Intérpretes do Brasil (XVII): Josué de Castro, um intelectual combatente das desigualdades sociais, no Brasil e no mundo.
Alder Júlio Ferreira Calado
Sob o título acima indicado, perseguimos as trilhas de personalidades brasileiras - homens e mulheres - que contribuíram reconhecidamente, pelas suas obras e trajetórias biográficas, para a elaboração de um projeto de nação, que fizesse justiça ao Povo brasileiro, especialmente os trabalhadores e trabalhadoras do campo e da cidade. Nosso principal intento segue sendo o de instigar nossas organizações de base, principalmente os Movimentos Populares, notadamente por meio de suas lideranças, a exercitarem a memória histórica dos oprimidos, no compromisso com as profundas transformações necessárias e urgentes para a superação do atual modo de produção, de consumo e de gestão societal.
Quase 80 anos passados, desde a primeira edição de Geografia da fome, de autoria de Josué de Castro, deploramos constatar a presença ameaçadora da fome e de outras “doenças da pobreza”. constitui para nós um escândalo inaceitável observar, em pleno século XXI a existência de centenas de milhões de seres humanos assolados pela fome em nosso mundo, proibidos de terem satisfeitas suas carências materiais (alimentação, habitação, vestuário, entre outras) , condição mínima de sua sobrevivência, sempre lembrando que, para além da satisfação das necessidades materiais, os seres humanos necessitam ainda de terem satisfeitas suas necessidades imateriais - a contemplação do belo o exercício e a fruição das artes, a criatividade, como condição também essencial para o seu processo de humanização.
O problema da fome, no Brasil e no mundo tem profundas raízes histórico-estruturais, diretamente ligadas ao modo de produção capitalista, em suas manifestações diferenciadas inclusive desde o longo período. Importa lembrar que tal fenômeno não se verifica em doses iguais, nas diversas sociedades capitalistas. Embora em todas elas, a fome constitua um desafio, impõe-se reconhecer que é fundamentalmente nos países periféricos do sistema capitalista que o desafio da fome incide de modo exponencial.
Em que pese sua gritante letalidade, por longo tempo, no Brasil e alhures o fenômeno da fome foi naturalizado pelos setores dominantes e dirigentes da sociedade brasileira até parecia algo inexistente, dada a indiferença com que as forças do latifúndio, em conluio com os segmentos com os demais segmentos dominantes e dirigentes tratavam aquele fenômeno. Se Josué de Castro não foi o primeiro, foi por certo quem logrou trazer este problema às escâncaras da sociedade brasileira. Outros os seguiriam, a exemplo do poeta e Embaixador pernambucano João Cabral de Melo Neto, (1920-1999) de quem se tornaria célebre seu escrito “Morte e vida Severina”, no qual denunciava as condições desumanas vividas pelo Povo brasileiro especialmente os agricultores, do Nordeste nos seguintes termos:
“E se somos Severinos
iguais em tudo na vida
Morremos De morte igual
mesma morte Severina
de velhice antes dos trintas
de emboscada antes dos vinte
de fome um pouco por dia
(de fraqueza e de doença
é que a morte Severina
ataca em qualquer idade
e até gente não nascida).”
Josué Apolônio de Castro nasceu em Recife, em 5 de Setembro de 1908. Filho de Manoel Apolônio de Castro e de Josepha Carneiro de Castro desde cedo, mostrou-se um jovem notoriamente marcado por uma sede de saber. Dele podemos dizer tratar-se de alguém movido pela curiosidade epistemológica. Sobre ele consta a informação de que já aos 17 anos, se iniciava nas leituras de Freud, pensando inicialmente seguir o curso de Psiquiatria. Formou-se em medicina, de que também se tornaria um docente, na então Faculdade de Medicina de Recife (depois, transferindo-se para a atual Universidade Federal do Rio de Janeiro). Já em Recife, seus alunos cultivavam grande admiração pelo Professor especialmente pelo seu empenho, pela sua competência e pelo modo de relacionar-se com os alunos.
