quarta-feira, 30 de outubro de 2024

Intérpretes do Brasil (III): Clóvis Moura e sua análise histórico-dialética da formação de nossa sociedade

 Intérpretes do Brasil (III): Clóvis Moura e sua análise histórico-dialética da formação de nossa sociedade


Alder Júlio Ferreira Calado 


Na sequência da série “Intérpretes do Brasil”, aqui focamos a contribuição seminal de Clóvis Moura, destacando a relevância de suas pesquisas embasadas no referencial marxista histórico-dialético de nossa formação social. Tal como nos textos precedentes, também neste, iniciamos por um breve quadro sinótico de natureza biobibliográfica, para em seguida, fornecer alguns elementos de seu legado teórico metodológico de interpretação da formação social brasileira. Ao final, cuidamos de ressaltar os ensinamentos que avaliamos mais relevantes para a formação da consciência de classes dos militantes (mulheres e homens) de nossas organizações de base, especialmente os Movimentos Sociais Populares.  


Elementos bibliográficos da trajetória de Clóvis Moura 


Clóvis Steiger de Assis Moura (1925-2003) nasceu em Amarante, no Piauí, filho de pai negro, funcionário público, inspetor da Receita  Federal, e de mãe branca, neta de um membro da nobreza austriaca (donde o sobrenome Steirger) era, por tanto, alguém de classe média, cercado de condições favoráveis ao avanço nos estudos. 


Foi assim que, dada a condição profissional do pai (funcionário público), a família vai mudar para outros lugares. No Rio Grande do Norte, Clóvis Moura faz o seu curso secundário, em Natal, no Colégio Diosesano Santo Antônio, no qual participou ativamente das atividades literárias do Grêmio Estudantil, em cujo periódico publica um artigo  - “Libertas quae sera tamen”, lema da Inconfidência Mineira, prenunciando desde então (aos 14 anos), sua vocação de Jornalista. por volta dos 17 anos, a família muda de novo, desta vez para Salvador-BA, ainda que por um breve período, suficiente para entabular relações com figuras da intelectualidade baiana, transferindo-se para Juazeiro, no sertão baiano, sem haver concluído o curso de Direito, mas dando continuidade às suas pesquisas sobre o lugar do Negro na formação social brasileira.


Ao mesmo tempo, Clóvis Moura continuou a criar laços com diversas figuras de intelectuais, ligados ao PCB (Jorge Amado, Carlos Drummond de Andrade, Caio Prado Júnior,  Astrogildo Pereira, Nelson Werneck Sodré entre outros), bem como personagens não - marxistas, consideradas de referência no âmbito da crítica literária, inclusive pelo fato de que ele também se interessava e escrevia sobre outros pensadores brasileiros, a exemplo de Euclides da Cunha, a essas figuras de interlocutores, Clóvis Moura recorria para intercambiar ideias sobre a sua produção literária e política. De 1942 a 1949, Clóvis Moura manteve-se na Bahia, circulando entre Juazeiro e Salvador, contribuindo para diversos jornais da região, inclusive no jornal “O Momento”, ao tempo em que aprofundava suas relações com figuras dirigentes do PCB, tornando-se cada vez mais conhecido pelos seus talentos de escritor e de poeta.


 Crescentemente tocado pela causa negra, cuidou de desenvolver suas pesquisas nesta área. Certa vez, em carta endereçada a Caio Prado Júnior, consultou sobre o que estava pesquisando, em busca de uma melhor compreensão dos negros na historiografia brasileira. Em resposta, recebeu palavras de certo desestímulo quanto a prosseguir em suas pesquisas, tendo sido aconselhado por Caio Prado a enveredar por outro caminho de pesquisa, sendo aconselhado a perseguir o tema da ocupação dos Negros, no sertão e nas comunidades ribeirinhas. Caio Prado Júnior, contudo, sugeriu - lhe, quanto às suas pesquisas sobre as questões de Negritude recorrer a Edison Carneiro. No entanto, sem deixar de fazer contatos com Edison Carneiro, o integrante do PCB de então, Clóvis Moura seguiu seu próprio caminho, aprofundando suas pesquisas sobre o papel da condição negra na formação social do Brasil.


Em um tempo em que Caio Prado Júnior figurava como uma das principais referências da teoria marxista no Brasil, inclusive graças ao seu famoso “Formação do Brasil Contemporâneo”, e pertencendo ao mesmo partido (PCB),  Clóvis Moura mostrou-se bastante ousado em prosseguir firmemente suas pesquisas, de sorte que, em 1959, ele publica seu famoso “Rebeliões da senzala: quilombos, insurreições, guerrilhas”. Importa lembrar que já se tendo mudado para São Paulo, e sendo conhecido por Caio Prado Júnior, proprietário (ou - coproprietário junto com Monteiro Lobato) da editora Brasiliense, e já tendo Clóvis Moura pronto seu livro “Rebeliões da Senzala”, em meados dos anos  50, ele não conseguiu convencer a Caio Prado Júnior de publicar seu livro, que acabou saindo por Edições Zumbi, somente em 1959. 


Clóvis Moura forjou-se como um autodidata, não tendo concluído um curso acadêmico. sempre incursionando pelos campos da História, da Sociologia, do Jornalismo, da Literatura, da Poesia, ele vai aprimorando cada vez mais sua condição de escritor, sendo autor de 26 livros e outros textos de sua lavra. Dentre seus principais livros, permitimo-nos destacar os seguintes: 

  • “Rebeliões da Senzala: quilombos insurreições e guerrilhas” (1949) 

  •  “O Negro de Bom Escravo a Mau Cidadão” (1977

  •  “A sociologia posta em questão” (1978)

  • “Diário da Guerrilha do Araguaia” (1979)

  • “Os Quilombos e a Rebelião Negra” (1981)

  • “Brasil: as raízes do protesto negro” (1981)

  •  “Dialética Radical do Brasil Negro” (1984)

  • “Sociologia do Negro Brasileiro” (1988)

  • “Historia do Negro Brasileiro” (1989)

  • “As injustiças de Clio: o negro na historiografia brasileira’ (1990)

  • “Dialética Radical do Brasil Negro” (1994)

  • “Sociologia do Negro” (1998)

  •  “Dicionário da Escravidão Negra no Brasil” (2023)

  • “Dicionário da escravidão negra no Brasil” (2004)

Ao mesmo tempo, tratou de combinar organicamente sua condição de pesquisador e de intérprete da realidade social brasileira, pela via marxista do materialismo histórico-dialético, com uma intensa militância, seja no âmbito partidário (gozando de muita consideração dos dirigentes do PCB e, depois, do PCdoB, após 1962), seja como uma das principais referências do Movimento Negro Unificado (MNU), seja na militância como jornalista, tendo contribuído em diversos periodigos, a exemplo do jornal (“Última Hora,”, da  “Revista Princípios”, entes outros).


Clóvis Moura, deixando-nos um denso legado sempre combinando suas pesquisas teóricas com sua militância partidária, seus escritos, sua reconhecida contribuição aos Movimentos Populares, em especial ao Movimento Negro Unificado fez sua pasagem em 2003 aos 78 anos.


