quarta-feira, 21 de maio de 2025

Palestina livre e a Flotilha da Liberdade: o alcance da solidariedade possível.

Palestina livre e a Flotilha da Liberdade: o alcance da solidariedade possível.


Alder Júlio Ferreira Calado


Uma das marcas mais impactantes da tragédia humana, hoje experimentada

Sob diferentes manifestações, prende-se a uma crescente indiferença com os destinos do Planeta e da humanidade. Embora não se trate de uma marca exclusiva das sociedades deste tempo, constitui um dos traços mais fortes de nossa atualidade. Aí podemos observar uma espécie de cegueira e de esquecimento ante evidências brutais. Os fatos e acontecimentos mais dramáticos se sucedem diante dos nossos olhos, e tendemos a aceitá-los como se fossem naturais. 


No momento em que nos detemos sobre esta catástrofe, vêm a público atrozes imagens e relatos do crescente massacre perpetrado pelo Estado de Israel contra o povo palestino. Como é possível que a humanidade assista tão passivamente a tantas e gravíssimas atrocidades contra milhares de palestinos, especialmente crianças, mulheres, trabalhadores da saúde e socorristas em flagrantes ações de socorro, jornalistas provenientes das mais diferentes regiões do mundo. Sendo sistematicamente assassinados? O estado de Israel, sozinho, teria força para praticar, durante décadas, tais barbaridades, sem a cumplicidade direta do Ocidente?  


Aí reside uma das manifestações mais deletérias com a qual a barbárie capitalista consegue nos capturar. Temos olhos, mas não vemos; temos ouvidos, mas, nos fazemos de surdos aos gritos mais glamorosos. Vivemos uma cultura da indiferença. Consola-nos, no entanto, constatar que nem todos assim se comportam, diante das agressões ao planeta, diante do crescimento exponencial das desigualdades sociais, diante das distâncias cada vez maiores entre um cada vez mais reduzido número de bilionários a multiplicar suas riquezas à custa de enormes multidões de famintos, de explorados e de dominados que se multiplicam pelo mundo afora. Consola-nos, por exemplo, a coragem de algumas centenas de pessoas que, desde 2008, não tem cruzado os braços, em busca de manifestar solidariedade ao povo palestino, por meio de uma iniciativa aparentemente tão impotente, mas, sob outro aspecto recheada de um potencial molecular de transformação. 


Trata-se da “Flotilha da Liberdade”. Com o protagonismo internacionalista de cerca de mil militantes, procedentes de uma trintena de países – inclusive do Brasil -, eis que em 2008, diante do cerco “quase” completo da população de Gaza, com cerca 2 milhões e 300 mil habitantes, que, há décadas, se veem submetidos pelas forças sionistas de Israel, com a cumplicidade fundamental do Governo dos Estados Unidos e das forças imperialistas, em escala mundial, a Flotilha da Liberdade tem a ousadia de enfrentar os sionistas e seus aliados, buscando minorar o sofrimento de toda uma população mantida em um campo de concentração e na extrema penúria, durante décadas.


Reconhecendo a diversidade e a legitimidade das várias formas de lutas

libertárias, os protagonistas da Flotilha da Liberdade empenham-se em expressar sua solidariedade, de forma pacífica, limitando-se a fazer chegar até Gaza mais de 5 mil toneladas de alimentos e medicamentos, enfrentando violentas perseguições da parte do Governo Sionista de Benjamin Netanyahu. Ainda que a Flotilha da Liberdade tenha o suporte legal de distintos organismos internacionais – a ONU incluída -, seus protagonistas, desde o início, sofrem contínuos ataques pelas forças sionistas de Israel e seus aliados. A Flotilha da Liberdade navega sempre por águas internacionais, contando com o apoio de algumas forças anti-sionistas, a exemplo da Turquia. Da Flotilha da Liberdade fazem parte cerca de mil voluntários, procedentes de cerca de 30 países. Trata-se de militantes de um perfil variado: Parlamentares, figuras públicas, comunicadores, ativistas das causas socioambientais, entre outros. 