Ao mesmo tempo, Josué de Castro cultivava o gosto pelo cinema. Era um exímio cinéfilo, oque também contribuiria para despertar nele o apreço pela Literatura, oque o faria apaixonar-se pelos dramas humanos, comprometendo-se a ajudar a enfrentá-los exitosamente. Seu especial gosto pela Ciência restou fundamental para também contribuir com seus diversos escritos. É, com efeito, autor celebrado , não apenas de “Geografia da Fome” (1946) e de “Geopolítica da fome” (1951), mas ainda de uma extensa lista de livros:
O Problema Fisiológico da Alimentação no Brasil. Recife: Ed. Imprensa Industrial, 1932.
O Problema da Alimentação no Brasil. Rio de Janeiro: Companhia Editora Nacional, 1933.
Condições de Vida das Classes Operárias do Recife. Recife: Departamento de Saúde Pública, 1935.
Alimentação e Raça. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1935.
Terapêutica Dietética do Diabete. In: Diabete. Livraria do Globo, Porto Alegre, 1936. p. 271-294.
Documentário do Nordeste. Rio de Janeiro: José Olympio, 1937.
A Alimentação Brasileira à Luz da Geografia Humana. Rio de Janeiro: Livraria do Globo, 1937Festa das Letras. Co-autoria de Cecília Meireles. Rio de Janeiro: Livraria Globo, 1937.
Fisiologia dos Tabus. Rio de Janeiro: Ed. Nestlé, 1939.
Geografia Humana. Rio de Janeiro: Livraria do Globo, 1939.
Alimentazione e Acclimatazione Umana nei Tropici. Milão, 1939.
La Alimentación en los Trópicos. México: Fondo de Cultura, 1946.
Fatores de Localização da Cidade do Recife. Rio de Janeiro: Ed. Imprensa Nacional, 1947.
A Cidade do Recife – Um ensaio de Geografia Urbana. Rio de Janeiro: Casa do Estudante do Brasil, 1956. Reedição de Fatores de Localização da Cidade do Recife.
Três personagens. Rio de Janeiro: Casa do Estudante do Brasil, 1955.
O Livro Negro da Fome. São Paulo: Brasiliense, 1957.
Ensaios de Geografia Humana. São Paulo: Brasiliense, 1957.
Ensaios de Biologia Social. São Paulo: Brasiliense, 1957.
Sete Palmos de Terra e um Caixão. São Paulo: Brasiliense, 1965.
Ensayos sobre el Subdesarrollo. Buenos Aires: Siglo Veinte, 1965.
¿Adonde va la América Latina?. Lima: Latino Americana, 1966.
Homens e Caranguejos. Porto: Ed. Brasília, 1967.
A Explosão Demográfica e a Fome no Mundo. Lisboa: itaú, 1968.
El Hambre - Problema Universal. Buenos Aires: La Pléyade, 1969.
Latin American Radicalism. Edited by Irving Horowitz, Josué de Castro and John Gerassi. New York: Vintage Books, 1969. Coletânea organizada por Irving Horowitz, Josué de Castro e John Gerassi.
A Estratégia do Desenvolvimento. Lisboa: Cadernos Seara Nova, 1971.
Mensajes. Bogotá: Colibrí, 1980.
Fome: um Tema Proibido - últimos escritos de Josué de Castro. Anna Maria de Castro (org.). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
Foi além. Instigado, por exemplo, pelo drama da fome, buscou na Ciência na História e na Política elementos de resposta efetivos para o enfrentamento da questão. Nutrição e Geografia constituíram suas escolhas iniciais, para tanto. Mais tarde, além da Demografia, e da Antropologia, também recorreu à militância política, seja nos espaços parlamentares - exerceu, por dois mandatos, o cargo de Deputado Federal, representando o Estado de Pernambuco. Mais dados seu empenho, seu compromisso e sua competência, também exerceu, em âmbito internacional, cargos relevantes tais como o de Presidente da FAO (órgão da ONU, voltado para a Agricultura e Alimentação, concede em Genebra, na Suíça), bem como o de Embaixador do Brasil junto ONU.
