quinta-feira, 9 de janeiro de 2025

Intérpretes do Brasil (XI): Conceição Evaristo e sua escrevivência

Intérpretes do Brasil (XI): Conceição Evaristo e sua escrevivência 


Alder Júlio Ferreira Calado


Seguimos apostando no exercício contínuo da memória histórica dos oprimidos. Nós o temos feito buscando exercitá-la como uma força transformadora de nossa realidade, de nossas relações cósmicas, planetárias, econômicas, políticas e sócio-culturais, seja no âmbito coletivo seja no plano pessoal, quer em escala brasileira, quer em escalas latino-americana e mundial. 


Neste sentido, o exercício continuado da memória histórica também nos remete a figuras de intelectuais - homens e mulheres - que dedicaram um tempo precioso de suas vidas a compreenderem e a compartilharem sua interpretação da sociedade brasileira, em seus respectivos tempos. Há alguns anos, em nosso blogger https://textosdealdercalado.blogspot.com/, já tivemos uma primeira oportunidade de apenas enunciar elementos dispersos acerca de mais de quatro dezenas dos que consideramos principais intérpretes da sociedade brasileira, tendo inclusive sobre algumas dessas figuras (Paulo Freire, Florestan Fernandes, Carolina Maria de Jesus, entre outras) ensaiado nossa análise. Há cerca de três meses, houvemos por bem dar prosseguimento a esta iniciativa, propondo desta vez, uma breve incursão pelo universo da “escrevivência” de Conceição Evaristo.


Temos insistido em que o constante ensaio de nossa memória histórica constitui um primeiro passo - decisivo - em busca de um enfrentamento exitoso (coletivo e pessoal) de velhos e novos desafios, sempre lembrando ainda tratar-se de uma tarefa histórica inescapável de nossas organizações de base. Tratamos, assim, de trazer ou de rememorar traços bibliográficos de Conceição Evaristo.


Maria da Conceição Evaristo de Brito nasceu em Belo Horizonte, em 1946, em uma favela perto do centro da capital mineira. É filha de pai trabalhador e de mãe trabalhadora doméstica, que tiveram 9 filhos (5 filhos e 4 filhas, quatro Marias, das quais ela é a segunda). Desde cedo, a exemplo de sua mãe, de suas tias e de suas irmãs, Conceição Evaristo experimentou uma vida familiar muito movimentada de trabalhos como domésticas, ao mesmo tempo em que, também muito cedo, se sente tomada pelo encanto das palavras. Como ela costuma lembrar, o fato de não haver nascido rodeada de livros, não a impediu de sentir-se sempre cercada de palavras, isto é, de muitas histórias, de muitos “causos” como costumam expressar-se  às gentes das Minas Gerais.


Em entrevistas, Conceição Evaristo, quando interrogada sobre sua educação infantil, sempre lembra com ternura, não apenas a figura de Joana, sua mãe, como também de sua tia Maria Filomena e seu tio Antônio, pedreiro, casal com quem ela passou a viver desde os 7 anos, sempre agradecida pelo incentivo e cuidado de sua tia pela boa educação da sobrinha. Prova disto foi a escolha da Escola onde Conceição estudou o curso primário, ao fim do qual recebeu o prêmio pela melhor redação da turma, versando sobre o orgulho de ser brasileira. Outro aspecto lembrado por Conceição tem a ver com sua aguda percepção das desigualdades sociais e dos preconceitos contra os negros, seja no plano abtacional, seja no ambito da escola.


A favela em que sua família morava, situava-se próxima do centro de Belo Horizonte, mas havia um muro de apartação entre a favela e os bairros de classes média, enquanto na própria Escola de dois andares as crianças mais pobres e negras estudavam no  “porão”, enquanto os andares de cima eram reservados às crianças de classe média, sob o pretexto da meritocracia - eram mais estudiosas mais aplicadas, mais premiadas, o que justificaria sua escolha de protagonistas até nas festas religiosas (a exemplo da coroação de Nossa Senhora).          


Ainda criança, Conceição começou a encantar-se pelas tantas narrativas sobre o povo negro, sobre escravidão, sobre seus sofrimentos, suas lutas e esperanças. Morando na favela, sua família conseguiu matricular-se em uma escola prestigiada  chamada “Colégio Rio Branco”. Desde os 12 anos, lembra com entusiasmo suas idas à biblioteca municipal, onde trabalhava sua tia à tarde (pois, pela manhã trabalhava como doméstica na casa da bibliotecária). Conceição conta, entusiasmada, de seu gosto pela leitura de vários livros dessa biblioteca. Ela tomava emprestado, seguindo de imediato para uma praça próxima da biblioteca, até terminar a leitura e devolver o livro e tomar outro emprestado. 


Por certo, sua escolha pelo curso normal não se deu por acaso: seu sonho era formar-se como Professora. Após terminar o Curso Normal, necessitando trabalhar como Professora, e não contando com concurso público em Belo Horizonte, toma conhecimento de um concurso público para professora primária, no município do Rio de Janeiro, para onde se muda, aos 25 anos. Bem sucedida no concurso, passa a trabalhar como professora. Primeiro, na rede municipal do Rio de Janeiro, tendo tido mais tarde ainda experiência docente em Niterói.


Conceição Evaristo prestou vestibular, em 1987, para o curso de licenciatura em letras, iniciando seus estudos no ano seguinte na UFRJ. Sente-se cada vez mais motivada a acompanhar toda a movimentação cultural em torno da Negritude. Somente em 1996, concluiu seu Mestrado em Literatura Brasileira, na PUC do Rio, enquanto seu Doutorado em Literatura Comparada concluiu na UFF, em 2011. Só em 1990, escreve em “cadernos negros”, cujo número 13 publica seus primeiros escritos. “Cadernos Negros”, desde os anos 1970, constituiam um espaço de publicação para a juventude negra, uma das manifestações culturais de grande apreço.