 Traços da contribuição teórico-prática do legado de Clóvis Moura


Clóvis Moura destaca-se pela sua extraordinária capacidade interpretativa da formação social brasileira e seu respectivo modo de produção, a partir de uma perspectiva histórica dialética. Tal é sua contribuição que, de certo modo, supera a leitura de brasil feita até por figuras  icônicas de sociólogos e historiadores tais como Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Júnior, à medida que 

  •  Sempre lidando com dados da História, da Sociologia, Antropologia, da literatura e de outros campos epistemológicos, seguindo a metodologia do Materialismo histórico-dialético, logra trabalhar as raízes mais fundas de nossa sociedade;

  •   Se disponha a apontar consideráveis lacunas ou equívocos de interpretação, na literatura especializada então dominante;

  •  Sempre trabalhando o movimento as interconexões as contradições histórico-sociológicas, consegue desvelar e descortinar relações sociais de novo tipo;

  •  Não se limita exclusivamente aos estudos teóricos, mas, como pesquisador militante, é capaz de cotejar dados aparentemente estabelecidos com relações apresentadas pelas forças sociais em confronto;

  •  Sempre apoiados em dados empíricos, lastreados em dados historiográficos, é capaz de descobrir a presença de fatos históricos não consideráveis suficientemente pelas abordagens. 



Neste sentido, Clóvis Moura, ao mesmo tempo em que toma em conta  as relações sociais entre as partes constitutivas ,  de nossa realidade também toma como foco a totalidade das relações em âmbito internacional, isto é não apenas analisa as relações sociais e econômicas ao interno do que se passava no Brasil Colonial (modo de produção escravista e depois capitalista), mas também trata de captar e analisar as relações internas em função dos interesses das forças sociais dominantes e dos Estados centrais do Capitalismo. Assim é que descobre que, por exemplo, oque se passa no Brasil não tem a ver com relações feudais, mas com o lugar específico do Brasil na divisão social do trabalho, no modo de produção capitalista.


Clóvis moura descobre, ainda, que o próprio processo de abolição da escravidão não se deu apenas em função das necessidades e dos interesses das classes dominantes e dos Estados centrais do capitalismo notadamente o Reino Unido mas também graças a uma sucessão de revoltas e insurreições, de “Quilombagem” de resistências (inclusive com assassinatos de senhores  e de capitães do mato e de fugas individuais e em grupos para os quilombos), estratégias postas em prática pelos escravizados sobretudo após a segunda metade do século XIX.


Ao contrário, por exemplo, de Gilberto Freyre, que sustentava a tese da “democracia racial”, Clóvis Moura tratou de comprovar a existência da luta de classes protagonizada pelos escravizados, desde o período colonial, estendendo-se ao processo de abolição e aos períodos seguintes.


Não obstante a relevância de seu legado bibliográfico, Clóvis Moura teve um reconhecimento relativamente tardio, possivelmente por conta de tratar-se de um “outsider” da Academia - Clóvis Moura era um pesquisador autodidata, forjado no árduo trabalho de pesquisa combinado com sua fecunda militância partidária (PCB e depois PCdoB) e no Movimento Negro Unificado (MNU). Sobretudo a partir dos anos 1970, todavia, passou a contar também com o reconhecimento público de intelectuais da Academia. Prova disto é, por exemplo, o fato de que a primeira edição de seu livro “Rebeliões da Senzala: quilombos insurreições e guerrilhas” (1949), fruto de suas pesquisas iniciadas ainda nos anos 1940, teve sua primeira publicação apenas em 1959, ainda sim com uma circulação bastante restrita. Somente a partir de sua segunda edição, na primeira metade dos ano 1970 é que ele passou a ser reconhecida mais amplamente, inclusive por conta de ter sido apreciado mas reconhecidamente primeiro, fora do Brasil, graças a referência elogiosa que obteve de Eugene Dominick Genovese em seu famoso livro “From Rebellion to Revolution” (1979). Desde então, passa a ser reconhecido também por diferentes figuras de intelectuais brasileiros. Além do próprio Caio Prado Júnior, Jorge Amado, Nelson Werneck Sodré, entre outros. Um de seus livros, “Os quilombos e a rebelião negra” (1981) foi, inclusive, publicado pela editora brasiliense, figurando na famosa coleção “Tudo é História”.


A par de sua intensa produção bibliográfica, percorrendo os campos da História, da Sociologia, da Antropologia, da Economia, da Literatura e da Poesia, cumpre ressaltar a enorme recepção que Clóvis Moura teve dos movimentos sociais populares, em especial do Movimento Negro Unificado.


O que aprendemos com Clóvis Moura?


Em um contexto extremamente desafiante para as forças sociais de transformação, que se sentem gravemente agredidas, inclusive no plano político - eleitoral, no Brasil e na América Latina em escala mundial, nossas organizações de base (populares, sindicais, da esquerda católica e protestante e partidárias) são instadas a vencerem sua letargia, retomando resolutamente o Trabalho de Base, no campo nas periferias urbanas, seja no plano organizativo, seja no âmbito da formação contínua, seja no campo da mobilização e das lutas. Eis a tarefa a ser assumida, diuturnamente, pelos nossos militantes - jovens, mulheres, homens, feministas, indígenas, comunidades quilombolas, camponeses  e camponesas, operários e operárias, estudantes, entre outros.


É neste sentido que a revisitação do legado teórico-prático de  Clóvis Moura, especialmente no que concerne à “Práxis Negra”, se mostra relevante e oportuna, principalmente pela sua solidez e pela fecundidade de sua análise dialética , na perspectiva Marxista del materialismo histórico-dialéctico, combinada, por isto mesmo, com sua práxis revolucionária militante, de intelectual orgânico das classes populares,  que trabalha as categorias “Classe” e “Raça”, direta ou indiretamente conectadas a tantas outras dimensões (econômicas políticas, culturais, de relações sociais de gênero, de espacialidade, geracionais, estéticas, literárias, de valores éticos, entre outras).


Aprendemos, ainda, com Clóvis Moura a tomar a sério o exercício da crítica e da autocrítica nas relações do cotidiano. Eis uma impactante ilustração: em um de seus escritos, “O Preconceito da Cor na Literatura de Cordel” (São Paulo: Resenha Universitária, 1976), ele trata de recomendar o exercício da autocrítica ao interno das classes populares, também elas sujeitas a introjetar e reproduzir valores da classe dominante, assim remetendo-nos ao conhecido alerta de Marx e Engels de que nas sociedades de classes, a ideologia dominante é a ideologia da classe dominante. 


Dentre tantos ensinamentos que podemos recolher do denso legado de Clóvis Moura, além dos acima-assinalados, ressaltamos o seu cuidado e o seu compromisso revolucionário consequente e em conformidade com o teor da Tese 11, elaborada por Marx como uma crítica dirigida a Feuerbach, de que “Os Filósofos interpretaram o Mundo, de diferentes maneiras. O que importa é transformá-lo”. 


