sexta-feira, 15 de novembro de 2024

Intérpretes do Brasil (V): a força dialética do pensamento de Álvaro Vieira Pinto

 Hoje, 11 de Novembro quando começamos a rascunhar este texto sobre Álvaro Borges Vieira Pinto, estaria completando 115 anos. Tocados pela notícia do recente Manifesto assinado por diversas de nossas Organizações de Base - Movimentos Populares, organizações sindicais e partidárias, entre outras, expressando sua contrariedade diante da tendência do Governo, de ceder às pressões da Direita de porém “no lombo dos trabalhadores” os custos da famigerada Lei do Teto de Gastos apelidada de “Arcabouço fiscal”, alegra-nos retomar o exercício da memória histórica dos explorados e oprimidos, dando sequência aos estudos de nossos bons clássicos, desta feita rememorando a contribuição heurística de Álvaro Vieira Pinto. 


Ele nasceu em Campos dos Goytacazes, Município do Rio de Janeiro, em 11 de Novembro de 1909, filho de uma família de ascendência Portuguesa, de 3 filhos e uma filha. Álvaro Vieira Pinto teve um itinerário formativo marcadamente Heterócrito. Tendo passado inicialmente pela formação em Medicina, e aí atuado, como médico e pesquisador, durante vários anos, ele vai incursionar por múltiplos e distintos campos de saberes: pela Filosofia, pela Antropologia, pela Cultura, pela Linguística, pela Ciência, pela Matemática, pela Física, pela Demografia, pela Educação, pela Tecnologia, pela Sociologia… exerceu, nestes campos, em tempos distintos a função de exímio pesquisador, além de docente e tradutor, conhecedor que era de diversos idiomas.


Após vários anos de trabalho no campo da Medicina, investigando a temática do câncer, em 1949, segue para a França, dedicando-se à apresentação de um trabalho, em Filosofia, tematizando a Cosmologia em Platão, oque resultou na publicação da tese intitulada “Ensaios sobre a dinâmica da cosmologia de Platão” (1049). De volta ao Brasil, assumiu a docência em História da Filosofia, na então Universidade do Brasil, hoje UFRJ. Foi, porém, a partir de 1955, com a fundação do Instituto Superior de Estudos do Brasileiros  (ISEB), que sua atuação vai adquirir crescente notoriedade, seja como Chefe do Departamento de Filosofia do ISEB (1956-1961), seja como Diretor Executivo do ISEB, entre 1961 e 1964.

O ISEB constituiu uma iniciativa reconhecidamente fecunda. Órgão vinculado ao Ministério de Educação o ISEB correspondia ao esforço público de elaboração crítica de um projeto desenvolvimentista autônomo, inspirado em uma concepção de Nação soberana (sem xenofobia), confiado a uma seleta equipe de intelectuais de perfil variado - integrava em seus quadros, desde liberais e marxistas, tais como Cândido Mendes de Almeida, Hélio Jaguaribe, Roberto Campos, Roland Corbisier, Inácio Rangel, Álvaro Vieira Pinto, Alberto Gueiros Ramos, Nelson Werneck Sodré . Em uma conjuntura de crescente efervescência política, especialmente na transição do Governo Juscelino Kubitschek para o Governo Jânio Quadros (substituído, após sua renúncia, pelo Vice-Presidente João Goulart) os intelectuais liberais foram cedendo terreno ao grupo considerado mais próximo da perspectiva marxista.      


A vasta produção bibliográfica de Álvaro Vieira Pinto situa-se principalmente entre as décadas de 1960 e 1970. Dela trataremos de destacar as que mais impacto produziram. De 1956 data a publicação do seu “Ideologia e desenvolvimento Nacional”, trabalho no qual o autor desenvolve as premissas sobre as quais ele assentava sua proposta de desenvolvimento nacionalista, destituída de rasgos xenofóbicos. Vivíamos, então, sob o Governo do Presidente Café filho, apenas um ano antes do Governo Juscelino Kubitschek (1956-1960), era caracterizada por enorme empolgação desenvolvimentista, com o lema “Brasil, 50 anos em cinco”, tempo marcado por crescente investimento de capitais transnacionais a exemplo do que era feito na indústria automobilística. Nesta obra, Álvaro Vieira Pinto cuidava de demonstrar a relevância fundamental de se ter claras as diretrizes para a edificação de um sólido e autônomo desenvolvimento nacionalista, que partisse de um profundo conheciemnto e valorização de nossas potencialidades, enquanto Nação. 


Cumpri observar o aprofundamento crítico seguido por Àlvaro Vieira Pinto, de tal sorte que, já em 1960, ele produz um de seus mais fecundos trabalhos: “Consciência e realidade Nacional”, obra em 2 volumes excedendo mil páginas.  (o primeiro volume tem 406 páginas, enquanto o segundo volume totaliza 636), ainda dos primeiros anos da década de 1960 datam seus livros “A Questão da Universidade”, (1962), “Por que os Ricos não fazem Greve?” (1962), ambas as produções ecoando claramente os anseios e clamores pelas reformas de base, assinalando também o ascenso dos movimentos populares, a exemplo das lutas sindicais, do movimento estudantil e de setores progressistas Católico e Protestantes.


Não foi certamente por acaso que, justamente em julho de 1962, se realizou, em Recife, a famosa “Conferência do Nordeste” promovida pelo Setor Social de mais de uma dezena de Igrejas Protestantes,cujo o tema debatido durante oitos dias, foi “Cristo e a Revolução Social Brasileira”. Assim, compreende-se melhor o empenho de Álvaro Vieira Pinto, inclusive quanto ao Diretor Executivo do ISEB, quando ousou escrever o texto “Porque os ricos não fazem Greve?”, bem como o texto “A Questão da Universidade”, fazendo ressonância de sua conferência pronunciada a convite dos estudantes da UNE (União Nacional dos Estudantes), em um tempo em que Darcy Ribeiro era o Reitor da UnB (Universidade de Brasília).      


Com o acirramento crescente dos conflitos, entre as demandas populares pelas reformas sociais e o aumento da reação das forças dominantes, o Golpe de Estado de 1964 veio a se instalar em um de Abril de 1964, daí resultando toda sorte de repressão contra as forças populares e seus aliados, inclusive Álvaro Vieira Pinto, que após alguns dias de clandestinidade passados em Minas Gerais, buscou exílio na Iugoslávia, por um ano, e em seguida, com o apoio também de Paulo Freire (já exilado no Chile), Álvaro Vieira Pinto foi exilar-se, no Chile, até 1968, contando inclusive com a acolhida afável de Paulo Freire, que o chamava de “Mestre Brasileiro”. De retorno ao Brasil antes do AI-5, foi forçado a um espécie de exílio em seu próprio país, tendo que sobreviver em um deprimente anonimato - sob Pseudônimo, sobreviveu traduzindo textos para a Editora Vozes, tendo continuado a registrar seus manuscritos, posteriormente publicados na forma de livros. 


Elementos principais da inventividade de Álvaro Vieira Pinto


Prosseguindo a destacar relevantes traços da produção bibliográfica de Álvaro Vieira Pinto a partir da sequência de suas obras principais, trataremos de realçar conceitos-chave, temas geradores e pistas ousadas nelas contidas.  Em “Ciência e existência”, cujos manuscritos, datados desde 1969, datilografados por sua esposa, só vinheram a público pela Editora Contraponto, em 2005, o autor se revela com extraordinária originalidade, situando-se desde a perspectiva dos países periféricos. Nesta obra, Álvaro Vieira Pinto propõe uma abordagem crítica acerca da relação dialética entre Ciência e Existência, a rememorar como, no processo de humanização, os seres humanos se empenham, em coletividade, em produzirem sua existência, buscando transitar da consciência ingênua à consciência crítica, itinerário que lhes permite desenvolver, de modo orgânico, um conjunto de saberes, desde os mais primitivos ao saber científico, enfatizando, porém, sua relação dialética, em que não tem lugar qualquer valoração discriminatória em prejuízo dos saberes populares e outros saberes pré científicos. 


