quinta-feira, 27 de março de 2025

Intérpretes do Brasil (XVII): Josué de Castro, um intelectual combatente das desigualdades sociais, no Brasil e no mundo.

Intérpretes do Brasil (XVII): Josué de Castro, um intelectual combatente das desigualdades sociais, no Brasil e no mundo.


Alder Júlio Ferreira Calado



Sob o título acima indicado, perseguimos as trilhas de personalidades brasileiras - homens e mulheres - que contribuíram reconhecidamente, pelas suas obras e trajetórias biográficas, para a elaboração de um projeto de nação, que fizesse justiça ao Povo brasileiro, especialmente os trabalhadores e trabalhadoras do campo e da cidade. Nosso principal intento segue sendo o de instigar nossas organizações de base, principalmente os Movimentos Populares, notadamente por meio de suas lideranças, a exercitarem a memória histórica dos oprimidos, no compromisso com as profundas transformações necessárias e urgentes para a superação do atual modo de produção, de consumo e de gestão societal. 


Quase 80 anos passados, desde a primeira edição de Geografia da fome, de autoria de Josué de Castro, deploramos constatar a presença ameaçadora da fome e de outras “doenças da pobreza”. constitui para nós um escândalo inaceitável observar, em pleno século XXI a existência de centenas de milhões de seres humanos assolados pela fome em nosso mundo, proibidos de terem satisfeitas suas carências materiais (alimentação, habitação, vestuário, entre outras) , condição mínima de sua sobrevivência, sempre lembrando que, para além da satisfação das necessidades materiais, os seres humanos necessitam ainda de terem satisfeitas suas necessidades imateriais - a contemplação do belo o exercício e a fruição das artes, a criatividade, como condição também essencial para o seu processo de humanização.         


O problema da fome, no Brasil e no mundo tem profundas raízes histórico-estruturais, diretamente ligadas ao modo de produção capitalista, em suas manifestações diferenciadas inclusive desde o longo período. Importa lembrar que tal fenômeno não se verifica em doses iguais, nas diversas sociedades capitalistas. Embora em todas elas, a fome constitua um desafio, impõe-se reconhecer que é fundamentalmente nos países periféricos do sistema capitalista que o desafio da fome incide de modo exponencial. 


Em que pese sua gritante letalidade, por longo tempo, no Brasil e alhures o fenômeno da fome foi naturalizado pelos setores dominantes e dirigentes da sociedade brasileira até parecia algo inexistente, dada a indiferença com que as forças do latifúndio, em conluio com os segmentos com os demais segmentos dominantes e dirigentes tratavam aquele fenômeno. Se Josué de Castro não foi o primeiro, foi por certo quem logrou trazer este problema às escâncaras da sociedade brasileira. Outros os seguiriam, a exemplo do poeta e Embaixador pernambucano João Cabral de Melo Neto, (1920-1999) de quem se tornaria célebre seu escrito “Morte e vida Severina”, no qual denunciava as condições desumanas vividas pelo Povo brasileiro especialmente os agricultores, do Nordeste nos seguintes termos: 


“E se somos Severinos

iguais em tudo na vida

Morremos De morte igual

mesma morte Severina

de velhice antes dos trintas

 de emboscada antes dos vinte

de fome um pouco por dia 

(de fraqueza e de doença

é que a morte Severina 

ataca em qualquer idade

e até gente não nascida).”       


Josué Apolônio de Castro  nasceu em Recife, em 5 de Setembro de 1908. Filho de Manoel Apolônio de Castro e de Josepha Carneiro de Castro desde cedo, mostrou-se um jovem notoriamente marcado por uma sede de saber. Dele podemos dizer tratar-se de alguém movido pela curiosidade epistemológica. Sobre ele consta a informação de que já aos 17 anos, se iniciava nas leituras de Freud, pensando inicialmente seguir o curso de Psiquiatria. Formou-se em medicina, de que também se tornaria um docente, na então Faculdade de Medicina de Recife (depois, transferindo-se para a atual Universidade Federal do Rio de Janeiro). Já em Recife, seus alunos cultivavam grande admiração pelo Professor especialmente pelo seu empenho, pela sua competência e pelo modo de relacionar-se com os alunos. 


Ao mesmo tempo, Josué de Castro cultivava o gosto pelo cinema. Era um exímio cinéfilo, oque também contribuiria para despertar nele o apreço pela Literatura, oque o faria apaixonar-se pelos dramas humanos, comprometendo-se a ajudar a enfrentá-los exitosamente. Seu especial gosto pela Ciência restou fundamental  para também contribuir com seus diversos escritos. É, com efeito, autor celebrado , não apenas de “Geografia da Fome” (1946) e de “Geopolítica da fome” (1951), mas ainda de uma extensa lista de livros:

  • O Problema Fisiológico da Alimentação no Brasil. Recife: Ed. Imprensa Industrial, 1932.

  • O Problema da Alimentação no Brasil. Rio de Janeiro: Companhia Editora Nacional, 1933.

  • Condições de Vida das Classes Operárias do Recife. Recife: Departamento de Saúde Pública, 1935.

  • Alimentação e Raça. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1935.

  • Terapêutica Dietética do Diabete. In: Diabete. Livraria do Globo, Porto Alegre, 1936. p. 271-294.

  • Documentário do Nordeste. Rio de Janeiro: José Olympio, 1937.

  • A Alimentação Brasileira à Luz da Geografia Humana. Rio de Janeiro: Livraria do Globo, 1937Festa das Letras. Co-autoria de Cecília Meireles. Rio de Janeiro: Livraria Globo, 1937.

  • Fisiologia dos Tabus. Rio de Janeiro: Ed. Nestlé, 1939.

  • Geografia Humana. Rio de Janeiro: Livraria do Globo, 1939.

  • Alimentazione e Acclimatazione Umana nei Tropici. Milão, 1939.

  • La Alimentación en los Trópicos. México: Fondo de Cultura, 1946.

  • Fatores de Localização da Cidade do Recife. Rio de Janeiro: Ed. Imprensa Nacional, 1947.

  •  A Cidade do Recife – Um ensaio de Geografia Urbana. Rio de Janeiro: Casa do Estudante do Brasil, 1956. Reedição de Fatores de Localização da Cidade do Recife.

  • Três personagens. Rio de Janeiro: Casa do Estudante do Brasil, 1955.

  • O Livro Negro da Fome. São Paulo: Brasiliense, 1957.

  • Ensaios de Geografia Humana. São Paulo: Brasiliense, 1957.

  • Ensaios de Biologia Social. São Paulo: Brasiliense, 1957.