João Pessoa 30 de Outubro de 2024             


quarta-feira, 23 de outubro de 2024

Ação de graças pela vida e obra de Gustavo Gutiérrez (1928-2024)

 Ação de graças pela vida e obra de Gustavo Gutiérrez (1928-2024)


Alder Júlio Ferreira Calado


Uma vida consagrada ao discipulado da Tradição de Jesus, eis o que testemunha o longo itinerário percorrido entre nós por Gustavo Gutiérrez, de cuja páscoa definitiva, ontem, 22/10/2024 tivemos notícia. Com saudade e esperança, associamo-nos à multidão de pessoas, grupos e comunidades da América Latina e de outros continentes, para render graças à Divina Ruah, fonte de vida, e ao próprio Gustavo Gutiérrez, ou seu denso e frutuoso legado como ser humano, como perseverante discípulo de Jesus e como teólogo seminal, comprometido com as causas libertadoras do Reinado de Deus, por Ele, inaugurado, anunciado e testemunhado.


Gustavo Gutiérrez, membro do Povo Indígena, nasceu em Lima - Peru, em 8 de Junho de 1928. Dos 12 aos 18 anos, foi acometido de uma osteomielite que lhe bloqueou os movimentos, o que não o impediria de seguir seus estudos e de participar de grupos da Ação Católica que muito contribuíram para sua trajetória vocacional e militância crítica. Tendo feito cursos de Filosofia, Psicologia e  Teologia, no Chile, e após sua ordenação presbiteral, em 1959, também cursou, em Lovaina - Bélgica, Ciências Sociais, doutorando-se em Lyon - França, em meados dos anos 80. 


Ao longo de sua trajetória, Gutiérrez fez questão de conviver perto dos pobres, na Comunidade Rímac, na periferia de Lima, combinando, de modo orgânico, seu crescente compromisso com a causa libertadora dos oprimidos e explorados com o contínuo aprofundamento na compreensão teórico - prática da realidade social em que vivem os pobres na América Latina e no mundo. Foi esta combinação também responsável por tornar - se a principal referência entre os fundadores da Teologia da Libertação, antes mesmo da publicação, em 1971, de seu icônico “Teología de la Liberación: perspectivas”, ainda hoje tido como principal marco da Teologia latino - americano.


De fato, juntamente com um seleto grupo de teólogos, do qual faziam parte: Ivan Illich (Cuernavaca, México), Segundo Galilea (Chile), Juan Luis Segundo (Uruguai), José Comblin (Brasil), Ana Flora Anderson, Frei Gilberto Gorgulho, Luis Alberto de Sousa (Brasil) e outros, que participaram dos encontros anuais realizados em Petrópolis (1964), em Cuernavaca (México, 1965), em Santiago (Chile 1976) em Montevideo (1967), em Lima e em outras Cidades. Gutiérrez foi um dos protagonistas das origens latino -  americanas da Teologia da Libertação, juntamente ainda a outras figuras de Teólogos protestantes, tais como Rubem Alves (cujo livro “Teologia da Libertação” data de 1968), Richard Shaull (em 1953, foi publicado seu conhecido livro “Cristianismo e Revolução Social”, tendo ele integrado um grupo de teólogos ecumênicos, protagonistas do Setor social de diversas denominações protestantes), Joaquim Beato, João Dias de Araújo, grupo promotor da famosa “Conferência do Nordeste, realizada em Recife - PE, de 22 a 29/07/1962, e cujo tema foi “Cristo e a Revolução Social Brasileira”. 


Preciosos textos deste modo de teologizar encontram-se na Revista “Inglesa y Sociedad”. Ao longo desses mais de 60 anos de produção teológica, Gustavo Gutierrez, se destacou como a principal referência neste modo de teologizar, de que são prova diversas homenagens acadêmicas (ele recebeu 23 outorgas de títulos de Doutor “Honoris Causas”) e o fato de ter dirigido, por 20 anos, a Revista “Concilium”, ao que devemos agregar sua vasta produção teológica, da qual destacamos, entre outros, os seguintes textos e livros: 

1 - "Hacia una teología de la liberación" (MIEC-JECI, Montevideo, 1969);

2 - "Teología de la liberación. Perspectivas" (Lima:Centro de Estudios y Publicaciones, 1971;

3 - "Evangelio y praxis de liberación", em Fe cristiana y cambio social en América Latina, Instituto Fe y Secularidad (ed.), (Sígueme, Salamanca, 1973), pp. 231-245;

4 - "Apuntes para una teología de la liberación", em co-autoria com Rubem Alves e Hugo Assmann, em ¿Religión, instrumento de liberación? (Marova-Fontanella, Madri-Barcelona, 1973), pp. 2-76;

5 - Beber no Próprio Poço-itinerário Espiritual de um Povo. Gustavo Gutiérrez. Editora: Vozes, Ano: 1984

6 - "Una teología de la liberación en el contexto del tercer Mundo", em El futuro de la reflexión teológica en América Latina (Consejo Episcopal latinoamericano-CELAM, Bogotá, 1996), pp. 97-165;

7 - "Del lado de los pobres. Teología de la liberación" em co-autoria com Gerhard Ludwig Müller, prólogo de Josef Sayer (Instituto Bartolomé de Las Casas-Rimac y CEP, Lima, 2005).

Importa ressaltar múltiplos desafios que Gutiérrez teve que enfrentar, fora e dentro dos espaços eclesiásticos. Foi, juntamente com dezenas de outros teólogos da libertação, alvo de perseguição por parte do Vaticano, durante os pontificados de João Paulo II e de Bento XVI. Várias de suas teses sofreram objeções da parte da famigerada Comissão de Doutrina da Fé. Como em todos os tempos, a ação profética de denúncia e de anúncio implica a via de perseguição por parte dos setores dominantes da sociedade e da Igreja.


Consola-nos, no entanto, constatar os caminhos de esperança que foram abertos por figuras como a de Gustavo Gutierrez. Há apenas uma semana, em função dos trabalhos de leitura continuada do livro 50 anos de Teologias da Libertação: Memória, revisão perspectivas e desafios, organizado por Edwar Guimarães,  Emerson Sbardelotti e Marcelo Barros, o Grupo Teologia da Libertação, criado por Eraldo Lemos Batista, após 60 sextas-feiras consecutivas, terminou a leitura do último capítulo deste livro. Dando prosseguimento a este trabalho de Educação Popular, o mesmo Grupo iniciará, na próxima sexta-feira, dia 25 /10, a leitura comum sequenciada do livro A Prática de Jesus, de autoria de Hugo Echegaray, prefaciado por seu grande amigo Gustavo Gutiérrez, em densas vinte e duas páginas.


A Gustavo Gutiérrez expressamos nosso reconhecimento e nosso preito de gratidão pelo seu perseverante testemunho de discípulo do Movimento de Jesus e pela fecundidade de sua obra teológica. 


João Pessoa, 23 de Outubro de 2024


sábado, 19 de outubro de 2024

Intérpretes do Brasil (II): Traços heurísticos do aporte de Lélia Gonzalez

Intérpretes do Brasil (II): Traços heurísticos do aporte de Lélia Gonzalez


Alder Júlio Ferreira Calado


Damos aqui prosseguimento a uma série de textos destinados a uma revisitação da biografia e da produção de homens e mulheres que se

mostram reconhecidamente como uma referência emblemática na

interpretação histórico-crítica da sociedade brasileira, com o propósito de

estimular, especialmente em jovens militantes, o exercício revolucionário da

memória histórica dos oprimidos e explorados.