Outro texto relevante produzido por Álvaro Vieira Pinto só viria a lume em 1982. Trata-se do seu “Sete lições de Educação de Adultos”, elaborado em sua experiência de exílio no Chile, na convivência com Paulo Freire. Nele, o autor lida com diferentes aspectos referentes a Educação de jovens e adultos. Discute a noção de Educação, sua historicidade, seu objeto, seus protagonistas, ressaltando em especial os desafios concernentes a educação de jovens e adultos. 


“O conceito de tecnologia” constitui uma primorosa elaboração de análise histórico filosófica, sempre na perspectiva dialética, que o autor produziu nos inícios do anos 70, mas que restou desconhecido por décadas, tendo sido publicado somente em 2005. Trata-se de uma publicação póstuma - Álvaro Vieira Pinto faleceu em 1987 -, composta de dois alentados volumes, cada qual distribuído em duas partes, em que o autor se empenha em navegar, de modo original e competente, pelos meandros da tecnologia, abordando, além das noções de “técnica” e “tecnologia”, e de modo histórico, as complexas relações entre os seres humanos e a máquina, através dos tempos. Ao longo das quatro partes em que o livro está dividido, Alvaro Vieira Pinto cuida inclusive de desmontar interpretações segundo as quais conceitos como “Era da tecnologia” (ou “Era da informação” e similares) sejam algo novo, na história da humanidade, por quanto, desde os seus inícios, para produzirem sua própria existência, os seres humanos têm recorrido a instrumentos ou máquinas, nos limites de suas possibilidades históricas.


Outra publicação póstuma, de autoria de Alvaro Vieira Pinto, foi a que se intitula “Sociologia dos Países Subdesenvolvidos”, escrito ainda nos anos 70, mas só publicado em 2008. Como indica seu título, trata de tecer uma análise crítica sobre a natureza histórico social do subdesenvolvimento, de modo a desmascarar as injunções concretas, repletas de premissas falseadoras que as relações históricas acabam sedimentando os destinos socioeconômicos tanto dos países ricos quanto dos países subdesenvolvidos 

              

A que nos convida Álvaro Vieira Pinto?


Ao destacarmos, ainda que superficialmente, aspectos do legado de Álvaro Vieira Pinto,  não conseguimos evitar um sentimento de indignação, diante do quase esquecimento, por longo tempo, desta figura genial. Especialmente as novas gerações incumbe a tarefa de seguirem cavocando as obras de Alvaro Vieira Pinto, tanto as publicadas quanto seus manuscritos ainda não vindos a lume. 


Não é a toa a referência que Paulo Freire fazia ao amigo Alvaro Vieira Pinto, ao trata-lo como “mestre”.  Com efeito, muito dele ainda temos a aprender. Seu sólido compromisso com a busca dos saberes, sempre voltada ao serviço dos injustiçados, com o seu fascínio pela luta incessante de transformar “Massa” em “Povo”, servindo-se do instrumental dialético e seus conceitos básicos de Totalidade, de relacionalidade, de historicidade, de movimento, entre outros.


Impactam-nos, ainda,  sua dedicação, sua persistência e sua sede de saber, que o fariam circular, de modo orgânico, pelos mais diferentes campos de saberes, do que resulta uma lista ampla de conceitos por ele trabalhados, principalmente conceitos tais como “Nação”, “Desenvolvimento”, “Subdesenvolvimento”, “Consciência”, “Consciência ingênua”, “Consciência crítica”, “Ideologia”, “Cultura”, “Educação”, “Técnica”, “Tecnologia”, e tantos outros.


João Pessoa, 15 de novembro de 2024

   


sexta-feira, 8 de novembro de 2024

Intérpretes do Brasil (IV): Vânia Bambirra

 Intérpretes do Brasil (IV): Vânia Bambirra 


Alder Júlio Ferreira Calado 


Ao iniciarmos esta série de artigos sobre personalidades que consideramos relevantes intérpretes do Brasil, nosso propósito maior segue sendo o de estimular nossos militantes de base, em sua tríplice tarefa, junto às nossas organizações de base, em especial os Movimentos Populares do Campo e da Cidade: Contribuir com sua organização permanente, com o seu processo formativo contínuo e com suas atividades de resistência e de enfrentamento exitoso dos grandes desafios da atualidade, em escalas local, nacional, latino-americana e mundial.


Após havermos rememorado aspectos do legado de Ruy Mauro Marini, Lélia Gonzalez e Clóvis Moura, trazemos agora apontamentos sobre outra intérprete da formação social brasileira, em tempos da Teoria Marxista da depẽndencia. Vânia Bambirra nasceu em Belo Horizonte, em 1940, filha de uma dona de casa e de um alfaiate, vinculado ao Partido Comunista do Brasil (PCB). Sua mãe, descendente de Italianos, pertencia a uma família de recursos, enquanto seu pai vinha de família de classes populares. Por conta de seu envolvimento na insurreição comunista de 1935, havia sido preso. Vânia lembra que, de volta a casa, o primeiro gesto do pai foi o de soltar os pássaros engaiolados: “Seu canto é triste”. 


Desde cedo, sentiu-se estimulada pelos seus pais a valorizar os estudos, empenhado-se, já durante o Ensino Médio, em dar curso à sua curiosidade epistemológica, principalmente quanto aos desafios de nossa realidade social.


Não foi por acaso que fez questão de ingressar no curso de Sociologia e Política (com extensão para Administração Pública), na Faculdade de Ciências Econômicas, da Universidade Federal de Minas Gerais, no final dos anos 50, tendo obtido sua Graduação em 1962, prosseguindo rumo ao Mestrado na área, na Universidade de Brasília, para o que fora uma das contempladas com uma bolsa de estudos. Desde muito jovem, acompanhou de perto os movimentos e lutas por moradia, na periferia de Belo Horizonte, também sentiu-se tocada pela questão agrária, acompanhou de perto a realização do I Congresso Nacional das Ligas Camponesas, tendo inclusive conhecido suas principais lideranças, a exemplo de Francisco Julião, a quem mais tarde teria a oportunidade de entrevistar no México. Somente mais tarde concluiria o seu Doutorado em Economia.


Quando se preparava para concluir seu Mestrado, na Universidade de Brasília, em 1964, eis que ocorre o Golpe Empresarial-Militar no Brasil. Teve invadida sua sala de trabalho, tendo encontrado no chão todos os seus livros, sujos de lama das botas, sentindo-se forçada a transferir-se para São Paulo, na clandestinidade, junto com Theotônio dos Santos, seu companheiro. Em São Paulo, nasceu sua filha, em 1964. Diante das crescentes hostilidades e perseguições, inclusive, por conta de seus vínculos militantes na organização Revolucionária Marxista “Política Operária", tiveram que buscar exílio em meados de 1966 no Chile.  


O Chile vivia, então, em um contexto de efervescência e de esperança, sob o Governo do Presidente Eduardo Frei, da Democracia Cristã. Vania, Theotônio e família foram bem acolhidos, sendo inicialmente convidados a trabalhar em um órgão de pesquisa sobre opinião pública, sendo posteriormente convidados a integrar o famoso CESO (Centro de Estudos Sócio Econômico), em companhia de uma Equipe de notáveis pesquisadores, a exemplo de Sergio Ramos, Orlando Caputo, Roberto Pizarro, André gunder frank, além de outros que posteriormente aí trabalharam, tais como Roberto Martinez, Marta Harnecker, Jaime Osório Cristian Sepulveda, Eder Sader, Emir Sader, Marco Aurélio Garcia, entre outros. 


Quanto ao Brasil, nosso povo teve que adiar seus sonhos - o das Reformas de Base (a Reforma Agrária, a Reforma Urbana, a Reforma da Educação, a reforma Bancária) -, por longos e tenebrosos 21 anos de uma cruel ditadura, da qual resultaram cassações, prisões, perseguições, banimentos, torturas e assassinatos, vitimando milhares de brasileiros e brasileiras (intelectuais, estudantes, camponeses, operários, instituições democráticas), fechamento do Parlamento, restrições do Judiciário, imposição de leis, de decretos e de atos, destituindo lideranças sindicais e intervindo nas diretorias dos Sindicatos, proibindo o funcionamento da vida democrática da sociedade brasileira.