  • Sete Palmos de Terra e um Caixão. São Paulo: Brasiliense, 1965.

  • Ensayos sobre el Subdesarrollo. Buenos Aires: Siglo Veinte, 1965.

  • ¿Adonde va la América Latina?. Lima: Latino Americana, 1966.

  • Homens e Caranguejos. Porto: Ed. Brasília, 1967.

  • A Explosão Demográfica e a Fome no Mundo. Lisboa: itaú, 1968.

  • El Hambre - Problema Universal. Buenos Aires: La Pléyade, 1969.

  • Latin American Radicalism. Edited by Irving Horowitz, Josué de Castro and John Gerassi. New York: Vintage Books, 1969. Coletânea organizada por Irving Horowitz, Josué de Castro e John Gerassi.

  • A Estratégia do Desenvolvimento. Lisboa: Cadernos Seara Nova, 1971.

  • Mensajes. Bogotá: Colibrí, 1980.

  • Fome: um Tema Proibido - últimos escritos de Josué de Castro. Anna Maria de Castro (org.). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.


Foi além. Instigado, por exemplo, pelo drama da fome, buscou na Ciência  na História e na Política elementos de resposta efetivos para o enfrentamento da questão. Nutrição e Geografia constituíram suas escolhas iniciais, para tanto. Mais tarde, além da Demografia, e da Antropologia, também recorreu à militância política, seja nos espaços parlamentares - exerceu, por dois mandatos, o cargo de Deputado Federal, representando o Estado de Pernambuco. Mais dados seu empenho, seu compromisso e sua competência, também exerceu, em âmbito internacional, cargos relevantes tais como o de Presidente da FAO (órgão da ONU, voltado para a Agricultura e Alimentação, concede em Genebra, na Suíça), bem como o de Embaixador do Brasil junto ONU.   


Josué de Castro chegou a ser o candidato melhor cotado para o Ministério da política da Fome Agricultura, no Governo João Goulart, inclusive pelo seu compromisso em defesa da Reforma Agrária, por interferências negativas internas ao seu partido (PTB), conforme depoimento prestado por Darcy Ribeiro, então Ministro do Governo João Goulart, acabou preterido, sendo indicado para Embaixador junto a ONU. A propósito da figura de Josué de Castro, Darcy Ribeiro comenta sobre suas qualidades raras, dizendo tratar-se de uma personalidade das mais respeitadas, no plano internacional: avalia que, entre as cinco personalidades mais prestigiadas no mundo, Josué de Castro era uma delas, tal o reconhecimento de suas qualidades intelectuais e éticas, não por acaso tendo sido indicado, mais de uma vez, para o prêmio Mundial da Paz. Avaliação, aliás, também corroborada por Dom Helder Câmara


O golpe de Estado de 1964, não bastasse toda a carga de infortúnios para o povo brasileiro também impactaria contra os projetos civilizacionais propostos por Josué de Castro. A exemplo de outros intelectuais brasileiros, ele teve que ser exilado em Paris, tendo que interromper abruptamente seus projetos reconhecidamente humanitários para o Brasil e para o mundo, condição que contribuiria fortemente para a degradação progressiva de sua saúde, resultando no seu falecimento, em Paris, em 24 de Setembro de 1973 aos 65 anos.


Aspectos a serem realçados do legado de Josué de Castro  


Diferentemente do deplorável comportamento de parte expressiva dos Médicos aliados ao obscurantismo promovido, em âmbitos internacional e nacional (inclusive, em plena pandemia da covid19), pela onda direitista das últimas décadas, Josué de Castro, a exemplo de médicos progressistas de ontem e de hoje, nos lega uma contribuição valiosa, como ser humano, como cidadão e como cientista social comprometido com a sorte de sua terra e de sua gente. Exercitando, ao longo da vida, sua empatia, sua refinada sensibilidade e seu compromisso social com a construção de um mundo e de uma sociedade justa, Josué de Castro cuidou de seguir caminhos compatíveis com este sonho. Enveredou sobretudo pelas trilhas da Ciência e da Política, percurso bem assinalado nos seus diversos livros, a começar por “Geografia da Fome”, traduzido para vários idiomas. 


Ele não estava sozinho, nesta luta. Com efeito, as décadas de 1940 a 1960 revelaram-se propícias ao ascenso das lutas populares, no campo e na cidade. Os movimentos populares, animados pelas lutas camponesas em busca da Reforma Agrária, em aliança com os operários, com os estudantes, com intelectuais progressistas, tudo apontava para a necessidade e a urgência das chamadas Reformas de Base. Ao mesmo tempo, os setores dominantes - os latifundiários, as multinacionais a imprensa hegemônica, setores reacionários das Igrejas cristãs, setores dominantes das Forças Armadas amparadas por segmentos reacionários do Governo dos Estados Unidos empenharam-se em apressar e impor o Golpe de Estado de 1964, frustrando e interrompendo, durante 21 tenebrosos anos, os sonhos democratas de Josué de Castro e da enorme maioria da sociedade brasileira.


Ao exercitarmos a rememoração de trechos significativos do percurso existencial e bibliográfico de Josué de Castro, ocorre-nos instar nossas organizações de base, principalmente os movimentos populares do campo e da cidade a assumirem suas/nossas tarefas históricas, dando a razão de nossas esperanças, na perspectiva da construção processual de um novo modo de produção, de consumo e de gestão societal, que faça justiça ao planeta e aos humanos.


João Pessoa 27 de Março de 2025.

quinta-feira, 20 de março de 2025

Revisitando José Comblin “Profeta da Liberdade”: notas a partir do seu livro “A Liberdade Cristã”

Revisitando José Comblin “Profeta da Liberdade”: notas a partir do seu livro “A Liberdade Cristã”

 

Alder Júlio Ferreira Calado

 

No próximo sábado, dia 22 de Março de 2025 – Dia Mundial da Água -, a data natalícia de José Comblin alcança 102 anos, mais um motivo para prestar-lhe nossa homenagem, pelos bons frutos por ele semeados, como ser humano, como discípulo de Jesus e como testemunha da boa nova do Reino de Deus. Certa vez, um dos membros do nosso Grupo Kairós. José Brendan, um Nova-Iorquino naturalizado brasileiro, disse sobre José Comblin que ele forma parte de um conjunto de teólogos e teólogas que vai ser lido no próximo milênio. De nossa parte, tendemos a avaliar seu legado profético, como estando próximo da comparação evangélica, em que Jesus diz acerca de todo discípulo da Boa Nova: “E ele disse-lhes: Por isso, todo o escriba instruído acerca do reino dos céus é semelhante a um pai de família, que tira do seu tesouro coisas novas e velhas”. (Mt 13-52).

