domingo, 20 de novembro de 2016

Totalidade, interconexão e práxis, no processo de humanização

Desafios à construção de um novo processo civilizatório, alternativo à barbárie capitalista e correlatas…
Supérfluo, referir-nos ao processo de humanização como sendo eivado de complexidade. Todavia, diante da tendência a uma certa amnésia, não parece ser de todo inútil enfatizar algumas obviedades. Por conseguinte, partindo do reconhecimento desta marca do processo de humanização – a complexidade -, demo-nos ao trabalho de retomar, de forma dinamicamente articulada, três fios da malha do processo de humanização: o da totalidade, o da interconexão e o da práxis, com o propósito de (1) situar cada um deles, buscando destacar seus elos orgânicos, e (2) explorar seu lugar no processo de humanização, em busca da construção de um novo paradigma civilizatório.
1. (Re)significando os fios da malha
O quê, nas linhas que seguem, estamos tomando como “Totalidade”, como “Interconexão” e como “Práxis”? Aqui, não se trata de propor um exercício estritamente conceitual-abstrato. Pretendemos ir um pouco além. Nosso propósito é arrancar desde o chão do cotidiano, desde o “concreto vivido”, não obstante todo tipo de limite a enfrentar, para, a partir dele e de suas raízes históricas, ousar ensaiar – ou fortalecer, lá onde eles já estiverem sendo ensaiados – passos de alternatividade.
Um primeiro desses fios – o da “Totalidade” – finca raízes em priscas eras. Já entre os pré-socráticos – para não recuar ainda mais, no tempo – se buscava pôr em prática essas dimensões do processo de humanização.
Esforço ao qual se deu prosseguimento, pelos séculos seguintes. A humanidade foi, cada vez mais, aprimorando esta reflexão. Nos dias contemporâneos esta mesma temática vem à tona por razões diversas. A principal delas reside na busca de identificação dos principais fatores que vêm atuando na produção de profundas crises, seja na área da economia, seja na área da política, seja no campo cultural, etc. De maneira mais precisa, esta temática reemerge, com mais ímpeto, quando se busca refletir sobre a profundidade das crises pelas quais passa o nosso mundo. A tal ponto vai a preocupação atual, que se faz a distinção entre épocas de mudança e “mudança de época”, esta última expressando a sensação de que o que hoje se passa, na humanidade, só tem correspondente poucas vezes na história. Com efeito, poucos foram os períodos da História, em que mudanças tão profundas e de largo alcance para a humanidade, assemelham-se às que se produzem em alguns períodos históricos como o atual. A este respeito, os sinais indicam, cada vez de modo mais convincente, que estamos num desses períodos, ou seja, num período de profunda crise civilizatória, a demandar alternativa, a curto, médio e longo prazos.
Sobre isto, temos tido a contribuição de vários pensadores. Aqui trataremos de caracterizar os aspectos principais que indicam a incidência desta “mudança de época”. Um deles tem a ver com a profunda e crescente crise de valores e paradigmas que, até há pouco tempo atrás, vigiam como hegemônicos, enquanto hoje, cada vez mais, se apresentam questionados, quando não mesmo refutados. Outra característica tem a ver com a multiplicidade de aspectos, a que o modo atual de organização das sociedades, pelo menos em sua grande maioria, já não consegue responder, a contento Hoje, dá-se conta de que os grandes eixos organizativos que presidem a este modelo, se vêem cada vez mais contestados, a medida que não mais atendem às necessidades e aspirações fundamentais do mundo atual, tornando-se cada vez mais fragilizado. Ou seja, o modelo capitalista de organização societal tem conhecido profundas e crescentes crises, não apenas do ponto de vista estritamente econômico, como também do ponto de vista político e do ponto de vista cultural. Se épocas houve em que tal modelo, bem ou mal, atendia às necessidades e às aspirações de parcelas significativas ou majoritárias de suas respectivas populações, hoje já não é mais o caso.
Nesta complexa trama de “mudança de época”, o primeiro fio a merecer uma reflexão mais elaborada, é o da “Totalidade”, que também associamos ao de “Holística”. Cuida-se de superar a vã tentativa de compreender a realidade, considerando-se apenas e tão somente suas manifestações fragmentadas, isoladas, desconexas, tomadas como se fossem um todo. Sempre que isto ocorre, produz-se inevitavelmente uma leitura deformada da mesma realidade que se pretende apreender.
