISAL representou um marco inestimável na trajetória político-eclesial - e de carater ecumenico - das principais Igrejas Reformadas, no pós-Guerra. Com efeito, das diversas iniciativas impactantes desta caminhada, a fundação do ISAL representa um dos seus pontos altos, à medida que, a despeito de sua origem institucional, atuava como um movimento propulsor de mudanças sócio-eclesiais de envergadura.
Educação Popular e Teologia da Libertação em Confluência
Na segunda metade dos anos 50 e durante os anos 60, mostrou-se forte o compromisso entre teologia da libertação e educação popular, do qual brotaram iniciativas importantes, na América Latina, inclusive em Cuernavaca (México) e Petrópolis (Brasil), graças a liderança de Ivan Illich, Richard Shaull, Paulo Freire, entre outros. Animados por encorajadores sinais de mudança social, inclusive de caráter revolucionário, esse grupo de latino-americanos, teólogos da libertação e educadores, tornou-se uma referência reconhecida. Alguns episódios podem ilustrar melhor tal protagonismo.
Malgrado toda uma ideologia escravocrata que marcou a ação missionária de católicos e protestantes vindos da Europa e dos Estados Unidos, importa destacar que, a partir de 1934, a fundação da Congregação Evangélica do Brasil (CEB), a despeito de certa heterogeneidade político-ideológica de seus membros, contou com integrantes progressistas que, movidos pela sua Fé, principalmente a partir dos anos 50, se mostraram comprometidos com a causa libertadora dos oprimidos, também por meio da Educação Popular. Prova convincente deste compromisso se percebe na ação político-pedagógica desenvolvida pelos coordenadores do setor de Responsabilidade Social da CEB, ao promoverem relevantes reuniões de estudos da realidade social brasileira, sucessivamente em 1955, em 1957, em 1960 e a mais importante de todas - a “Conferência do Nordeste”, - realizada em Recife, de 22 a 29 de julho 1962, sobre a qual, há cerca de um mês tivemos a oportunidade de refletir, de modo sinóptico (cf. textosdealdercalado.blogspot.com).
A este respeito, cumpre apenas destacar pontos axiais. Dela participaram mais de 160 delegados e convidados, já que foi protagonizada não apenas por protestantes, mas também por intelectuais amplamente reconhecidos pela sua contribuição aos estudos da realidade brasileira, a exemplo de Celso Furtado, Paul Singer, Francisco Julião, entre outros. Quanto aos teólogos protestantes, entre os principais conferencistas estiveram o Revdo. Joaquim Beato e Revdo. João Dias de Araújo, cabendo ao primeiro refletir sobre os Profetas em tempos de grandes transformações sociais e políticas, enquanto ao segundo coube refletir sobre o tema do conteúdo revolucionário do ensinamento do Evangelho.
Menos de dois anos depois, instala-se no Brasil, com o Golpe de Estado de 1964, uma tenebrosa ditadura civil-militar que durou 21 anos. Cumpre sublinhar as abomináveis consequências também sofridas por muitas dessas lideranças, com a agravante de que diversos desses teólogos foram presos e torturados, vítimas inclusive de denúncias feitas e de perseguições sofridas ao interno de suas próprias Igrejas. Acerca dessas perseguições, vale a pena conferir os relatos feitos pelo Revdo. João Dias de Araújo, em seu livro “Inquisição sem fogueira: Inquisição sem fogueiras: Vinte anos de história da Igreja Presbiteriana do Brasil” (2020, Editora Resistência Reformada)
Em âmbito internacional, tal tendência também se verifica, graças à atuação de parte considerável dos integrantes do Conselho Mundial de Igrejas, com sede em Genebra, e do qual Paulo Freire foi convidado a coordenar o departamento de Educação, de 1970 a 1980, período durante o qual resultou amplamente fecunda sua atuação, junto com sua equipe, de Educador Popular junto a lideranças de vários países Africanos, principalmente os lusófonos, densa experiência da qual ele também relata, em seu “Cartas à Guiné-Bissau” (Editora Paz e Terra 1978), relevantes experiências. Convém ressaltar, ao lado de Paulo Freire e sua Equipe, a atuação de figuras de excelência, participantes da organização do conselho mundial de Igrejas, entre as quais, só para citar um nome, o teólogo argentino José Miguez Bonino, que integrava o Comitê Central do CNI, tendo ainda sido convidado a participar como observador das sessões do Concílio Vaticano II.
Em seu conhecido livro “Ação Cultural para a Liberdade” (Editora, Paz e Terra 1978), Paulo Freire reuniu uma notável diversidade de temas, entre os quais o tema da libertação é utilizado, em alguns textos, inclusive com referência explícita a Teologia da Libertação, escritos alguns deles em 1969, trabalhados em seminários por ele coordenados.