Formada, a princípio, em fecundo ambiente de oralidade, Conceição, também se sente vocacionada a escrever suas vivências. Eis porquê, sobretudo a partir dos anos 1990, ela se empenha cada vez mais, não apenas em registrar sua produção, como também, em buscar torná-la pública, de tal modo que seu primeiro romance “Becos da Memória” teve que esperar 20 anos para ser publicado. Mesmo assim, com recursos próprios, fazendo ela questão de lembrar que, por causa disso, teve que conviver o ano seguinte, “em vermelho”… Além deste, Conceição Evaristo também escreveu, “Ponciá Vicêncio”, que alcançou grande reconhecimento, dentro e fora do Brasil. Conceição Evaristo segue publicando seus escritos premiados - romances, contos, poesias, etc. eis um quadro do conjunto de seus escritos : 


Poemas da recordação e outros movimentos (2017)

Insubmissas lágrimas de mulheres (2011)

Olhos d`água (2014) 

Histórias de leves enganos e parecenças (2016)

Cadernos Negros (1990)

Contos Afros (2009)

Contos do mar sem fim (2015)

Questão de Pele (2009)

Schwarze prosa (1993)

Moving beyond boundaries: international dimension of black women’s writing (1995)

Women righting – Afro-brazilian Women’s Short Fiction (2005)

Finally Us: contemporary black brazilian women writers (1995)

Callaloo, vols. 18 e 30 (1995, 2008)

Fourteen female voices from Brazil (2002)

Chimurenga People (2007)

Brasil-África

Je suis Rio (2016).

Ponciá Vicêncio.

L'histoire de Ponciá (A história de Ponciá) (2015)

Banzo, mémoires de la favela, (Banzo, memórias da favela) (2016)

 

Escritora profundamente criativa, Conceição Evaristo, além dos escritos de sua lavra, protagoniza sua arte de contação de histórias, em cada entrevista, em cada conferência, em cada roda de conversas de que participa. A este respeito, vale a pena conferir dezenas de vídeos gravados com Conceição Evaristo.


Em um de seus contos intitulado “Maria”, constante do livro “Olhos d'água”, podemos tomar como ilustração uma série de traços muito bem costurados pela autora, a começar mesmo do título “Maria”. Esta representa, mais do que um indivíduo, toda uma coletividade, amplas parcelas do povo  brasileiro, o seguimento das empregadas domésticas em sua labuta do dia-a-dia: a lidar com a cozinha da patroa, a preparar a refeição, em um tempo de festa. Tão empenhada no preparo da carne, acaba cortando a mão por uma faca bem afiada. O tempo todo não se desgarrou dos filhos pequenos que deixou em casa, gripados, para quem levaria remédio, ao voltar para casa. Em um dia atípico - véspera de festa-, rejubila-se por poder levar para os filhos restos daquela refeição, além de uma gorjeta recebida da patroa, com a qual comprariam remédios para os filhos. 


Após longa espera do ônibus, senta-se em uma das primeiras cadeiras, logo surpresa ao perceber a entrada no ônibus de dois homens, um dos quais se sentaria ao seu lado. Na breve conversa reconhece tratar-se do pai do seu filho mais velho por quem aquele passageiro pergunta, constrangido. Há uma breve troca de palavra entre ambos: arrependimento da parte dele, de votos para o filho e para a mãe, coisas do gênero. Balbuciou, inclusive, o pedido a ex companheira para na volta, abraçar e beijar o seu filho. De repente, já antes combinado com o comparsa que entra no ônibus com ele, eis que  seu ex companheiro empunhando uma arma, levanta-se bruscamente, dirigindo-se para os passageiros a exigir que entregassem tudo ao comparsa, tendo apenas poupado uma criança e sua ex companheira. Por esta razão, após a descida dos assaltantes, criou-se um ambiente de tumulto entre os passageiros assaltados, que acusavam Conceição, com insultos e palavrões, de ser uma cúmplice dos assaltantes. À exceção de uma criança e do motorista, que estacionou o ônibus e pedia calma aos agressores, dizendo-lhes conhecer aquela mulher que costumava tomar o ônibus naquele horário, todos os demais passageiros passaram das acusações ao linchamento até a morte.


Temos aí uma ilustração da escrevivência de Conceição Evaristo, mulher negra, trabalhadora, desde seu lugar de fala, mostra-se profundamente solidária com as mulheres trabalhadoras, especialmente as mulheres negras a experimentarem toda sorte de exploração e opressão, denunciando vigorosamente este estado de coisas, sempre no esperançar de um novo tempo de justiça, de paz, e de alegria.                      


O que aprendemos com a “escrevivência” de Conceição Evaristo ?


Ao percorrermos a trajetória literária de Conceição Evaristo, temos a oportunidade de observar, entre tantos outros traços, um fio condutor a costurar sua “escrevivência” : trata-se da coerência. Com efeito, Conceição Evaristo, em seus vários escritos e em cada um deles, logra um feito raro: o de fundir seus escritos com sua vida. Suas palavras contêm algo mais que letras: são portadoras de carne, de sangue. Sua “escrevivência” aparece em cada romance, em cada conto, em cada escrito. Em certo sentido, podemos dizer que, a exemplo de outros autores e autoras - é o caso, inclusive, de Lima Barreto - , também Conceição Evaristo encarna em suas obras uma vida militante, especialmente no campo da Negritude, e mais particularmente no âmbito da Mulher Negra.



Impacta-nos, igualmente, a qualidade de sua observação - minuciosa, detalhista. Sua vida, por outro lado, se acha entranhada do sentir, do pensar, do querer, do agir, e do falar do Povo Negro. Seus escritos neste sentido, demonstram uma profunda identidade pessoal que radica no “ethos” comunitário : em seus escritos, Conceição se faz presente em seus personagens, em especial tomados em coletividade. Sem demonstrar qualquer embaraço na convivẽncia com os brancos, é visível seu compromisso primeiro com a causa libertária dos povos originários e das comunidades quilombolas afro-diaspóricos. Em seus escritos, ressoam com força seus ancestrais, as diversas manifestações da mãe natureza, do cosmos, das agruras, das lutas, das esperanças e das alegrias de suas gentes. Sua palavra faz coincidir, não raramente, denúncia e anúncio. Em seus escritos, faz-se dor com os que sofrem - especialmente as mulheres negras - e alegria, ao compartilhar as conquistas de cada dia do seu povo.