Desde os povos antigos, dentre os quais os filósofos pré-socráticos, a humanidade aprendeu a perceber a realidade como um todo em movimento, como uma unidade em sua extraordinária diversidade. Dai, expressões ou princípios, tais como: “Tudo está ligado a tudo” (interação universal); “Tudo muda” (movimento universal)… Tal percepção, no decorrer dos tempos, foi, contudo, cedendo lugar à tendencia de fragmentação, ou mais precisamente, de fragmentação da leitura da realidade observada, já que, independentemente de quem a lê, a realidade segue fundamentalmente una, diversa e mutável. Esta tendência a uma análise fragmentada da realidade vem ganhando terreno, desde a vigência hegemônica do chamado cientificismo, ou seja, de uma pretensa superioridade atribuída ao conhecimento cientifico, em detrimento de outras formas de saber, do que tem decorrido uma progressiva fragmentação ou “especialização” extremada dos saberes secularmente produzidos pela humanidade.
A despeito de seus efeitos gravemente nocivos, há de se reconhecer que aquela tendencia tem prevalecido, até porque se tem mostrado amplamente favorável a uma marca tipicamente capitalista: a de sua capacidade de simulação da mesma realidade, aos olhos desarmados de grandes parcelas da humanidade, desprovidas das condições materiais e imateriais de existência. A leitura fragmentada da realidade, com efeito, tem-se transformado em poderosa estrategia de exploração econômica, de dominação política e de marginalização cultural, em beneficio de ínfimas minorias de classes e grupos privilegiados. No segundo tópico dessas linhas, cuidaremos de trazer à tona casos e fatos ilustrativos, atentando como o reconhecimento da “Totalidade” é fundamental para o desmascaramento das estratégias capitalistas de mercantilização do Planeta, dos humanos e do conjunto dos membros da comunidade dos viventes. Por enquanto, baste-nos explicitar o sentido aqui trabalhado de “Totalidade” como perspectiva de análise, buscando atentar para a integralidade das relações humanas e sociais, em sintonia com a Mãe-Natureza.
O segundo fio da malha, organicamente ligado aos outros dois fios da trama, aqui destacados, corresponde ao fio da “Interconexão”. Aqui, acentuamos as íntimas associações vigentes entre os diversos acontecimentos, situações e ocorrências do mundo vivido. Sendo a realidade um todo em movimento, seus elementos componentes só pedem ser bem apreendidos, se bem observadas suas ligações internas e externas. São estas ligações internas e externas que conferem sentido tanto a cada parte, singularmente tomada, seja ao conjunto das partes. Uma eventual apreensão de alguma delas isoladamente só é concebível como procedimento metodológico de análise, desde que se reconheçam suas interconexões. Na verdade, “tudo está ligado a tudo”. E isto induz à necessidade de tentar apreender/compreender distintos aspectos da realidade, não tanto como numa fotografia, mas, antes, como um filme, isto é, em movimento. Neste caso, a rigor, já não se deve entender o “micro” como algo desprendido do “macro”, ou o “local” desprendido do “global”, uma vez que um comporta sementes do outro. Tal perspectiva carrega distintas consequências práticas, como buscaremos examinar no segundo tópico dessas linhas.
Quanto ao terceiro fio anunciado – o da “Práxis” -, vem aqui assumido como condição de viabilização prática da costura dos fios antes mencionados. Graças à “Práxis”, é que conseguimos fazer interagir tanto a dimensão da “Totalidade”, quanto a dimensão da “Interconexão”. É pela via da “Práxis”, por exemplo, que conseguimos articular as partes do todo; é graças à “Práxis”, que logramos costurar as dimensões passado-presente-futuro. É em virtude do exercício da “Práxis”, que conseguimos ligar e dar sentido ao “micro” e o “macro”, ou mais precisamente, enxergar o “micro” no “macro” (e vice-versa), o mesmo procedendo em relação a pólos similares – o “já” e o “ainda não” (E. Bloch); a dimensão material e a dimensão imaterial; a natureza e a cultura…
Resulta mais diretamente da alçada da Práxis o compromisso de propiciar as condições concretas para o progressivo atingimento das metas almejadas, seja pelo recurso à memória história, seja pelo investimento incessante de acompanhamento da realidade social, em seu movimento (análise de conjuntura e de estrutura), seja na atenção ao papel da mística revolucionária, que implica o exercício da crítica e da autocrítica, seja no cuidado e no esforço prospectivo, lugar mais forte da criatividade revolucionária. Esses e outros pontos mais devem ser alvo preferencial do processo de formação contínua, assunto já tocado, em outros momentos. (cf. Textos de Alder Calado).