No caso do Brasil, a principal figura de referência tem sido o

comunicador Thiago Ávila, cujas redes digitais merecem ser não apenas consultadas, mas também apoiadas e divulgadas. Dele podemos conferir diversas intervenções, ora em forma de vídeos, ora em forma de entrevistas concedidas a órgãos progressistas, a exemplo de Brasil 247, Opera Mundi, entre outros. Para além destes espaços, diversos outros, em inglês, podem ser acessados, principalmente via instagram.


Entre tantos traços de resistência e de solidariedade manifestados pelos integrantes da Flotilha da Liberdade, merecem especial destaque alguns deles. Um primeiro tem a ver com o compromisso ético-político de seus integrantes. Conscientes da correlação de forças extremamente desigual - enfrentar a poderosa máquina de guerra e de morte das forças ocupantes/colonialistas/supremacistas/segregacionistas/opressoras de Israel, profundamente amparadas pelos sucessivos governos dos Estados Unidos e da Europa Ocidental, os integrantes da Flotilha da Liberdade ousam, desde 2008, testemunhar sua solidariedade ao Povo Palestino, vítima de um hediondo genocídio, acompanhado ao vivo e em cores por uma humanidade escandalosamente passiva ressalvadas honrosas exceções (seguimentos da Síria, do Líbano, do Iêmien, do Iraque, do Irã, entre outros).


Outro traço impactante a merecer destaque prende-se a forma pacífica como os integrantes da Flotilha da Liberdade decidem manifestar sua solidariedade, sendo mesmo assim alvo constante de ataques violentos das forças de Israel. Sua opção por uma ação pacífica resulta enormemente significativa, mesmo reconhecendo a legitimidade de outras formas de resistência, inclusive baseadas no Direito Internacional, segundo o qual a qualquer povo ocupado/colonizado assiste o direito de resistência, sob todas as formas reconhecidas pela ONU. 


Nos diversos espaços de comunicação disponibilizados pelos integrantes da Flotilha da Liberdade, podemos encontrar informações detalhadas acerca de sua origem, de sua natureza solidária, de seu método de ação, da proveniência de seus militantes, bem como do seu perfil, além das diversas formas de contribuir com esta causa libertária. 


https://www.youtube.com/watch?v=HC_yN_A51NU&t=2546s


https://open.spotify.com/show/4GTrddwqYaFDOuNUPcsRaX


https://www.youtube.com/live/BDLIxUuhUKk?si=zCb-qMS SwiNG vNq



João Pessoa, 21 de Maio de 2025.




quarta-feira, 14 de maio de 2025

Igreja(s) em sua dimensão institucional: quais sujeitos eclesiais?



Alder Júlio Ferreira Calado 


Com vivo interesse, também nós acompanhamos, sobretudo nos últimos meses, a “via crucis” e a páscoa definitiva de Francisco, Bispo de Roma, bem como o processo eleitoral, pelo Conclave, que resultou na escolha do Papa Leão XIV, na última quinta - feira dia 08/05. As questões aqui trazidas, sem se eximirem deste debate, pretendem ir além dele. Nossas indagações tem o propósito de, ao cavoucarem evidências esquecidas ajudar a desvendar a brasa espessamento encoberta por densas camadas de cinzas superpostas, ao longo de séculos de Cristandade. 


Sendo o processo eleitoral de um Papa tratado como “affaire d’État”, da exclusiva alçada de 135 Cardeais, resta quase nula a participação de centenas de milhões de outros integrantes da Igreja Católica Romana, poucos dos quais questionam tal processo. O que se percebe é uma estrondosa cobertura midiática que dura semanas, limitando-se a expectativas do milagroso “Habemus Papam". Assim tem sido durante séculos, especialmente após a era constantiniana. O Concílio Vaticano II tentou amenizar, especialmente graças ao carisma profético do Papa João XXIII, o formato da organização eclesiástica, como se pode conferir pela leitura atenta dos seus 16 Documentos (4 Constituições, 9 Decretos e 3 Declarações). Na constituição “Lumen Gentium”, por exemplo, a atenção maior já não se volta, como antes, para a centralidade organizativa da Igreja na hierarquia, mas no “Povo de Deus”. No entanto, passados 60 anos, tal formato hiper-hierarquizado não só se têm mantido, como até mesmo ampliado, notadamente durante o longo período dos pontificados de João Paulo II e de Bento XVI. O recente período do Papa Francisco constituiu um ponto fora da curva, sob vários aspectos, mas insuficiente para alterar tal estrutura. 