Com Conceição Evaristo também aprendemos a ler melhor a realidade, experienciando suas pistas metodológicas sempre associadas aos fins perseguidos. Ela, ao exercitar a memória, desde criança e ao longo da vida - hoje se prepara para os seus setenta e nove anos - , se sente fascinada pelas palavras, pela contação de histórias, primeiro passo para a lida com a literatura escrita. Tanto na parte, quanto no seu conjunto, sentimos em Conceição Evaristo uma verdadeira militante do processo de humanização que ela persegue, de modo coerente, com traços inconfundíveis :

No plano cósmico-planetário, ela acena, seja de modo explícito ou implícito pontos que evocam sua sinergia com os ancestrais ;

A dimensão do Trabalho ressoa sobremaneira em seus escritos, a partir mesmo do jeito como ela encarna as palavras, escolhendo os melhores termos, as frases mais precisas e a “sonância”, a musicalidade que lhe são próprias, fazendo sempre questão de deixar sua marca no que escreve;

Conceição Evaristo mostra-se também emblemática, no assumir seu lugar de fala: sem absolutizar o conceito, revela-se convencida da relevância do lugar de fala, na produção estético literária como na produção historiográfica;

Seu legado se apresenta profundamente marcado pela fidelidade à causa libertaria das gentes subalternizadas, em especial o Povo Negro e os Povos Originários.


João Pessoa, 09 de janeiro de 2025

terça-feira, 31 de dezembro de 2024

Intérpretes do Brasil (X): Astrojildo Pereira, uma compreensão anarco-comunista da cultura brasileira

Intérpretes do Brasil (X): Astrojildo Pereira, uma compreensão anarco-comunista da cultura brasileira  


Alder Júlio Ferreira Calado 


Nas trilhas desta incursão por alguns intérpretes - homens e mulheres -, de nossa terra e de nossas gentes revisitamos, desta vez, a figura de Astrojildo Pereira, cujo nome completo é Astrojildo Pereira Duarte Silva, de cujo legado buscamos recolher elementos e traços complementares de nossa trajetória histórico-cultural voltamos, por tanto, a exercitar a memória histórica de nossa formação social brasileira como um dos passos decisivos para a transformação processual das relações sociais capitalistas, que seguem semeando e espalhando a barbárie em escalas internacional, latino-americana e brasileira. Nestas nossas incursões rememorativas, sem descuidarmos das diferenças de interpretação entre os autores e autoras revisitados, cuidamos sobretudo de captar os pontos comuns de compreensão de nossa realidade, orientados sobremaneira pelos critérios de interpretação alinhados com a perspectiva histórico-dialética da realidade.


Astrojildo Pereira nasceu em Rio Bonito-RJ, em 1890, procedente de família de classe média, proprietária de terra, vivendo do cultivo e do comércio de bananas. Desde criança, Astrojildo mostrou-se tomado de muita curiosidade, a qual a escola não conseguia satisfazer, razão pela qual interrompe cedo sua frequência à escola (ainda no curso ginasial). Ao mudar-se para Niterói, vai encontrar melhores condições de relacionar-se com a imprensa com uma rica diversidade de leituras, a exemplo dos textos da lavra de Machado de Assis. Tão aficionado se tornou dos escritos de Machado de Assis, que aos 17/18 anos de idade, ao tomar conhecimento de que seu autor preferido agonizava, ousou dirigir-se à casa de Machado de Assis. 


Ao bater a sua porta veio alguém - que depois se saberia tratar-se de Euclides da Cunha -, que lhe perguntou o que desejava. Respondeu-lhe ter vindo fazer uma breve visita a Machado de Assis. Tocado por aquela cena, Euclides da Cunha o conduz até ao leito onde agonizava Machado de Assis. O adolescente/jovem Astrojildo, reverente, limita-se a beijar-lhe a mão. Voltando para casa, em seguida. Por muito tempo, Astrojildo guardou em segredo este episódio ocorrido em 1908, no bairro Cosme Velho, onde se situava a residência de Machado de Assis, considerado como o “bruxo do Cosme Velho” por setores da classe dominante de então, em razão das críticas contumazes feitas por Machado ao comportamento e aos costumes hipócritas daquela sociedade. 


Ao mesmo tempo, Astrojildo Pereira graças à combinação de suas leituras com a sua postura crítica de arguto observador, vai descobrindo melhor as condições de vida e de trabalho dos pobres de sua época, em sua maioria negros, desempregados e humilhados pelos setores dominantes. Crescem nele a indignação e o compromisso de solidariedade com os “de baixo”, expressos em seus romances, em seus contos e demais escritos. Sentimentos reforçados ainda mais pela crescente atuação do movimento sindical liderado pelos anarquistas, dos quais ele passaria a ser uma liderança-referência. Daí por diante, Astrojildo Pereira passa a ser um militante combativo da causa operário-camponesa, sobretudo pela organização de greves, das quais a mais importante foi a de 1917 - marco relevante das lutas sociais no brasil -, e, ao mesmo tempo, Astrojildo passaria a militar também como jornalista, escrevendo nos principais jornais da região, especialmente nos jornais anarquistas.


Dando mostras também de sua curiosidade internacionalista, em 1911, o jovem Astrojildo, com apenas 21 anos, comete a aventura de viajar a Paris, não obstante os imensos obstáculos que teve que enfrentar. A despeito de sua brevíssima estada, conseguiu contactar e ler relevantes obras das principais figuras anarquistas de então. De volta ao Brasil, prossegue sua militância, seja em busca da organização da resistência, inclusive por meio de sucessivas greves, seja por meio de seus costumeiros artigos publicados na imprensa da região, principalmente nos diversos órgãos da imprensa anarquista. Graças ao seu talento de escritor, seus textos eram muito apreciados, tanto em razão de seu conteúdo, quanto sobretudo pela clareza de seu estilo, bastante acessível aos próprios trabalhadores e trabalhadoras.


