quarta-feira, 9 de outubro de 2024

Ocidente e Hecatombe: Entre trevas e pouca luz

 Ocidente e Hecatombe: Entre trevas e pouca luz


Alder Júlio Ferreira Calado


A Modernidade ocidental, não bastassem as crescentes ameaças à vida no Planeta, segue marcada pelas crescentes manifestações de violência de chacinas, praticadas despudoradamente e às escâncaras, contra o Planeta, os humanos e os demais viventes, sob a égide do mais perverso Capitalismo. As últimas décadas vêm-se revelando como um palco de horrores. A despeito de múltiplas pesquisas e dados científicos a atestaram os esdrúxulos índices da emergência climática - incessante elevação da temperatura dos oceanos, frequência e intensidade de diversos eventos catástroficos (estiagens prolongadas, enchentes devastadoras, furacões letais, entre outros) -. 


Os constantes protestos e denúncias contra o aumento de epidemias, da miséria e da fome de parte expressiva dos humanos estão longe de ser escutados pelas grandes potências ditas democráticas e seus organismos multilaterais (a começar pela ONU), controlados que são pelo poder insano dos grandes conglomerados transnacionais (a indústria e o comércio de grandes armamentos  bélicos, as grandes empresas de petróleo, as chamadas “Big-techs”, os mega-laboratórios farmacêuticos, os controladores da economia financeirizada, entre outros). Pior do que isto: tais protestos não só não têm sido escutados, mas, ao contrário, as profundas desigualdades sociais não cessam de se agravar: um punhado de bilionários concentram em suas mãos riquezas correspondentes a dezenas de nações…


No âmbito da Política, as relações continuam a degradar-se. Os estados nacionais, do centro e da periferia do sistema, não cessam de perder força, na aplicação de decisões ditas democráticas. Nos próprios países centrais do capitalismo, que se auto proclamam democráticos, retrocedem, a olhos vistos, ante o crescente avanço de forças tenebrosas, inclusive de feição nazifascista (haja vista o que se passa na Hungria, Itália, na França, Inglaterra, na Alemanha, na Áustria, em Portugal, Espanha, Holanda, Suécia  e outros, onde prosperam, inclusive no plano eleitoral, partidos como “Jobbik” “Fratelli d'Italia”  “Front National”, “British National Party” “Alternative für Deutschland” “Freiheitliche partei Österreich” “Chega” “Vox” “Partij de Vrijheid” “Sverigedemokraterna”).

Estas forças nazifascista além de profundos estragos locais, se expandem em rede internacional, em orgânica relação com a extrema direita que opera nos Estados Unidos, seja no Partido Republicano, seja no Partido Democrata, seja em dinâmica associação ao chamado “Deep State”, de modo a também se reproduzirem nos países periféricos, de que são exemplo, no Brasil, o Bolsonarismo, atualmente disputado pelo candidato Pablo Marçal, em São Paulo, e a Argentina de Javier Milei. 


No exato momento em que refletimos sobre este cenário, a ilustração mais impactante nos remete ao genocídio do Povo Palestino, perpretado pelo Estado sionista de Israel, do qual são cúmprises os Estados Unidos e as grandes potências ocidentais. recorrendo à cumplicidade da mídia hegemônica, o Estado sionista de Israel manipula informações, tentando inverter fatos e situações, a seu favor, ao tempo em que, desde meados do século passado, segue ocupando territórios do Povo Palestino e invadindo diversos países da região, como agora o faz no Líbano, bombardeando sua capital, bem como a capital da Síria e do IÊMEN, chegando inclusive a cometer crimes contra o Irã (do qual recebe retaliações). 


Por outro lado, não devemos ignorar a ocorrência de sinais positivos, observáveis no mundo, na América Latina. Em escala internacional, acompanhamos, com interesse, a irrupção de sinais alvissareiros emitidos especialmente pela China, que emerge no cenário internacional como protagonista de relações multilaterais, sempre a insistir na necessidade e urgência de superação de relações imperialistas entre os povos.   


No caso do Brasil, também vivemos situações contraditórias. no momento em que escrevemos estas linhas, acaba de ocorrer o primeiro turno das eleições municipais, cujos resultados atestam um crescimento eleitoral e político de forças reacionárias, em detrimento das classes populares, para as quais as eleições continuam sendo um campo minado, um terreno quase sempre hostil, principalmente em tempos de orçamento secreto, “emendas pix”, fundo partidário bilionário, um Congresso cada vez mais controlado por forças tenebrosas, enquanto os Movimentos Populares, em sua maioria, seguem em letargia. Em breve, em grande medida, o cenário nacional reflete o que se passa em escala internacional.