Como já assinalado desde o primeiro texto, consagrado a Ruy Mauro Marini,

não estamos seguindo uma ordem cronológica, mas, antes, priorizando

aquelas figuras, cujas contribuições nos parecem marcadas de alto teor

crítico-propositivo, ainda que gozando de uma atenção que consideramos

muito a quem do seu merecido lugar de intérpretes qualificados das

relações sociais características do modo de produção dominante da

sociedade brasileira.


Nas linhas que seguem, iniciamos por uma breve notícia biobibliográfica de

Lélia Gonzalez, seguida de uma rememoração das ideias axiais por ela

expressas, seja em seus ensaios, em seus artigos, em suas intervenções e

entrevistas. Em um outro tópico, trataremos de destacar traços relevantes

de sua contribuição teórica à interpretação do Feminismo Negro, no Brasil.

Por último, trataremos de ressaltar, a relevância teórica que sua

contribuição, como intérprete da sociedade brasileira, especialmente no que

concerne ao feminismo e à Negritude, tendo tido sempre o cuidado de

articular dialeticamente os conceitos de “Gênero”, “Raça” e “Classe”.

Lélia Gonzalez: Elementos de um percurso biobibliográfico.


Lélia Gonzalez (1935-1994), nascida Lélia de Almeida, em uma periferia de

Belo Horizonte, de um pai operário ferroviário e de uma mãe indígena,

trabalhando como doméstica constituindo uma família numerosa de 18 filhos

e filhas, das quais Lélia é a penúltima nascida. Em função da natureza do

trabalho do pai, muda-se para uma periferia do Rio, graças inclusive à

condição favorável conquistada pelo seu irmão Jaime, jogador de futebol do

Atlético Mineiro que fora contratado pelo Flamengo, afirmando-se, também

aí, como um craque (integrou a seleção brasileira no período e ajudou o

Flamengo a conquistar o tricampeonato carioca de 1942, 1943, 1944).


Com a ascensão de Jaime pela via do futebol - marca frequente em figuras

das classes populares, principalmente dos negros -, toda a família passa a

ser beneficiada, também Lélia. Após cursar o ensino primário, consegue ter

acesso no centro da cidade a uma Escola Pública de reconhecida qualidade,

no centro do Rio, enquanto o seu Ensino Médio cursou no famoso Colégio

Pedro II. Para os filhos e as filhas do Povo Negro, isto constituía quase uma

exceção que Lélia aproveitou, de modo exponencial, tornando-se uma

estudante aplicadíssima e reconhecida por seus professores e colegas. Mais

tarde, Lélia faria questão de destacar a relevância da via dos estudos que,

no caso de sua família negra, se somaria à outra via - a do esporte - seguida

pelo seu irmão. Teve, porém, que pagar para tanto um preço alto: o do

“branqueamento”, isto é, o de ter que tolerar acomodar-se às condições

dominantes, comportando-se inclusive no vestir e no plano estético, como

próxima dos colegas brancos. Mais tarde, ela vai ressaltar esse detalhe.

Aos 19 anos, Lélia ingressa para o Curso de História e Geografia da então

Universidade Estadual da Guanabara, atual Universidade Estadual do Rio de

Janeiro (UERJ), após o qual vai cursar Filosofia, na mesma Universidade.

Cada vez mais descobrindo seu potencial crítico e desbravador, parte para

fazer sua Pós-Graduação, tendo cursado o Mestrado em Comunicação Social

e o Doutorado em Antropologia Política, pela PUC do Rio. Vivíamos um

período impregnado de muitas figuras formuladoras do pensamento

brasileiro, a exemplo de Guerreiro Ramos.

Profundamente tocada por uma experiência conjugal, da qual resultam

graves consequências para ela e para o futuro marido. Já com certa idade

(em torno dos 30 anos), enamorou-se de Luiz Carlos Gonzalez, de família

espanhola. Relacionamento que, de início, não sofreria represálias da família

branca: em quanto esta avaliava tratar-se de uma “concubinagem”. A partir,

contudo, do momento em que a família Gonzalez tomou conhecimento da

formalização daquele relacionamento, mediante o casamento, a vida de Luís

Carlos e Lélia se tornaria um inferno de rejeição e crescentes hostilidades.

Pelo menos em parte, uma consequência deste episódio implicaria no suicídio

de Luís Carlos. Em vista de prestar homenagem ao marido, que, tanto havia

amado e estimulado seu compromisso com sua identidade de mulher negra,

Lélia Gonzalez decidiu manter seu nome, mesmo quando de um segundo

relacionamento (desta vez, com um negro que não se reconhecia como tal).

Lélia tratou de enfrentar e superar este trauma, recorrendo também aos

conhecimentos da psicanálise. Passou, então, a estudar sistematicamente


clássicos da área, especialmente Freud e Lacan, sempre associando-os aos

seus achados “Ladino-Amefricanos”, inspirando-se em figuras como a de

Franz Fanon.

Dotando-se de tão precioso “Curriculum”, empenha-se em fazer um uso

frutuosos dos seus achados, à medida que se disponha crescentemente a

compartilhar seus conhecimentos com o Povo Negro, passando a exercitar

uma contínua militância política, seja na resistência à Ditadura Empresarial-

Militar (de que resultam contra ela registros nos órgãos de repressão, já em

1972), seja na efetiva contribuição à organização do Movimento Negro

Unificado (MNU), seja na animação de festas da cultura negra (escolas de

samba, blocos carnavalescos, e participante do Candomblé) seja na sua

militância no PT e depois no PDT, tendo contribuído ativamente no processo

constituinte de 1987/1988, ao tempo em que cuidava de aprofundar sua

achega teórica, de forma interseccional, acerca das raízes históricas do

povo negro, no Brasil, na América Latina, no Caribe, nos Estados Unidos e na

África.

Nesta toada, impacta-nos observar a quantidade e a qualidade de sua

produção teórica, durante algumas décadas, combinando a elaboração de

ensaios, de artigos, de entrevistas e de outras intervenções. Deste

relevante legado bibliográfico, destacamos:

“Festas Populares no Brasil”. Rio de Janeiro, Índex, 1987;

“Lugar de Negro” (com Carlos Hasenbalg). Rio de Janeiro, Marco

Zero, 1982 (Coleção Dois Pontos)”;

“Por um Feminismo Afro-Latino-Americano”, Revista Isis

Internacional, n.8, Rio de Janeiro, 1983, p.12-20;

"Mulher Negra, essa Quilombola". Folha de S. Paulo, Folhetim.

