Hoje, 11 de Novembro quando começamos a rascunhar este texto sobre Álvaro Borges Vieira Pinto, estaria completando 115 anos. Tocados pela notícia do recente Manifesto assinado por diversas de nossas Organizações de Base - Movimentos Populares, organizações sindicais e partidárias, entre outras, expressando sua contrariedade diante da tendência do Governo, de ceder às pressões da Direita de porém “no lombo dos trabalhadores” os custos da famigerada Lei do Teto de Gastos apelidada de “Arcabouço fiscal”, alegra-nos retomar o exercício da memória histórica dos explorados e oprimidos, dando sequência aos estudos de nossos bons clássicos, desta feita rememorando a contribuição heurística de Álvaro Vieira Pinto.
Ele nasceu em Campos dos Goytacazes, Município do Rio de Janeiro, em 11 de Novembro de 1909, filho de uma família de ascendência Portuguesa, de 3 filhos e uma filha. Álvaro Vieira Pinto teve um itinerário formativo marcadamente Heterócrito. Tendo passado inicialmente pela formação em Medicina, e aí atuado, como médico e pesquisador, durante vários anos, ele vai incursionar por múltiplos e distintos campos de saberes: pela Filosofia, pela Antropologia, pela Cultura, pela Linguística, pela Ciência, pela Matemática, pela Física, pela Demografia, pela Educação, pela Tecnologia, pela Sociologia… exerceu, nestes campos, em tempos distintos a função de exímio pesquisador, além de docente e tradutor, conhecedor que era de diversos idiomas.
Após vários anos de trabalho no campo da Medicina, investigando a temática do câncer, em 1949, segue para a França, dedicando-se à apresentação de um trabalho, em Filosofia, tematizando a Cosmologia em Platão, oque resultou na publicação da tese intitulada “Ensaios sobre a dinâmica da cosmologia de Platão” (1049). De volta ao Brasil, assumiu a docência em História da Filosofia, na então Universidade do Brasil, hoje UFRJ. Foi, porém, a partir de 1955, com a fundação do Instituto Superior de Estudos do Brasileiros (ISEB), que sua atuação vai adquirir crescente notoriedade, seja como Chefe do Departamento de Filosofia do ISEB (1956-1961), seja como Diretor Executivo do ISEB, entre 1961 e 1964.
O ISEB constituiu uma iniciativa reconhecidamente fecunda. Órgão vinculado ao Ministério de Educação o ISEB correspondia ao esforço público de elaboração crítica de um projeto desenvolvimentista autônomo, inspirado em uma concepção de Nação soberana (sem xenofobia), confiado a uma seleta equipe de intelectuais de perfil variado - integrava em seus quadros, desde liberais e marxistas, tais como Cândido Mendes de Almeida, Hélio Jaguaribe, Roberto Campos, Roland Corbisier, Inácio Rangel, Álvaro Vieira Pinto, Alberto Gueiros Ramos, Nelson Werneck Sodré . Em uma conjuntura de crescente efervescência política, especialmente na transição do Governo Juscelino Kubitschek para o Governo Jânio Quadros (substituído, após sua renúncia, pelo Vice-Presidente João Goulart) os intelectuais liberais foram cedendo terreno ao grupo considerado mais próximo da perspectiva marxista.
A vasta produção bibliográfica de Álvaro Vieira Pinto situa-se principalmente entre as décadas de 1960 e 1970. Dela trataremos de destacar as que mais impacto produziram. De 1956 data a publicação do seu “Ideologia e desenvolvimento Nacional”, trabalho no qual o autor desenvolve as premissas sobre as quais ele assentava sua proposta de desenvolvimento nacionalista, destituída de rasgos xenofóbicos. Vivíamos, então, sob o Governo do Presidente Café filho, apenas um ano antes do Governo Juscelino Kubitschek (1956-1960), era caracterizada por enorme empolgação desenvolvimentista, com o lema “Brasil, 50 anos em cinco”, tempo marcado por crescente investimento de capitais transnacionais a exemplo do que era feito na indústria automobilística. Nesta obra, Álvaro Vieira Pinto cuidava de demonstrar a relevância fundamental de se ter claras as diretrizes para a edificação de um sólido e autônomo desenvolvimento nacionalista, que partisse de um profundo conheciemnto e valorização de nossas potencialidades, enquanto Nação.
Cumpri observar o aprofundamento crítico seguido por Àlvaro Vieira Pinto, de tal sorte que, já em 1960, ele produz um de seus mais fecundos trabalhos: “Consciência e realidade Nacional”, obra em 2 volumes excedendo mil páginas. (o primeiro volume tem 406 páginas, enquanto o segundo volume totaliza 636), ainda dos primeiros anos da década de 1960 datam seus livros “A Questão da Universidade”, (1962), “Por que os Ricos não fazem Greve?” (1962), ambas as produções ecoando claramente os anseios e clamores pelas reformas de base, assinalando também o ascenso dos movimentos populares, a exemplo das lutas sindicais, do movimento estudantil e de setores progressistas Católico e Protestantes.
Não foi certamente por acaso que, justamente em julho de 1962, se realizou, em Recife, a famosa “Conferência do Nordeste” promovida pelo Setor Social de mais de uma dezena de Igrejas Protestantes,cujo o tema debatido durante oitos dias, foi “Cristo e a Revolução Social Brasileira”. Assim, compreende-se melhor o empenho de Álvaro Vieira Pinto, inclusive quanto ao Diretor Executivo do ISEB, quando ousou escrever o texto “Porque os ricos não fazem Greve?”, bem como o texto “A Questão da Universidade”, fazendo ressonância de sua conferência pronunciada a convite dos estudantes da UNE (União Nacional dos Estudantes), em um tempo em que Darcy Ribeiro era o Reitor da UnB (Universidade de Brasília).