Consola-nos, entretanto, colocar-nos em perspectiva histórica, observando o que se passa nas correntezas subterrâneas, que muito nos alimentam a esperança, seja no âmbito internacional, seja no plano latino-americano, seja ainda no terreno nacional. Para tanto, não nos basta querer dar-nos à espera passivamente, mas assumir nossas responsabilidades sobretudo na retomada do Trabalho de Base.


João Pessoa, 09 de Outubro de 2024


                  


terça-feira, 1 de outubro de 2024

Intérpretes do Brasil (I): elementos da análise dialética de Ruy Mauro Marini

 Intérpretes do Brasil (I): elementos da análise dialética de Ruy Mauro Marini 


Alder Júlio Ferreira Calado 


Como assim acima assinalado, este texto constitui o primeiro de uma série de análises acerca de pensadores e pensadoras brasileiros, com reconhecida contribuição à compreensão da formação sócio-histórica da sociedade brasileira. Embora seja de uma geração relativamente recente, houvemos por bem começar pela figura de Ruy Mauro Marini cuja contribuição nos parece das mais relevantes, ainda que pouco conhecida até porque a maior parte de sua produção teórico-metodológica foi publicada fora do Brasil. 


Ruy Mauro Marini nasceu em Barbacena - MG, em 1932. Tendo concluído o Ensino  Médio, empenha-se na preparação para o ingresso na Universidade, tendo optado pelo Curso de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, dele se afastando para ingressar no Curso de Administração Pública, da Escola de Administração Pública e de Empresas, da Fundação Getúlio Vargas, contando com a orientação de Guerreiro Ramos. Ao mesmo tempo, inserido em um contexto histórico de intensa mobilização estudantil, também milita como líder no próprio Movimento Estudantil, inclusive contribuindo na redação de textos críticos de periódicos do seu meio. 


Ainda cedo, com o apoio de Darcy Ribeiro, Ministro de João Goulart e o primeiro Reitor da UnB, passa a atuar como Professor da Universidade de Brasília (UnB). Ele havia recém-chegado da França, onde obtiveram seu curso de Pós-Graduação, ao tempo em que vai se aprofundando, ao lado de figuras como Theotônio dos Santos, Vânia Bambirra, na investigação científica de temas candentes referentes à situação estrutural do Brasil e da América Latina, tendo o Marxismo como seu referencial  teórico-metodológico. 


Por força da crescente ofensiva dos Movimentos populares e Sindicais, organizados, em escala nacional, pelas “Reformas de Base”, os setores reacionários da sociedade brasileira passaram a tramar o golpe de Estado , com o apoio dos grandes empresários, dos latifundiários, da imprensa hegemônica e do Governo dos Estados Unidos, o Golpe de Estado restou consumado em 1 de Abril de 1964, instalando desde então a Ditadura Civil-militar no Brasil, que duraria tenebrosos 21 anos. 


Seguiu-se uma crescente onda de perseguições, de prisões - de que fora vítima o próprio Ruy Mauro Marini -, de torturas, de banimentos e toda sorte de repressão. Graças a um “Habeas corpus” conseguiu livrar-se da prisão, sentindo-se constrangido a embarcar para o México, como exilado, em 1965. Pouco antes do Golpe de 1964, Ruy Mauro Marini integrou a POLOP, juntamente  com outros colegas e amigos de sua geração, a exemplo de Vânia Bambirra e Theotonio dos Santos, Eder Sader, Emir Sader, Marco Aurélio Garcia, entre outros (quase todos encontrando-se também como exilados no Chile, participando do MIR, e alguns deles também no México), sobretudo com a reconhecida contribuição revolucionária, de Eric Sachs, militante comunista que, após uma rica experiência de militância juvenil, na Áustria, na Rússia e na França, migra com sua mãe para o Brasil em 1939, tornando-se depois a principal referência da Organização Revolucionária Marxsista Política Operária (POLOP). 


Sendo forçado a migrar para o México, como exilado, Ruy Mauro passa a integrar um grupo de exilados do Brasil e de outros Países latino-americanos, prosseguiu suas pesquisas e publicações, que tiveram amplo reconhecimento no México e em outros países. 