Domingo, 22 de novembro de 1981;

“A mulher negra na sociedade brasileira (uma abordagem político-

econômica)” In: Luz Madel (org.), O lugar da mulher, estudos sobre a

condição feminina na sociedade atual, Rio de Janeiro, Graal, v.1, 1982

(Coleção Tendências 1);

“Racismo e sexismo na cultura brasileira” In: Luiz Antônio Silva,

Movimentos sociais, urbanos, minorias étnicas e outros estudos,

Brasília, ANPOCS, Capítulo 3, 1983 [Ciências Sociais Hoje 2];

& quot;O Terror nosso de Cada Dia & quot;. In. Raça e Classe. (2): 8, ago./set.

1987.

& quot;A Categoria Político-Cultural de Americanidade & quot;. In. Time Brasileiro,

Rio de Janeiro (92/93): 69-82, jan./jun. 1988.


& quot;As Americanas do Brasil e sua Militância & quot;. In. Maioria Falante. (7): 5,

maio/jun. 1988.

& quot;Nanny ". In. Humanidades, Brasília (17): 23-5, 1988.

"A Importância da Organização da Mulher Negra no Processo de

Transformação Social & quot;. In. Raça e Classe. (5): 2, nov./dez. 1988;

& quot;Uma Viagem à Martinica - & quot;. In. MNU Jornal. (20): 5, out./nov;

(N.d.)

“América ladina”, de Lélia Gonzalez. Volume 5 da BBLA, 2022.


Edição: Ateliê Humanidades (Brasil) e Tucán Ediciones (Chile). - Uma

antologia organizada por Melina de Lima (historiadora e neta de Lélia)

Conceitos axiais trabalhados por Lélia Gonzalez

Com base em pesquisas recentes e menos recentes em textos, entrevistas e

documentários em torno da figura emblemática de Lélia Gonzalez e do

feminismo negro, nomeadamente as pesquisadoras Luíza Bairros, Beatriz

Nascimento, Raquel Barreto, Elizabeth Viana, Sueli Carneiro, Grada Kilomba,

Carla Akotirene entre outras, ousamos fazer uma breve incursão pelo

universo vocabular trabalhado por Lélia Gonzalez.


Sempre empenhada em sua trajetória de intelectual engajada, em articular

organicamente seus achados teóricos e sua militância nos Movimentos

Populares (especialmente no Movimento Negro unificado, o Coletivo de

Mulheres Negras N’Zinga, o Instituto de Pesquisas das Culturas Negras,

entre outros), Lélia Gonzalez também se destaca pela sua postura

heurística, de quem busca fundamentar elementos epistemológicos da

Cultura Negra, razão pela qual ousou propor alguns instrumentos teórico-

conceituais que se têm revelado pertinentes e fecundos como ferramenta

de interpretação histórico-cultural da formação social do Brasil. Nas linhas

que seguem, vamos trazer alguns desses conceitos. 

De partida, cumpri atentar para o itinerário teórico metodológico da

interseccionalidade escolhido por Lélia Gonzalez, compatível, aliás, com seu

processo formativo, tendo ela circulado pela História e Geografia, pela

Filosofia, pela Comunicação Social, pela Antropologia-Política e pela

Psicanálise, em uma época em que mal se começava a seguir por esta trilha.

Do campo da história, por exemplo - mas sempre dinamicamente articulada a

outros campos - Lélia Gonzalez trabalha o conceito de “Amefricanidade

Ladina”. Entendia que os povos diaspóricos da Mãe-África, em parte,

sequestrados e escravizados pelos Europeus nas Américas, precisam ser


reconhecidos como protagonistas de uma nova história, que não é

reprodução passiva da cultura eurocêntrica.

Longe das interpretações eurocêntricas, dominantes inclusive no Brasil, o

processo de colonização, malgrado toda sua violência, não logrou reeditar

nos colonizados sua visão de mundo, à medida que:


Do ponto de vista econômico, por exemplo, o processo de colonização, seja no contexto do Escravismo, seja no contexto do Capitalismo, se deu fundamentalmente graças ao trabalho dos Afro Brasileiros, que vão tomando consciência de serem os principais protagonistas das riquezas produzidas, ontem como hoje, no campo e na cidade, ainda que delas continuam marginalizados, quanto à fruição das mesmas;

No âmbito da Cultura, igualmente, os Afro-Brasileiros se dão conta do seu denso protagonismo em sua visão de mundo, seja nos costumes, seja no mundo das artes, das letras, das danças, das festas populares e até nos falares. Não foi por acaso, neste entendi, que Lélia Gonzalez, ao exemplificar a linguagem própria das pessoas negras, ousou cunhar a expressão “Pretuguês”. Com efeito, resta fácil constatar o imenso universo vocabular observável nos falares negros, expressos no cotidiano familiar, no trabalho, nas artes, na música, nos esportes , nas religiões de matriz africana, etc.   

 Alicerçada principalmente no Marxismo, Lélia Gonzalez vai interpretar a realidade econômica do Brasil e da América Latina e do Caribe, como a constituir parte integrante do sistema capitalista mundial, no qual a divisão social do trabalho bem como suas relações axiais se dão de modo desigual e combinado. No modo de produção capitalista aos países periféricos cabe uma inserção desigual e subordinada tanto aos grandes conglomerados transnacionais (normalmente sediados nos países centrais do Capitalismo), como aos Estados nacionais centrais.       


Ao contrário, deste processo secular resultam múltiplos aspectos econômicos, políticos e culturais que pouco ou nada tem a ver com a cultura eurocêntrica. É neste sentido que Lélia Gonzalez, solidamente apoiada nas experiências dos Negros nos Estados Unidos, na América Latina e no Caribe e no Brasil, sempre em diálogo com figuras exponenciais do mundo Negro, a exemplo de Angela Davis, e Franz Fanon sustenta a existência de um novo sujeito histórico resultante desse processo que ela nomeia como “ladino-amefricano”. 


No plano da Psicanálise, Lélia Gonzalez também inova, a partir da combinação do uso psicanalíticos trabalhados por Freud e Jacques Lacan por um lado, e dados concretos de sua própria experiência de Negritude. Foi assim que ela ousou, em sua leitura de mundo afrodiásporico, adotar conceitos tais como “Neurose cultural”, “Racismo por denegação” e outros. Quanto ao primeiro, Lélia Gonzalez entende que tal é a introjeção pelas pessoas Negras dos valores eurocêntricos, durante séculos de colonialismo e escravidão, que elas acabam assimilando e reproduzindo acriticamente ideias valores, crenças e comportamentos, de modo à confirmarem o mito da supremacia branca e o da inferioridade invencível das pessoas negras, passando assim a agirem conforme os ditames da classe dominante. Isto se dá, por exemplo, quando reproduzem a ideologia de que “não há racismo no Brasil”. O conceito de “Racismo por denegação” se faz presente pelo fato de que, se por um lado negam, por outro acabam afirmando-ou na complementação de sua negativa: “No Brasil, não há Racismo, pois eu sou empregada negra em uma família de brancos, e todos me respeitam.” 