Com o acirramento crescente dos conflitos, entre as demandas populares pelas reformas sociais e o aumento da reação das forças dominantes, o Golpe de Estado de 1964 veio a se instalar em um de Abril de 1964, daí resultando toda sorte de repressão contra as forças populares e seus aliados, inclusive Álvaro Vieira Pinto, que após alguns dias de clandestinidade passados em Minas Gerais, buscou exílio na Iugoslávia, por um ano, e em seguida, com o apoio também de Paulo Freire (já exilado no Chile), Álvaro Vieira Pinto foi exilar-se, no Chile, até 1968, contando inclusive com a acolhida afável de Paulo Freire, que o chamava de “Mestre Brasileiro”. De retorno ao Brasil antes do AI-5, foi forçado a um espécie de exílio em seu próprio país, tendo que sobreviver em um deprimente anonimato - sob Pseudônimo, sobreviveu traduzindo textos para a Editora Vozes, tendo continuado a registrar seus manuscritos, posteriormente publicados na forma de livros.
Elementos principais da inventividade de Álvaro Vieira Pinto
Prosseguindo a destacar relevantes traços da produção bibliográfica de Álvaro Vieira Pinto a partir da sequência de suas obras principais, trataremos de realçar conceitos-chave, temas geradores e pistas ousadas nelas contidas. Em “Ciência e existência”, cujos manuscritos, datados desde 1969, datilografados por sua esposa, só vinheram a público pela Editora Contraponto, em 2005, o autor se revela com extraordinária originalidade, situando-se desde a perspectiva dos países periféricos. Nesta obra, Álvaro Vieira Pinto propõe uma abordagem crítica acerca da relação dialética entre Ciência e Existência, a rememorar como, no processo de humanização, os seres humanos se empenham, em coletividade, em produzirem sua existência, buscando transitar da consciência ingênua à consciência crítica, itinerário que lhes permite desenvolver, de modo orgânico, um conjunto de saberes, desde os mais primitivos ao saber científico, enfatizando, porém, sua relação dialética, em que não tem lugar qualquer valoração discriminatória em prejuízo dos saberes populares e outros saberes pré científicos.
Outro texto relevante produzido por Álvaro Vieira Pinto só viria a lume em 1982. Trata-se do seu “Sete lições de Educação de Adultos”, elaborado em sua experiência de exílio no Chile, na convivência com Paulo Freire. Nele, o autor lida com diferentes aspectos referentes a Educação de jovens e adultos. Discute a noção de Educação, sua historicidade, seu objeto, seus protagonistas, ressaltando em especial os desafios concernentes a educação de jovens e adultos.
“O conceito de tecnologia” constitui uma primorosa elaboração de análise histórico filosófica, sempre na perspectiva dialética, que o autor produziu nos inícios do anos 70, mas que restou desconhecido por décadas, tendo sido publicado somente em 2005. Trata-se de uma publicação póstuma - Álvaro Vieira Pinto faleceu em 1987 -, composta de dois alentados volumes, cada qual distribuído em duas partes, em que o autor se empenha em navegar, de modo original e competente, pelos meandros da tecnologia, abordando, além das noções de “técnica” e “tecnologia”, e de modo histórico, as complexas relações entre os seres humanos e a máquina, através dos tempos. Ao longo das quatro partes em que o livro está dividido, Alvaro Vieira Pinto cuida inclusive de desmontar interpretações segundo as quais conceitos como “Era da tecnologia” (ou “Era da informação” e similares) sejam algo novo, na história da humanidade, por quanto, desde os seus inícios, para produzirem sua própria existência, os seres humanos têm recorrido a instrumentos ou máquinas, nos limites de suas possibilidades históricas.
Outra publicação póstuma, de autoria de Alvaro Vieira Pinto, foi a que se intitula “Sociologia dos Países Subdesenvolvidos”, escrito ainda nos anos 70, mas só publicado em 2008. Como indica seu título, trata de tecer uma análise crítica sobre a natureza histórico social do subdesenvolvimento, de modo a desmascarar as injunções concretas, repletas de premissas falseadoras que as relações históricas acabam sedimentando os destinos socioeconômicos tanto dos países ricos quanto dos países subdesenvolvidos
A que nos convida Álvaro Vieira Pinto?
Ao destacarmos, ainda que superficialmente, aspectos do legado de Álvaro Vieira Pinto, não conseguimos evitar um sentimento de indignação, diante do quase esquecimento, por longo tempo, desta figura genial. Especialmente as novas gerações incumbe a tarefa de seguirem cavocando as obras de Alvaro Vieira Pinto, tanto as publicadas quanto seus manuscritos ainda não vindos a lume.
Não é a toa a referência que Paulo Freire fazia ao amigo Alvaro Vieira Pinto, ao trata-lo como “mestre”. Com efeito, muito dele ainda temos a aprender. Seu sólido compromisso com a busca dos saberes, sempre voltada ao serviço dos injustiçados, com o seu fascínio pela luta incessante de transformar “Massa” em “Povo”, servindo-se do instrumental dialético e seus conceitos básicos de Totalidade, de relacionalidade, de historicidade, de movimento, entre outros.
Impactam-nos, ainda, sua dedicação, sua persistência e sua sede de saber, que o fariam circular, de modo orgânico, pelos mais diferentes campos de saberes, do que resulta uma lista ampla de conceitos por ele trabalhados, principalmente conceitos tais como “Nação”, “Desenvolvimento”, “Subdesenvolvimento”, “Consciência”, “Consciência ingênua”, “Consciência crítica”, “Ideologia”, “Cultura”, “Educação”, “Técnica”, “Tecnologia”, e tantos outros.
João Pessoa, 15 de novembro de 2024