A FORÇA REPARADORA DA MEMÓRIA
HISTÓRICA: revisitando parte do legado de sábias invisibilizadas, durante
séculos
Alder Júlio Ferreira Calado
Ainda que hoje menos do que ontem, segue intrigante a desproporção entre
o número de autores e o número de autoras. Por que resta tão abissal a
distância entre, o número de sábios, de cientistas, de escritores, de um lado,
e, de outro lado, o de homólogos do pólo feminino das relações sociais de
gênero, na Idade Média e para além desta? O que têm revelado pesquisas
histórico-literárias recentes e menos recentes, das quais vêm irrompendo
impactantes achados, dando conta de densa produção cultural
de sábias medievais, cujos nomes foram, durante longo tempo, usurpados, omitidos,
relegados, invisibilizados, em benefício de pretensa autoria masculina? A que
isto se deveu (ou se deve)? Que condições sócio-históricas teriam permitido a
invisibilização dessas mulheres? Perguntas que tais orientam a presente
incursão reflexiva.
A avidez e a obsessão desenfreadas pelo poder foram e seguem sendo – em
especial, dentro de certos contextos histórico-societais - fatores
determinantes ou fortemente condicionantes de monstruasas tragédias,
perpetradas por algozes coletivos ou individuais, tendo estes como principal
marca comum a de serem (quase sempre) do pólo masculino das relações sociais de
gênero. Com efeito, movidos pela avidez e pela obsessão pelo poder, pela riqueza,
pela fama, pelo prestígio..., homens têm protagonizado tragédias
horrendas contra povos inteiros, povos tradicionais, das florestas, das águas,
dos desertos. Diz muito, a este propósito, por exemplo, o processo de
colonização implementado, durante séculos, na América, na África e outros
continentes. Contra esses povos, com efeito, não se hesitou a recorrer à
invasão, à opressão, à exploração, à marginalização, aos massacres em massa, à
dominação, à expropriação, à exploração, à marginalização de aborígenes,
de negros, de homoafetivos, de camponeses, de operários, de migrantes, de
refugiados, a maioria dos quais composta por mulheres... Estas constituem o
alvo das presentes notas, ou mais precisamente, um segmento delas, isto é:
algumas que, no período medieval, se destacaram pela sua extraordinária
capacidade de produção intelectual, aqui tratadas como escritoras, cientistas
ou sábias. Mulheres cujos obras foram indevidamente atribuídas a homens,
enquanto outras tiveram seus nomes longamente omitidos, postos à margem, tendo
sido perseguidas, assassinadas, condenadas à fogueira da Inquisição, tortuadas,
silenciadas, de diferentes modos.
Por quê tanta perversão, e por tão longo tempo? Por quê responsabilizar
as vítimas por crimes alheios? Os algozes, ontem como hoje, tentam “se dar
bem”, em suas macabras empreitadas. O “álibi” de ontem foram as “bruxarias”, a
suposta natureza pecaminosa da mulher. Hoje, sucessivos e frequentes
feminicídios e estupros são debitados à responsabilidade das próprias vítimas,
por seu comportamento “provocativo”...
Por mais astuto que se pretenda no exercício da “arte” de se esconder, o
gato acaba deixando a pontinha do rabo de fora do próprio esconderijo.. Com os
humanos não é diferente: “Nada oculto que não venha a ser revelado”, diz uma
passagem evangélica (cf. Mc 4,22; Lc 8,17). Não obstante, quantas não são as
vezes em que prevalece a sedução da mentira, da omissão ou das vulpinas meias
verdades, ao longo da história da humanidade? Neste momento, aliás, a
sociedade brasileira se vê mergulhada num mar de grandes e graves escândalos de
pilhagem das riquezas públicas, todos alimentados pela sedução de “belas”
mentiras, omissões ou meias verdades, na ilusória “certeza” de que nada seria
descoberto... Desafortunadamente, fatos similares se repetem em tantas
esferas de nossa vida, ao longo da história. Aqui, destacamos o caso do qual
resultaram – e continuam sendo – vítimas os segmentos mais vulneráveis de nossa
sociedade, entre os quais se incluem as mulheres, sob vários aspectos –
econômico, político, cultural. Detemo-nos, nessas linhas, mais especificamente
ao caso da deliberada invisibilização do legado de tantas mulheres sábias, ao
longo da história. Por meio de estratégias tenebrosas – todas atinentes à
questão do poder androcêntrico. A onda de misoginia fez e segue fazendo, sob
várias formas, uma sucessão escandalosa de vítimas, vale dizer, de mulheres de
ontem e de hoje, sob os mais revoltantes disfarces, e, por vezes, até às
escâncaras...