Outra marca da personalidade de Astrojildo, por muitos reconhecida e testemunhada, tinha a ver com sua postura afável de lidar tanto com os parceiros quanto com os diferentes, motivo pelo qual Martin Cézar Feijó o trata como “O revolucionário cordial”. Outro traço marcante em sua vida tem a ver com sua sobriedade, com sua postura humilde, com sua fidelidade à Classe Trabalhadora, mesmo quando, por razões questionáveis, foi expulso do PCB em 1930, tendo que passar por uma sorte de ostracismo das fileiras do Partido, sem que nunca tenha desistido da causa comunista. Importa assinalar a gravidade da sua expulsão, uma vez que se tratava não apenas de um membro qualquer do Partido, mais um dos seus principais fundadores, e o seu Secretário Geral por quase oito anos. Durante este período que se estende por cerca de 15 anos, empenhou-se em registrar em livros, e outros textos, sua rica experiência de militante, de jornalista e de crítico literário. De suas obras, devemos destacar : 


URSS, Itália, Brasil. Rio de Janeiro, Editora Alba, 1935.

Interpretações. Editora CEB, 1944;

Machado de Assis: ensaios e apontamentos avulsos, Livraria São José, 1959. 

Formação do PCB, 1922/1928: notas e documentos, Editora Prelo, 1962. 

Crítica impura, autores e problemas, Editora Civilização Brasileira, 1963

Ensaios históricos e políticos, Editora Alfa Omega, 1979. 



Após sua experiência em Paris, em 1911, de retorno ao Brasil, Astrojildo intensifica suas atividades de militância, seja como jornalista, seja na organização do movimento anarquista. Acompanha, com interesse relevantes encontros-assembleias e congressos dos trabalhadores, inclusive o famoso Bloco Operário Camponês (BOC), fortalecendo a organização também por meio de sucessivas greves, cominando com a grande greve de 1917 e a insurreição operária de 1918, tendo até experimentado tempos de prisão.


A Revolução Russa de 1917 foi acompanhada ativamente por militantes de todo o mundo, inclusive na América Latina e no Brasil. A despeito das divergências entre anarquistas e marxista-leninistas, Astrojildo seguiu sendo uma liderança de referência de todo o movimento operário de então. A fundação do PCB, antes cogitada para 1918, por conta da repressão que se seguiu contra o levante operário de 1918, só veio a acontecer em março de 1922, de cuja fundação, além de Astrojildo, participaram mais oito pessoas (entre elas, estava também o Pernambucano Cristiano Cordeiro), tendo sido eleito como seu primeiro secretário geral a figura de Abílio de Nequete, que ficaria no cargo apenas poucos meses, tendo sido substituído por Astrojildo Pereira.

 

A respeito da dissidência dos dirigentes da III Internacional com relação às posições do PCB, em defesa dos maçons comunistas, Astrojildo também faz sua criteriosa avaliação.

A expulsão de Astrojildo tanto da Secretaria geral como das fileiras do partido, constituiu um duro golpe para ele, ao mesmo tempo em que ele consegue superar os efeitos desta amarga experiência, graças principalmente à elaboração e ao exercício da crítica literária, sempre em uma perspectiva anarco-comunista.

Vale a pena destacar a atitude de dignidade de Astrogildo mantendo-se comunista e fiel à classe trabalhadora, passando a escrever seus principais livros neste período de 30-45.

Há de se sublinhar sua dedicação à análise e interpretação da obra de Machado de Assis, justamente durante este período.


 


Na primeira metade dos anos 60 por iniciativa pŕopria, mas também instigado por amigos, a exemplo de Graciliano Ramos, ele houve por bem, com base em seus arquivos escrever sobre a trajetória histórica do PCB, em livro intitulado “Formação do PCB” em (1962). Outro escrito precioso de sua lavra é sua obra intitulada “Crítica Impura “ (1963) na qual contesta com argumentos convincentes, escritores de referência de postura conservadora, que negavam mérito literário a romances e contos que tematizam os dramas do cotidiano de pobreza, secas e miséria, vivenciadas por seus personagens, que expressavam as agruras e os tormentos, as alegrias e esperanças da população negra, pobre e sertaneja.   


Ainda que Astrojildo Ppereira nesta época já não tivesse uma militância de rua, mas atuando firmemente como um organizador cultural, especialmente na Revista “Estudos Sociais”, acabou preso, em 1964, em consequência do Golpe Militar, tendo sido preso até Janeiro de 1965. Acometido de uma doença cardíaca, veio a óbito em 1965 deixando um vasto e denso legado ético, político, e cultural.     


O que aprendemos com Astrojildo Pereira ?




Um primeiro ensinamento que podemos recolher do percurso existencial de Astrojildo Pereira é sua contínua aposta/investimento no processo formativo contínuo, que ele exerceu com muita paixão, certo da força libertária do conhecimento. Isto não passa necessariamente pela Escola nem pela Academia. Neste sentido, Astrojildo não foi o único. Sua sede de liberdade o inspirou durante toda a sua vida, ajudando-o a tomar difíceis decisões, sem que jamais tivesse cedido a seus princípios. Mesmo quando expulso da direção do PCB e de suas fileiras, em razão de suas posições conflitantes com as tendências stalinistas que começavam a predominar, fora e dentro do Brasil, Astrojildo soube manter-se como um comunista exemplar, apreciado por um conjunto de intelectuais de grande expressão nacional, a exemplo de Jorge Amado, Carlos Drummond de Andrade, Graciliano Ramos, Nelson Werneck Sodré, entre tantos. Não figurando apenas no plano político, ele também gozava de grande apreço da parte de figuras do mundo literário, a exemplo de Otto Maria Carpeaux.