 

Tal sentimento também experimentamos, ao revisitarmos seu livro “A Liberdade Cristã”. Petrópolis: Vozes, 1977, que nosso Grupo Kairós vem refletindo. As décadas mais recentes têm dado prova de uma impactante involução, seja ao interno de nossas sociedades, seja ao interno das Igrejas Cristãs, no que diz respeito aos fundamentos da Boa Nova do Movimento de Jesus, inclusive no tocante à Liberdade, na perspectiva do Evangelho e dos demais textos neotestamentários. Diferentemente de reconhecidos avanços deste tema, observáveis, por exemplo, nos anos 1970, quando apareceu este livro, constatamos um enorme retrocesso, dentro e fora das Igrejas cristãs.

 

O contexto sócio-eclesial em que o livro foi escrito, apresentava múltiplos sinais de esperança. Vivíamos, então, os esplendores da experiência do Concílio Vaticano II - ainda que precocemente já combatido pelas forças reacionárias, dentro e fora da Igreja Católica - sinais alvissareiros da Conferência Episcopal Latino-Americana de Medellín (1968); as CEBs prosperavam, no Brasil e na América-latina; a Teologia da Libertação se fazia vigorosa, por todo o nosso continente.

 

É preciso, todavia, reconhecer o espanto crescente que as conclusões do Documento final da conferência de Medellín suscitaram nas forças reacionárias internacionais, dentro e fora da Igreja Católica, o que pode ser atestado, por exemplo, pelo famigerado Relatório Rockefeller, de 1969 contendo sérias inquietações e estranhamentos diante do compromisso da Igreja latino-americana, com sua “opção pelos pobres”, inquietação e estranhamento que logo se converteriam em ameaça explícita à Igreja na Base e à Teologia da Libertação, que se constatam, nos inícios dos anos 80, nos Documentos de Santa Fé I e Santa Fé II durante o Governo Reagan, dos Estados Unidos. Ameaças que, direta ou indiretamente repercutiram na eleição do Papa João Paulo II, cujo longo pontificado (1979-2005), seguido pelo de Bento XVI (2005-2013), resultaram em longo período regressivo, de perseguições e punições a bispos progressistas e a teólogos da Libertação, a exemplo de Leonardo Boff e outros.

 

É neste contexto de avanços das perspectivas da opção pelos pobres, que se situa o livro de José Comblin (1977), no qual sustenta que a liberdade constitui o Cerne da Boa Nova anunciada, inaugurada e testemunhada por Jesus. Este anúncio dava sequência, e em novo estilo, à longa tradição de libertação, desde a antiga tradição do Povo de Deus, como referida, por exemplo, no livro do Êxodo (3,7ss). Liberdade também implica Libertação, operada pelos oprimidos, pela força do Deus Libertador.

 

Sempre ancorado nos Evangelhos Sinóticos e no Evangelho de João, e nos demais textos Neotestamentários, especialmente nas cartas paulinas autênticas o autor vai percorrendo e conferindo, passo a passo, o tratamento do tema Liberdade, sempre em busca, de identificar os seus traços mais fortes, na perspectiva do Movimento de Jesus. É assim que José Comblin passa a realçar os aspectos centrais - o significado, o sentido e o alcance da Liberdade Cristã. Um aspecto por ele destacado, nos remete à compreensão de que, para além do chamamento pessoal, a Liberdade implica uma resposta ao chamamento de todo um povo, a humanidade. No Projeto de Jesus, não faz sentido uma liberdade estritamente individual: eu não sou livre se o meu povo também não o é. Liberdade, no Projeto de Jesus, deve alcançar os seres humanos, em sua inteireza, e todos os seres humanos. Ainda que alguns se recusem a acolher sua proposta - porque o espírito do ressuscitado jamais impõe a liberdade, mas antes a propõe -, todos somos a ela vocacionados. Este aspecto, aliás, se acha também presente, em seu livro “Vocação para a Liberdade” (São Paulo: Paulus, 1998). Em um contexto marcado pelo retrocesso e pelo obscurantismo, dentro e fora dos espaços eclesiais, faz-se urgente retomar a dimensão comunitária da liberdade. Este aspecto é examinado pelo autor, sobretudo na última parte do livro.

 

José Comblin, pela sua longa e profunda formação teológica, se revela como um exímio especialista da figura do Apóstolo Paulo, sobre o qual consagra o livro Paulo Apóstolo de Jesus Cristo (Petrópolis, Vozes. 1993). Com efeito mantendo-se sempre atento a outros autores bíblicos e a outras fontes e teólogos, o autor ressalta a relevância das Cartas Paulinas autênticas, - Romanos, Coríntios, Tessalonicenses, Filémon entre outras -, delas fazendo questão de inserir importantes citações sobre o tema da Liberdade. Aí, cuida bem de destacar a distinção entre a Liberdade, que é dom do Espírito Santo da Lei que se insere no plano das religiões, nem sempre dóceis aos apelos do Espírito Santo, na Lei prevalecem as obras humanas frequentemente descoladas dos apelos da Divina Ruah, enquanto a Liberdade, sendo operada pelos seres humanos, o é pela força do Espírito do Ressuscitado: “Onde há o Espírito, aí está a Liberdade” (“Ubi Spiritus, ibi Libertas”).

 

Ao discorrer historicamente sobre as experiências humanas e do povo de Deus, do ponto de vista da Liberdade da Boa Nova do Reino de Deus e sua justiça, o autor expõe a posição paulina sobre a Liberdade, após o que traz à tona o sentido da liberdade, na perspectiva joanina. A terceira parte do livro reflete a dimensão comunitária da liberdade que o povo de Deus é chamado a testemunhar.

 

Antes de tecermos algumas considerações acerca das implicações e dos desafios dos tempos atuais diante da concepção e da prática da Liberdade, ocorre-nos assinalar a profunda coerência da linha argumentativa de José Comblin, aplicada também em diversos outros textos seus, a exemplo do que faz em “Vocação para Liberdade” (Paulus, 1998), “O caminho: Ensaio Sobre O Seguimento de Jesus” (Paulus, 2005), “A Profecia na Igreja” (Paulus, 2009). Todos estes se acham dinamicamente conectados com o exercício da Liberdade, na perspectiva e na dinâmica do Movimento de Jesus. No caso específico do livro “A Profecia na Igreja”, vale a pena rememorar, de passagem, alguns aspectos. Constatamos que o conceito de “Profecia” (tanto no plano bíblico, quanto na experiência histórica de outros povos), indicando-nos passagens luminosas dos antigos profetas - Isaías, Jeremias, Amós, Miquéias, Oseias, Joel e outros, cuidando, em seguida, de percorrer a trajetória profética de Jesus de Nazaré, das primeiras comunidades cristãs, das experiências proféticas dos movimentos pauperísticos da Idade Média das experiências da modernidade e dos séculos mais recentes. Digno de nota é também o apanhado que faz, ao final desta obra (“A profecia na Igreja”) do legado profético de uma dezena de bispos latino-americanos, a quem ele chama, no capítulo 8, de “Os Santos Padres da América Latina”.