Do ponto de vista das análises críticas então hegemônicas, na América Latina, vivia-se sob a influência do Nacional Desenvolvimentismo, alimentado pelos pesquisadores integrantes da CEPAL (Comissão econômica para América Latina eo Caribe), criada pela ONU, em 1948, com o objetivo de elaborar pesquisas de cooperação econômica de ajuda ao desenvolvimento dos Países da América Latina e do Caribe. Referencial teórico então hegemônico inspirava-se no Nacional-Desenvolvimentismo, ou seja: predominava a interpretação de que as burguesias nacionalistas constituíam sujeitos de transformação, em vista do desenvolvimento proguessivo das condições econômicas do sub-continente.


Contra tal linha de interpretação, insurgiram-se os teóricos marxistas da Dependência, segundo os quais importava reconhecer o caráter dependente e associado dos países latinos-americanos, em relação aos países centrais do capitalismo.     


Em uma conjuntura de grande efervescência política latino-americano e em escala mundial, sobretudo graças ao alcance do Movimento de Maio de 1968, a militância intelectual de um pesquisador da estirpe de Ruy Mauro Marini provocará efeitos impactantes e incômodos ao governo mexicano de então, razão pela qual se sentiu “convidado a deixar o país”, tendo escolhido o Chile como próximo destino de exilado.


Não fora nada fácil aos seus amigos revolucionários, no Chile, justificar sua acolhida e sua reinstalação em órgãos institucionais: tratava-se, desde então, de um pesquisador reconhecido pela profundidade de sua reflexão e de seus escritos, sempre organicamente vinculados a sua militância revolucionária. No Chile, é acolhido inicialmente em Concepción, onde passa a integrar - e depois a liderar - movimiento de la Izquierda Revolucionaria (MIR), tendo acatado posteriormente o convite para integrar Centro de Estudios Socioeconômicos (CESO), pelo qual Ruy Mauro Marini e outros intelectuais latino-americanos passam a oferecer cursos e seminários de estudos sobre a realidade da América Latina, cabendo a Ruy Mauro Marini assumir a coordenação de cursos sobre teoria maxista de mudanças sociais, de onde brotam vigorosas ideias sobre a Teoria Maxista da Dependência, da qual Ruy Mauro Marini, Vânia Bambirra e Teotônio dos Santos, entre outros, passam a grande referência. 


Cumpre lembrar que, ao mudar-se para o Chile, este país se achava em forte ebulição política, ainda sob a presidência de Eduardo Frei, da Democracia Cristã, que foi sucedido, em 1970, pelo Presidente Salvador Allende, impulsionador de avanços democráticos, sob a égide e a esperança de se alcançar o Socialismo pela via democrática. Esperança frustrada pelo Golpe Militar de 11 de setembro de 1973, sob o comando de Augusto Pinochet. Estava implantada outra terrível Ditadura, no Cone Sul, a desmantelar os planos e sonhos de tantos militantes latino-americanos, ali reunidos, tendo que adiar seus sonhos e tendo que enfrentar as perseguições, prisões, torturas, banimentos, aplicados pelo regime.


Com dificuldades, Ruy Mauro consegue retornar ao México, onde continua trabalhando e pesquisando, desta vez junto a UNAM (Universidade Nacional do México), e a pesquisar e publicar seus textos, sendo ele ainda hoje mais conhecido fora do Brasil do que em seu país natal. Parte disto também se deveu à proibição de publicação e circulação de seus escritos, no Brasil, por força do regime ditatorial aqui vigente, bem como a omissão ou mesmo difamação por intelectuais brasileiros - dentre os quais são mencionados especialmente Fernando Henrique Cardoso e José Serra, a quem se imputa uma espécie de desfiguração de seu pensamento. Chama a atenção o fato de que, nos inícios dos anos 70 a Teoria da Dependência constituía a grande referência de interpretação da sociedade latino-americano, Ruy Mauro constitui um exemplo raro que se produziu, no Brasil e na América Latina entre os anos 60 e 70: tempo em que o reconhecimento de um intelectual se dava em função de sua capacidade criativa, de formulação e compromisso com projeto alternativo à barbárie capitalista. Este traço foi lembrado, inclusive por Álvaro Vieira Pinto, ao assinalar que o respeito,  o reconhecimento e admiração por um autor se davam em função de se empenharem na formulação de um projeto de sociedade Brasileira.