Expressando nosso agradecimento a diversos intelectuais brasileiros, especialmente aos que se dedicaram a sua biografia, dentre os quais, Martim César Feijó, podemos descobrir preciosos predicados de Astrojildo: Sua Afabilidade no trato com os diferentes (“revolucionário cordial”) sua paixão pela luta contínua em defesa e promoção dos interesses “dos baixo”, sua postura humilde, seu autodidatismo, sua paciência histórica, entre tantos outros. Lembramos, ainda, sua criatividade revolucionária, desde a iniciativa que teve, nos tempos em que Luiz Carlos Prestes vivia exilado na Bolívia, a quem Astrojildo foi visitar, levando-lhe uma mala cheia de livros de relevantes obras de Max, Engels e de outros comunistas, como a estimular o “ Cavaleiro da Esperança” a se introduzir melhor no conhecimento do processo revolucionário, atitude que foi determinate para a entrada de Prestes nas fileiras do PCB.

Por meio destas brevíssimas linhas, buscamos incentivar os militantes de nossas organizações de base a aprofundarem o exercício da memória histórica, em vista de recolherem fecundos elementos de compreensão de nossa realidade, como meio de enfrentamento exitoso de nossos atuais desafios.


                              

     João Pessoa, 31 de Dezembro de 2024




segunda-feira, 30 de dezembro de 2024

"Notas para o debate Brasil antes das eleições”, organizado pelo centro Mariátegui e pelo comitê Lula Presidente

 “NOTAS PARA O DEBATE BRASIL ANTES DAS ELEIÇÕES”, ORGANIZADO PELO CENTRO MARIÁTEGUI E PELO COMITÊ LULA PRESIDENTE (Paris, no dia 6/11/89).*


Alder Júlio Ferreira Calado.



Uma das singularidades do último período vivido pelos movimentos populares concerne a uma situação aparentemente paradoxal, pelo menos do ponto de vista eleitoral:

- Por um lado, é certo, o avanço extraordinário feito pelos movimento populares, durante os anos ‘80; 

- Por outro lado, temos por vezes dificuldade de traduzir estas conquistas em linguagem eleitoral, apenas para evocar este aspecto  da realidade atual. 

Nesta exposição, eu propõe como observações concernentes à evolução recente dos movimentos populares, no Brasil, tentando enfatizar suas conquistas e seus limites no plano político-eleitoral e o papel da Igreja, neste processo.


1. ALGUNS ELEMENTOS SOBRE A HISTÓRIA RECENTE E AS CONQUISTAS DOS MOVIMENTOS POPULARES NO BRASIL.


No começo dos anos 60, as classes populares, no Brasil e alhures, viviam um período de efervescência, graças a fatores internos e externos (A Revolução cubana, por exemplo). No Brasil, lutávamos pelas reformas de base das quais a reforma agrária vinha em primeiro lugar. A extraordinária mobilização dos camponeses lhes permitia, pela primeira vez, organizar-se em sindicatos. 

Uma parte da Igreja Católica apoiava as reivindicações da base, seja por meio do Movimento de Educação de Base (O MEB) seja notadamente através da Ação Católica e suas diversas ramificações, das quais a JUC (Juventude Universitária Católica), a JOC (Juventude Operária Católica) e a ACO (Ação Católica Operária, para adultos).

Os estudantes, organizados na UNE (União Nacional dos Estudantes) , desempenhavam um papel muito ativo. Animados por um traço explosivo dessa conjuntura, a JUC  ia mesmo além, à medida que radicaliza suas relações com as classes populares, rompendo com a hierarquia e comprometendo-se com a fundação de uma organização revolucionária- Ação Popular (AP) , de inspiração Maoista.

A direita não fica indiferente de modo algum. Ao estabelecer uma longa ditadura, o golpe de Estado expressa muito bem a conspiração da grande burguesia em conluio com militares, tanto no plano nacional, quanto na escala internacional. Institucionalizando a repressão, a ditadura militar conseguiu desmantelar, quase todas as organizações populares, os sindicatos combativos e os partidos.

Apesar de tudo, durante certo período, a Igreja Católica, ou antes alguns de seus membros comprometidos com a base, representava para uma parcela significativa das classes populares o único espaço de organização possível. É sobretudo a partir daí, que observamos estender-se pelo país, as Comunidades Eclesiais de Base (as CEBs), formadas tanto por grupos de cerca de 30 membros, chegando até uma centena de pessoas pertencentes, ao mesmo tempo, tanto à base da Igreja Católica quanto à base da sociedade que, em nome de sua fé, se reúnem para orar, para ler a Bíblia, a partir de suas experiências concretas, e dos problemas sócio-económicos do quais é repleto seu quotidiano, tanto nas cidades quanto na zona rural.

Por volta do final dos anos 70 ou no início da década atual, estimava-se haver cerca de 70.000 Comunidades Eclesiais de Base, estimando-se em cerca de 4 milhões de pessoas, cuja maioria morando no campo. A essa época, já se experimentava um certo esgotamento do regime militar : já se escutava falar então de uma “abertura” e semelhantes expressões, ainda que a repressão ainda estivesse presente de diversas formas.

Todavia, observa-se desde então o crescimento de toda uma vasta rede de organizações populares. Limitando-nos apenas a uma simples referência, 1978 representa a retomada, em novo estilo de lutas sociais.

Ao redor das greves no ABC, em São Paulo e outros lugares, pela primeira vez desde a institucionalização do terror, as classes populares retomavam suas organizações de base, dentre as quais : 

  • O movimento contra a carestia

  • Os movimentos de organização das mulheres ;

  • As associações de bairros de favelas ;

  • A organização dos negros e dos povos originarios ;

  • O movimento pela reforma agrária ;

  • E nela, o papel de animação das Comunidades Eclesiais de Base ;

  • O processo de formação do PT e da CUT ;

  • O movimento pelo restabelecimento das eleições presidenciais pelo voto direto - as Diretas-já-, etc.


Todavia, a analisar esses movimentos, limito-me apenas a alguns traços concernentes às Comunidades Eclesiais de Base, sua contribuição a esses movimentos, em particular ao movimento pela reforma agrária.