Nas linhas que seguem, limitamo-nos a compartilhar, por meio de questionamentos, algumas de nossas inquietações que vão bem além de meras expectativas quanto ao perfil e ao desempenho do recém - eleito Papa leão XIV:

  • Na apreciação de qualquer fato ou acontecimento eclesial, em que parâmetros essenciais nos devemos embasar? Quais os critérios que, graças ao dom do discernimento concedido pela Divina Ruah, somos chamados a pôr em prática no exame de fatos e acontecimentos históricos e eclesiais?

  • Como a Tradição de Jesus está ou não presidindo ao exame da realidade da Igreja atual?

  • No tocante, por exemplo, aos sujeitos eclesiais chamados a protagonizar as diferentes experiências organizativas da Igreja Católica, por quem, de fato, são tomadas as decisões, na esfera eclesial?

  • Se, conforme os critérios da Tradição de Jesus, reconhecíveis especialmente nos textos neotestamentários, é o conjunto da Comunidade animada por Jesus, em comunhão com os seus discípulos e discípulas como justificar que as grandes decisões eclesiais continuem sendo tomadas apenas e exclusivamente por uma minúscula fração dos seus sujeitos?

  • Qual a participação das Mulheres que constituem a maioria dos integrantes da Igreja Católica (e das demais Igrejas), nas grandes decisões?             

  • Saudando os esforços de renovação do Papa Francisco que impactos significativos têm resultado, no cotidiano eclesial?

  • Não obstante, o persistente clamor por mudanças e por reformas - “Ecclesia semper reformanda est”, inclusive por parte de Dom Hélder Câmara (conferir suas “cartas conciliares” e o filme “O Santo Rebelde”), como justificar, pela tradição de Jesus, que a Igreja Católica Romana, siga organizada em forma de Estado, dispondo de estrutura financeira, de Banco, de carreira diplomática, etc, regendo-se mais pelo código de Direito Canônico do que pelo Evangelho?


Como acontece em diversas partes do mundo, especialmente entre aquelas e aqueles que preferem navegar pelas correntezas subterrâneas, também buscamos em vários Grupos de reflexão, presenciais e virtuais, participando, há vários anos, de estudos sobre a Tradição e o Movimento de Jesus - já tendo a oportunidade de refletir criticamente a partir de densas contribuições de teólogos e teólogas, a exemplo de José  Comblin, Gustavo Gutierres, Jon Sobrino, Elsa Tamez, Ivone Gebará, José Antonio Pagola, Eduardo Hoornaert, José Vigil, Enrique Dussel, entre outros. Temos percebido, com preocupação, um crescente distanciamento das Igrejas Cristãs das principais fontes inspiradoras do Movimento de Jesus. Quanto mais revisitamos essas raízes da Tradição de Jesus, por meio de leituras de livros tais como “Jesus de Nazaré”, de Comblin (Petrópolis: Vozes, 1971); Comblin. “A Profecia na Igreja” (São Paulo: Paulus, 2008); Pagola, José Antonio. “Jesus, aproximação histórica” ( Petrópolis: Vozes, 2014); Pagola, José Antonio. “Voltar a Jesus” (Petrópolis: Vozes, 2015); o denso legado do Papa Francisco (seus pronunciamentos, seus escritos, suas viagens Apostólicas pelos cinco continentes), sobre o qual já tivemos a oportunidade de refletir, reiteradas vezes; as contribuições  de respeitados vaticanistas, a exemplo de Marco Politi (cf. Por exemplo, https://www.youtube.com/watch?v=jWviU6BcHSI&t=3623s); no caso da Igreja no Brasil, ver recentes pesquisas produzidas, por exemplo sob a coordenação do Teólogo Agenor Brighenti (livro “O novo rosto do clero: Perfil dos padres novos no Brasil”, editora Vozes, 2021; “O novo rosto do catolicismo brasileiro: Clero, leigos, religiosas e perfil dos padres novos”, editora Vozes, 2023)- só para mencionar estes estudos.  