Richard Shaull, que já havia trabalhado na Colômbia, ao lado inclusive do sociólogo colombiano Orlando Fals Borda, uma vez expulso da Colômbia veio trabalhar no Brasil, como pastor presbiteriano, até que, no contexto do Golpe de Estado no Brasil, foi também expulso, tendo ido trabalhar na Universidade de Princeton, tendo sido também orientador de tese de Rubem Alves. Certa feita, ao receber a visita de Paulo Freire, que trazia consigo os originais e sua “Pedagogia do Oprimido”, foi perguntado por Shaull se se tratava da única cópia em suas mãos. Recebendo resposta positiva da parte de Freire, Shaull tratou imediatamente de fotocopiar aqueles inscritos, empenhando-se pela sua primeira publicação, em língua inglesa, da qual o próprio Shaull foi o prefaciador.
Um segundo episódio nos remete ao convite feito pelo principal representante norte-americano da Teologia Negra da Libertação, James Cone, para prefaciar a edição Argentina de seu Black Theology of Liberation. O texto deste prefácio encontra-se também publicado no livro (Coletânea de Artigos) “Ação Cultural para a Liberdade”. Após expressar o forte impacto que a leitura do livro de Cone nele causado, Freire se refere a sublinhar a profunda afinidade entre os escritos de Cone e a então nascente Teologia da Libertação latino-americana. Ambas se acham atravessadas pelo compromisso libertário com a causa dos oprimidos, inclusive com traços revolucionários, razão pela qual, afirma freire que “ Dizer sua palavra, por isso mesmo, não é apenas dizer “Bom-dia” ou seguir as prescrições dos que, com seu poder, comandam e exploram. Dizer a palavra é fazer história e por ela ser feito e refeito. As classes dominadas, silenciosas e esmagadas, só dizem sua palavra quando, tomando a história em suas mãos, desmontam o sistema opressor que as destrói”.
Convém ainda observar que a leitura do livro de Cone precede imediatamente a realização de um Seminário, em Genebra, animado pelo próprio Freire, no qual se trabalha a problemática “Educação e Libertação”.
Que ensinamentos somos chamados a recolher?
Sempre tomando em conta o público-alvo preferencial de nossos escritos - jovens e adultos militantes de nossas organizações de base -, não nos cansamos de insistir na relevância do exercício contínuo da memória histórica, desde que conectada ao horizonte de nossa militância e aos compromissos (“Práxis”) de transformação social. Neste sentido, aqui tratamos de focar a fecunda parceria da Teologia da Libertação com a Educação Popular. tanto uma quanto a outra, com efeito, têm muito a nos oferecer, não apenas durante as últimas décadas. No caso da Teologia da Libertação, ao destacarmos seu potencial transformador das últimas décadas rememoramos aspectos de sua trajetória multissecular. Em certo sentido, por que não dizer algo semelhante em relação à Educação Popular, considerando, por exemplo, notáveis aspectos presentes na Pedagogia do movimento de Jesus?
Focando principalmente aspectos desta parceria, especialmente desde os anos 50, cuidamos de trazer à tona o caráter transformador desta parceria, bem como seus principais protagonistas e sua metodologia de trabalho. Observamos, ainda, como merece ser aprofundado o conhecimento da efetiva participação de teólogos protestantes (Igreja Presbiteriana, Igreja Metodista e outras) e seu empenho ecuménico testemunhado pelo menos duas décadas antes dos teólogos católicos.
Felicitamos, com alegria, os organizadores, os autores e autoras do livro “50 Anos de Teologias da Libertação”, publicado, em dois volumes, pela Editora Recriar, por nos oferecerem uma valiosíssima contribuição de nos avivar a memória, ao mesmo tempo em que acenam para uma reavaliação e sobretudo para os novos desafios a serem enfrentados. Em três diferentes grupos, temos feito a leitura sequenciada destes dois volumes, com entusiasmo e muito proveito. Isto não nos impede de perceber certa reserva ou mesmo distanciamento da perspectiva Marxista que inspirou diversos teólogos e educadores nos anos cinquenta e sessenta. Como apreciamos a diversidade/pluralidade de perspectivas analíticas, entendemos que deve haver espaço também para o legado marxista.
Outro ensinamento que podemos extrair da parceria alvo destas notas, nos instiga a revisitarmos o legado de tantas iniciativas protagonizadas por Paulo Freire e outras figuras de referência da Educação Popular, em trabalho conjunto com pioneiros da Teologia da Libertação, a partir dos anos 50 e 60. Nesta toada, vale também a pena ressaltarmos, por exemplo, os textos comemorativos da “Conferência do Nordeste”, um dos quais “Cristo e o Processo Revolucionário Brasileiro A Conferência do Nordeste 50 Anos Depois (1962-2012)”, organizado por Wanderley Pereira da Rosa e José Adriano Filho, publicado pela Editora Mauad, Rio de Janeiro ano de 2012.
Eis, pois, alguns ensinamentos que entendemos poder recolher da reflexão sobre a fecunda parceria vivenciada por protagonistas da Teologia da Libertação e da Educação Popular.
João Pessoa, 07 de Março de 2024
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