Intérpretes do Brasil (III): Clóvis Moura e sua análise histórico-dialética da formação de nossa sociedade
Alder Júlio Ferreira Calado
Na sequência da série “Intérpretes do Brasil”, aqui focamos a contribuição seminal de Clóvis Moura, destacando a relevância de suas pesquisas embasadas no referencial marxista histórico-dialético de nossa formação social. Tal como nos textos precedentes, também neste, iniciamos por um breve quadro sinótico de natureza biobibliográfica, para em seguida, fornecer alguns elementos de seu legado teórico metodológico de interpretação da formação social brasileira. Ao final, cuidamos de ressaltar os ensinamentos que avaliamos mais relevantes para a formação da consciência de classes dos militantes (mulheres e homens) de nossas organizações de base, especialmente os Movimentos Sociais Populares.
Elementos bibliográficos da trajetória de Clóvis Moura
Clóvis Steiger de Assis Moura (1925-2003) nasceu em Amarante, no Piauí, filho de pai negro, funcionário público, inspetor da Receita Federal, e de mãe branca, neta de um membro da nobreza austriaca (donde o sobrenome Steirger) era, por tanto, alguém de classe média, cercado de condições favoráveis ao avanço nos estudos.
Foi assim que, dada a condição profissional do pai (funcionário público), a família vai mudar para outros lugares. No Rio Grande do Norte, Clóvis Moura faz o seu curso secundário, em Natal, no Colégio Diosesano Santo Antônio, no qual participou ativamente das atividades literárias do Grêmio Estudantil, em cujo periódico publica um artigo - “Libertas quae sera tamen”, lema da Inconfidência Mineira, prenunciando desde então (aos 14 anos), sua vocação de Jornalista. por volta dos 17 anos, a família muda de novo, desta vez para Salvador-BA, ainda que por um breve período, suficiente para entabular relações com figuras da intelectualidade baiana, transferindo-se para Juazeiro, no sertão baiano, sem haver concluído o curso de Direito, mas dando continuidade às suas pesquisas sobre o lugar do Negro na formação social brasileira.
Ao mesmo tempo, Clóvis Moura continuou a criar laços com diversas figuras de intelectuais, ligados ao PCB (Jorge Amado, Carlos Drummond de Andrade, Caio Prado Júnior, Astrogildo Pereira, Nelson Werneck Sodré entre outros), bem como personagens não - marxistas, consideradas de referência no âmbito da crítica literária, inclusive pelo fato de que ele também se interessava e escrevia sobre outros pensadores brasileiros, a exemplo de Euclides da Cunha, a essas figuras de interlocutores, Clóvis Moura recorria para intercambiar ideias sobre a sua produção literária e política. De 1942 a 1949, Clóvis Moura manteve-se na Bahia, circulando entre Juazeiro e Salvador, contribuindo para diversos jornais da região, inclusive no jornal “O Momento”, ao tempo em que aprofundava suas relações com figuras dirigentes do PCB, tornando-se cada vez mais conhecido pelos seus talentos de escritor e de poeta.
Crescentemente tocado pela causa negra, cuidou de desenvolver suas pesquisas nesta área. Certa vez, em carta endereçada a Caio Prado Júnior, consultou sobre o que estava pesquisando, em busca de uma melhor compreensão dos negros na historiografia brasileira. Em resposta, recebeu palavras de certo desestímulo quanto a prosseguir em suas pesquisas, tendo sido aconselhado por Caio Prado a enveredar por outro caminho de pesquisa, sendo aconselhado a perseguir o tema da ocupação dos Negros, no sertão e nas comunidades ribeirinhas. Caio Prado Júnior, contudo, sugeriu - lhe, quanto às suas pesquisas sobre as questões de Negritude recorrer a Edison Carneiro. No entanto, sem deixar de fazer contatos com Edison Carneiro, o integrante do PCB de então, Clóvis Moura seguiu seu próprio caminho, aprofundando suas pesquisas sobre o papel da condição negra na formação social do Brasil.
Em um tempo em que Caio Prado Júnior figurava como uma das principais referências da teoria marxista no Brasil, inclusive graças ao seu famoso “Formação do Brasil Contemporâneo”, e pertencendo ao mesmo partido (PCB), Clóvis Moura mostrou-se bastante ousado em prosseguir firmemente suas pesquisas, de sorte que, em 1959, ele publica seu famoso “Rebeliões da senzala: quilombos, insurreições, guerrilhas”. Importa lembrar que já se tendo mudado para São Paulo, e sendo conhecido por Caio Prado Júnior, proprietário (ou - coproprietário junto com Monteiro Lobato) da editora Brasiliense, e já tendo Clóvis Moura pronto seu livro “Rebeliões da Senzala”, em meados dos anos 50, ele não conseguiu convencer a Caio Prado Júnior de publicar seu livro, que acabou saindo por Edições Zumbi, somente em 1959.