Como no Brasil, sucederia algo parecido no Chile, em 11 de Setembro de 1973, com o golpe de Estado deferido por Pinochet, com o apoio da burguesia e do Governo dos Estados Unidos. A exemplo de tantos outros intelectuais, também Vânia Bambirra foi forçada a exilar-se no México, após breve passagem pelo Panamá (quatro meses), tendo seguido depois, com a família, para o México. Após concluir seu Doutorado, continuou sua intensa militância, seja no México, seja no Chile, em companhia de diversos outros brasileiros e latino-americanos, tais como Ruy Mauro Marini e Theotônio dos Santos e diversos outros.


Em seu exílio no México, após prestar concurso público, bem sucedido, Vânia Bambirra passa a lecionar e a integrar um notável grupo de pesquisadores e pesquisadoras, na Universidade Nacional do México (UNA), tendo dado sequência às suas pesquisas e publicado diversos livros e outros escritos. Em consequência dos efeitos da Anistia (ainda que dúbia e restrita), retorna ao Brasil, na primeira metade dos anos 80, tendo atuado como assessora de relevantes causas sociais e políticas, tendo inclusive contribuído para o PDT e outras forças de esquerda, naquele período. Vânia Bambirra vem a falecer, no Brasil, em dezembro de 2014, deixando sua marca indelével como uma revolucionária Marxista, com enormes aportes teórico-práticos para as classes populares, em vista da construção de um novo modo de produção, de consumo e de gestão societal. 


Nas trilhas da Teoria Marxista da Dependência 


O legado de Vânia Bambirra se explica fundamentalmente por ter-se nutrido, de um lado, pela sua precoce e permanente curiosidade epistemológica, e, de outro, pela militância revolucionária. Sua assiduidade no acompanhamento das organizações de base, na periferia de Belo Horizonte e depois, em tantas outras iniciativas, como sua participação na POLOP (Organização Revolucionária Marxista Política Operária) constituem uma indicação convincente. 


Não bastasse seu apreço pela constante compreensão da realidade social, o que a levou a cursar Sociologia Política e Administração Pública, sempre associadas à Economia Política, Vânia Bambirra mostrou-se desde cedo, interessada em compreender, de forma crítico-propositiva os problemas sociais do campo e da cidade. Não foi à toa, por exemplo, a escolha do tema trabalhado em seu Mestrado - as Ligas Camponesas, tendo ela também participado na militância por esta causa. De seu compromisso revolucionário muito diz, inclusive, seu discurso de conclusão da Graduação, cujo teor se pode conferir pelo acesso a um dos repositórios de seus escritos, facilmente disponibilizados na internet. 


Já nos primeiros anos do seu exílio no Chile, em continuidade de suas pesquisas, escreveu um corajoso e ousado ensaio, intitulado “Los errores de la teoría del foco”, publicado em 1967 em um contexto em que, sob a influência de Régis Debray, se mostrava amplamente dominante, na América latina, esta estratégia de enfrentamento da exploração e da opressão dos povos latino-americanos. 


Revelando-se ainda dotada de grande capacidade analítica e, ao mesmo tempo, de grande intuição e honestidade intelectual, Vânia Bambirra também ousou avaliar criticamente a narrativa dominante, na história da Revolução Cubana, ao escrever e publicar, por Editorial Nuestro Tiempo, 1978, “La Revolución Cubana: Una Reinterpretación”, sustentando a tese de que o sucesso da Revolução Cubana não se deveu apenas ao foquismo, mas sobretudo a uma combinação das lutas políticas (inclusive a greve geral) com a via insurrecional. 


Constam ainda de sua produção investigativa, no Chile, escritos de grande relevância acerca do feminismo na perspectiva marxista: “La Mujer Chilena y la Transición al Socialismo” (1971) e “La liberación de la Mujer y la Lucha de clases” (1972). Isto só reforça o reconhecimento da posição revolucionária marxista, testemunhada por Vânia Bambirra, em uma época do despertar do Movimento feminista internacional contra as relações profundamente androcêntricas então reinantes, inclusive ao interno das forças de esquerda. 


Excepcionalmente intensa, durante este período, foi a produção investigativa realizada, não apenas por Vânia Bambirra, mas por um grupo de pesquisadores do CESO (Centro de Estudios Socioeconómicos), do qual também faziam parte, entre outros, Sergio Ramos, Theotonio dos Santos, Orlando Caputo, André Gunder Frank, Roberto Pizarro, Ruy Mauro Marini, além de Vânia Bambirra, entre outros. Tratava-se de uma equipe de pesquisadores e pesquisadoras de altíssimo nível intelectual e de compromisso político, em permanente diálogo entre si e com pesquisadores e pesquisadoras latino-americanos e de outros continentes, especialmente inspirados e comprometidos com a teoria marxista-leninista.


É esta equipe que se empenha diuturnamente na análise marxista da realidade latino-americana e mundial, dispostas a fazer uma leitura crítica das teses então dominantes, tanto em relação ao pensamento hegemônico dos integrantes da CEPAL (Órgão pertencente à ONU, sediado no Chile, que sustentava a tese desenvolvimentista, que atribuía apenas a fatores externos o subdesenvolvimento dos países latino-americanos), quanto em relação às teses sustentadas pelos partidos comunistas oficiais, segundo os quais o atraso dos países latino-americanos se devia, ora ao seu estágio feudal, ora ao fato de que o desenvolvimento desses países só poderia acontecer, por meio de uma aliança com a burguesia nacionalista, o que se mostrou uma falácia. 


Uma das marcas mais tocantes do legado de Vânia Bambirra, além das acima mencionadas, é seu profundo sentimento de pertença aos povos latino-americanos e caribenhos. Seu compromisso revolucionário de militante comunista e de pesquisadora, ao ter origem no Brasil, mas sempre voltada para a América Latina, se afirma em âmbito da Pátria Grande, não apenas em razão de seu exílio no Chile e depois no México, como também graças à natureza revolucionária do seu compromisso de libertação da América Latina, incluindo o Brasil. Neste sentido, chama a atenção um breve depoimento de sua filha Nádia Bambirra, nascida em novembro de 1964, oito meses após o início do Golpe Empresarial-Militar de 1964, que obrigou seus pais (Vânia e Theotônio) a caírem na clandestinidade, em São Paulo, transportando-se depois em meados de 1966, para o exílio no Chile, aí permanecendo até o final de 1973, por força do Golpe de Pinochet, daí seguindo para o novo exílio, no México, após breve passagem pelo Panamá. Neste breve depoimento, Nádia fez questão de dizer que aprendeu desde criança a ser uma latino americana mais do que uma brasileira, tendo aprendido a falar português somente quinze anos depois, quando do retorno da família ao Brasil.


Ainda no Chile, cercada de condições estruturais e afetivas, Vânia dispõe de tempo e se empenha em prosseguir crescentemente em interpretar as condições históricas que condenavam os diversos países da América Latina e do Caribe ao subdesenvolvimento. Para tanto, recorreu com persistência ao paradigma marxista-leninista, tendo tido oportunidade de ler, além de “O Capital” e obras-chave de Marx e Engels também as obras completas de Vladimir Lenin, bem como todo um acervo crítico de clássicos marxistas e de pensadores críticos caribenhos. Por mais de uma vez, foi convidada a participar em Cuba, de encontros temáticos e debates relevantes, inclusive, com a presença de Fidel Castro e de Che Guevara.


Importa observar que, nestes e noutros debates, não por arrogância, mas com segurança e altivez, Vânia sempre participava dialogando - por vezes discordando de seus interlocutores, fazendo-o com respeito e sempre tomando em conta, de modo honesto, os argumentos e as teses dos debatedores. Assim procedeu, inclusive, já no México, quando compareceu à UNAM, para ser examinada, em um concurso público para Professora Titular, na Faculdade de Economia da mesma UNAM, ante uma Banca Examinadora da qual fizeram parte figuras de referência, a exemplo de Agostini Cuevas, de amplo reconhecimento internacional como pesquisador na área da Sociologia do Desenvolvimento latino-americano, inclusive no campo da Teoria da Dependência. Nesta ocasião, tendo disposto de um brevíssimo tempo (15 dias) para elaborar uma tese, e submetê-la a essa banca examinadora, Vânia Bambirra ousou sustentar sua própria interpretação do fenômeno da dependência, na perspectiva Marxista, fazendo críticas respeitosas a pontos sustentados pelos próprios membros da Banca, com eles mantendo um diálogo aberto e fraterno. A Banca Examinadora lhe outorgou o título de Doutora, com louvor. 


