quarta-feira, 7 de maio de 2025

Intérpretes do Brasil (XX): o pioneirismo de Leolinda de Figueiredo Daltro

Intérpretes do Brasil (XX): o pioneirismo de Leolinda de Figueiredo Daltro


Alder Júlio Ferreira Calado 


Ao apresentarmos uma nova figura, nesta série de intérpretes do Brasil, trazemos a público a Educadora indigenista e feminista Leolinda Daltro. Como de hábito, insistimos em rememorar, de início, dois aspectos que julgamos inseparáveis de nossa proposta: os destinatários especiais de nossos escritos - os/as jovens militantes de nossas organizações de base, e um novo horizonte de sociabilidade, alternativo à atual barbárie capitalista. 


Tal como procedemos, em relação aos demais intérpretes do Brasil - homens e mulheres -, também nas linhas que seguem, iniciamos com o fornecimento de uma breve notícia bibliográfica da autora, seguida de uma apreciação e de destaques sobre o seu legado, buscando daí recolher ensinamentos relevantes que nos sirvam de inspiração e de ferramenta para o enfrentamento exitoso dos velhos e novos desafios apresentados pela nossa realidade atual. 


Antes, porém, de procedermos ao primeiro tópico, convém alertar para a necessidade de não cometermos anacronismos, pretendendo interpretar mecanicamente os feitos e os ditos da autora, próprios de sua época, sem qualquer esforço da necessária contextualização. Em outras palavras, somos chamados a ler Leolinda Daltro e outros intérpretes como mulheres e homens de seu tempo.     


Breve notícia biobibliográfica de Leolinda Daltro (1859 - 1935)


Leolinda de Figueiredo Daltro é nordestina nascida na Bahia em 14 de Julho de 1859. Ainda muito jovem, contrai seu primeiro casamento, do qual resultaram seus dois primeiros filhos. O divorcio não tardaria, e pouco depois, faria um novo casamento, do qual nasceram mais três filhos. Em busca de sobreviver dignamente com seus cinco filhos muda-se para o Rio de Janeiro encontrando na Educação (como Professora) o caminho não apenas para responder às necessidades materiais de sua família, como também para trilhar caminhos de esperançamento de mulher, de mãe e de cidadã, comprometida com o enfrentamento dos principais desafios do seu tempo, combinando sua luta como Professora com outros espaços de luta. Neste sentido, revelou-se combativa também na luta feminista, na defesa dos povos originários e nas lutas políticas de seu tempo.


A mudança da família para o Rio de Janeiro constituiu um passo fundamental, no processo de emancipação de Leolinda, por diferentes razões. Em primeiro lugar, por ter significado um relevante fator de sua independência econômica: Leolinda necessitava de encontrar um caminho para garantir o sustento econômico de sua família, e o fez de modo eficaz, ao escolher a profissão de Professora, aí descobrindo relevantes achados para sua formação continuada e a dos filhos. Com efeito, pelas trilhas da Educação, Leolinda de Figueiredo Daltro passaria a entender melhor o mundo do seu tempo. Por exemplo, passou a perceber melhor agora como divorciada, que era capaz de viver mais livremente, sem as imposições do Patriarcalismo (ao menos, no âmbito familiar), assim ousando investir mais em sua consciência feminista, principalmente ao travar conhecimento com tantas outras mulheres do seu tempo, vivendo semelhantes circunstâncias.


Graças a sua ousadia em seguir investindo em seu processo formativo contínuo, passaria a fazer outras importantes descobertas, a exemplo da necessidade de encontrar no campo da Política, a despeito das contradições de um campo ainda marcadamente machista, uma alavanca para reforçar as lutas das mulheres, no terreno das decisões que lhes interessavam. Eis por que, associando-se a outras figuras feministas do seu tempo, vem a dar passos concretos, na construção de um partido feminista: o Partido Republicano Feminino, em 1910. Com olhos de hoje, resulta fácil perceber a fragilidade dessa via, em uma República tão contraditória, que pouco ou nada tinha a ver com a enorme maioria da população - as mulheres, os negros, os indígenas, os camponeses, os operários. Mesmo assim, isto correspondia ao que era possível, em seu tempo. Uma vez formado e oficialmente registrado, seu Partido Rebuplicano Feminino constitui a ferramenta que viabilizou as lutas das mulheres de seu tempo, de protagonizarem o sufrágio, passando as mulheres a exercerem o direito de votarem e serem votadas.


Mulher atenta aos desafios do seu tempo, Leolinda de Figueiredo Daltro seria marcada, no entanto, por uma entrega ainda maior: a sua luta indigenista, em uma época francamente marcada pelo controle dos valores, das crenças e da ideologia exercidos pelo clericalismo, inclusive em relação aos povos originários, por força do que pretendia a Igreja Católica controlar os Indígenas pela catequese, inclusive pela alfabetização, Leolinda Daltro ousou denunciar tal controle, propondo aos governantes de então uma campanha de alfabetização dos Indígenas inteiramente laica, isto é, dissociada da Catequese católica. Para tanto, teve a ousadia de conhecer mais de perto alguns grupos indígenas, seja em Goiás, seja no Mato Grosso.  