Josué de Castro chegou a ser o candidato melhor cotado para o Ministério da política da Fome Agricultura, no Governo João Goulart, inclusive pelo seu compromisso em defesa da Reforma Agrária, por interferências negativas internas ao seu partido (PTB), conforme depoimento prestado por Darcy Ribeiro, então Ministro do Governo João Goulart, acabou preterido, sendo indicado para Embaixador junto a ONU. A propósito da figura de Josué de Castro, Darcy Ribeiro comenta sobre suas qualidades raras, dizendo tratar-se de uma personalidade das mais respeitadas, no plano internacional: avalia que, entre as cinco personalidades mais prestigiadas no mundo, Josué de Castro era uma delas, tal o reconhecimento de suas qualidades intelectuais e éticas, não por acaso tendo sido indicado, mais de uma vez, para o prêmio Mundial da Paz. Avaliação, aliás, também corroborada por Dom Helder Câmara
O golpe de Estado de 1964, não bastasse toda a carga de infortúnios para o povo brasileiro também impactaria contra os projetos civilizacionais propostos por Josué de Castro. A exemplo de outros intelectuais brasileiros, ele teve que ser exilado em Paris, tendo que interromper abruptamente seus projetos reconhecidamente humanitários para o Brasil e para o mundo, condição que contribuiria fortemente para a degradação progressiva de sua saúde, resultando no seu falecimento, em Paris, em 24 de Setembro de 1973 aos 65 anos.
Aspectos a serem realçados do legado de Josué de Castro
Diferentemente do deplorável comportamento de parte expressiva dos Médicos aliados ao obscurantismo promovido, em âmbitos internacional e nacional (inclusive, em plena pandemia da covid19), pela onda direitista das últimas décadas, Josué de Castro, a exemplo de médicos progressistas de ontem e de hoje, nos lega uma contribuição valiosa, como ser humano, como cidadão e como cientista social comprometido com a sorte de sua terra e de sua gente. Exercitando, ao longo da vida, sua empatia, sua refinada sensibilidade e seu compromisso social com a construção de um mundo e de uma sociedade justa, Josué de Castro cuidou de seguir caminhos compatíveis com este sonho. Enveredou sobretudo pelas trilhas da Ciência e da Política, percurso bem assinalado nos seus diversos livros, a começar por “Geografia da Fome”, traduzido para vários idiomas.
Ele não estava sozinho, nesta luta. Com efeito, as décadas de 1940 a 1960 revelaram-se propícias ao ascenso das lutas populares, no campo e na cidade. Os movimentos populares, animados pelas lutas camponesas em busca da Reforma Agrária, em aliança com os operários, com os estudantes, com intelectuais progressistas, tudo apontava para a necessidade e a urgência das chamadas Reformas de Base. Ao mesmo tempo, os setores dominantes - os latifundiários, as multinacionais a imprensa hegemônica, setores reacionários das Igrejas cristãs, setores dominantes das Forças Armadas amparadas por segmentos reacionários do Governo dos Estados Unidos empenharam-se em apressar e impor o Golpe de Estado de 1964, frustrando e interrompendo, durante 21 tenebrosos anos, os sonhos democratas de Josué de Castro e da enorme maioria da sociedade brasileira.
Ao exercitarmos a rememoração de trechos significativos do percurso existencial e bibliográfico de Josué de Castro, ocorre-nos instar nossas organizações de base, principalmente os movimentos populares do campo e da cidade a assumirem suas/nossas tarefas históricas, dando a razão de nossas esperanças, na perspectiva da construção processual de um novo modo de produção, de consumo e de gestão societal, que faça justiça ao planeta e aos humanos.
João Pessoa 27 de Março de 2025.