As linhas que seguem concentra-se apenas em um caso específico: o de
algumas mulheres com extraordinário potencial criativo em seu legado, cujos
nomes passam a ser indevidamente apropriados por figuras masculinas.
Escolhemos as trilhas da memória histórica como meio de reparação (parcial)
dessas injustiças. Muito se tem dito, muito se tem escrito sobre a importância
do passado como fonte de inspiração para as lutas libertárias dos “de baixo”.
Até que, ouvindo esses relatos, aqui e ali, nos animamos. Passado, porém,
aquele momento de euforia proporcionado pelo “ouvir dizer”, tais relatos
tendem, não raro, ao longo arquivamento, como algo apenas “interessante”, sem
maiores consequências. Transformam-se em meras páginas saudosas, e por aí
ficam. Tal forma de (re)visitação do passado acaba virando saudosismo, isto é,
provocam momentos agradáveis, mas nada mais além disto. Não é, com efeito,
desta forma de (re)visitação que cuidamos de registrar essas notas.
Nas notas que seguem, cuidamos de 1) situar aspectos mais expressivos do
período correspondente; 2) ressaltar traços biobibliográficos dessas
escritoras; e 3) assinalar o heróico esforço de pesquisadoras e pesquisadores
que, recorrendo à força reparadora da memória histórica, vêm-se dando ao
trabalho de passar a limpo essas horrendas histórias, ainda que parcialmente...
1)
Situando traços histórico-culturais do período revisitado
As Mulheres aqui focadas viveram entre o século XI e o século XV.. Como
se percebe, um período de cerca de quatroecentos anos não dá para caracterizar,
de modo razoável, em algumas linhas. Tratamos apenas de pincelar aspectos
muitos gerais deste período, e em função apenas das figuras revisitadas.
Recorrendo a medievalistas deste período, tal é o impacto positivo do balanço,
que contrasta enormemente com o que se costuma atribuir pejorativamente à Idade
Média, numa apreciação reducionista e injusta, feita a partir de certas
correntes modernas. Impacta-nos por exemplo, o clima de liberdade propiciado
pelo desenvolvimento das cidades, das comunas, onde vão se estabelecer e
prosperar os artesãos, com toda a sua criatividade. Aí se forja uma ambiência
onde se respira liberdade, isto é, uma relativa autonomia em relação à nobreza,
à medida que as artes e os ofícios passam a permitir que os artesãos vivam dos
artigos e produtos do seu trabalho, e vão conquistando espaços de
liberdade. À medida que as atividades comerciais e industriais vão progredindo
em cidades européias estratégicas, a exemplo de Veneza, Florença e outras na
Inglaterra, na França, na Alemanha, nos Países Baixos, etc., ganha corpo o
comércio com outras regiões do mundo, no Oriente Médio ou na chamada Ásia
Menor, com Bizâncio, com países árabes, Índia..., onde os famosos mercadores e
as célebres companhias comerciais desevolvem intensas atividades, permitindo
aos próprios artesãos ampliarem o raio de comercialização de seus produtos.
Favorecido pelo movimento econômico, surge e prospera um fecundo
cenário cultural, inclusive a partir de crescente ciruculação de pessoas de
diferentes regiões do mundo então conhecido. Cenário, por conseguinte,
amplamente propício também para o desenvolvimento das letras e das artes, numa
época em que as letras eram apanágio de poucos, entre os quais os monges. Estes
despontam, então, como as grandes referências das letras.