Amparado nestes estudos produzidos por gente de reconhecida competência e de fidelidade aos valores do Movimento de Jesus, ousamos seguir indagando:

  • Por mais exitosa que venha a ser a escolha de um Papa, por mais próximo de Francisco que venha a se mostrar, podemos apostar que isto seja suficiente para provocar uma profunda mudança nas estruturas organizativas da Igreja Católica Romana?

  • Tal tendência, por outro lado, significa que nada temos a fazer?

  • Que tal seguirmos clamando e agindo, movidos e movidas pela força que nos inspira a Divina Ruah, que o Ressuscitado nos envia, também no tempo presente?


Ao concluirmos estas breves linhas, não nos furtamos a prestar uma homenagem a figura de Pepe Mujica - ex-presidente do Uruguai, que ontem partiu para outro plano - pelo seu denso legado ético e luminoso, especialmente nestes tempos tenebrosos.


João Pessoa, 14 de maio de 2025


quarta-feira, 7 de maio de 2025

Intérpretes do Brasil (XX): o pioneirismo de Leolinda de Figueiredo Daltro

Intérpretes do Brasil (XX): o pioneirismo de Leolinda de Figueiredo Daltro


Alder Júlio Ferreira Calado 


Ao apresentarmos uma nova figura, nesta série de intérpretes do Brasil, trazemos a público a Educadora indigenista e feminista Leolinda Daltro. Como de hábito, insistimos em rememorar, de início, dois aspectos que julgamos inseparáveis de nossa proposta: os destinatários especiais de nossos escritos - os/as jovens militantes de nossas organizações de base, e um novo horizonte de sociabilidade, alternativo à atual barbárie capitalista. 


Tal como procedemos, em relação aos demais intérpretes do Brasil - homens e mulheres -, também nas linhas que seguem, iniciamos com o fornecimento de uma breve notícia bibliográfica da autora, seguida de uma apreciação e de destaques sobre o seu legado, buscando daí recolher ensinamentos relevantes que nos sirvam de inspiração e de ferramenta para o enfrentamento exitoso dos velhos e novos desafios apresentados pela nossa realidade atual. 


Antes, porém, de procedermos ao primeiro tópico, convém alertar para a necessidade de não cometermos anacronismos, pretendendo interpretar mecanicamente os feitos e os ditos da autora, próprios de sua época, sem qualquer esforço da necessária contextualização. Em outras palavras, somos chamados a ler Leolinda Daltro e outros intérpretes como mulheres e homens de seu tempo.     


Breve notícia biobibliográfica de Leolinda Daltro (1859 - 1935)


Leolinda de Figueiredo Daltro é nordestina nascida na Bahia em 14 de Julho de 1859. Ainda muito jovem, contrai seu primeiro casamento, do qual resultaram seus dois primeiros filhos. O divorcio não tardaria, e pouco depois, faria um novo casamento, do qual nasceram mais três filhos. Em busca de sobreviver dignamente com seus cinco filhos muda-se para o Rio de Janeiro encontrando na Educação (como Professora) o caminho não apenas para responder às necessidades materiais de sua família, como também para trilhar caminhos de esperançamento de mulher, de mãe e de cidadã, comprometida com o enfrentamento dos principais desafios do seu tempo, combinando sua luta como Professora com outros espaços de luta. Neste sentido, revelou-se combativa também na luta feminista, na defesa dos povos originários e nas lutas políticas de seu tempo.