Leolinda Daltro não se limitou a essas frentes de luta. Empenhou-se em aglutinar as mulheres do seu tempo, inclusive promovendo manifestações e passeatas, clamando pelo direito de participação política das Mulheres no Parlamento brasileiro. Também se revelaria uma militante no campo da escrita. Além de escrever para diferentes periódicos, chegando mesmo a fundar alguns, também se revelou como autora de dois livros: “Entre a pena e a espada” e “Patriotismo, indigenismo e feminismo”.


Importa ainda remeter as pessoas interessadas a estudos e pesquisas acadêmicas (especialmente, teses) acerca de Leolinda. apenas como um primeiro estímulo ao conhecimento da trajetória da vida e da obra de Leolinda Daltro, recomendamos alguns textos específicos, nesta direção. Neste sentido, vale a pena conferir o artigo intitulado “Vida de Professora: ideias e aventuras de Leolinda Daltro durante a primeira República” (cf. https://periodicos.ufsc.br/index.php/mundosdotrabalho/article/view/1984-9222.2016v8n15p29) de autoria de Eliane Pereira Rocha, professora da The University of the West Indies; a tese intitulada “Leolinda Daltro, a caminhante do futuro: uma análise de sua trajetória de catequista a feminista” (Rio de Janeiro/Goiás - 1896-1920) da professora Paulete Maria da Cunha, da Universidade Federal de Tocantins (cf. https://www.escavador.com/sobre/6653058/paulete-maria-cunha-dos-santos); bem como a comunicação (“memória”) apresentada pela própria professora Leolinda de Figueiredo Daltro, por ocasião do I Congresso Brasileiro de Geografia, realizado no Rio de Janeiro, em 1909. Recomendo fortemente a leitura integral deste escrito da lavra da própria Leolinda Daltro, que se pode acessar pelo link http://www.etnolinguistica.org/biblio:varios-1911-annaes.


Ensinamentos a recolher do legado de Leolinda Daltro 


Como antes assinalado, cumpre destacar a necessária contextualização da vida e da obra de Leolinda de Figueiredo Daltro, como, aliás de qualquer outra figura de intérprete de nossa sociedade. Ao destacarmos sua múltipla contribuição - como professora, como feminista, como sulfragistra e como defensora da causa indígena -, o fazemos tomando em consideração as condições históricas em que desempenhou cada uma daquelas atuações. Com efeito, a segunda metade do século XIX estava, em grande medida, impregnada pela ideologia dominante de então, inclusive, pelo embate entre a hegemonia exercida pela Igreja Católica e pelo Positivismo, principal referencial da nascente República, à qual Leolinda Daltro, a exemplo de tantas outras figuras, esteve mais articulada.


De um lado, importa reconhecer seu posicionamento político em busca de emancipação enquanto mulher, enquanto cidadã, enquanto sufragista, enquanto política, tendo tido a bravura de fundar um partido - Partido Republicano Feminino.


Por outro lado, ao reconhecermos a bravura de sua luta pela causa indígena, contrapondo-se a política educacional hegemonizada pela Igreja Católica, extensiva aos povos indígenas, Leolinda Daltro, em sua ardorosa defesa da alfabetização laica dos povos originários, não tinha como apresentar-se isenta da influência positivista de então, por meio da qual pretendia “civilizar” os povos originários. A este propósito, resulta sintomática a tese principal que sustentou, em sua “Memória” apresentada por ocasião do primeiro Congresso Brasieliro de Geografia, realizado no Rio de Janeiro, em 1909, em que na construção argumentativa da fundamentação de sua proposta de “Delimitar nas regiões habitadas por indígenas, um território autóctone; e que sejam esses Silvícolas incorporados na sociedade dos homens civilizados”, ela se dizia “Convicta da vantagem no aproveitamento do elemento para o povoamento do solo; Convicta da vantagem para o progresso nacional, da civilização dos Silvícolas; convicta da atualidade, para a constituição étnica da nacionalidade brasileira, da assimilação do elemento autóctone; convicta da necessidade da catequese absolutamente leiga para educar e civilizar esses raças primitivas.” Em outras palavras contrapondo - se à hegemonia eclesiástica, Leolinda Daltro assumia a ideologia positivista, segundo a qual a libertação dos povos originários seria assegurada por sua integração à civilização ocidental…


Outro aspecto a destacar de sua militância política tem a ver com sua aposta de superação das desigualdades de gênero pela via partidária, sem tomar na devida conta aquele contexto político - ainda hoje hegemônico - de extrema dominação machista, de escuríssima possibilidade de libertação das mulheres. Ainda hoje, predomina largamente, entre aqueles e aquelas que tudo apostam na libertação feminina pela via parlamentar… Aliás tal equívoco não se dá apenas no que concerne a esfera das relações sociais de gênero, mas também nas relações étnicas, nas relações espaciais, nas relações etárias e outras, vez que o forte dessas apostas equivocadas se dá sob o domínio do Estado, pilastra - mestra “junto com o Mercado capitalista - “ para a manutenção e o fortalecimento do atual modo de produção, de consumo e de gestão societal. 


Cada vez mais diante dos antigos e novos desafios, nos sentimos interpelados , não tanto a priorizar os embates pela via dos espaços estatais (Executivo, Legislativo, Judiciário, aparelhos repressivos e ideológicos…), mas interpelados a priorizar nossa ação transformadora em articulação com nossas organizações de base, especialmente os movimentos Populares do Campo e da cidade comprometidos pelas suas lutas com um novo projeto de sociabilidade, alternativo a barbárie capitalista. 


João Pessoa, 07 de Maio de 2025               

  





 





 


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