Clóvis Moura forjou-se como um autodidata, não tendo concluído um curso acadêmico. sempre incursionando pelos campos da História, da Sociologia, do Jornalismo, da Literatura, da Poesia, ele vai aprimorando cada vez mais sua condição de escritor, sendo autor de 26 livros e outros textos de sua lavra. Dentre seus principais livros, permitimo-nos destacar os seguintes:
“Rebeliões da Senzala: quilombos insurreições e guerrilhas” (1949)
“O Negro de Bom Escravo a Mau Cidadão” (1977
“A sociologia posta em questão” (1978)
“Diário da Guerrilha do Araguaia” (1979)
“Os Quilombos e a Rebelião Negra” (1981)
“Brasil: as raízes do protesto negro” (1981)
“Dialética Radical do Brasil Negro” (1984)
“Sociologia do Negro Brasileiro” (1988)
“Historia do Negro Brasileiro” (1989)
“As injustiças de Clio: o negro na historiografia brasileira’ (1990)
“Dialética Radical do Brasil Negro” (1994)
“Sociologia do Negro” (1998)
“Dicionário da Escravidão Negra no Brasil” (2023)
“Dicionário da escravidão negra no Brasil” (2004)
Ao mesmo tempo, tratou de combinar organicamente sua condição de pesquisador e de intérprete da realidade social brasileira, pela via marxista do materialismo histórico-dialético, com uma intensa militância, seja no âmbito partidário (gozando de muita consideração dos dirigentes do PCB e, depois, do PCdoB, após 1962), seja como uma das principais referências do Movimento Negro Unificado (MNU), seja na militância como jornalista, tendo contribuído em diversos periodigos, a exemplo do jornal (“Última Hora,”, da “Revista Princípios”, entes outros).
Clóvis Moura, deixando-nos um denso legado sempre combinando suas pesquisas teóricas com sua militância partidária, seus escritos, sua reconhecida contribuição aos Movimentos Populares, em especial ao Movimento Negro Unificado fez sua pasagem em 2003 aos 78 anos.
Traços da contribuição teórico-prática do legado de Clóvis Moura
Clóvis Moura destaca-se pela sua extraordinária capacidade interpretativa da formação social brasileira e seu respectivo modo de produção, a partir de uma perspectiva histórica dialética. Tal é sua contribuição que, de certo modo, supera a leitura de brasil feita até por figuras icônicas de sociólogos e historiadores tais como Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Júnior, à medida que
Sempre lidando com dados da História, da Sociologia, Antropologia, da literatura e de outros campos epistemológicos, seguindo a metodologia do Materialismo histórico-dialético, logra trabalhar as raízes mais fundas de nossa sociedade;
Se disponha a apontar consideráveis lacunas ou equívocos de interpretação, na literatura especializada então dominante;
Sempre trabalhando o movimento as interconexões as contradições histórico-sociológicas, consegue desvelar e descortinar relações sociais de novo tipo;
Não se limita exclusivamente aos estudos teóricos, mas, como pesquisador militante, é capaz de cotejar dados aparentemente estabelecidos com relações apresentadas pelas forças sociais em confronto;
Sempre apoiados em dados empíricos, lastreados em dados historiográficos, é capaz de descobrir a presença de fatos históricos não consideráveis suficientemente pelas abordagens.
Neste sentido, Clóvis Moura, ao mesmo tempo em que toma em conta as relações sociais entre as partes constitutivas , de nossa realidade também toma como foco a totalidade das relações em âmbito internacional, isto é não apenas analisa as relações sociais e econômicas ao interno do que se passava no Brasil Colonial (modo de produção escravista e depois capitalista), mas também trata de captar e analisar as relações internas em função dos interesses das forças sociais dominantes e dos Estados centrais do Capitalismo. Assim é que descobre que, por exemplo, oque se passa no Brasil não tem a ver com relações feudais, mas com o lugar específico do Brasil na divisão social do trabalho, no modo de produção capitalista.
Clóvis moura descobre, ainda, que o próprio processo de abolição da escravidão não se deu apenas em função das necessidades e dos interesses das classes dominantes e dos Estados centrais do capitalismo notadamente o Reino Unido mas também graças a uma sucessão de revoltas e insurreições, de “Quilombagem” de resistências (inclusive com assassinatos de senhores e de capitães do mato e de fugas individuais e em grupos para os quilombos), estratégias postas em prática pelos escravizados sobretudo após a segunda metade do século XIX.