A luta pela terra e pela reforma agrária, inscreve-se entre aquelas mais antigas e as mais destacadas, cheias de um grande sentido simbólico. Remonta ao inicio da colonização, à qual se opuseram os indígenas e os africanos reduzidos ao regime de escravidão. Nessas lutas de resistência, tornaram-se célebres os “Quilombos”, notadamente o de Palmares, encabeçado por “Zumbi”, que conseguiu travar todo um século de lutas de resistência, assim como a resistência oposta pelos indígenas, por exemplo quando da República dos Guaranis.

Durante os séculos seguintes, haveria outros movimentos outros movimentos camponeses, portadores  de certa inspiração milenarista ou religiosa entre os quais figura o movimento de Canudos, Caldeirão, Contestados, em que a terra e a forma de organização comunitária constituíam os elementos essenciais.

As ligas camponesas, fundadas na metade dos anos 50, são testemunhas de como os camponeses sem terra se dedicavam à luta pela reforma agrária, “na lei ou na marra”.

Desde a institucionalização do terror, temos dificuldades de precisar o número de vítimas caídas pela reforma agrária. E no entanto, a ditadura militar, só conseguiu retardar, mas não impedir esse processo. Com efeito, assim como outros movimentos, tiveram que renascer das cinzas, o sangue de centenas de camponeses - des hommes et des femmes- e seus aliados assassinados ao longo desses anos, não cessam de irrigar a terra e a disposição, de milhões de camponeses e seus aliados, de honrar o sangue derramado, pela realização da reforma agrária.

A retomada do movimento pela reforma agrária se intensifica a partir do terceiro congresso nacional dos trabalhadores na agricultura, convocado pela CONTAG - a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura - realizado em Brasília em 1979. Desde então, e sobretudo a partir da fundação da CUT, em 1983, e do Movimento dos Trabalhadores sem Terra - o MST, vai se registrar um número crescente de ocupação de latifúndios.

Bem no coração dessas lutas, travadas pelo MST, com o apoio de outras organizações da sociedade civil, aí encontramos milhares de cristãos e de agentes de pastoral, inclusive numerosas religiosas, pertencentes seja às Comunidades Eclesiais de Base, seja à Comissão Pastoral da Terra - a CPT - seja ainda à ACR - Ação dos Cristões no Meio Rural…

Não é por acaso que entre as centenas de vítimas assassinadas nos conflitos da terra, aqueles constituíam uma parte considerável, também não é por acaso, que não poucos documentos e de estudos do MST sejam co-editados por organizações cristãs, tais como o CEPIS - Centro de Educação Popular do Instituto Sedes Sapientiae, em São Paulo, cujo trabalho consiste também em publicar textos didáticos de subsídios à reflexão e à formação dos animadores e dos militantes do movimento. Dentre os textos já publicados, encontramos “Socialismo e Cristianismo” - escrito por Frei Betto ; “Concepção Dialética de Educação Popular” - Oscar Jara ; “Educação popular na formação das lideranças” - Pedro Pontual ; “Reflexão sobre a violência no campo”, e outros.

A editora Vozes em Petrópolis, pertencente aos franciscanos, ligados à teologia da libertação acaba de publicar um livro - O Massacre da Fazenda Santa Elmira, escrito por Frei Sérgio Görgen, sobre as violências cometidas contra mais de duas mil pessoas que haviam ocupado a fazenda Santa Elmira, no Rio Grande do Sul em março passado.

Mas afinal de contas todos esses cristãos organizados, seja nas Comunidades Eclesiais de Base, seja na CPT e em outros movimentos eclesiais, articulados a outras tantas organizações populares, sindicais e políticas, o que buscam ? Qual é seu objetivo, no que diz respeito ao projeto histórico ? 

Apesar das contradições ainda presentes, poderíamos resumir, afirmando que se trata de um movimento que articula suas motivações religiosas às lutas populares, à medida que tais cristãos se mostram interessados em conhecer criticamente a sociedade circundante para transformar-la, não de acordo com a este ou aquele modelo de sociedade de caráter religioso, mas de acordo com um projeto comum de sociedade, a ser construído democraticamente, por e em função dos interesses das classes subalternas, compostas por cristãos e não cristãos, crentes e não crentes.

Com relação às conquistas, que tratarei de resumir em seguida, não poderiam ser asseguradas, senão graças à interação dialética e pela participação dos cristãos nos movimentos das classes populares. E sobretudo graças ao seu engajamento nas lutas junto com as organizações populares leigas, que se deve atribuir as conquistas seguintes 

  • A desconfiança e, até em alguns casos, a ruptura com os velhos métodos de ação e de tomada de decisão a partir da determinação de um grupo de iluminados que seja;

  • O despertar de uma nova concepção e de uma nova prática democrática;

  • A desmistificação do papel individual do líder, em favor de uma gestão coletiva, eleita e controlada pelas bases do movimento;

  • O zelo por manter a autonomia relativa das organizações populares, no sentido da rejeição a tornar-se correia de transmissão de partidos, dos sindicatos, do Estado, da Igreja, etc;

  • A tomada de consciência eminentemente política das lutas, a serem travadas de maneira democrática com o sindicato e o partido comprometidos com essas lutas, de sorte que todos esses agentes de transformação participem deste processo com a mesma intensidade, na construção de um projeto comum de sociedade ;

  • O despertar da consciência no que diz respeito às suas dinâmicas interações da natureza dos fatos políticos, econômicos e culturais (de sexo, de raça e de nação…)


No entanto, é preciso relativizar o alcance de todos esses movimentos, inclusive naturalmente as organizações cristãs simpáticas à teologia da libertação. É preciso, portanto, tomar em consideração seus limites para não sucumbir à tentação de idealisá-las. Agora, vou passar para minha última consideração.