 

Retomando nossa visitação do livro “A Liberdade Cristã”, damos prosseguimento a outros destaques. O autor sublinha bem, ao longo do texto, a figura de Jesus como um homem livre em palavras e gestos, percorrendo, inclusive, os autores sinóticos, rememora-nos, especialmente por meio das parábolas, as marcas de Liberdade que delas extraímos.

 

A última parte do livro ressalta a dimensão comunitária da Liberdade testemunhada por Jesus: “Jesus nunca fala para pessoas individuais, mas para as almas. Tudo o que ele diz e faz tem um alcance social.” (p. 111). Mais adiante, referindo-se agora à distinção essencial entre a Liberdade anunciada por Jesus, de um lado, e a Lei, mais afeita a projetos políticos de salvaguarda de privilégios, o autor nos remete à passagem: ”Finalmente, a lei serve para impor um jugo insuportável aos pobres. Amarram pesados fardos e os colocam nas costas dos homens, mas eles próprios não os querem mover nem com o dedo (Mt, 23,4)” (p.122).

 

Prestar homenagem a figuras como José Comblin implica, sobretudo, buscar seguir as trilhas do Movimento de Jesus – compromisso profundamente exigente em tempos de retrocesso e obscurantismo, tanto no atual contexto da conjuntura internacional, quanto ao interno das Igrejas Cristãs, cada vez mais voltadas para os seus próprios interesses, distanciando-se de uma espiritualidade reinocêntrica. Consola-nos, no entanto, perceber que, a exemplo do que sucedia em outras épocas (por exemplo, junto aos movimentos pauperistas da Idade Média), graças à atuação profética daquelas “minoria abraâmicas”, também hoje nos conforta os exemplos de grupos e pessoas, dentro e fora dos espaços eclesiais, que testemunham a Boa Nova do Movimento de Jesus, apostando incansavelmente na força revolucionária das ações moleculares.

 

 

João Pessoa, 20 de março de 2025

 






quarta-feira, 12 de março de 2025

José Ignacio González Faus


Alder júlio Ferreira Calado


Parceiros e protagonistas da Teologia da Libertação: Um tributo a José Ignácio González Faus (1933-2025). Impactados com a notícia da partida do teólogo espanhol José Ignacio González Faus, nesta sexta-feira próximo-passada, (07/03/2025), cuidamos, nas linhas que seguem, de prestar-lhe uma modesta homenagem, destacando algumas das principais marcas de seu legado. Ele nasceu em Valência, Espanha em 1933. Buscando responder a sua vocação presbiteral, optou pela formação jesuítica, tendo realizado seus estudos no Pontifício  Instituto Bíblico, em Roma (1965-66) e concluído  seu doutorado na Universidade de Innsbruck, Áustria em 1968. Contemporâneo das fecundas experiências de renovação eclesial, propiciadas pelo Concílio II (1962-1965) e especialmente pelo contexto profético vivenciado na américa-latina, desde a Conferência de Medellín (1968) e pela de Puebla (1979),

    

Não foi por acaso sua longa e reconhecida contribuição com experiências de formação. Sua vasta produção teológica traz profundas afinidades com a Teologia da Libertação, na América latina. Foi autor de um amplo conjunto de obras, de que ressaltamos as seguintes: A Humanidade de Deus: Ensaios sobre Cristologia (1974); A nova humanidade: ensaio sobre cristologia (1974); Acesso a Jesus (1979) e Projeto Irmão: visão do homem do crente (1989). Seus últimos livros são: O rosto humano de Deus (2008), Outro mundo é possível... Desde Jesus (2009) e Heresias do catolicismo atual (2013). Em 2018, a editora Cristianisme i Justícia reeditou sua obra Vigários de Cristo: os pobres.

Outra marca forte a ser realçada do seu legado, tem a ver com sua reconhecida contribuição às experiências formativas na américa latina, especialmente em El Salvador, junto a outros teólogos jesuítas como Ignácio Ellacuría e Jon Sobrino, entre outros. Sua contribuição se deu, durante vários anos, desde 1980. Participava como um dos integrantes do corpo docente da Universidad Centroamericana (UCA), da qual era Reitor a figura martirizada de Ignacio Ellacuría (quando da chacina cometida pelo exército salvadorenho da qual resultaram 8 vítimas, inclusive Ignacio Ellacuría, sendo 6 jesuítas e duas leigas). Em um dos artigos constante do livro “50 anos de teologias da libertação: Memórias, Revisão, Perspectivas e Desafios” (dois volumes, editora recriar, 2022), Jon Sobrino rememora, no último texto do volume 2 desta obra, densos momentos de uma experiência formativa então vivenciada, em que professores e estudantes, protagonizaram um verdadeiro espaço formativo de educação popular, no qual todos se sentem protagonistas, no estudo, na exposição, no debate e no aprendizado comum, dos grandes desafios de sua gente, na perspectiva do movimento de Jesus. Com grande entusiasmo, os participantes davam testemunho da eficácia dos temas estudados, todos voltados a uma busca de compreensão e de efetivo compromisso com a causa libertadora dos empobrecidos. Entre os protagonistas dessa experiência formativa, também se encontrava, González Faus. 