2. Incidências dos fios aqui tratados no processo de humanização, no chão do dia-a-dia
Faz parte intrínseca da estratégia do sistema dominante esconder, omitir, simular, de mil maneiras, aos olhos das classes populares, o movimento concreto da realidade, ora superdimensionando, ora empalidecendo aspectos dessa mesma realidade, conforme seus interesses e caprichos de classe. Não é à toa o famoso “Dívide et ímpera” dos antigos Romanos, ou o seu “Pão e circo”… Quanto mais se consegue esconder dos olhos das camadas economicamente exploradas, politicamente dominadas e culturalmente mantidas à margem, tanto mais facilmente o sistema consegue impor-se e, se possível lhe fora, perpetuar-se. Um de seus segredos preferidos é fazer passar ao conjunto da sociedade a impressão de que as coisas acontecem “naturalmente”: “sempre foi assim, e tudo vai continuar sendo”.
Se não infinitas, são extremamente vastas e múltiplas as manifestações dos fios da “Totalidade”, da “Interconexão” e da “Práxis”, incidindo sobre o processo de humanização, na complexa teia de relações do dia-a-dia. Também, no plano societal, que aqui cuidamos de sublinhar, com especial ênfase. Tais formas de incidência, com efeito, se dão, nas relações mais diretamente econômicas e políticas, como nas relações cósmicas, ecológicas, de gênero, de etnia, nas relações geracionais, subjetivas, com o Sagrado… Nas relações econômicas, por exemplo, despontam inúmeras ilustrações. Uma delas prende-se à dimensão do trabalho, ou, mais especificamente, do modo como ele é organizado na dinâmica capitalista, sob a forma do emprego ou do mercado de trabalho. Tal é o nível de sedimentação ou de cristalização da exploração exercida, que – em especial nos contextos de crise – o emprego, não importando as formas de exploração, veladas ou explícitas, sofridas pelos “de baixo”, que estes, não apenas se sentem satisfeitos com seu emprego, como também se sentem obrigados a lutar por ele, como se fosse sua salvação: o desemprego é o maior inferno…
Situação vulpinamente explorada pelos grandes empresários (“dadores de emprego”), para se apresentarem como “salvadores”, por assegurarem emprego, recebendo, tantas vezes, privilégios vários dos distintos governos, inclusive sob a forma de renúncias fiscais… Bradam, com espantosa frequência, e com ares de benfeitores: “É preciso garantir emprego e renda”, aos ouvidos complacentes dos trabalhadores e trabalhadoras, parte expressiva dos quais tendo que comer “o pão que o diabo amassou”, suportando as mais cruéis condições de trabalho e salário, profundamente precarizadas. (cf., a este respeito, o conhecido documentário de Jean François Brient, “Da servidão moderna”:
https://www.youtube.com/watch?v=xAVYFYMFAag
Daí resulta um desafio de monta para as forças sociais que se pretendem comprometidas com a criação de condições alternativas ao modelo vigente, à medida que
– seu empenho central tem sido, salvo exceções, buscar saídas contra o desemprego, pouco ou nada perguntando-se sobre a consistência dessa bandeira, e seu significado concreto ante as aspirações proclamadas de construção de uma sociedade alternativa;
– acabam adiando “ad aeternum” seu empenho em ousar dar passos concretamente alternativos à ordem imperante, sucumbindo objetivamente aos ditames do sistema que dizem combater;
– confrontando-se, objetivamente, sua posição convencional frente à política econômica dominante, resulta uma brutal contradição com seu projeto alternativo. Em suma: diz-se pretender uma nova sociedade, enquanto efetivamente se põe em prática a estratégia central das forças que são ditas adversárias…