Retomando sua trajetória no Chile, cumpre ainda ressaltar que também foi durante este período, que Vânia Bambirra produziu seu “Opus magnum”, “El Capitalismo Dependiente Latinoamericano”, que ela elaborou entre 1968 e 1970. Nele, a autora, entre os principais pontos aí abordados, inicia por explicitar o itinerário metodológico seguido na obra, destacando o referencial marxista como a fonte da qual partia para a sustentação de suas teses. Assim, parte da tese de que o que se passava nos países latino-americanos constituía uma expressão, não apenas das condições impostas desde fora, mas uma manifestação do próprio modo capitalista de atuar no mundo.


Também no início do livro, Vânia Bambirra cuida de contestar - sempre respeitosamente as teses sustentadas por Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto, autores de “Dependencia y desarrollo en América Latina. Ensayo de interpretação sociológica”, criticando seus argumentos por não atentarem para as profundas raízes históricas e econômicas do fenômeno da dependência, faltando-lhes profundidade na sustentação. A este propósito, resta oportuno lembrar a acusação feita no Brasil, por diversos críticos de Fernando Henrique Cardoso e José Serra, ao imputar-lhes a tentativa de negar importância aos teóricos marxistas da dependência, tendo assim contribuído para o seu apagamento, especialmente no período da ditadura militar.


Ainda neste mesmo livro, Vânia Bambirra empreende um frutuoso mergulho na história social e econômica de um considerável número de países latino-americanos, em busca de desvendar as especificidades de cada país em sua respectiva inserção na divisão internacional do trabalho no universo das relações sociais do Capitalismo. No intuito de demonstrar que o fenômeno da dependência se insere organicamente no quadro geral do sistema capitalista, não se limitando a meras heranças coloniais nem a avaliação de uma suposta burguesia nacionalista, Vânia esboça uma tipologia que lhe permite distribuir em dois ou mais grupos de países, conforme as características econômicas de cada um, passando a analizar suas diferenças e pontos comuns em relação ao processo histórico do desenvolvimento capitalista, em escala mundial. Esta análise é feita de modo sempre conectado aos conceitos-chave do Materialismo histórico-dialético do Marxismo-Leninismo e em diálogo com os principais intérpretes da Teoria Marxista.


Densa é a bibliografia de Vânia Bambirra apresentada seja em forma de livros, seja em forma de capítulos de livros organizados em colaboração com outros autores e autoras, seja ainda mediante a publicação de vários artigos em revistas latino-americanas. Triste é constatar que muito pouco ainda se conhece de sua densa produção, no Brasil, sendo ela bem mais conhecida e reconhecida em outros países do que no Brasil. 


O que recolher do denso legado de Vânia Bambirra? 


Em um contexto de graves retrocessos, em diversos campos da realidade social, inclusive no Brasil, em que a maioria da Câmara Federal votou contra uma taxação simbólica de 0,5% sobre as riquezas dos muito ricos, mais do que nunca nossas organizações de base são chamadas a fazerem seu papel organizativo, formativo e de mobilização por meio do Trabalho de Base.


Um primeiro ensinamento que podemos extrair dos feitos e escritos por Vânia Bambirra nos remete à relevância do processo formativo contínuo, inclusive como marca essencial do próprio processo de humanização. Deste processo contínuo de formação também faz parte o exercício da memória histórica dos explorados e oprimidos, razão pela qual sempre recorremos aos grandes intérpretes da sociedade brasileira, homens e mulheres. Há poucos minutos, por exemplo, acabamos de ouvir a primorosa análise feita por Marilena Chaui, Dando a Real com Leandro Demori recebe a filósofa Marilena Chaui a interpretar a profunda crise instalada no Brasil, e alhures, com o crescente avanço das forças de Direita e o impactante recuo das forças de esquerda diante do predomínio dos valores marcados pela “atopia” (desaparecimento da dimensão de espacialidade) e da “acronia” (perda da dimensão de temporalidade), graças à submissão à logica e aos valores do universo tecnocratico da era digital, que subverte os valores civilizacionais, a começar por valores como “Liberdade”, “autonomia” e outros, reduzidos que se tornam a uma mera servidão voluntária aos valores do Mercado Capitalista.  


Em sintonia com os grandes intérpretes do Brasil, personalidades como Vânia Bambirra, Lélia Gonzalez, Clóvis Moura, Ruy Mauro Marini, Florestan Fernandes, Paulo Freire, Álvaro Vieira Pinto, Marilena Chauí e outros, Vânia Bambirra nos instiga - especialmente as nossas organizações de base, em particular os Movimentos Populares do campo e da Cidade -, a nos dotar de instrumentos de resistência e de luta, inclusive mediante o exercício contínuo da memória histórica, combinando-a com o trabalho de base.


João Pessoa, 08 de Novembro de 2024                           




 



             


quarta-feira, 30 de outubro de 2024

Intérpretes do Brasil (III): Clóvis Moura e sua análise histórico-dialética da formação de nossa sociedade

 Intérpretes do Brasil (III): Clóvis Moura e sua análise histórico-dialética da formação de nossa sociedade


Alder Júlio Ferreira Calado 


Na sequência da série “Intérpretes do Brasil”, aqui focamos a contribuição seminal de Clóvis Moura, destacando a relevância de suas pesquisas embasadas no referencial marxista histórico-dialético de nossa formação social. Tal como nos textos precedentes, também neste, iniciamos por um breve quadro sinótico de natureza biobibliográfica, para em seguida, fornecer alguns elementos de seu legado teórico metodológico de interpretação da formação social brasileira. Ao final, cuidamos de ressaltar os ensinamentos que avaliamos mais relevantes para a formação da consciência de classes dos militantes (mulheres e homens) de nossas organizações de base, especialmente os Movimentos Sociais Populares.  


Elementos bibliográficos da trajetória de Clóvis Moura 


Clóvis Steiger de Assis Moura (1925-2003) nasceu em Amarante, no Piauí, filho de pai negro, funcionário público, inspetor da Receita  Federal, e de mãe branca, neta de um membro da nobreza austriaca (donde o sobrenome Steirger) era, por tanto, alguém de classe média, cercado de condições favoráveis ao avanço nos estudos. 


Foi assim que, dada a condição profissional do pai (funcionário público), a família vai mudar para outros lugares. No Rio Grande do Norte, Clóvis Moura faz o seu curso secundário, em Natal, no Colégio Diosesano Santo Antônio, no qual participou ativamente das atividades literárias do Grêmio Estudantil, em cujo periódico publica um artigo  - “Libertas quae sera tamen”, lema da Inconfidência Mineira, prenunciando desde então (aos 14 anos), sua vocação de Jornalista. por volta dos 17 anos, a família muda de novo, desta vez para Salvador-BA, ainda que por um breve período, suficiente para entabular relações com figuras da intelectualidade baiana, transferindo-se para Juazeiro, no sertão baiano, sem haver concluído o curso de Direito, mas dando continuidade às suas pesquisas sobre o lugar do Negro na formação social brasileira.


Ao mesmo tempo, Clóvis Moura continuou a criar laços com diversas figuras de intelectuais, ligados ao PCB (Jorge Amado, Carlos Drummond de Andrade, Caio Prado Júnior,  Astrogildo Pereira, Nelson Werneck Sodré entre outros), bem como personagens não - marxistas, consideradas de referência no âmbito da crítica literária, inclusive pelo fato de que ele também se interessava e escrevia sobre outros pensadores brasileiros, a exemplo de Euclides da Cunha, a essas figuras de interlocutores, Clóvis Moura recorria para intercambiar ideias sobre a sua produção literária e política. De 1942 a 1949, Clóvis Moura manteve-se na Bahia, circulando entre Juazeiro e Salvador, contribuindo para diversos jornais da região, inclusive no jornal “O Momento”, ao tempo em que aprofundava suas relações com figuras dirigentes do PCB, tornando-se cada vez mais conhecido pelos seus talentos de escritor e de poeta.