2. LIMITES DAS ORGANIZAÇÕES POPULARES


Não é preciso dizer que os movimentos populares se acham também cercados dos mais diversos limites. Apenas para evocar apenas o aspecto eleitoral, constatamos que, no decorrer dos últimos 12 meses, um fenômeno curioso. Ei-lo : justamente após as eleições de novembro de 1988, em que o PT conseguiu eleger centenas de vereadores e 36 prefeitos nas cidades mais importantes do País, a imprensa brasileira enfatizava o ascenso da esquerda e a preferência pelo PT, tornando-se o preferido entre os partidos de esquerda.

Uma vez lançados, Brizola (PDT) e Lula (PT) restaram os primeiros colocados nas pesquisas eleitorais. No entanto, alguns meses depois, à medida que os candidatos da direita eram lançados, vai mudar o cenário eleitoral : Lula cai nas pesquisas eleitorais, passando de 15% ou 18% a 6%.

Pior : é o candidato Fernando Collor de Mello, o garoto mimado da ditadura militar e da Rede Globo, que dispara nas pesquisas eleitorais. Mesmo sem estar ligado a nenhum partido político, no sentido sociológico do termo, ele passa de 5% das intenções de voto, no começo do ano, a quase metade das intenções de voto, enquanto ele não parava de se apresentar como campeão da moralidade, o “caçador de marajás”...

E por último, há apenas uma semana, isto é a cerca de quinze dias antes do primeiro turno das eleições presidenciais, tomamos conhecimento de que um dos mais de vinte candidatos - o do PMB, ligaod ao Presidente Sarney, havia renunciado à sua condição de candidato, em favor de um famoso empresário, proprietário e apresentador de um canal de televisão (SBT), chamado Silvio Santos, que tinha forte influência sobre milhões de espectadores do seu famoso “Baú da felicidade”, pertencentes em geral às camadas mais pobres da população. É assim que muito se ouve falar do seu extraordinário desempenho nas pesquisas eleitorais.

Vou parar por aqui, colocando duas questões : 

  • Como é que podemos assistir a toda uma tomada de consciência e de mobilização dos movimentos populares e, ao mesmo tempo, constatar que uma vasta multidão acabe ficando de fora deste processo ?

  • Que condições tornam possível neste quadro de contradições, mesmo que nesta exposição eu só me tenha restringido ao aspecto eleitoral ?



*texto digitado por Alexandre Soares, Guilherme Bleu e Heloíse Bandeira Calado, aos quais o autor expressa seus agradecimentos

terça-feira, 17 de dezembro de 2024

Intérpretes do Brasil (IX): A literatura militante de Lima Barreto

 Intérpretes do Brasil (IX): A literatura militante de Lima Barreto


Alder Júlio Ferreira Calado


A nona figura que escolhemos para dar prosseguimento à série “intérpretes do Brasil”, nos remete à Afonso Henriques de Lima Barreto, cujo nascimento se dá 7 anos antes do 13 de Maio de 1888 (dia celebrado como o da “Abolição da Escravatura”). A vida e a obra de Lima Barreto constituem uma fonte emblemática de interpretação da sociedade brasileira, ao longo de nossa trajetória histórica, ainda que sua obra se inscreva no primeiro período republicano. 


Todo um conjunto de elementos de sua vida e de sua obra ressoa como uma preciosa fonte literária de nossa história. Cada vez mais, vem se firmando a tendência, de historiadores e historiadoras, bem como de pesquisadores de outras áreas, que recorrem a escritos literários como fonte de pesquisa. Também no caso específico de Lima Barreto, o fenômeno se reproduz, a exemplo dos seus principais biógrafos, Francisco de Assis Barbosa (cf. A Vida de Lima Barreto, 1952), Lilia Schwarcz (Triste Visionário, Companhia das Letras, 2017), Beatriz Resende (cf. Lima Barreto e o Rio de Janeiro em fragmentos, autêntica, 2016.), Gabriel Chagas (cf. Pérolas Negras na periferia, editora pontes, 2023)”, entre outros.


Na literatura militante protagonizada por Lima Barreto, grita forte e altissonante seu lugar de fala, principalmente pelo modo apaixonado e apaixonante com que encarava os preconceitos e estigmas de todo tipo, observáveis em sua época - e ainda hoje! Com efeito, não obstante seu relativamente breve percurso existencial - ele faleceu aos 41 anos -, Lima Barreto se entrega, de corpo e alma, ao enfrentamento rigoroso da ideologia, dos valores, dos costumes dominantes em sua época: o racismo estrutural, os preconceitos de classe, de raça, patriarcais, explícita e implicitamente voltados, como ainda hoje, contra os pobres, os pretos, os periféricos, dos quais, Lima Barreto se fez um intérprete exemplar. Em todos os seus escritos - artigos, contos, crônicas, romances, etc, Lima Barreto dá provas abundantes de um grande combatente contra a hipocrisia então reinante.


Ao consultarmos - ontem como hoje - as páginas de jornais da mídia hegemônica constatamos as formas mais sutis e as mais gritantes de que se revestem as relações cotidianas entre ricos e pobres, brancos e não-brancos, os ditos cristãos e os crentes de outras religiões especialmente as de matriz afro. Contra todos os estigmas então dominantes, Lima Barreto se faz crítico contumaz.


Afonso Henriques de Lima Barreto (13 de Maio de 1881-1922) era filho de Amália Augusta, escravizada alforriada, professora do Ensino Primário, e de João Henriques de Lima Barreto, tipógrafo da imprensa do Império, filho e neto de escravizados, gozando de simpatia por parte do Visconde de Ouro que patrocinou os estudos de Lima Barreto em escolas de referência do Rio de Janeiro. Muito cedo, aos sete anos, Lima Barreto perdeu sua mãe, Amália Augusta, em consequência de sequelas do parto de Lima Barreto. Ao terminar o Ensino Médio tenta ingressar, diversas vezes, em um curso universitário (À época somente dois eram oferecidos: o de e medicina e o de engenharia), tendo finalmente conseguido ingressar no curso de engenharia, ao qual pouco depois se sente obrigado a renunciar, por razões econômicas, tendo que trabalhar, em razão das dificuldades econômicas enfrentadas, pois seu pai passa a viver internado no manicômio. Submetido a concurso público, passa a trabalhar na então Secretaria da Guerra (hoje seria Ministério da Defesa), assumindo como função o cargo de amanuense (redigindo e copiando avisos e portarias ministeriais). Seu pai, quando Lima Barreto tinha 21 anos e frequentava o curso de engenharia, não tardaria em manifestar sinais de “neurastenia”, apresentando sintomas que o levaram a ser internado em um “hospital para alienados”, sendo poucos anos depois o próprio Lima Barreto a ser aí internado, por duas vezes, duras experiências sobre as quais reflete em seu último livro “Cemitério dos Vivos”, que restou inacabado, pois, Lima Barreto veio a falecer em 1922. 