Ainda no plano da economia, resta longa a distância entre o que se louva externamente, quanto aos avanços de experiências fecundas, na linha do “Bom Viver”, acabam falando mais forte sua aposta num estilo de vida (coletivo e pessoal) que tende muito mais a fortalecer a cultura do desperdício, do consumismo, da idelologia do conforto, a qualquer custo, inclusive ao custo de sufocante endividamento, que torna ainda mais escravos seus seguidores, a engordarem ainda mais, objetivamente, os lucros dos financistas. Há, com efeito, um hiato abissal entre nossas prédicas e nossas práticas. Como costuma insistir uma figura de referência de nossos dia, o ex-presidente do Uruguai, Pepe Mujica: “É preciso viver como se pensa”. Sugiro, a este respeito, ver/ouvir uma preciosa intervenção desta personagem, acessando-se o “link”:
Não é a primeira vez que Pepe Mujica se manifesta, enfático, sobre a necessidade e urgência, para o Planeta e para a Humanidade, de se ousar ir construindo um processo civilizatório alternativo ao que temos. Já o fez, em distintas ocasiões, inclusive em seu famoso discurso, na Assembléia da ONU. Isto passa por um novo modo de produção, que, diferentemente das forças sociais para quem bastava lutar socialização dos bens de produção fundamentais, hoje constatamos ser algo bem mais complexo, de modo a envolver necessariamente uma mudança cultural, implicando valores e estilo de vida, seja no âmbito coletivo, seja no plano pessoal. Tarefa a ser assumida pelos novos lutadores e lutadoras, desde aqui e agora. A desejada mudança de rumo (de modelo societal) ou será capaz de articular adequadamente fins e meios, ou nada será capaz de mudar, substantivamente. Revela-se estéril e enganoso pretender-se alcançar um fim, cujos meios, cujos caminhos não se mostrem compatíveis com o referido fim. A quem deseje enxergar, aqui se encontra mais uma ilustração didática da necessidade de retomarmos, em novo estilo, as lutas sociais do campo e da necessidade, por elas entendendo para muito além das meras manifestações públicas massivas. Estas, com efeito, restam fundamentais, mas se precedidas, acompanhadas e seguidas de compromissos organizativos e formativos interconectados. Aí também ressoam, fortemente, as manifestações concretas da “Totalidade”, da “Interconexão” e da “Práxis”, no chão do dia-a-dia.
A ilustração deste mesmo paradigma manifesta-se ainda com mais vigor e com mais impetuosidade numa reflexão vinda de um sujeito/protagonista atípico. Refiro-me ao ainda recente documento “Laudato sì”, produzido pelo Papa Francisco, em junho de 2015, sobre os desafios socioambientais, a nossa “Casa Comum”. Aí se manifesta profusamente uma profunda articulação orgânica entre os fios aqui trabalhados. “Fios” explicitados com dados convincentes, e sobretudo bem costurados, de modos vários ou sob diversos aspectos: do ponto de vista espacial (global-regional-local); do ponto de vista econômico-político-cultural, no âmbito macro-micro; enfim, um texto tecido com muita arte, no exercício inter/transdisciplinar, prático-teórico.
Considerações problematizadoras…
Sabemos que, malgrado o impasse em que nos encontramos, nem tudo inspira pessimismo. Há coisas muitas acontecendo, nas “correntezas subterrâneas”. Todas essas experiências, nascidas e alimentadas, a partir de pequenos grupos, de pequenas comunidades, de iniciativas criativas de setores da sociedade civil, do campo e da cidade. Outro ponto a ajudar a restituir nossa esperança é saber que nem deve partir da estaca zero. Inclusive, quanto a tempos recentes, em que essas práticas organizativas e formativas eram ensaiadas, com relativo sucesso. As mesmas forças protagonistas de aspectos fundamentais de uma nova proposta de organização societal – referimo-nos ao final dos anos 70 / começos dos anos 80 (para não recuamos mais, no tempo) – deixaram marcas memoráveis, que infelizmente foram secundarizadas ou abandonadas. Seguir apostando em algo alternativo à barbárie implicará o enfrentamento de vários desafios, velhos e novos, cujo êxito requer a retomada, em novo estilo, de tarefas ao seu alcance, começando por uma prática abandonada, há algumas décadas – o exercício da AUTOCRÍTICA – coletiva e pessoal…

João Pessoa-Olinda, 11 de novembro de 2016.,

Nenhum comentário:

Postar um comentário