Ruy Mauro Marini retorna ao Brasil, após a Lei da Anistia, dando prosseguimento aos seus trabalhos investigativos, vindo a falecer no Rio de Janeiro em 1997, aos 65 anos. Dentre seus numerosos escritos destacamos os seguintes:

  • “Subdesenvolvimento e Revolução”;

  • “Dialética da Dependência”;

  • “Reformismo e contra-revolução;

  • “La teoria social Latina americana”;

  • “Teoría social latinoamericano de las origens a la cepal”;


Categorias Fundamentais trabalhadas por Ruy Mauro Marini


Da lista de intérpretes do Brasil - homens e mulheres - Ruy Mauro Marini apresenta-se com características marcantes. Trata-se de um exímio pesquisador marxista, comprometido com as lutas libertárias da América Latina, colocando-as sempre no mesmo plano ou mesmo acima das específicas do Brasil. Ao lado de outros nomes, como Aníbal Quijano, André Gunder Frank, Florestan Fernandes e Theotonio dos Santos e Vânia Bambirra, entre outros, Ruy Mauro se destaca entre os pesquisadores revolucionários reconhecidamente criativos, inclusive pelo fato de não aceitarem ser reféns de um marxismo dogmático, prescrito pelos PCs do período stalinista. Ruy Mauro destacava-se pelo rigor, honestidade  e criatividade revolucionária da leitura de Marx e de outros revolucionários, razão por que nunca entendia seus escritos como receituário a ser aplicado acriticamente em outras realidades. A exemplo de José Carlos Mariátegui, empenhava-se em recolher do Marxismo pistas fundamentais, desde que subordinadas à realidade concreta latinoamericana e brasileira. 


Deste método de leitura marxista, também derivam suas qualidades de rigor e criatividade, eis por que a ele se devem pelo menos duas categorias de fundamental importância de uma leitura marxista da realidade brasileira e latino americana: a categoria de “Superexploração da força de trabalho” e a categoria de “Sub-imperialismo”, elaboradas no contexto da teoria Marxista da Dependência.


Tanto a categoria “Superexploração da força de Trabalho” quanto a categoria “Subimperialismo” formam parte da Teoria Marxista da Dependência. Quanto à segunda, já em seu livro “Subdesenvolvimento e Revolução”, (1969) Ruy Mauro Marini começava a esboçar seu esforço teórico-interpretativo, ao assinalar traços da presença desta categoria. Foi, sobretudo, a partir de seu texto intitulado “Dialética da Dependência”, publicado em 1973, que Ruy Mauro Marini desenvolveu estas duas categorias. Quanto à “Superexploração da força de Trabalho”, Marini labora com a seguinte linha de argumentação.


Começava por sustentar tratar-se de grave Equívoco a interpretação, segundo a qual a burguesia latino americana estivesse comprometida com um projeto desenvolvimentista de carater nacionalista, razão pela qual entendia que, nas horas de decissão, os grupos dominantes latino-americanos não hesitariam em se subordinarem ầs decisões dos grupos dominantes dos paises centrais do Capitalismo. 


Nesta toada, tenta-se em vão dar passos rumo ao desenvolvimento dos países periféricos do Capitalismo, simplesmente porque as relações econômicas presentes nas sociedades periféricas se acham umbilicalmente subordinadas às economias centrais , de modo a formarem um todo, ou seja, o próprio modo de organizar-se o Capitalismo, nesta quadra histórica, em que a divisão internacional do trabalho, feita a partir das decisões do grande Capital (os grandes conglomerados transnacionais, os monopólios industriais, comerciais e financeiros, imperando desde as grandes potências, com a subordinação dos Estados nacionais) se mostram determinantes dessas relações. 


Neste sentido, Ruy Mauro Marini vai desvelando a natureza concreta da economia capitalista, de seus profundos laços de dependência, a determinarem a distribuição dos papeis que devem imperar nas economias centrais (de privilegiamento) e nas economias periféricas (de subordinação) do mesmo sistema. Com efeito, tal repartição ou divisão social do trabalho vai assegurar às economias centrais toda sorte de vantagens e privilégios (monopólio empresarial de produção, escolhas mais vantajosas na distribuição dos ramos empresariais impostos aos países periféricos, remuneração diferenciada do trabalho realizado nas economias centrais, em relação aos péssimos salários e condições de trabalho pagos vigentes nas economias periféricas).