Embora rara, essa não foi uma experiência única na américa latina daquele contexto histórico, motivado, por um compromisso com a causa dos pobres. São característicos da igreja latino americana de Medellín (1968) e Puebla (1979), em um contexto, no qual a Teologia da Libertação  se mostrava em grande esplendor e em que vários teólogos e teólogas inclusive europeus contribuíram efetivamente, com reconhecida qualidade. Dentre esses teólogos europeus, podemos lembrar nomes tais como José Comblin, Eduardo Hoornaert, entre outros (ambos Belgas, atuando sobretudo no Brasil); Ivan Illich, (Austríaco); Franz Hinkelammert (da Alemanha); Giuglio Girard (Itália); Jon Sobrino, Ignacio Ellacuría, José Virgil, Victor Codina (estes, nascidos na Espanha) - todos europeus a exemplo de José Ignacio Gonzales Faus - vivendo e trabalhando na América Latina ou colaborando com a produção teológica latino-americana. Todos desempenharam um papel relevante na elaboração e no testemunho desse novo modo de fazer teologia, na América Latina e para além deste continente. No Caso específico da experiência pedagógica vivenciada em El Salvador, sob a coordenação de Ignacio Ellacuría, e da qual também ṕarticipou José Ignacio Gonzales Faus, eis um fragmento do relato feito por Jon Sobrino: “Dois dias por semana todos os estudantes e todos os professores encontravam-se durante três horas. Todos tivemos de preparar os tópicos e sempre éramos incentivados a discuti-los coletivamente. Isto envolveu um estudo pessoal durante a semana, acompanhado de alguma atividade pastoral ou política, sempre num contexto crsitão.” (p.257).   

Essas linhas correspondem ao nosso jeito modesto de registrar a páscoa definitiva de González Faus, manifestando gratidão à Divina Ruah, por haver inspirado e conduzido esse nosso irmão no bom combate anunciado e testemunhado pela Boa Nova de Jesus de Nazaré.

Em homenagem a Ignacio Gonzales Faus compartilhamos abaixo o link que dá acesso ao “Testamento deste teólogo”, por ele elaborado, em 2024, cuja leitura recomendamos vivamente: eis o link:

https://www.ihu.unisinos.br/categorias/649191-um-testamento-espiritual-o-que-eu-aprendi-artigo-de-jose-i-gonzalez-faus  



João Pessoa, 12/03/2025 


sexta-feira, 7 de março de 2025

Intérpretes do Brasil (XVI): A criatividade e o compromisso político de Darcy Ribeiro pelo Povo brasileiro


Alder Júlio Ferreira Calado 


Nesta série de textos de revisitação a diversos intérpretes do Brasil - homens e mulheres -, temos observado uma sequência atípica, nem sempre cronológica, até porque temos priorizado iniciar pelos mais recentes, buscando seguir a trilha marxiana, segundo a qual a chave anatómica do ser humano ajuda a melhor compreender a anatomia do macaco. Por outro lado, lembrado de que lidamos com seres inacabados, não estamos em busca de focar em gente perfeita, mas de rastrear figuras cuja trajetória testemunhe compromisso efetivo com a causa libertadora do nosso Povo. Darcy Ribeiro se apresenta, com efeito, portador de semelhante perfil: desde cedo, costumava repetir que sua vida constitui uma permanente busca de colar seu destino ao destino da humanidade. Ele se inclui na lista daqueles intelectuais tocados pelo compromisso histórico de lutar por um projeto de sociedade voltado para os interesses dos povos originários, ribeirinhos, comunidades quilombolas, agricultores, operários, estudantes, em breve, comprometido com os interesses dos “de baixo”.  Eis por que decidimos visitá-lo, desta vez. 


Darcy Ribeiro, pensador social, antropólogo, sociólogo, historiador, educador, militante e escritor brasileiro, tendo vivido em diversos países da América latina, como exilado (no Uruguai, na Venezuela, no Chile, e no Peru), nos quais se destacou como grande colaborador e militante da causa democrática, especialmente no campo da Educação, em particular na elaboração de projetos de Universidade.


Darcy Ribeiro, filho de Reginaldo Ribeiro dos Santos e Josefina Augusta da Silveira nasceu em Montes Claros, Minas Gerais, em 26 de Outubro de 1922, tendo partido deste para outro plano, em 17 de Fevereiro de 1997, em Brasília. Após o ensino médio, decide iniciar o Curso de Medicina, do qual logo se afasta, preferindo cursar Antropologia, na Escola de Sociologia e Política, em São Paulo. Em seguida resolveu imergir, como Antropólogo,  em uma longa experiência de 10 anos (entre 1946 e 1956) de vivência na terra e nas comunidades indígenas do Pantanal, do Brasil Central e da Amazônia.  


É sobretudo a partir dos anos 60 que Darcy Ribeiro emerge na cena política, desde o início do Governo João Goulart, por quem foi nomeado, primeiro, como Ministro da Educação, após protagonizar como o principal fundador e Reitor da Universidade de Brasília (UnB). Dadas suas qualidades criativas, foi convidado pelo mesmo João Goulart para assumir a pasta de Ministro da Casa Civil, cargo no qual teve que enfrentar enormes desafios. Vivíamos, então, em um contexto de grande e crescente ebulição social e política, no qual crescem as mobilizações camponesas, operárias e estudantis pelas reformas de Base (A reforma Agrária, a Reforma Urbana, a Reforma da Educação, a Reforma Bancária, entre outras). Considerando o perfil das elites brasileiras, que Darcy Ribeiro costumava avaliar como das piores do mundo, não nos é difícil imaginar o reacionarismo desses setores e de seus aliados (os latifundiários, empresas multinacionais, sobretudo a serviço dos Estados Unidos, setores majoritários das Igrejas Cristãs, setores golpistas das Forças Armadas, entre outros), resultando no trágico golpe de estado de primeiro de abril de 1964, dando início a uma Ditadura empresarial militar, que duraria tenebrosos 21 anos.  


Diante das atrocidades cometidas pelos golpistas - subjugação do Congresso, crescentes restrições ao funcionamento da Justiça, prisões arbitrárias de diversas lideranças políticas, inclusive de governadores, de Professores Universitários, de estudantes e de uma multidão de sindicalistas e lideranças populares -, Darcy Ribeiro tal como tantas outras lideranças teve que recorrer ao exílio, primeiramente no Uruguai, depois na Venezuela, no Chile e no Peru. 


Foi, por exemplo, no período do exílio no Uruguai, que Darcy Ribeiro, com a ajuda de sua então companheira, Berta Ribeiro, Etnóloga, que ele vai se dedicar a uma profícua atividade de pesquisador e de escritor, ao mesmo tempo em que dava sequência a outros escritos já publicados. Nesta época, concluiu seu livro “A Universidade necessária” (seguido por tantos outros, tais como: “Os Índios e a Civilização”, “As Américas e a Civilização – Processo de Formação e Causas do Desenvolvimento Cultural Desigual dos Povos Americanos” (1970), “Os Brasileiros – Teoria do Brasil (1972)  “Uirá, sai à procura de Deus” (1974), “Configurações Histórico-Culturais dos Povos Americanos (1975), “Maíra” (1976), “Diários Índios – Os Urubus-Kaapor” (Companhia das Letras, 1996), “O Processo Civilizatório – Etapas da Evolução Sócio-Cultural” (1968), “O Dilema da América Latina – Estruturas do Poder e Forças Insurgentes “ (1978), “ O Mulo (1981) “Utopia Selvagem” (1982), “Migo”(1988) “O Povo Brasileiro – A Formação e o Sentido do Brasil” (1995).)