 Crescentemente tocado pela causa negra, cuidou de desenvolver suas pesquisas nesta área. Certa vez, em carta endereçada a Caio Prado Júnior, consultou sobre o que estava pesquisando, em busca de uma melhor compreensão dos negros na historiografia brasileira. Em resposta, recebeu palavras de certo desestímulo quanto a prosseguir em suas pesquisas, tendo sido aconselhado por Caio Prado a enveredar por outro caminho de pesquisa, sendo aconselhado a perseguir o tema da ocupação dos Negros, no sertão e nas comunidades ribeirinhas. Caio Prado Júnior, contudo, sugeriu - lhe, quanto às suas pesquisas sobre as questões de Negritude recorrer a Edison Carneiro. No entanto, sem deixar de fazer contatos com Edison Carneiro, o integrante do PCB de então, Clóvis Moura seguiu seu próprio caminho, aprofundando suas pesquisas sobre o papel da condição negra na formação social do Brasil.


Em um tempo em que Caio Prado Júnior figurava como uma das principais referências da teoria marxista no Brasil, inclusive graças ao seu famoso “Formação do Brasil Contemporâneo”, e pertencendo ao mesmo partido (PCB),  Clóvis Moura mostrou-se bastante ousado em prosseguir firmemente suas pesquisas, de sorte que, em 1959, ele publica seu famoso “Rebeliões da senzala: quilombos, insurreições, guerrilhas”. Importa lembrar que já se tendo mudado para São Paulo, e sendo conhecido por Caio Prado Júnior, proprietário (ou - coproprietário junto com Monteiro Lobato) da editora Brasiliense, e já tendo Clóvis Moura pronto seu livro “Rebeliões da Senzala”, em meados dos anos  50, ele não conseguiu convencer a Caio Prado Júnior de publicar seu livro, que acabou saindo por Edições Zumbi, somente em 1959. 


Clóvis Moura forjou-se como um autodidata, não tendo concluído um curso acadêmico. sempre incursionando pelos campos da História, da Sociologia, do Jornalismo, da Literatura, da Poesia, ele vai aprimorando cada vez mais sua condição de escritor, sendo autor de 26 livros e outros textos de sua lavra. Dentre seus principais livros, permitimo-nos destacar os seguintes: 

  • “Rebeliões da Senzala: quilombos insurreições e guerrilhas” (1949) 

  •  “O Negro de Bom Escravo a Mau Cidadão” (1977

  •  “A sociologia posta em questão” (1978)

  • “Diário da Guerrilha do Araguaia” (1979)

  • “Os Quilombos e a Rebelião Negra” (1981)

  • “Brasil: as raízes do protesto negro” (1981)

  •  “Dialética Radical do Brasil Negro” (1984)

  • “Sociologia do Negro Brasileiro” (1988)

  • “Historia do Negro Brasileiro” (1989)

  • “As injustiças de Clio: o negro na historiografia brasileira’ (1990)

  • “Dialética Radical do Brasil Negro” (1994)

  • “Sociologia do Negro” (1998)

  •  “Dicionário da Escravidão Negra no Brasil” (2023)

  • “Dicionário da escravidão negra no Brasil” (2004)

Ao mesmo tempo, tratou de combinar organicamente sua condição de pesquisador e de intérprete da realidade social brasileira, pela via marxista do materialismo histórico-dialético, com uma intensa militância, seja no âmbito partidário (gozando de muita consideração dos dirigentes do PCB e, depois, do PCdoB, após 1962), seja como uma das principais referências do Movimento Negro Unificado (MNU), seja na militância como jornalista, tendo contribuído em diversos periodigos, a exemplo do jornal (“Última Hora,”, da  “Revista Princípios”, entes outros).


Clóvis Moura, deixando-nos um denso legado sempre combinando suas pesquisas teóricas com sua militância partidária, seus escritos, sua reconhecida contribuição aos Movimentos Populares, em especial ao Movimento Negro Unificado fez sua pasagem em 2003 aos 78 anos.


 Traços da contribuição teórico-prática do legado de Clóvis Moura


Clóvis Moura destaca-se pela sua extraordinária capacidade interpretativa da formação social brasileira e seu respectivo modo de produção, a partir de uma perspectiva histórica dialética. Tal é sua contribuição que, de certo modo, supera a leitura de brasil feita até por figuras  icônicas de sociólogos e historiadores tais como Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Júnior, à medida que 

  •  Sempre lidando com dados da História, da Sociologia, Antropologia, da literatura e de outros campos epistemológicos, seguindo a metodologia do Materialismo histórico-dialético, logra trabalhar as raízes mais fundas de nossa sociedade;

  •   Se disponha a apontar consideráveis lacunas ou equívocos de interpretação, na literatura especializada então dominante;

  •  Sempre trabalhando o movimento as interconexões as contradições histórico-sociológicas, consegue desvelar e descortinar relações sociais de novo tipo;

  •  Não se limita exclusivamente aos estudos teóricos, mas, como pesquisador militante, é capaz de cotejar dados aparentemente estabelecidos com relações apresentadas pelas forças sociais em confronto;

  •  Sempre apoiados em dados empíricos, lastreados em dados historiográficos, é capaz de descobrir a presença de fatos históricos não consideráveis suficientemente pelas abordagens. 



Neste sentido, Clóvis Moura, ao mesmo tempo em que toma em conta  as relações sociais entre as partes constitutivas ,  de nossa realidade também toma como foco a totalidade das relações em âmbito internacional, isto é não apenas analisa as relações sociais e econômicas ao interno do que se passava no Brasil Colonial (modo de produção escravista e depois capitalista), mas também trata de captar e analisar as relações internas em função dos interesses das forças sociais dominantes e dos Estados centrais do Capitalismo. Assim é que descobre que, por exemplo, oque se passa no Brasil não tem a ver com relações feudais, mas com o lugar específico do Brasil na divisão social do trabalho, no modo de produção capitalista.


Clóvis moura descobre, ainda, que o próprio processo de abolição da escravidão não se deu apenas em função das necessidades e dos interesses das classes dominantes e dos Estados centrais do capitalismo notadamente o Reino Unido mas também graças a uma sucessão de revoltas e insurreições, de “Quilombagem” de resistências (inclusive com assassinatos de senhores  e de capitães do mato e de fugas individuais e em grupos para os quilombos), estratégias postas em prática pelos escravizados sobretudo após a segunda metade do século XIX.


Ao contrário, por exemplo, de Gilberto Freyre, que sustentava a tese da “democracia racial”, Clóvis Moura tratou de comprovar a existência da luta de classes protagonizada pelos escravizados, desde o período colonial, estendendo-se ao processo de abolição e aos períodos seguintes.


Não obstante a relevância de seu legado bibliográfico, Clóvis Moura teve um reconhecimento relativamente tardio, possivelmente por conta de tratar-se de um “outsider” da Academia - Clóvis Moura era um pesquisador autodidata, forjado no árduo trabalho de pesquisa combinado com sua fecunda militância partidária (PCB e depois PCdoB) e no Movimento Negro Unificado (MNU). Sobretudo a partir dos anos 1970, todavia, passou a contar também com o reconhecimento público de intelectuais da Academia. Prova disto é, por exemplo, o fato de que a primeira edição de seu livro “Rebeliões da Senzala: quilombos insurreições e guerrilhas” (1949), fruto de suas pesquisas iniciadas ainda nos anos 1940, teve sua primeira publicação apenas em 1959, ainda sim com uma circulação bastante restrita. Somente a partir de sua segunda edição, na primeira metade dos ano 1970 é que ele passou a ser reconhecida mais amplamente, inclusive por conta de ter sido apreciado mas reconhecidamente primeiro, fora do Brasil, graças a referência elogiosa que obteve de Eugene Dominick Genovese em seu famoso livro “From Rebellion to Revolution” (1979). Desde então, passa a ser reconhecido também por diferentes figuras de intelectuais brasileiros. Além do próprio Caio Prado Júnior, Jorge Amado, Nelson Werneck Sodré, entre outros. Um de seus livros, “Os quilombos e a rebelião negra” (1981) foi, inclusive, publicado pela editora brasiliense, figurando na famosa coleção “Tudo é História”.


A par de sua intensa produção bibliográfica, percorrendo os campos da História, da Sociologia, da Antropologia, da Economia, da Literatura e da Poesia, cumpre ressaltar a enorme recepção que Clóvis Moura teve dos movimentos sociais populares, em especial do Movimento Negro Unificado.


O que aprendemos com Clóvis Moura?