Com relação a categoria “Sub-imperialismo”, Ruy Mauro Marini, com base inclusive em Lenin, sustenta a tese das relações imperialistas a que as economias periféricas se acham sujeitadas. A partir do eixo do Imperialismo Capitalista, hegemonizado pelas grandes empresas transnacionais, localizada sobretudo nos Estados Unidos e nas potências europeias, cabe às economias periféricas cumprir um papel subordinado às decisões tomadas pelo imperialismo, de tal sorte que desde a definição dos ramos e setores da economia, quais os bens a serem produzidos parcial ou integralmente na periferia, a determinação das condições de trabalho, o nível das taxas de lucro, o valor da remuneração do trabalho - tudo é determinado desde cima.


Refém das decisões  tomadas nos países centrais imperialistas, a América Latina - juntamente com outros países periféricos do capitalismo - passa a integrar, de forma subordinada, o conjunto do modo de produção capitalista, cumprindo funções secundárias mas altamente complementares aos interesses gerais do sistema. Umas das marcas explicativas deste papel de subordinação consiste na prática de trocas desiguais: Na divisão internacional do trabalho caberia aos países periféricos exporta produtos agrários e minerais, enquanto os países centrais, após importarem estes produtos, tratavam de industrializa-los, agregando valores e exportando-os de volta aos países periféricos, a preços elevadíssimos, assim obtendo lucros fantásticos desta troca desigual. 


Tanto no que concerne à categoria “Superexploração da força de trabalho”, quanto à categoria “Subimperialismo”, importa sobretudo observa, nas pesquisas de Ruy Mauro Marini o grau de coerência e de rigor na interpretação marxiana e marxista da Teoria da Dependência, principalmente embasada em sólida compreensão de “O Capital”        


Importa ressaltar a vigência e atualidade destas categorias trabalhadas por Ruy Mauro Marini, tomando-se em conta que estas mesmas condições passam a estar presentes nas economias dos próprios países centrais. A este respeito, são fartos os dados que a literatura possui. Importa registrar, ainda que tardiamente - no caso do Brasil, pois na América Latina e Alhures, é bem reconhecido o legado teórico de Ruy Mauro Marini -, que se observa um interesse crescente sobre os escritos deste autor. 


Não nos cansamos de lembrar que são os jovens militantes que constituem o alvo preferencial de nosso escritos, no terreno da Educação Popular, razão pela qual recomendamos que tomem estas linhas como motivação de seu engajamento, para o que indicamos, além da leitura dos textos de Ruy Mauro Marini, também outros escritos (por exemplo, “Ruy Mauro Marini: Dialética Da Dependência E Outros Escritos”, de João Pedro Stedile e Roberta Traspadini), documentários e vídeos sobre o mesmo, todos disponíveis em youtube. 


João Pessoa 1 de outubro de 2024




       


  


 





quinta-feira, 26 de setembro de 2024

Por uma Universidade Indígena: condições e fundamentos político-pedagógicos

 Por uma Universidade Indígena: condições e fundamentos político-pedagógicos


Alder Júlio Ferreira Calado


Ontem como hoje, na Antiguidade ou principalmente na Idade Moderna, sob

quaisquer de suas formas – militar, econômica, política, cultural, religiosa,

que sempre operam dinamicamente entrelaçadas -, o Colonialismo se tem

manifestado como uma pandemia desumanizante, em relação às terras e às

gentes dos vários continentes. No caso do Brasil, desde inícios do século

XVI, nossos povos originários que aqui viviam desde milênios, se viram

invadidos bruscamente pelos europeus (no caso, pelo Reino de Portugal, em

aliança com o Papado). O que já vinha acontecendo no Caribe e em outras

partes do continente americano, a exemplo da Ilha caribenha de Hispaniola,

a atual República Dominicana, foi se expandindo por todo o continente,

inclusive no Brasil.

Dotados de grande poderio militar, os colonizadores europeus passaram não

apenas a se apropriar pela força das riquezas dos povos originários, como a

escravizá-los, cometendo toda sorte de violência, inclusive sob a bandeira

da fé cristã... O mesmo fizeram, algumas décadas depois – e de modo ainda

mais grave e duradouro – com os africanos escravizados.