Lima Barreto ao longo de sua vida sempre se mostrou um iconoclasta, um intrépido crítico dos costumes então dominantes, a algum dos quais,  ser humano inacabado ele próprio não escaparia: também Lima Barreto conviveu com atitudes preconceituosas, a exemplo de suas críticas contundentes dirigidas a João do Rio, personalidade que apresentava “comportamento homossexual”.


  • Lima Barreto, em razão de condições favoráveis gozadas pela sua família, desde cedo foi desenvolvendo suas potencialidade literárias, de percepção crítica, de análises percuciente, de observador detalhista e de escritor perspicaz, registrando, seja em crônicas, seja em contos, seja em romances (“Roman à clé”), seja em folhetins, seja em livros e artigos, entrevistas, etc, um amplo repertório dos modos de sentir, de pensar, de agir e de comunicar da sociedade do seu tempo, de maneira a identificar e denunciar todo um cenário de práticas, classistas e racistas patriarcais, recheadas de hipocrisia, de mentiras, de insensibilidade contra a população negra da época, que constituía a enorme maioria do País, fazendo-o amiúde com pretextos religiosos (ambiência de grande influência “cristã”  e científicos predominância das teses positivista e do Darwinismo social/Determinismo racial ).

  • Considerando sua vida agitada e conturbada, resulta impactante observar a contundência da militância literária exercida por Lima Barreto, cujo período de intensa produção se dá entre 1909 e 1921. Tendo em vista que teve que enfrentar alguns períodos de interrupção, seja por conta de sua dependência alcóolica, seja pelas duas internações que teve que amargar, importa estimar uma produção literária de 10 anos, o que representa pouco tempo em relação a diversas figuras de referência, a exemplo de Machado de Assis que viveu 69 anos. Eis um apanhado de suas obras:


Romance
Recordações do Escrivão Isaías Caminha - 1909
Triste Fim de Policarpo Quaresma - 1915
Numa e a Ninfa - 1915
Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá - 1919
Clara dos Anjos - 1948
O Cemitério dos Vivos - 1953
O Subterrâneo do Morro do Castelo - 1997

Sátira
As Aventuras do Dr. Bogoloff - 1912
Os Bruzundangas - 1923
Coisas do Reino do Jambom - 1953

Conto
Histórias e Sonhos - 1920

Artigo e crônica
Bagatelas - 1923
Feiras e Mafuás  - 1953
Marginália - 1953
Vida Urbana - 1953
Toda Crônica - 2004 - 2 volumes

Memórias
Diário Íntimo - 1953

Crítica literária
Impressões de Leitura - 1956

Correspondência
Correspondência - 1956

Nas últimas décadas, temos a alegria de constatar novos estudos e pesquisas,tematizando os mais variados aspectos do legado de Lima Barreto. Dentre os autores e autoras que se tem revelado mais empenhados nesta empreitada, ressaltamos, além de diversas teses e dissertações, iniciativas relevantes de figuras tais como Lilia Schwarcz, Gabriel Chagas, Beatriz Rezende, para mencionar apenas três exemplos, sempre em colaboração com diversos grupos de estudos e pesquisas sobre Lima Barreto.

O que aprendemos com Lima Barreto?

Considerando os destinatários alvo desta série de intérpretes do Brasil - nossas organizações de base -, nosso propósito maior segue sendo o de estimular o exercício contínuo da memória histórica dos explorados e oprimidos de nossa e de outras sociedades, como um incessante instrumento de combate e superação do atual modo de produção, de consumo e de gestão societal, em busca de irmos construindo as condições necessárias a este processo. Daí a relevância de também aprendermos com Lima Barreto e sua militância literária, reconhecendo sua força transformadora, presente em diversos pontos do seu legado, tais como: 

  • Sua refinada sensibilidade perceptiva, a partir do chão do cotidiano, das enormes contradições vividas pela sociedade do seu tempo, que ele ousa denunciar, em seus variados escritos;

  • Para tanto, não teme desagradar “aos grandes do seu tempo”, buscando ser fiel aos fatos e acontecimentos descritos em seus contos, em suas crônicas, romances e outros escritos; 

  • Lima Barreto empenhou-se corajosamente em desnudar as mazelas, a hipocrisia, os vícios revestidos de virtudes, o silenciamento em face dos horrores de sua época: as graves injustiças sociais, as formas de exploração e opressão a que os negros viviam submetidos, os privilégios dos ricos e da classe média, protegidos pelas instâncias do Estado toda sorte de preconceitos contra a população negra e, por outro lado, também ensejando sonhos alternativos de um visionário;

  • Em seu “Triste fim de policarpo Quaresma”, encontramos uma feliz síntese desses contrastes que teve que enfrentar, a duras penas; 

  • Em “Recordações do escrivão Isaías Caminha”, igualmente, nos deparamos com importantes registros dos desafios enfrentados, cotidianamente, pelos negros para se afirmarem numa sociedade de profunda raízes escravocratas; 

  • Em “Os Bugigangas” Lima Barreto segue compartilhando desventuras e sonhos de uma terra habitável;

  • Em breve, é no conjunto de seus escritos, que Lima Barreto deixa perene marca de sua crítica social, que, para além de sua época, hoje continua bastante atual. 


João Pessoa  17 de Dezembro de 2024.