Em um contexto extremamente desafiante para as forças sociais de transformação, que se sentem gravemente agredidas, inclusive no plano político - eleitoral, no Brasil e na América Latina em escala mundial, nossas organizações de base (populares, sindicais, da esquerda católica e protestante e partidárias) são instadas a vencerem sua letargia, retomando resolutamente o Trabalho de Base, no campo nas periferias urbanas, seja no plano organizativo, seja no âmbito da formação contínua, seja no campo da mobilização e das lutas. Eis a tarefa a ser assumida, diuturnamente, pelos nossos militantes - jovens, mulheres, homens, feministas, indígenas, comunidades quilombolas, camponeses  e camponesas, operários e operárias, estudantes, entre outros.


É neste sentido que a revisitação do legado teórico-prático de  Clóvis Moura, especialmente no que concerne à “Práxis Negra”, se mostra relevante e oportuna, principalmente pela sua solidez e pela fecundidade de sua análise dialética , na perspectiva Marxista del materialismo histórico-dialéctico, combinada, por isto mesmo, com sua práxis revolucionária militante, de intelectual orgânico das classes populares,  que trabalha as categorias “Classe” e “Raça”, direta ou indiretamente conectadas a tantas outras dimensões (econômicas políticas, culturais, de relações sociais de gênero, de espacialidade, geracionais, estéticas, literárias, de valores éticos, entre outras).


Aprendemos, ainda, com Clóvis Moura a tomar a sério o exercício da crítica e da autocrítica nas relações do cotidiano. Eis uma impactante ilustração: em um de seus escritos, “O Preconceito da Cor na Literatura de Cordel” (São Paulo: Resenha Universitária, 1976), ele trata de recomendar o exercício da autocrítica ao interno das classes populares, também elas sujeitas a introjetar e reproduzir valores da classe dominante, assim remetendo-nos ao conhecido alerta de Marx e Engels de que nas sociedades de classes, a ideologia dominante é a ideologia da classe dominante. 


Dentre tantos ensinamentos que podemos recolher do denso legado de Clóvis Moura, além dos acima-assinalados, ressaltamos o seu cuidado e o seu compromisso revolucionário consequente e em conformidade com o teor da Tese 11, elaborada por Marx como uma crítica dirigida a Feuerbach, de que “Os Filósofos interpretaram o Mundo, de diferentes maneiras. O que importa é transformá-lo”. 


João Pessoa 30 de Outubro de 2024             


quarta-feira, 23 de outubro de 2024

Ação de graças pela vida e obra de Gustavo Gutiérrez (1928-2024)

 Ação de graças pela vida e obra de Gustavo Gutiérrez (1928-2024)


Alder Júlio Ferreira Calado


Uma vida consagrada ao discipulado da Tradição de Jesus, eis o que testemunha o longo itinerário percorrido entre nós por Gustavo Gutiérrez, de cuja páscoa definitiva, ontem, 22/10/2024 tivemos notícia. Com saudade e esperança, associamo-nos à multidão de pessoas, grupos e comunidades da América Latina e de outros continentes, para render graças à Divina Ruah, fonte de vida, e ao próprio Gustavo Gutiérrez, ou seu denso e frutuoso legado como ser humano, como perseverante discípulo de Jesus e como teólogo seminal, comprometido com as causas libertadoras do Reinado de Deus, por Ele, inaugurado, anunciado e testemunhado.


Gustavo Gutiérrez, membro do Povo Indígena, nasceu em Lima - Peru, em 8 de Junho de 1928. Dos 12 aos 18 anos, foi acometido de uma osteomielite que lhe bloqueou os movimentos, o que não o impediria de seguir seus estudos e de participar de grupos da Ação Católica que muito contribuíram para sua trajetória vocacional e militância crítica. Tendo feito cursos de Filosofia, Psicologia e  Teologia, no Chile, e após sua ordenação presbiteral, em 1959, também cursou, em Lovaina - Bélgica, Ciências Sociais, doutorando-se em Lyon - França, em meados dos anos 80. 


Ao longo de sua trajetória, Gutiérrez fez questão de conviver perto dos pobres, na Comunidade Rímac, na periferia de Lima, combinando, de modo orgânico, seu crescente compromisso com a causa libertadora dos oprimidos e explorados com o contínuo aprofundamento na compreensão teórico - prática da realidade social em que vivem os pobres na América Latina e no mundo. Foi esta combinação também responsável por tornar - se a principal referência entre os fundadores da Teologia da Libertação, antes mesmo da publicação, em 1971, de seu icônico “Teología de la Liberación: perspectivas”, ainda hoje tido como principal marco da Teologia latino - americano.


De fato, juntamente com um seleto grupo de teólogos, do qual faziam parte: Ivan Illich (Cuernavaca, México), Segundo Galilea (Chile), Juan Luis Segundo (Uruguai), José Comblin (Brasil), Ana Flora Anderson, Frei Gilberto Gorgulho, Luis Alberto de Sousa (Brasil) e outros, que participaram dos encontros anuais realizados em Petrópolis (1964), em Cuernavaca (México, 1965), em Santiago (Chile 1976) em Montevideo (1967), em Lima e em outras Cidades. Gutiérrez foi um dos protagonistas das origens latino -  americanas da Teologia da Libertação, juntamente ainda a outras figuras de Teólogos protestantes, tais como Rubem Alves (cujo livro “Teologia da Libertação” data de 1968), Richard Shaull (em 1953, foi publicado seu conhecido livro “Cristianismo e Revolução Social”, tendo ele integrado um grupo de teólogos ecumênicos, protagonistas do Setor social de diversas denominações protestantes), Joaquim Beato, João Dias de Araújo, grupo promotor da famosa “Conferência do Nordeste, realizada em Recife - PE, de 22 a 29/07/1962, e cujo tema foi “Cristo e a Revolução Social Brasileira”. 


Preciosos textos deste modo de teologizar encontram-se na Revista “Inglesa y Sociedad”. Ao longo desses mais de 60 anos de produção teológica, Gustavo Gutierrez, se destacou como a principal referência neste modo de teologizar, de que são prova diversas homenagens acadêmicas (ele recebeu 23 outorgas de títulos de Doutor “Honoris Causas”) e o fato de ter dirigido, por 20 anos, a Revista “Concilium”, ao que devemos agregar sua vasta produção teológica, da qual destacamos, entre outros, os seguintes textos e livros: 

1 - "Hacia una teología de la liberación" (MIEC-JECI, Montevideo, 1969);

2 - "Teología de la liberación. Perspectivas" (Lima:Centro de Estudios y Publicaciones, 1971;

3 - "Evangelio y praxis de liberación", em Fe cristiana y cambio social en América Latina, Instituto Fe y Secularidad (ed.), (Sígueme, Salamanca, 1973), pp. 231-245;

4 - "Apuntes para una teología de la liberación", em co-autoria com Rubem Alves e Hugo Assmann, em ¿Religión, instrumento de liberación? (Marova-Fontanella, Madri-Barcelona, 1973), pp. 2-76;

5 - Beber no Próprio Poço-itinerário Espiritual de um Povo. Gustavo Gutiérrez. Editora: Vozes, Ano: 1984

6 - "Una teología de la liberación en el contexto del tercer Mundo", em El futuro de la reflexión teológica en América Latina (Consejo Episcopal latinoamericano-CELAM, Bogotá, 1996), pp. 97-165;

7 - "Del lado de los pobres. Teología de la liberación" em co-autoria com Gerhard Ludwig Müller, prólogo de Josef Sayer (Instituto Bartolomé de Las Casas-Rimac y CEP, Lima, 2005).

Importa ressaltar múltiplos desafios que Gutiérrez teve que enfrentar, fora e dentro dos espaços eclesiásticos. Foi, juntamente com dezenas de outros teólogos da libertação, alvo de perseguição por parte do Vaticano, durante os pontificados de João Paulo II e de Bento XVI. Várias de suas teses sofreram objeções da parte da famigerada Comissão de Doutrina da Fé. Como em todos os tempos, a ação profética de denúncia e de anúncio implica a via de perseguição por parte dos setores dominantes da sociedade e da Igreja.