Não bastasse a violência cruel da invasão – a que deram o nome de

“descobrimento” -, empenharam-se em cumprir seu projeto colonialista,

apropriando-se das terras, do subsolo, das florestas e demais riquezas

desses povos. Pelos séculos adiante, trataram de pilhar nossa

biodiversidade, nossa madeira, nossos minerais, os recursos privilegiados de

nossas terras sobretudo as férteis, transferindo-as para seu poder e de

seus aliados europeus. Eis que, há cinco séculos, nossas gentes originárias e

afro-brasileiras seguem amargando tão abominável pilhagem.

Do ponto de vista político, a despeito da heroica resistência testemunhada

secularmente pelos povos indígenas e afrodescendentes, a pandemia

colonialista implicou a desorganização social e política desses povos, à

medida que os colonizadores subjugaram ao seu poder político-institucional,

ignorando e negando seus direitos mais elementares de cidadania. Situação

que vem perdurando ou mesmo se agravando até ao presente. O atual

Congresso constitui uma prova evidente deste processo, inclusive por meio

da negativa do direito à demarcação de suas terras e territórios. Importa


sublinhar que igual ou pior tratamento tem sido dispensado pelos

colonizadores de ontem e de hoje ao povo negro.

Tanto os povos originários quanto as comunidades quilombolas e tradicionais

também constituem um alvo permanente do processo de desfiguração e de

apagamento de sua cultura, de seus valores, de suas crenças. Também hoje,

graças à sofisticação dos diversos aparelhos de Estado – principalmente a

mídia hegemônica e as redes digitais da extrema Direita -, nossos povos

originários e afrodescendentes seguem submetidos duramente à ditadura

do Mercado (suas transnacionais, que atuam nas mais diversas áreas da

realidade social: na Economia, na Política, na Cultura, na Comunicação, na

Educação, na Religião...), consolidada pelas políticas do Estado,

eventualmente aliviadas por governos progressistas.

Neste sentido, o exercício da memória histórica constitui um passo decisivo

a ser ininterruptamente mantido pelas classes populares, recorrendo a

grandes referências de historiadores, sociólogos, economistas, educadores

e outros relevantes campos de saberes, por meio dos quais somos

convidados a fazer uma constante leitura de mundo, na perspectiva de

reescrevê-lo. Para este horizonte apontam reconhecidas figuras, tais como

Paulo Freire, Florestan Fernandes, Clóvis Moura, Ruy Mauro Marini, Darcy

Ribeiro, entre outras.

Cumpre ainda ressaltar como um dos fatores relevantes para a manutenção

e agravamento deste estado de coisas o papel altamente nocivo da

ideologização da religião e das crenças, especialmente na atual conjuntura,

em particular no caso das igrejas pós-pentecostais e da extrema direita

católica. Figuras como Edir Macedo, Silas Malafaia, Pe. Paulo Ricardo, entre

outros, com seus aparatos de comunicação de rádio, televisão e rede

digitais, têm produzido estragos ao devido respeito à diversidade,

interferindo, inclusive na esfera política do país, haja vista o que sucede na

atual campanha eleitoral de São Paulo. Cenário tanto mais lamentável quando

se compara a conjuntura nas décadas entre 1950 e 1980, de enorme

ebulição social dos movimentos populares e de expressivos setores das

igrejas cristãs, ao impulsionarem movimentos de mudança de sociedade.

Importa doravante cuidar mais diretamente do campo educacional,

sobretudo pela viabilidade ou não da criação de uma Universidade Indígena.

No atual contexto da sociedade brasileira, faz sentido empenhar-nos na

criação de Universidade Indígena? Os jovens indígenas já não se acham

contemplados com as atuais políticas educacionais voltadas para os povos


indígenas? Em caso de viabilidade, em que condições e sobre que alicerces

se justifica abraçar a causa da criação de uma Universidade Indígena?

Feito este breve introito de contextualização, passaremos, a seguir, a

esboçar algumas condicionantes e fundamentos em busca da construção de

uma Universidade Indígena, que já se acha em discussão, desde seus

protagonistas, a exemplo do que vem sucedendo junto aos/às participantes

do XI Encontro Nacional de Estudantes Indígenas (XI ENEE), que no último

18 de setembro, participaram também de uma audiência pública, no Senado

(cf. fala do Senador Bene Camacho – PSD/MA – no link: Debate no Senado

aborda a criação da primeira universidade indígena no Brasil (youtube.com)).