Elementos principais do aporte teórico de Lélia Gonzalez


Desta breve paisagem sinótica biobibliográfica do itinerário de Lélia Gonzalez, tratamos, por fim, de sublinhar alguns aspectos, com o propósito de incentivar especialmente jovens militantes dos Movimentos Populares e de outras organizações de base de nossa sociedade, a seguirem aprofundando o legado teórico-prático desta intelectual orgânica, como mais uma ferramenta de leitura crítica de nossa realidade, como meio de transformá-la. Neste sentido, começamos por ressaltar a relevância de sua “práxis”, isto é de seu compromisso de combinar dialeticamente seus achados teóricos e sua múltipla militância social, seja no Movimento Negro Unificado, seja no Coletivo Feminista Mizinga, seja na criação do Patido dos Trabalhadores (e depois no PDT), seja em diversas organizações culturais negras, seja no processo constituinte de 1987/1988, seja ainda na preciosa Articulação dos movimentos e organizações negras, em âmbito nacional latino-americano e do Caribe, nos Estados Unidos e na África. Que esta rápida e incompleta revisitação do denso legado de Lélia Gonzalez nos inspire a todos - notadamente, nossos jovens militantes de base - a vencermos a inquietante letargia que acomete parte expressiva de nossas organizações de base, inclusive, os Movimentos Sociais Populares, em busca de uma retomada perseverante do trabalho de base, no campo e nas periferias urbanas.




João Pessoa, 19 de outubro de 2024



quarta-feira, 9 de outubro de 2024

Ocidente e Hecatombe: Entre trevas e pouca luz

 Ocidente e Hecatombe: Entre trevas e pouca luz


Alder Júlio Ferreira Calado


A Modernidade ocidental, não bastassem as crescentes ameaças à vida no Planeta, segue marcada pelas crescentes manifestações de violência de chacinas, praticadas despudoradamente e às escâncaras, contra o Planeta, os humanos e os demais viventes, sob a égide do mais perverso Capitalismo. As últimas décadas vêm-se revelando como um palco de horrores. A despeito de múltiplas pesquisas e dados científicos a atestaram os esdrúxulos índices da emergência climática - incessante elevação da temperatura dos oceanos, frequência e intensidade de diversos eventos catástroficos (estiagens prolongadas, enchentes devastadoras, furacões letais, entre outros) -. 


Os constantes protestos e denúncias contra o aumento de epidemias, da miséria e da fome de parte expressiva dos humanos estão longe de ser escutados pelas grandes potências ditas democráticas e seus organismos multilaterais (a começar pela ONU), controlados que são pelo poder insano dos grandes conglomerados transnacionais (a indústria e o comércio de grandes armamentos  bélicos, as grandes empresas de petróleo, as chamadas “Big-techs”, os mega-laboratórios farmacêuticos, os controladores da economia financeirizada, entre outros). Pior do que isto: tais protestos não só não têm sido escutados, mas, ao contrário, as profundas desigualdades sociais não cessam de se agravar: um punhado de bilionários concentram em suas mãos riquezas correspondentes a dezenas de nações…


No âmbito da Política, as relações continuam a degradar-se. Os estados nacionais, do centro e da periferia do sistema, não cessam de perder força, na aplicação de decisões ditas democráticas. Nos próprios países centrais do capitalismo, que se auto proclamam democráticos, retrocedem, a olhos vistos, ante o crescente avanço de forças tenebrosas, inclusive de feição nazifascista (haja vista o que se passa na Hungria, Itália, na França, Inglaterra, na Alemanha, na Áustria, em Portugal, Espanha, Holanda, Suécia  e outros, onde prosperam, inclusive no plano eleitoral, partidos como “Jobbik” “Fratelli d'Italia”  “Front National”, “British National Party” “Alternative für Deutschland” “Freiheitliche partei Österreich” “Chega” “Vox” “Partij de Vrijheid” “Sverigedemokraterna”).

Estas forças nazifascista além de profundos estragos locais, se expandem em rede internacional, em orgânica relação com a extrema direita que opera nos Estados Unidos, seja no Partido Republicano, seja no Partido Democrata, seja em dinâmica associação ao chamado “Deep State”, de modo a também se reproduzirem nos países periféricos, de que são exemplo, no Brasil, o Bolsonarismo, atualmente disputado pelo candidato Pablo Marçal, em São Paulo, e a Argentina de Javier Milei. 


No exato momento em que refletimos sobre este cenário, a ilustração mais impactante nos remete ao genocídio do Povo Palestino, perpretado pelo Estado sionista de Israel, do qual são cúmprises os Estados Unidos e as grandes potências ocidentais. recorrendo à cumplicidade da mídia hegemônica, o Estado sionista de Israel manipula informações, tentando inverter fatos e situações, a seu favor, ao tempo em que, desde meados do século passado, segue ocupando territórios do Povo Palestino e invadindo diversos países da região, como agora o faz no Líbano, bombardeando sua capital, bem como a capital da Síria e do IÊMEN, chegando inclusive a cometer crimes contra o Irã (do qual recebe retaliações). 


Por outro lado, não devemos ignorar a ocorrência de sinais positivos, observáveis no mundo, na América Latina. Em escala internacional, acompanhamos, com interesse, a irrupção de sinais alvissareiros emitidos especialmente pela China, que emerge no cenário internacional como protagonista de relações multilaterais, sempre a insistir na necessidade e urgência de superação de relações imperialistas entre os povos.   


No caso do Brasil, também vivemos situações contraditórias. no momento em que escrevemos estas linhas, acaba de ocorrer o primeiro turno das eleições municipais, cujos resultados atestam um crescimento eleitoral e político de forças reacionárias, em detrimento das classes populares, para as quais as eleições continuam sendo um campo minado, um terreno quase sempre hostil, principalmente em tempos de orçamento secreto, “emendas pix”, fundo partidário bilionário, um Congresso cada vez mais controlado por forças tenebrosas, enquanto os Movimentos Populares, em sua maioria, seguem em letargia. Em breve, em grande medida, o cenário nacional reflete o que se passa em escala internacional.

Consola-nos, entretanto, colocar-nos em perspectiva histórica, observando o que se passa nas correntezas subterrâneas, que muito nos alimentam a esperança, seja no âmbito internacional, seja no plano latino-americano, seja ainda no terreno nacional. Para tanto, não nos basta querer dar-nos à espera passivamente, mas assumir nossas responsabilidades sobretudo na retomada do Trabalho de Base.


João Pessoa, 09 de Outubro de 2024


                  


terça-feira, 1 de outubro de 2024

Intérpretes do Brasil (I): elementos da análise dialética de Ruy Mauro Marini

 Intérpretes do Brasil (I): elementos da análise dialética de Ruy Mauro Marini 


Alder Júlio Ferreira Calado 


Como assim acima assinalado, este texto constitui o primeiro de uma série de análises acerca de pensadores e pensadoras brasileiros, com reconhecida contribuição à compreensão da formação sócio-histórica da sociedade brasileira. Embora seja de uma geração relativamente recente, houvemos por bem começar pela figura de Ruy Mauro Marini cuja contribuição nos parece das mais relevantes, ainda que pouco conhecida até porque a maior parte de sua produção teórico-metodológica foi publicada fora do Brasil. 