Consola-nos, no entanto, constatar os caminhos de esperança que foram abertos por figuras como a de Gustavo Gutierrez. Há apenas uma semana, em função dos trabalhos de leitura continuada do livro 50 anos de Teologias da Libertação: Memória, revisão perspectivas e desafios, organizado por Edwar Guimarães,  Emerson Sbardelotti e Marcelo Barros, o Grupo Teologia da Libertação, criado por Eraldo Lemos Batista, após 60 sextas-feiras consecutivas, terminou a leitura do último capítulo deste livro. Dando prosseguimento a este trabalho de Educação Popular, o mesmo Grupo iniciará, na próxima sexta-feira, dia 25 /10, a leitura comum sequenciada do livro A Prática de Jesus, de autoria de Hugo Echegaray, prefaciado por seu grande amigo Gustavo Gutiérrez, em densas vinte e duas páginas.


A Gustavo Gutiérrez expressamos nosso reconhecimento e nosso preito de gratidão pelo seu perseverante testemunho de discípulo do Movimento de Jesus e pela fecundidade de sua obra teológica. 


João Pessoa, 23 de Outubro de 2024


sábado, 19 de outubro de 2024

Intérpretes do Brasil (II): Traços heurísticos do aporte de Lélia Gonzalez

Intérpretes do Brasil (II): Traços heurísticos do aporte de Lélia Gonzalez


Alder Júlio Ferreira Calado


Damos aqui prosseguimento a uma série de textos destinados a uma revisitação da biografia e da produção de homens e mulheres que se

mostram reconhecidamente como uma referência emblemática na

interpretação histórico-crítica da sociedade brasileira, com o propósito de

estimular, especialmente em jovens militantes, o exercício revolucionário da

memória histórica dos oprimidos e explorados.

Como já assinalado desde o primeiro texto, consagrado a Ruy Mauro Marini,

não estamos seguindo uma ordem cronológica, mas, antes, priorizando

aquelas figuras, cujas contribuições nos parecem marcadas de alto teor

crítico-propositivo, ainda que gozando de uma atenção que consideramos

muito a quem do seu merecido lugar de intérpretes qualificados das

relações sociais características do modo de produção dominante da

sociedade brasileira.


Nas linhas que seguem, iniciamos por uma breve notícia biobibliográfica de

Lélia Gonzalez, seguida de uma rememoração das ideias axiais por ela

expressas, seja em seus ensaios, em seus artigos, em suas intervenções e

entrevistas. Em um outro tópico, trataremos de destacar traços relevantes

de sua contribuição teórica à interpretação do Feminismo Negro, no Brasil.

Por último, trataremos de ressaltar, a relevância teórica que sua

contribuição, como intérprete da sociedade brasileira, especialmente no que

concerne ao feminismo e à Negritude, tendo tido sempre o cuidado de

articular dialeticamente os conceitos de “Gênero”, “Raça” e “Classe”.

Lélia Gonzalez: Elementos de um percurso biobibliográfico.


Lélia Gonzalez (1935-1994), nascida Lélia de Almeida, em uma periferia de

Belo Horizonte, de um pai operário ferroviário e de uma mãe indígena,

trabalhando como doméstica constituindo uma família numerosa de 18 filhos

e filhas, das quais Lélia é a penúltima nascida. Em função da natureza do

trabalho do pai, muda-se para uma periferia do Rio, graças inclusive à

condição favorável conquistada pelo seu irmão Jaime, jogador de futebol do

Atlético Mineiro que fora contratado pelo Flamengo, afirmando-se, também

aí, como um craque (integrou a seleção brasileira no período e ajudou o

Flamengo a conquistar o tricampeonato carioca de 1942, 1943, 1944).


Com a ascensão de Jaime pela via do futebol - marca frequente em figuras

das classes populares, principalmente dos negros -, toda a família passa a

ser beneficiada, também Lélia. Após cursar o ensino primário, consegue ter

acesso no centro da cidade a uma Escola Pública de reconhecida qualidade,

no centro do Rio, enquanto o seu Ensino Médio cursou no famoso Colégio

Pedro II. Para os filhos e as filhas do Povo Negro, isto constituía quase uma

exceção que Lélia aproveitou, de modo exponencial, tornando-se uma

estudante aplicadíssima e reconhecida por seus professores e colegas. Mais

tarde, Lélia faria questão de destacar a relevância da via dos estudos que,

no caso de sua família negra, se somaria à outra via - a do esporte - seguida

pelo seu irmão. Teve, porém, que pagar para tanto um preço alto: o do

“branqueamento”, isto é, o de ter que tolerar acomodar-se às condições

dominantes, comportando-se inclusive no vestir e no plano estético, como

próxima dos colegas brancos. Mais tarde, ela vai ressaltar esse detalhe.

Aos 19 anos, Lélia ingressa para o Curso de História e Geografia da então

Universidade Estadual da Guanabara, atual Universidade Estadual do Rio de

Janeiro (UERJ), após o qual vai cursar Filosofia, na mesma Universidade.

Cada vez mais descobrindo seu potencial crítico e desbravador, parte para

fazer sua Pós-Graduação, tendo cursado o Mestrado em Comunicação Social

e o Doutorado em Antropologia Política, pela PUC do Rio. Vivíamos um

período impregnado de muitas figuras formuladoras do pensamento

brasileiro, a exemplo de Guerreiro Ramos.

Profundamente tocada por uma experiência conjugal, da qual resultam

graves consequências para ela e para o futuro marido. Já com certa idade

(em torno dos 30 anos), enamorou-se de Luiz Carlos Gonzalez, de família

espanhola. Relacionamento que, de início, não sofreria represálias da família

branca: em quanto esta avaliava tratar-se de uma “concubinagem”. A partir,

contudo, do momento em que a família Gonzalez tomou conhecimento da

formalização daquele relacionamento, mediante o casamento, a vida de Luís

Carlos e Lélia se tornaria um inferno de rejeição e crescentes hostilidades.

Pelo menos em parte, uma consequência deste episódio implicaria no suicídio

de Luís Carlos. Em vista de prestar homenagem ao marido, que, tanto havia

amado e estimulado seu compromisso com sua identidade de mulher negra,

Lélia Gonzalez decidiu manter seu nome, mesmo quando de um segundo

relacionamento (desta vez, com um negro que não se reconhecia como tal).

Lélia tratou de enfrentar e superar este trauma, recorrendo também aos

conhecimentos da psicanálise. Passou, então, a estudar sistematicamente


clássicos da área, especialmente Freud e Lacan, sempre associando-os aos

seus achados “Ladino-Amefricanos”, inspirando-se em figuras como a de

Franz Fanon.

Dotando-se de tão precioso “Curriculum”, empenha-se em fazer um uso

frutuosos dos seus achados, à medida que se disponha crescentemente a

compartilhar seus conhecimentos com o Povo Negro, passando a exercitar

uma contínua militância política, seja na resistência à Ditadura Empresarial-

Militar (de que resultam contra ela registros nos órgãos de repressão, já em

1972), seja na efetiva contribuição à organização do Movimento Negro

Unificado (MNU), seja na animação de festas da cultura negra (escolas de

samba, blocos carnavalescos, e participante do Candomblé) seja na sua

militância no PT e depois no PDT, tendo contribuído ativamente no processo

constituinte de 1987/1988, ao tempo em que cuidava de aprofundar sua

achega teórica, de forma interseccional, acerca das raízes históricas do

povo negro, no Brasil, na América Latina, no Caribe, nos Estados Unidos e na

África.

Nesta toada, impacta-nos observar a quantidade e a qualidade de sua

produção teórica, durante algumas décadas, combinando a elaboração de

ensaios, de artigos, de entrevistas e de outras intervenções. Deste

relevante legado bibliográfico, destacamos:

“Festas Populares no Brasil”. Rio de Janeiro, Índex, 1987;

“Lugar de Negro” (com Carlos Hasenbalg). Rio de Janeiro, Marco

Zero, 1982 (Coleção Dois Pontos)”;

“Por um Feminismo Afro-Latino-Americano”, Revista Isis

Internacional, n.8, Rio de Janeiro, 1983, p.12-20;

"Mulher Negra, essa Quilombola". Folha de S. Paulo, Folhetim.