Condições e fundamentos da criação de uma Universidade Indígena

Mesmo sabendo dos riscos, para os povos originários, de se aventurarem por

caminhos que lhes são pouco familiares ou até hostis, constatamos sinais

crescentes em diversos de seus segmentos de certa aposta ou investimento

em disporem de uma Universidade Indígena. Qualquer que seja sua escolha,

consideramos legítimo o seu intento de disporem de um Centro de produção

de saberes, de sabores e de sabedoria de seus ancestrais, de suas riquezas,

da extraordinária biodiversidade em que se acham mergulhados. Tendo ou

não o perfil de Universidade – algo a merecer maior debate, pelo menos

quanto ao sentido convencional atribuído a esta instituição -, não há dúvida

de que, a exemplo de outros povos tradicionais, os povos originários têm o

direito de dispor de um organismo próprio destinado a produzir sua própria

memória histórica, bem como os saberes de seus ancestrais, da imensa

variedade de riquezas e bens naturais, atinentes a uma enorme

multiplicidade de dimensões – relações com o Sagrado, econômicas,

políticas, culturais, educacionais, nas áreas científicas da saúde e de um

amplo e profundo espectro da natureza, de educação, de comunicação, entre

outras.

Por outro lado, um tal Projeto não deve ignorar uma multiplicidade de óbices

ao seu cumprimento, quando trazemos a lume diversos aspectos históricos

que vêm acompanhando secularmente a experiência político-pedagógica

apresentada pela Universidade, desde o século XII. Como se sabe, as

Universidades têm raízes ocidentais, tendo sido criadas para atenderem os

setores privilegiados dessas sociedades. Ontem como hoje, a Universidade

segue sendo, ainda que em uma correlação de forças desfavorável um campo

de disputa, a ser enfrentado pelas classes populares. Não se trata,


portanto, de algo a ser necessariamente evitado ou desconsiderado, desde

que se tenham claros os seus limites.

Criar uma Universidade Indígena, em uma perspectiva fiel aos valores

destes povos, requer ter sempre claros os limites, as condições e os

fundamentos sobre os quais tal edifício deve ser erigido. Um eventual

projeto de Universidade Indígena, caso seja realizado nas mesmas

condições que regem as atuais Universidades estatais (Federais, Estaduais,

Municipais...) implica seguir as mesmas regras que as definem. Em que condições,

então, erigir uma Universidade Indígena? Tratemos, a seguir, de esboçar

algumas dessas condições.

Uma primeira diz respeito à autonomia financeira, de gestão, de definição

de protagonistas, de planejamento, de execução (desde os componentes

curriculares às formas de organização e gestão, avaliação, participação da

comunidade envolvente). Já aqui, há de se perguntar, primeiro, diante das

exigências e requisitos gerais, cobrados em toda Universidade, prosperará

um projeto desse tipo, quanto aos fundamentos e princípios que inspiram os

povos originários e tradicionais, ou se se trataria apenas de uma mera

adaptação ao projeto já existente? Neste último caso, não seria mais

recomendável investir, em vez de em uma Universidade, em um Centro de

produção e de compartilhamento de saberes dos povos originários?

Dentro do item “autonomia”, acha-se listada uma série de outras dimensões.

Cada uma delas comporta igualmente a mesma pergunta. Por exemplo,

como pretender-se autonomia financeira diferente da que gozam outras

Universidades? Mais: como assegurar o cumprimento das dimensões:

- Como assegurar a aspiração à definição dos componentes curriculares

aplicáveis apenas à Universidade Indígena, sem tomar em consideração

normas curriculares do sistema de ensino superior?

- Como garantir uma gestão ampla e geral de todos os itens relativos à

Universidade Indígena, descumprindo-se as normas vigentes para as demais

Universidades?

- Talvez de todas essas dimensões, a mais improvável de se cumprir, seja a

relativa à dimensão financeira. Como garantir autonomia financeira relativa

apenas à Universidade Indígena, de modo a distinguir-se claramente do que

Sucesso às demais Universidades?


Como se percebe, estamos de um dilema: de um lado, resta nítido o direito

dos povos originários e tradicionais à reparação de uma imensa dívida

acumulada, ao longo dos séculos; por outro lado, dadas inclusive as atuais

condições e correlação de forças em vigência, como tornar factível tal

Projeto? Mesmo assim, vale a pena seguirmos tentando, de um modo ou de

outro.


João Pessoa, 26/09/2024