Como antes anotado, o percurso existencial de Darcy Ribeiro se mostra multifacetado: antropólogo, sociólogo, educador, agente político, pesquisador, escritor, militante político, múltiplas atividades desenvolvidas com muito empenho e paixão. Como antropólogo, não agiu apenas como cientista social, mas assumiu como suas as causas indígenas. Como educador, deixou suas principais marcas na criação da UnB e, 20 anos mais tarde, na concepção e implementação dos CIEPS (Centros Integrados de Educação Pública) (bem como na lei de diretrizes (Lei de Diretrizes de Base da Educação), na década de 1990). Como agente político, igualmente desempenhou sempre com brilhantismo, diferentes funções públicas: a de Ministro da Educação, no Governo João Goulart, a de Chefe da casa Civil do mesmo presidente, a de Vice-Governador do Rio de Janeiro, na gestão brizola (1983 a 1987), a de Senador da república pelo estado do Rio de Janeiro (1991 a 1997, ano em que falece, aos 74 anos).


Como militante político, filiado, em sua juventude ao PCB (Partido Comunista do Brasil); em seguida, até o governo João Goulart, ao PTB (Partido Trabalhista Brasileiro) e, após a chamada “redemocratização”, ao PDT (Partido Democrático-Trabalhista). Tendo exercido reconhecida influência para além das fileiras partidárias. Importa, ainda, tomar em consideração sua militância política e de intelectual, também exercida - agora como exilado -, em âmbito latino-americano, seja no Uruguai (principalmente na esfera Universitária), seja na Venezuela (também, no campo educacional), seja notadamente no Chile, onde foi importante assessor político do Presidente Allende, seja Perú, seja ainda no México. Cumpre, não menos, destacar que cada uma destas funções ele exerceu sempre de forma articulada e animada pelo seu compromisso constante de contribuir para a construção de uma nova humanidade. 


O que aprendemos do legado de Darcy Ribeiro 


Como costumamos fazer, na revisitação dos que temos tratado como “Intérpretes do Brasil”, também no caso de Darcy Ribeiro, tivemos a oportunidade de, além de relemos páginas de alguns textos seus, acessar diversas páginas virtuais, de modo a conferirmos diversas entrevistas, documentários e outras falas suas, dentre as quais conferimos duas entrevistas por ele concedidas ao  programa Roda Viva em diferentes momentos: Darcy Ribeiro no Roda Viva Retrô (1991);

Darcy Ribeiro no Roda Viva Retrô (1995) ; o documentário contendo depoimentos de diversos amigos e amigas, além de autoridades, sobre Darcy Ribeiro; 

Documentário sobre Darcy Ribeiro (2000);

Diálogos Impertinentes - A Utopia (com Rubem Alves) (1995);


Antes de lembrarmos, em alto relevo, brilhantes contribuições, recolhidas da revisitação do legado de Darcy Ribeiro, tal como registramos quanto as demais figuras de intérpretes do Brasil - homens e mulheres -, também reconhecemos suas insuficiências, seu inacabamento, algumas das quais por ele mesmo reconhecidas. Ao trazermos à tona relevantes contribuições do seu legado, em distintos planos da realidade brasileira e latino-americana, tomamos a liberdade de mencionar alguns traços de seu perfil que não consideramos propriamente exemplares. Um deles tem a ver com o seu rasgo de megalómano, dada a sua elevada auto-estima. Certa vez, por exemplo, uma de suas colaboradoras se negou a trabalhar com ele respondendo com ironia justificativa que “Deus não precisa de ajuda”... Ao mesmo tempo, impõe-se reconhecer sua atitude contida, ao retomar contato com sua colaboradora, informando-lhe, do outro lado da linha telefônica, que “é Deus quem lhe fala e lhe está pedindo ajuda”. 


Outro aspecto dissonante, de que se tem registro na biografia de Darcy Ribeiro, tem a ver com a enorme insatisfação de expressivos setores da Esquerda contra sua posição de liderança - ele era, então, Senador do PDT pelo Rio de Janeiro -, no processo de discussão e deliberação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), durante o qual assumiu uma posição de conciliação com setores liberais, no âmbito do sistema de ensino brasileiro, aprovação que abriu caminhos para os avanços do ensino particular, no Brasil, alinhados com a política educacional propagada pelo Banco Mundial.


Tratamos, agora, de destacar pontos de seu percurso existencial que consideramos mais relevantes. Um primeiro aspecto a ressaltar de seu legado, nos remete à sua paixão em defesa da causa dos povos originários, luta organicamente conectada ao seu profundo empenho em assegurar a elaboração de um projeto de Nação, contraposto ao legado das elites brasileiras contra quem não economizava palavras duras de indignação e revolta, considerando-as as piores elites do mundo ocidental. Elites filhas do escravismo brasileiro que nunca se dispuseram a pensar em um Brasil para o povo brasileiro.


Ao mesmo tempo, importa reconhecer seu denso legado bibliográfico, que bem reflete seus valores mais cultivados, enquanto um intelectual disposto a oferecer o melhor de si à causa libertadora do povo brasileiro e latino-americano. Imponhe-se, não menos, reconhecer seu empenho e sua luta por assegurar às classes populares seu sagrado direito a uma escola de qualidade, em tempo integral. Neste sentido, Darcy Ribeiro se acha entre os grandes pensadores brasileiros a priorizar, a exemplo de Anísio Teixeira (1900-1971), Florestan Fernandes (1920-1995) e de Paulo Freire (1921-1997), a luta pela Educação, em uma perspectiva libertadora.


Também aprendemos com Darcy Ribeiro a buscar incessantemente manter vivos os nossos sonhos de liberdade e de libertação, não apenas em uma dimensão pessoal, mas também como Povo. De fato, não obstante algum tropeço, Darcy Ribeiro constitui uma inspiração para o nosso compromisso e a nossa persistência de enfrentarmos, pessoal e coletivamente os desafios do nosso tempo. Rememorando, por exemplo, sua ação política, no conturbado período do Governo João Goulart, constatamos a firmeza de seu compromisso com a causa das reformas de base, principalmente a reforma agrária, pela qual muito lutou, inclusive como Ministro da Casa Civil, não devendo ainda subestimar seu protagonismo pessoal na formulação de relevantes iniciativas, no campo da Educação, a começar pela sua proposta de Universidade, na fundação da UnB, como também na criação e implementação dos CIEPS, buscando  assegurar tempo integral de Escola para todas as crianças e adolescentes, como passos decisivos, na construção de uma sociedade voltada para os interesses da maioria do Povo brasileiro.   