Domingo, 22 de novembro de 1981;

“A mulher negra na sociedade brasileira (uma abordagem político-

econômica)” In: Luz Madel (org.), O lugar da mulher, estudos sobre a

condição feminina na sociedade atual, Rio de Janeiro, Graal, v.1, 1982

(Coleção Tendências 1);

“Racismo e sexismo na cultura brasileira” In: Luiz Antônio Silva,

Movimentos sociais, urbanos, minorias étnicas e outros estudos,

Brasília, ANPOCS, Capítulo 3, 1983 [Ciências Sociais Hoje 2];

& quot;O Terror nosso de Cada Dia & quot;. In. Raça e Classe. (2): 8, ago./set.

1987.

& quot;A Categoria Político-Cultural de Americanidade & quot;. In. Time Brasileiro,

Rio de Janeiro (92/93): 69-82, jan./jun. 1988.


& quot;As Americanas do Brasil e sua Militância & quot;. In. Maioria Falante. (7): 5,

maio/jun. 1988.

& quot;Nanny ". In. Humanidades, Brasília (17): 23-5, 1988.

"A Importância da Organização da Mulher Negra no Processo de

Transformação Social & quot;. In. Raça e Classe. (5): 2, nov./dez. 1988;

& quot;Uma Viagem à Martinica - & quot;. In. MNU Jornal. (20): 5, out./nov;

(N.d.)

“América ladina”, de Lélia Gonzalez. Volume 5 da BBLA, 2022.


Edição: Ateliê Humanidades (Brasil) e Tucán Ediciones (Chile). - Uma

antologia organizada por Melina de Lima (historiadora e neta de Lélia)

Conceitos axiais trabalhados por Lélia Gonzalez

Com base em pesquisas recentes e menos recentes em textos, entrevistas e

documentários em torno da figura emblemática de Lélia Gonzalez e do

feminismo negro, nomeadamente as pesquisadoras Luíza Bairros, Beatriz

Nascimento, Raquel Barreto, Elizabeth Viana, Sueli Carneiro, Grada Kilomba,

Carla Akotirene entre outras, ousamos fazer uma breve incursão pelo

universo vocabular trabalhado por Lélia Gonzalez.


Sempre empenhada em sua trajetória de intelectual engajada, em articular

organicamente seus achados teóricos e sua militância nos Movimentos

Populares (especialmente no Movimento Negro unificado, o Coletivo de

Mulheres Negras N’Zinga, o Instituto de Pesquisas das Culturas Negras,

entre outros), Lélia Gonzalez também se destaca pela sua postura

heurística, de quem busca fundamentar elementos epistemológicos da

Cultura Negra, razão pela qual ousou propor alguns instrumentos teórico-

conceituais que se têm revelado pertinentes e fecundos como ferramenta

de interpretação histórico-cultural da formação social do Brasil. Nas linhas

que seguem, vamos trazer alguns desses conceitos. 

De partida, cumpri atentar para o itinerário teórico metodológico da

interseccionalidade escolhido por Lélia Gonzalez, compatível, aliás, com seu

processo formativo, tendo ela circulado pela História e Geografia, pela

Filosofia, pela Comunicação Social, pela Antropologia-Política e pela

Psicanálise, em uma época em que mal se começava a seguir por esta trilha.

Do campo da história, por exemplo - mas sempre dinamicamente articulada a

outros campos - Lélia Gonzalez trabalha o conceito de “Amefricanidade

Ladina”. Entendia que os povos diaspóricos da Mãe-África, em parte,

sequestrados e escravizados pelos Europeus nas Américas, precisam ser


reconhecidos como protagonistas de uma nova história, que não é

reprodução passiva da cultura eurocêntrica.

Longe das interpretações eurocêntricas, dominantes inclusive no Brasil, o

processo de colonização, malgrado toda sua violência, não logrou reeditar

nos colonizados sua visão de mundo, à medida que:


Do ponto de vista econômico, por exemplo, o processo de colonização, seja no contexto do Escravismo, seja no contexto do Capitalismo, se deu fundamentalmente graças ao trabalho dos Afro Brasileiros, que vão tomando consciência de serem os principais protagonistas das riquezas produzidas, ontem como hoje, no campo e na cidade, ainda que delas continuam marginalizados, quanto à fruição das mesmas;

No âmbito da Cultura, igualmente, os Afro-Brasileiros se dão conta do seu denso protagonismo em sua visão de mundo, seja nos costumes, seja no mundo das artes, das letras, das danças, das festas populares e até nos falares. Não foi por acaso, neste entendi, que Lélia Gonzalez, ao exemplificar a linguagem própria das pessoas negras, ousou cunhar a expressão “Pretuguês”. Com efeito, resta fácil constatar o imenso universo vocabular observável nos falares negros, expressos no cotidiano familiar, no trabalho, nas artes, na música, nos esportes , nas religiões de matriz africana, etc.   

 Alicerçada principalmente no Marxismo, Lélia Gonzalez vai interpretar a realidade econômica do Brasil e da América Latina e do Caribe, como a constituir parte integrante do sistema capitalista mundial, no qual a divisão social do trabalho bem como suas relações axiais se dão de modo desigual e combinado. No modo de produção capitalista aos países periféricos cabe uma inserção desigual e subordinada tanto aos grandes conglomerados transnacionais (normalmente sediados nos países centrais do Capitalismo), como aos Estados nacionais centrais.       


Ao contrário, deste processo secular resultam múltiplos aspectos econômicos, políticos e culturais que pouco ou nada tem a ver com a cultura eurocêntrica. É neste sentido que Lélia Gonzalez, solidamente apoiada nas experiências dos Negros nos Estados Unidos, na América Latina e no Caribe e no Brasil, sempre em diálogo com figuras exponenciais do mundo Negro, a exemplo de Angela Davis, e Franz Fanon sustenta a existência de um novo sujeito histórico resultante desse processo que ela nomeia como “ladino-amefricano”. 


No plano da Psicanálise, Lélia Gonzalez também inova, a partir da combinação do uso psicanalíticos trabalhados por Freud e Jacques Lacan por um lado, e dados concretos de sua própria experiência de Negritude. Foi assim que ela ousou, em sua leitura de mundo afrodiásporico, adotar conceitos tais como “Neurose cultural”, “Racismo por denegação” e outros. Quanto ao primeiro, Lélia Gonzalez entende que tal é a introjeção pelas pessoas Negras dos valores eurocêntricos, durante séculos de colonialismo e escravidão, que elas acabam assimilando e reproduzindo acriticamente ideias valores, crenças e comportamentos, de modo à confirmarem o mito da supremacia branca e o da inferioridade invencível das pessoas negras, passando assim a agirem conforme os ditames da classe dominante. Isto se dá, por exemplo, quando reproduzem a ideologia de que “não há racismo no Brasil”. O conceito de “Racismo por denegação” se faz presente pelo fato de que, se por um lado negam, por outro acabam afirmando-ou na complementação de sua negativa: “No Brasil, não há Racismo, pois eu sou empregada negra em uma família de brancos, e todos me respeitam.” 


Elementos principais do aporte teórico de Lélia Gonzalez


Desta breve paisagem sinótica biobibliográfica do itinerário de Lélia Gonzalez, tratamos, por fim, de sublinhar alguns aspectos, com o propósito de incentivar especialmente jovens militantes dos Movimentos Populares e de outras organizações de base de nossa sociedade, a seguirem aprofundando o legado teórico-prático desta intelectual orgânica, como mais uma ferramenta de leitura crítica de nossa realidade, como meio de transformá-la. Neste sentido, começamos por ressaltar a relevância de sua “práxis”, isto é de seu compromisso de combinar dialeticamente seus achados teóricos e sua múltipla militância social, seja no Movimento Negro Unificado, seja no Coletivo Feminista Mizinga, seja na criação do Patido dos Trabalhadores (e depois no PDT), seja em diversas organizações culturais negras, seja no processo constituinte de 1987/1988, seja ainda na preciosa Articulação dos movimentos e organizações negras, em âmbito nacional latino-americano e do Caribe, nos Estados Unidos e na África. Que esta rápida e incompleta revisitação do denso legado de Lélia Gonzalez nos inspire a todos - notadamente, nossos jovens militantes de base - a vencermos a inquietante letargia que acomete parte expressiva de nossas organizações de base, inclusive, os Movimentos Sociais Populares, em busca de uma retomada perseverante do trabalho de base, no campo e nas periferias urbanas.




João Pessoa, 19 de outubro de 2024