Ruy Mauro Marini nasceu em Barbacena - MG, em 1932. Tendo concluído o Ensino  Médio, empenha-se na preparação para o ingresso na Universidade, tendo optado pelo Curso de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, dele se afastando para ingressar no Curso de Administração Pública, da Escola de Administração Pública e de Empresas, da Fundação Getúlio Vargas, contando com a orientação de Guerreiro Ramos. Ao mesmo tempo, inserido em um contexto histórico de intensa mobilização estudantil, também milita como líder no próprio Movimento Estudantil, inclusive contribuindo na redação de textos críticos de periódicos do seu meio. 


Ainda cedo, com o apoio de Darcy Ribeiro, Ministro de João Goulart e o primeiro Reitor da UnB, passa a atuar como Professor da Universidade de Brasília (UnB). Ele havia recém-chegado da França, onde obtiveram seu curso de Pós-Graduação, ao tempo em que vai se aprofundando, ao lado de figuras como Theotônio dos Santos, Vânia Bambirra, na investigação científica de temas candentes referentes à situação estrutural do Brasil e da América Latina, tendo o Marxismo como seu referencial  teórico-metodológico. 


Por força da crescente ofensiva dos Movimentos populares e Sindicais, organizados, em escala nacional, pelas “Reformas de Base”, os setores reacionários da sociedade brasileira passaram a tramar o golpe de Estado , com o apoio dos grandes empresários, dos latifundiários, da imprensa hegemônica e do Governo dos Estados Unidos, o Golpe de Estado restou consumado em 1 de Abril de 1964, instalando desde então a Ditadura Civil-militar no Brasil, que duraria tenebrosos 21 anos. 


Seguiu-se uma crescente onda de perseguições, de prisões - de que fora vítima o próprio Ruy Mauro Marini -, de torturas, de banimentos e toda sorte de repressão. Graças a um “Habeas corpus” conseguiu livrar-se da prisão, sentindo-se constrangido a embarcar para o México, como exilado, em 1965. Pouco antes do Golpe de 1964, Ruy Mauro Marini integrou a POLOP, juntamente  com outros colegas e amigos de sua geração, a exemplo de Vânia Bambirra e Theotonio dos Santos, Eder Sader, Emir Sader, Marco Aurélio Garcia, entre outros (quase todos encontrando-se também como exilados no Chile, participando do MIR, e alguns deles também no México), sobretudo com a reconhecida contribuição revolucionária, de Eric Sachs, militante comunista que, após uma rica experiência de militância juvenil, na Áustria, na Rússia e na França, migra com sua mãe para o Brasil em 1939, tornando-se depois a principal referência da Organização Revolucionária Marxsista Política Operária (POLOP). 


Sendo forçado a migrar para o México, como exilado, Ruy Mauro passa a integrar um grupo de exilados do Brasil e de outros Países latino-americanos, prosseguiu suas pesquisas e publicações, que tiveram amplo reconhecimento no México e em outros países. 


Do ponto de vista das análises críticas então hegemônicas, na América Latina, vivia-se sob a influência do Nacional Desenvolvimentismo, alimentado pelos pesquisadores integrantes da CEPAL (Comissão econômica para América Latina eo Caribe), criada pela ONU, em 1948, com o objetivo de elaborar pesquisas de cooperação econômica de ajuda ao desenvolvimento dos Países da América Latina e do Caribe. Referencial teórico então hegemônico inspirava-se no Nacional-Desenvolvimentismo, ou seja: predominava a interpretação de que as burguesias nacionalistas constituíam sujeitos de transformação, em vista do desenvolvimento proguessivo das condições econômicas do sub-continente.


Contra tal linha de interpretação, insurgiram-se os teóricos marxistas da Dependência, segundo os quais importava reconhecer o caráter dependente e associado dos países latinos-americanos, em relação aos países centrais do capitalismo.     


Em uma conjuntura de grande efervescência política latino-americano e em escala mundial, sobretudo graças ao alcance do Movimento de Maio de 1968, a militância intelectual de um pesquisador da estirpe de Ruy Mauro Marini provocará efeitos impactantes e incômodos ao governo mexicano de então, razão pela qual se sentiu “convidado a deixar o país”, tendo escolhido o Chile como próximo destino de exilado.


Não fora nada fácil aos seus amigos revolucionários, no Chile, justificar sua acolhida e sua reinstalação em órgãos institucionais: tratava-se, desde então, de um pesquisador reconhecido pela profundidade de sua reflexão e de seus escritos, sempre organicamente vinculados a sua militância revolucionária. No Chile, é acolhido inicialmente em Concepción, onde passa a integrar - e depois a liderar - movimiento de la Izquierda Revolucionaria (MIR), tendo acatado posteriormente o convite para integrar Centro de Estudios Socioeconômicos (CESO), pelo qual Ruy Mauro Marini e outros intelectuais latino-americanos passam a oferecer cursos e seminários de estudos sobre a realidade da América Latina, cabendo a Ruy Mauro Marini assumir a coordenação de cursos sobre teoria maxista de mudanças sociais, de onde brotam vigorosas ideias sobre a Teoria Maxista da Dependência, da qual Ruy Mauro Marini, Vânia Bambirra e Teotônio dos Santos, entre outros, passam a grande referência. 


Cumpre lembrar que, ao mudar-se para o Chile, este país se achava em forte ebulição política, ainda sob a presidência de Eduardo Frei, da Democracia Cristã, que foi sucedido, em 1970, pelo Presidente Salvador Allende, impulsionador de avanços democráticos, sob a égide e a esperança de se alcançar o Socialismo pela via democrática. Esperança frustrada pelo Golpe Militar de 11 de setembro de 1973, sob o comando de Augusto Pinochet. Estava implantada outra terrível Ditadura, no Cone Sul, a desmantelar os planos e sonhos de tantos militantes latino-americanos, ali reunidos, tendo que adiar seus sonhos e tendo que enfrentar as perseguições, prisões, torturas, banimentos, aplicados pelo regime.


Com dificuldades, Ruy Mauro consegue retornar ao México, onde continua trabalhando e pesquisando, desta vez junto a UNAM (Universidade Nacional do México), e a pesquisar e publicar seus textos, sendo ele ainda hoje mais conhecido fora do Brasil do que em seu país natal. Parte disto também se deveu à proibição de publicação e circulação de seus escritos, no Brasil, por força do regime ditatorial aqui vigente, bem como a omissão ou mesmo difamação por intelectuais brasileiros - dentre os quais são mencionados especialmente Fernando Henrique Cardoso e José Serra, a quem se imputa uma espécie de desfiguração de seu pensamento. Chama a atenção o fato de que, nos inícios dos anos 70 a Teoria da Dependência constituía a grande referência de interpretação da sociedade latino-americano, Ruy Mauro constitui um exemplo raro que se produziu, no Brasil e na América Latina entre os anos 60 e 70: tempo em que o reconhecimento de um intelectual se dava em função de sua capacidade criativa, de formulação e compromisso com projeto alternativo à barbárie capitalista. Este traço foi lembrado, inclusive por Álvaro Vieira Pinto, ao assinalar que o respeito,  o reconhecimento e admiração por um autor se davam em função de se empenharem na formulação de um projeto de sociedade Brasileira.