João Pessoa 07 de Março de 2025


quarta-feira, 26 de fevereiro de 2025

Intérpretes do Brasil XV: Frei Caneca e o Seminário de Olinda

Intérpretes do Brasil XV: Frei Caneca e o Seminário de Olinda 


Alder Júlio Ferreira Calado


Ao acompanharmos a trajetória da Igreja Católica (e de outras Igrejas Cristãs), nas últimas décadas de profundo retrocesso teológico e político, em relação aos profundos avanços alcançados por parte expressiva dessas Igrejas, graças sobretudo ao legado da Teologia da Libertação, principalmente dos anos 50 aos anos 80, sentimo-nos instigados a revisitar, por meio da figura de Frei Caneca, os principais traços dos protagonistas das chamadas “revoluções liberais”, em Pernambuco e no Nordeste, durante a primeira metade do século XIX.


Brotou cedo o sentimento nativista e anti-colonialista, especialmente no Nordeste. Desta experiência podem ser tomadas como sinais, por exemplo, a expulsão dos Holandeses, em 1654 e a chamada Guerra dos Mascates, em Pernambuco, de 1740 a 1741. Mas, foi sobretudo no século XIX, graças às influências das Revoluções da Independência (1776) e do Iluminismo (Revolução Francesa de 1789), que o ideário liberal se expande no Brasil, especialmente desde o Nordeste. Não menos importante, quanto as influências sobre o sentimento revoltoso no Brasil e alhures foi a Revolução Haitiana de 1791, que constituiu para a classe dominante de então (colonizadores, grandes proprietários de terras, e seus aliados) uma espécie de Espada de Dâmocles, um crescente pesadelo, por força do qual estes segmentos dominantes se empenharam em prevenir, pela constante repressão, a influência dessas notícias liberais que circulavam também pelo Brasil.


A então província de Pernambuco, em conjunto com a Comarca de Alagoas, além da Paraíba/Rio Grande do Norte e do Ceará, vivia uma situação de crise econômica, graças à instabilidade do açúcar como produto de exportação, situação à qual se acrescenta a instalação, no Rio de Janeiro, em 1808, da Família Real, a requerer crescentes gastos na nova sede da Coroa Lusa, a exigir gravosos impostos sobre a população das Províncias, suscitando um forte sentimento de insatisfação geral e mesmo de revolta. Contexto que, potencializado pelas ideias liberais, que circulavam na Província de Pernambuco e vizinhança, inclusive entre integrantes da classe dominante, cujos filhos eram enviados com frequência à Universidade de Coimbra, foi evoluindo de tal modo a culminar na Revolta de 1817 e, sete anos depois, na chamada “Confederação do Equador” (composta pela Província de Pernambuco e seus aliados de Paraíba/Rio Grande do Norte e Ceará). 


Nas linhas que seguem, sempre pensando na militância de nossas organizações de base - nossos primeiros destinatários -, cuidamos de nos restringir à figura de Frei Caneca, sem deixar de evocar outras lideranças, principalmente figuras do clero de então. Em seguida, após fornecer alguns elementos contextuais e alguns dados biográficos de Frei Caneca, trataremos, como de hábito, de realçar relevantes traços do legado de Frei Caneca e outros revoltosos do período. 


A crescente insatisfação popular, no Nordeste, contra “Os homens do Imperador”  


Em consequência do sentimento nativista e de rejeição aos colonizadores lusitanos, que só aumentaria após a chegada ao Rio de Janeiro, em 1808, da família real, dados os pesados impostos cobrados à população brasileira para financiar os investimentos e as despesas da Corte portuguesa, situação agravada no Nordeste, pela crise do ciclo canavieiro e do algodão e da ocorrência de grande seca em 1816, vai-se articulando um movimento de forte oposição aos colonizadores, ao mesmo tempo em que o ideário liberal (os valores da Liberdade, Igualdade e Fraternidade) ganha terreno entre importantes lideranças do Nordeste, notadamente entre figuras do clero, de profissionais liberais, de militares, e outros segmentos da população.


Neste cenário o Seminário de Olinda e a Maçonaria, entre outras forças, desempenharam relevante papel, à medida que

  • Não bastasse o sentimento de revolta contra a Corte e seus aliados, cultivavam os ideias liberais, desde Locke, Jean-Jacques Rousseau, os Enciclopedistas, os que lutaram pela Independência dos Estados Unidos, pela Declaração dos Direitos Humanos;

  • Crescia o sentimento de resistência contra “Os homens do Imperador”, não apenas no interior da Província de Pernambuco, como também na província da Paraíba/Rio Grande do Norte, e a do Ceará;

  • A crescente oposição ao Regime Monárquico, se espraiava de Norte/Nordeste (a exemplo de movimentos como a Cabanagem, a Balaiada, a Sabinada), a Sul (Revolução Farroupilha), constituindo assim uma forte resistência republicana. 

   

Foi assim que, entram em cena diversos segmentos da população liderados por um grupo seleto - entre militares, membros do clero, dos setores dirigentes da economia local, e do próprio setor de justiça -, a se organizarem secretamente, em função do levante. Entre as principais lideranças da Insurreição de 1817, figuravam Domingos José Martins, José Barros Lima, Padre João Ribeiro e Antônio Gonçalves de Cruz Cabugá, Frei Caneca devendo também ser lembrado. O propósito inicial dos revoltosos era o de deflagrar a Insurreição, em março de 1817. Contudo,  descoberto o plano pelos “homens do Imperador”, estes logo trataram de prender os líderes dos revoltosos. José Barros Lima, também conhecido como “Leão Coroado”, ao receber ordem de prisão, assassinou aquela autoridade, precipitando assim o movimento, que levou multidões às ruas, em número bem superior ao das tropas do Imperador. Estas tiveram que recuar até surgirem reforços do Rio de Janeiro, de modo que em maio do mesmo ano, as tropas imperiais se mostraram superiores, a ponto de prender e condenar (à morte ou à prisão) as lideranças do movimento.