Ao contrário, por exemplo, de Gilberto Freyre, que sustentava a tese da “democracia racial”, Clóvis Moura tratou de comprovar a existência da luta de classes protagonizada pelos escravizados, desde o período colonial, estendendo-se ao processo de abolição e aos períodos seguintes.
Não obstante a relevância de seu legado bibliográfico, Clóvis Moura teve um reconhecimento relativamente tardio, possivelmente por conta de tratar-se de um “outsider” da Academia - Clóvis Moura era um pesquisador autodidata, forjado no árduo trabalho de pesquisa combinado com sua fecunda militância partidária (PCB e depois PCdoB) e no Movimento Negro Unificado (MNU). Sobretudo a partir dos anos 1970, todavia, passou a contar também com o reconhecimento público de intelectuais da Academia. Prova disto é, por exemplo, o fato de que a primeira edição de seu livro “Rebeliões da Senzala: quilombos insurreições e guerrilhas” (1949), fruto de suas pesquisas iniciadas ainda nos anos 1940, teve sua primeira publicação apenas em 1959, ainda sim com uma circulação bastante restrita. Somente a partir de sua segunda edição, na primeira metade dos ano 1970 é que ele passou a ser reconhecida mais amplamente, inclusive por conta de ter sido apreciado mas reconhecidamente primeiro, fora do Brasil, graças a referência elogiosa que obteve de Eugene Dominick Genovese em seu famoso livro “From Rebellion to Revolution” (1979). Desde então, passa a ser reconhecido também por diferentes figuras de intelectuais brasileiros. Além do próprio Caio Prado Júnior, Jorge Amado, Nelson Werneck Sodré, entre outros. Um de seus livros, “Os quilombos e a rebelião negra” (1981) foi, inclusive, publicado pela editora brasiliense, figurando na famosa coleção “Tudo é História”.
A par de sua intensa produção bibliográfica, percorrendo os campos da História, da Sociologia, da Antropologia, da Economia, da Literatura e da Poesia, cumpre ressaltar a enorme recepção que Clóvis Moura teve dos movimentos sociais populares, em especial do Movimento Negro Unificado.
O que aprendemos com Clóvis Moura?
Em um contexto extremamente desafiante para as forças sociais de transformação, que se sentem gravemente agredidas, inclusive no plano político - eleitoral, no Brasil e na América Latina em escala mundial, nossas organizações de base (populares, sindicais, da esquerda católica e protestante e partidárias) são instadas a vencerem sua letargia, retomando resolutamente o Trabalho de Base, no campo nas periferias urbanas, seja no plano organizativo, seja no âmbito da formação contínua, seja no campo da mobilização e das lutas. Eis a tarefa a ser assumida, diuturnamente, pelos nossos militantes - jovens, mulheres, homens, feministas, indígenas, comunidades quilombolas, camponeses e camponesas, operários e operárias, estudantes, entre outros.
É neste sentido que a revisitação do legado teórico-prático de Clóvis Moura, especialmente no que concerne à “Práxis Negra”, se mostra relevante e oportuna, principalmente pela sua solidez e pela fecundidade de sua análise dialética , na perspectiva Marxista del materialismo histórico-dialéctico, combinada, por isto mesmo, com sua práxis revolucionária militante, de intelectual orgânico das classes populares, que trabalha as categorias “Classe” e “Raça”, direta ou indiretamente conectadas a tantas outras dimensões (econômicas políticas, culturais, de relações sociais de gênero, de espacialidade, geracionais, estéticas, literárias, de valores éticos, entre outras).
Aprendemos, ainda, com Clóvis Moura a tomar a sério o exercício da crítica e da autocrítica nas relações do cotidiano. Eis uma impactante ilustração: em um de seus escritos, “O Preconceito da Cor na Literatura de Cordel” (São Paulo: Resenha Universitária, 1976), ele trata de recomendar o exercício da autocrítica ao interno das classes populares, também elas sujeitas a introjetar e reproduzir valores da classe dominante, assim remetendo-nos ao conhecido alerta de Marx e Engels de que nas sociedades de classes, a ideologia dominante é a ideologia da classe dominante.
Dentre tantos ensinamentos que podemos recolher do denso legado de Clóvis Moura, além dos acima-assinalados, ressaltamos o seu cuidado e o seu compromisso revolucionário consequente e em conformidade com o teor da Tese 11, elaborada por Marx como uma crítica dirigida a Feuerbach, de que “Os Filósofos interpretaram o Mundo, de diferentes maneiras. O que importa é transformá-lo”.
João Pessoa 30 de Outubro de 2024