Ruy Mauro Marini retorna ao Brasil, após a Lei da Anistia, dando prosseguimento aos seus trabalhos investigativos, vindo a falecer no Rio de Janeiro em 1997, aos 65 anos. Dentre seus numerosos escritos destacamos os seguintes:

  • “Subdesenvolvimento e Revolução”;

  • “Dialética da Dependência”;

  • “Reformismo e contra-revolução;

  • “La teoria social Latina americana”;

  • “Teoría social latinoamericano de las origens a la cepal”;


Categorias Fundamentais trabalhadas por Ruy Mauro Marini


Da lista de intérpretes do Brasil - homens e mulheres - Ruy Mauro Marini apresenta-se com características marcantes. Trata-se de um exímio pesquisador marxista, comprometido com as lutas libertárias da América Latina, colocando-as sempre no mesmo plano ou mesmo acima das específicas do Brasil. Ao lado de outros nomes, como Aníbal Quijano, André Gunder Frank, Florestan Fernandes e Theotonio dos Santos e Vânia Bambirra, entre outros, Ruy Mauro se destaca entre os pesquisadores revolucionários reconhecidamente criativos, inclusive pelo fato de não aceitarem ser reféns de um marxismo dogmático, prescrito pelos PCs do período stalinista. Ruy Mauro destacava-se pelo rigor, honestidade  e criatividade revolucionária da leitura de Marx e de outros revolucionários, razão por que nunca entendia seus escritos como receituário a ser aplicado acriticamente em outras realidades. A exemplo de José Carlos Mariátegui, empenhava-se em recolher do Marxismo pistas fundamentais, desde que subordinadas à realidade concreta latinoamericana e brasileira. 


Deste método de leitura marxista, também derivam suas qualidades de rigor e criatividade, eis por que a ele se devem pelo menos duas categorias de fundamental importância de uma leitura marxista da realidade brasileira e latino americana: a categoria de “Superexploração da força de trabalho” e a categoria de “Sub-imperialismo”, elaboradas no contexto da teoria Marxista da Dependência.


Tanto a categoria “Superexploração da força de Trabalho” quanto a categoria “Subimperialismo” formam parte da Teoria Marxista da Dependência. Quanto à segunda, já em seu livro “Subdesenvolvimento e Revolução”, (1969) Ruy Mauro Marini começava a esboçar seu esforço teórico-interpretativo, ao assinalar traços da presença desta categoria. Foi, sobretudo, a partir de seu texto intitulado “Dialética da Dependência”, publicado em 1973, que Ruy Mauro Marini desenvolveu estas duas categorias. Quanto à “Superexploração da força de Trabalho”, Marini labora com a seguinte linha de argumentação.


Começava por sustentar tratar-se de grave Equívoco a interpretação, segundo a qual a burguesia latino americana estivesse comprometida com um projeto desenvolvimentista de carater nacionalista, razão pela qual entendia que, nas horas de decissão, os grupos dominantes latino-americanos não hesitariam em se subordinarem ầs decisões dos grupos dominantes dos paises centrais do Capitalismo. 


Nesta toada, tenta-se em vão dar passos rumo ao desenvolvimento dos países periféricos do Capitalismo, simplesmente porque as relações econômicas presentes nas sociedades periféricas se acham umbilicalmente subordinadas às economias centrais , de modo a formarem um todo, ou seja, o próprio modo de organizar-se o Capitalismo, nesta quadra histórica, em que a divisão internacional do trabalho, feita a partir das decisões do grande Capital (os grandes conglomerados transnacionais, os monopólios industriais, comerciais e financeiros, imperando desde as grandes potências, com a subordinação dos Estados nacionais) se mostram determinantes dessas relações. 


Neste sentido, Ruy Mauro Marini vai desvelando a natureza concreta da economia capitalista, de seus profundos laços de dependência, a determinarem a distribuição dos papeis que devem imperar nas economias centrais (de privilegiamento) e nas economias periféricas (de subordinação) do mesmo sistema. Com efeito, tal repartição ou divisão social do trabalho vai assegurar às economias centrais toda sorte de vantagens e privilégios (monopólio empresarial de produção, escolhas mais vantajosas na distribuição dos ramos empresariais impostos aos países periféricos, remuneração diferenciada do trabalho realizado nas economias centrais, em relação aos péssimos salários e condições de trabalho pagos vigentes nas economias periféricas).


Com relação a categoria “Sub-imperialismo”, Ruy Mauro Marini, com base inclusive em Lenin, sustenta a tese das relações imperialistas a que as economias periféricas se acham sujeitadas. A partir do eixo do Imperialismo Capitalista, hegemonizado pelas grandes empresas transnacionais, localizada sobretudo nos Estados Unidos e nas potências europeias, cabe às economias periféricas cumprir um papel subordinado às decisões tomadas pelo imperialismo, de tal sorte que desde a definição dos ramos e setores da economia, quais os bens a serem produzidos parcial ou integralmente na periferia, a determinação das condições de trabalho, o nível das taxas de lucro, o valor da remuneração do trabalho - tudo é determinado desde cima.


Refém das decisões  tomadas nos países centrais imperialistas, a América Latina - juntamente com outros países periféricos do capitalismo - passa a integrar, de forma subordinada, o conjunto do modo de produção capitalista, cumprindo funções secundárias mas altamente complementares aos interesses gerais do sistema. Umas das marcas explicativas deste papel de subordinação consiste na prática de trocas desiguais: Na divisão internacional do trabalho caberia aos países periféricos exporta produtos agrários e minerais, enquanto os países centrais, após importarem estes produtos, tratavam de industrializa-los, agregando valores e exportando-os de volta aos países periféricos, a preços elevadíssimos, assim obtendo lucros fantásticos desta troca desigual. 


Tanto no que concerne à categoria “Superexploração da força de trabalho”, quanto à categoria “Subimperialismo”, importa sobretudo observa, nas pesquisas de Ruy Mauro Marini o grau de coerência e de rigor na interpretação marxiana e marxista da Teoria da Dependência, principalmente embasada em sólida compreensão de “O Capital”        


Importa ressaltar a vigência e atualidade destas categorias trabalhadas por Ruy Mauro Marini, tomando-se em conta que estas mesmas condições passam a estar presentes nas economias dos próprios países centrais. A este respeito, são fartos os dados que a literatura possui. Importa registrar, ainda que tardiamente - no caso do Brasil, pois na América Latina e Alhures, é bem reconhecido o legado teórico de Ruy Mauro Marini -, que se observa um interesse crescente sobre os escritos deste autor. 


Não nos cansamos de lembrar que são os jovens militantes que constituem o alvo preferencial de nosso escritos, no terreno da Educação Popular, razão pela qual recomendamos que tomem estas linhas como motivação de seu engajamento, para o que indicamos, além da leitura dos textos de Ruy Mauro Marini, também outros escritos (por exemplo, “Ruy Mauro Marini: Dialética Da Dependência E Outros Escritos”, de João Pedro Stedile e Roberta Traspadini), documentários e vídeos sobre o mesmo, todos disponíveis em youtube. 


João Pessoa 1 de outubro de 2024