A mudança da família para o Rio de Janeiro constituiu um passo fundamental, no processo de emancipação de Leolinda, por diferentes razões. Em primeiro lugar, por ter significado um relevante fator de sua independência econômica: Leolinda necessitava de encontrar um caminho para garantir o sustento econômico de sua família, e o fez de modo eficaz, ao escolher a profissão de Professora, aí descobrindo relevantes achados para sua formação continuada e a dos filhos. Com efeito, pelas trilhas da Educação, Leolinda de Figueiredo Daltro passaria a entender melhor o mundo do seu tempo. Por exemplo, passou a perceber melhor agora como divorciada, que era capaz de viver mais livremente, sem as imposições do Patriarcalismo (ao menos, no âmbito familiar), assim ousando investir mais em sua consciência feminista, principalmente ao travar conhecimento com tantas outras mulheres do seu tempo, vivendo semelhantes circunstâncias.


Graças a sua ousadia em seguir investindo em seu processo formativo contínuo, passaria a fazer outras importantes descobertas, a exemplo da necessidade de encontrar no campo da Política, a despeito das contradições de um campo ainda marcadamente machista, uma alavanca para reforçar as lutas das mulheres, no terreno das decisões que lhes interessavam. Eis por que, associando-se a outras figuras feministas do seu tempo, vem a dar passos concretos, na construção de um partido feminista: o Partido Republicano Feminino, em 1910. Com olhos de hoje, resulta fácil perceber a fragilidade dessa via, em uma República tão contraditória, que pouco ou nada tinha a ver com a enorme maioria da população - as mulheres, os negros, os indígenas, os camponeses, os operários. Mesmo assim, isto correspondia ao que era possível, em seu tempo. Uma vez formado e oficialmente registrado, seu Partido Rebuplicano Feminino constitui a ferramenta que viabilizou as lutas das mulheres de seu tempo, de protagonizarem o sufrágio, passando as mulheres a exercerem o direito de votarem e serem votadas.


Mulher atenta aos desafios do seu tempo, Leolinda de Figueiredo Daltro seria marcada, no entanto, por uma entrega ainda maior: a sua luta indigenista, em uma época francamente marcada pelo controle dos valores, das crenças e da ideologia exercidos pelo clericalismo, inclusive em relação aos povos originários, por força do que pretendia a Igreja Católica controlar os Indígenas pela catequese, inclusive pela alfabetização, Leolinda Daltro ousou denunciar tal controle, propondo aos governantes de então uma campanha de alfabetização dos Indígenas inteiramente laica, isto é, dissociada da Catequese católica. Para tanto, teve a ousadia de conhecer mais de perto alguns grupos indígenas, seja em Goiás, seja no Mato Grosso.  


Leolinda Daltro não se limitou a essas frentes de luta. Empenhou-se em aglutinar as mulheres do seu tempo, inclusive promovendo manifestações e passeatas, clamando pelo direito de participação política das Mulheres no Parlamento brasileiro. Também se revelaria uma militante no campo da escrita. Além de escrever para diferentes periódicos, chegando mesmo a fundar alguns, também se revelou como autora de dois livros: “Entre a pena e a espada” e “Patriotismo, indigenismo e feminismo”.


Importa ainda remeter as pessoas interessadas a estudos e pesquisas acadêmicas (especialmente, teses) acerca de Leolinda. apenas como um primeiro estímulo ao conhecimento da trajetória da vida e da obra de Leolinda Daltro, recomendamos alguns textos específicos, nesta direção. Neste sentido, vale a pena conferir o artigo intitulado “Vida de Professora: ideias e aventuras de Leolinda Daltro durante a primeira República” (cf. https://periodicos.ufsc.br/index.php/mundosdotrabalho/article/view/1984-9222.2016v8n15p29) de autoria de Eliane Pereira Rocha, professora da The University of the West Indies; a tese intitulada “Leolinda Daltro, a caminhante do futuro: uma análise de sua trajetória de catequista a feminista” (Rio de Janeiro/Goiás - 1896-1920) da professora Paulete Maria da Cunha, da Universidade Federal de Tocantins (cf. https://www.escavador.com/sobre/6653058/paulete-maria-cunha-dos-santos); bem como a comunicação (“memória”) apresentada pela própria professora Leolinda de Figueiredo Daltro, por ocasião do I Congresso Brasileiro de Geografia, realizado no Rio de Janeiro, em 1909. Recomendo fortemente a leitura integral deste escrito da lavra da própria Leolinda Daltro, que se pode acessar pelo link http://www.etnolinguistica.org/biblio:varios-1911-annaes.