Enquanto a maioria das lideranças foi condenada à morte pela forca, Frei Caneca foi mandado à prisão, em Salvador. Graças à eclosão da chamada Revolução Liberal em Portugal, Frei Caneca e outros foram anistiados, podendo Frei Caneca retornar, em 1821, a Pernambuco. Juntamente com outras novas lideranças, Frei Caneca retoma sua luta liberal. Com moderação, cuida de fazer uma leve oposição aos planos do Imperador Pedro Primeiro, de aceder a um regime Constitucionalista (1823). Percebendo, contudo a posição contraditória de Dom Pedro Primeiro ante a marcha da Constituinte, ao recusar-se a aceitar suas decisões, e ao impor uma constituição outorgada, a de 1824, Frei Caneca e outras lideranças retomam sua luta, de forma mais incisiva.


Da parte de Frei Caneca, por exemplo, empenha-se em fazer circular pelo “Typhis Pernambucano”(que circulou entre dezembro de 1823 a Agosto de 1824), periódico semanal por ele fundado e no qual escrevia semanalmente, suas ideias e suas aspirações liberais e republicanas. Por certo, não estava sozinho na retomada desta luta. Contava com Manoel de Carvalho, João Guilherme Ratcliff, João Metrovich, José de Barros Falcão de Lacerda, Padre Mororó, James Heide Rodgers, Agostinho Cavalcanti, Nicolau Martins Pereira, Joaquim da Silva Loureiro, Antônio do Monte, Francisco Antônio Fragoso, Padre Caldas e João de Araújo Chaves, entre outros. Já não se tratava de um movimento limitado à Província de Pernambuco. Suas articulações se espalharam para outras províncias do Nordeste, de modo a se projetar uma iniciativa separatista e republicana, conhecida como “Confederação do Equador”, reunindo as Províncias de Pernambuco, da Paraíba/Rio Grande do Norte e a do Ceará, razão pela qual na bandeira idealizada da Confederação do Equador constavam três estrelas. Além da bandeira almejada, a Confederação do Equador, no obstante sua pequena duração (três meses), também contou com seu projeto de Constituição, do qual se destacam artigos relativos ao caráter republicano da confederação, à natureza federativa, à divisão de poderes, entre outros aspectos.


A despeito de todos os reveses, fato é que, graças a esses movimento revoltosos, e apesar de todos os limites das conquistas, alcançou-se a instalação da República na Capitania de Pernambuco, foi decretada a liberdade de imprensa e créditos, foi instituído o princípio dos três poderes e foi elevado o soldo dos militares, conquistas resultantes dessas lutas.


Tal como soi acontecer em circunstâncias similares, também no movimento revolucionário de 1824, circulavam matérias inflamadas e panfletos, um dos quais assim vinha redigido :


“Esta é a ocasião ó Pernambucanos

De mostrar que somos livres, somos fortes

Melhor é pela pátria sofrer mil mortes

Que ser escravos de déspotas tiranos

Basta de ferros sofrer basta de enganos

Vingaremos a pátria unamos as sortes

Perca-se fazendas, vidas e consortes

Morram os déspotas fiquemos ufanos

Temos Bahia, Ceará e Maranhão

Que podemos dispor a nossa vontade

Quebre-se do soberano o cruel grilhão

Extinga-se do Brasil a majestade

Basta de servilismo, basta de opressão

Viva a República, viva a liberdade”


Ao fazermos alusão a estes e outros escritos produzidos, em diferentes contextos das chamadas “Revoluções liberais”, importa também não perder de vista seus limites, inclusive no que diz respeito aos seus programas. A despeito do ideário humanista de um Frei Caneca e outros líderes, convêm lembrar que a causa abolicionista, embora desejada por uma minoria, acabou não sendo inscrita em seu programa, por conta dos interesses da parcela de proprietários de escravos que não queriam abrir mão desta fonte do trabalho forçado de seus escravizados… Foi assim que, não obstante a luta abolicionista, o regime escravista perdurou, no Brasil, até 1888.


O Fato de que tais e tantas revoltas não tenha obtido frutos imediatos, não devem significar qualquer motivo de desânimo, para quem se disponham a ler a realidade, em perspectiva histórica. Com efeito, as insurreições liberais contra o regime monárquico do Brasil, no século XIX, arcaram com significativas reverses. No caso específico da Confederação do Equador, suas lideranças sofreram pesadas consequências: foram condenadas à morte. No caso específico de Frei Caneca, após ser alcançado quando a caminho do Ceará, foi trazido de volta a Recife, julgado e condenado à forca, em sentença, que seus próprios carrascos se negaram a cumprir porque sua sentença foi comutada para o arcabuzamento. 


Seu ideário, contudo, remanesce vivo, não apenas em Pernambuco e no Nordeste, mas também em todo o Brasil e alhures.  


De Frei Caneca e da chamada “Revolução dos Padres”, o que podemos recolher?


Uma primeira nota a merecer registro: À distância astronômica, passados mais de 200 anos, observáveis entre o clero do tempo de Frei Caneca e o atual, ressalvadas as honrosas exceções. Nesse sentido, vale a pena reconhecer o extraordinário papel intelectual exercido pelo então seminário de Olinda, do que dá prova a lista (incompleta) de Padres envolvidos nesses movimentos insurrecionais. Desta lista fizeram parte, entre outros: Antonio Souto Maior, João Ribeiro, Miguel d’ Almeida Castro (Miguelinho), Joaquim do Amor Divino, Caneca (Frei Caneca), João Ribeiro Pessoa de Melo Montenegro e José Inácio de Abreu Lima (Padre Roma, pai do famoso general Abreu e Lima).


Em que pese uma instituição eclesiástica historicamente reacionária, a Igreja de Olinda e Recife, graças à formação oferecida pelo seminário de Olinda correspondia a um espaço em que se respiravam valores humanitários, como podemos observar nas palavras de Frei Caneca “Quem  bebe em minha caneca/Têm sede de liberdade”, ou ainda nesta estrofe de sua lavra:

“Para defender a pátria 

Menino homem se faz

E dando a vida por ela 

Morrendo, não peno mais 

De que me serve viver

Entre suspiros e ais


Se vivo, vivo pensando 

Morrendo, não peno mais

Inda que eu queira, não 

Existir entre os mortais 

A morte serve de alívio 

Morrendo, não peno mais”.


Triste é constatar que, apesar desses sinais humanitários do século XIX, e das boas sementes lançadas pela Teologia da Libertação, inclusive reabilitada pelo Papa Francisco, as Igrejas Cristãs da atualidade, salvo exceções, parecem recuar aos tempos tridentinos. Por outro lado, vale a pena seguir apostando no Movimento de Jesus, graças às ações moleculares das “minorias abraâmicas”, também em nossos dias.      


    

 João Pessoa 26 de Fevereiro de 2025