Ensinamentos a recolher do legado de Leolinda Daltro 


Como antes assinalado, cumpre destacar a necessária contextualização da vida e da obra de Leolinda de Figueiredo Daltro, como, aliás de qualquer outra figura de intérprete de nossa sociedade. Ao destacarmos sua múltipla contribuição - como professora, como feminista, como sulfragistra e como defensora da causa indígena -, o fazemos tomando em consideração as condições históricas em que desempenhou cada uma daquelas atuações. Com efeito, a segunda metade do século XIX estava, em grande medida, impregnada pela ideologia dominante de então, inclusive, pelo embate entre a hegemonia exercida pela Igreja Católica e pelo Positivismo, principal referencial da nascente República, à qual Leolinda Daltro, a exemplo de tantas outras figuras, esteve mais articulada.


De um lado, importa reconhecer seu posicionamento político em busca de emancipação enquanto mulher, enquanto cidadã, enquanto sufragista, enquanto política, tendo tido a bravura de fundar um partido - Partido Republicano Feminino.


Por outro lado, ao reconhecermos a bravura de sua luta pela causa indígena, contrapondo-se a política educacional hegemonizada pela Igreja Católica, extensiva aos povos indígenas, Leolinda Daltro, em sua ardorosa defesa da alfabetização laica dos povos originários, não tinha como apresentar-se isenta da influência positivista de então, por meio da qual pretendia “civilizar” os povos originários. A este propósito, resulta sintomática a tese principal que sustentou, em sua “Memória” apresentada por ocasião do primeiro Congresso Brasieliro de Geografia, realizado no Rio de Janeiro, em 1909, em que na construção argumentativa da fundamentação de sua proposta de “Delimitar nas regiões habitadas por indígenas, um território autóctone; e que sejam esses Silvícolas incorporados na sociedade dos homens civilizados”, ela se dizia “Convicta da vantagem no aproveitamento do elemento para o povoamento do solo; Convicta da vantagem para o progresso nacional, da civilização dos Silvícolas; convicta da atualidade, para a constituição étnica da nacionalidade brasileira, da assimilação do elemento autóctone; convicta da necessidade da catequese absolutamente leiga para educar e civilizar esses raças primitivas.” Em outras palavras contrapondo - se à hegemonia eclesiástica, Leolinda Daltro assumia a ideologia positivista, segundo a qual a libertação dos povos originários seria assegurada por sua integração à civilização ocidental…


Outro aspecto a destacar de sua militância política tem a ver com sua aposta de superação das desigualdades de gênero pela via partidária, sem tomar na devida conta aquele contexto político - ainda hoje hegemônico - de extrema dominação machista, de escuríssima possibilidade de libertação das mulheres. Ainda hoje, predomina largamente, entre aqueles e aquelas que tudo apostam na libertação feminina pela via parlamentar… Aliás tal equívoco não se dá apenas no que concerne a esfera das relações sociais de gênero, mas também nas relações étnicas, nas relações espaciais, nas relações etárias e outras, vez que o forte dessas apostas equivocadas se dá sob o domínio do Estado, pilastra - mestra “junto com o Mercado capitalista - “ para a manutenção e o fortalecimento do atual modo de produção, de consumo e de gestão societal. 


Cada vez mais diante dos antigos e novos desafios, nos sentimos interpelados , não tanto a priorizar os embates pela via dos espaços estatais (Executivo, Legislativo, Judiciário, aparelhos repressivos e ideológicos…), mas interpelados a priorizar nossa ação transformadora em articulação com nossas organizações de base, especialmente os movimentos Populares do Campo e da cidade comprometidos pelas suas lutas com um novo projeto de sociabilidade, alternativo a barbárie capitalista. 


João Pessoa, 07 de Maio de 2025