Eis formada uma ambiência inspiradora para o êxito de grandes talentos,
que, num “crescendum”, foram sendo revelados. Sucede que, num contexto de quase
monopólio androcêntrico, eram mínimas as oportunidades favoráveis ao
desabrochar dos talentos femininos. Pior do que isso: as poucas mulheres que
conseguiram romper esse muro androcêntrico, ainda tiveram que enfrentar um
obstáculo suplementar: as reiteradas práticas de expropriação de sua autoria.
Suas obras eram, com frequência, usurpada, vulpinamente atribuidas, a nomes
masculinos... Daí para a sua quase completa invibilização, foi um passo e
sobretudo duradouro...
2. Breve notícia biobibliográfica das
autoras revisitadas
Como já dito, resulta impressionante o número de mulheres com notável
contribuição à humanidade, em distintos campos de saberes - literatura,
medicina, música, pintura, teologia, espiritualidade, etc., que, durante
séculos, tiveram usurpadas suas respectivas autorias, em indevida atribuição a
nomes masculinos. Não arriscamos sequer mencionar-lhes os nomes, até porque
provavelmente outros tantos nomes serão revelados, graças ao incansável
trabalho de investigação tocados por vários grupos de pesquisa. Aqui nos
permitimos citar apenas algumas dessas mulheres, dentre as que viveram entre os
séculos XI e XV, em diferentes países e cidades: Trótula de Ruggiero (Salerno,
Itália, séc. XI), Hildegard von Bingen (Bremersheim, Alemanha, séc. XII),
Hadewich de Antuérpia (Antuérpia, Bélgica, séc. XII), Hadewich II, Beatriz de Nazareth,
Michtildes de Magdebouorg, Marie Oignies, Juliana de Norwich, Christine de
Pizan, etc. etc. Nas linhas que seguem, concentramos o foco em apenas três
delas: Trótula de Ruggiero, Hildegard de Bingen e Hadewijch d’Anvers
Aspectos
da vida e do legado de Trótula de Ruggiero
Trótula de Ruggiero nasceu em Salerno, na Itália, no século XI,
possivelmente em 1097, de família de
recursos, tendo em sua ascendência membros de origem geográfica diversa:
inclusive de avó bizantina. Diversidade étnica era, aliás, característica da
Salerno daquela época: um influente pólo urbano, com intensa movimentação de
outros povos - árabes, da região judaica, do Oriente Médio, do norte da
Europa... Característica que propiciava um múltiplo intercâmbio, não apenas
econômico, também de idéias, de conhecimentos, de tradições culturais. Neste
período relativo ao percurso existencial de Trótula, a marca maior de tal
intercâmbio se deu no campo científico, em especial no âmbito da medicina.
Favorecida pela posição social de sua família, mas sobretudo graças à
excelência do seu talento, Trótula cedo é iniciada a um múltiplo aprendizado,
que incluía o aprendizado do Latim, da música e, principalmente, de plantas e
minerais, com funções curativas. Foi-lhe muito importante poder contar com os
espaços do mosteriro voltados para o cultivo e armazenamento de plantas
medicinais. Aí se deram seus primeiros experimentos. Cumpre, porém, destacar um
aspecto axial de seu labor investigativo: a quem Trótula elegeu como alvo
central de suas sábias experiências? As mulheres, ou seja, o mundo mais
vulnerável aos efeitos mais graves das doenças de seu tempo. Seu propósito
extrapolava a dimensão estritamente sanitária: propunha-se, também, a
contribuir com a arte do embelezamento feminino, tendo fornecido, a este
respeito, admiráveis preparados, como o atesta sua obra-prima, algum tempo
depois, traduzida para vários idiomas.
Não era fácil, vale insistir, às mulheres do seu tempo (e de outros...)
conquistarem lugar enquanto produtoras de saberes, menos ainda em saberes
envolvendo mística, espiritualidade, teologia, letras ou, como foi o caso
específico de Trótula, medicina. Aqui, ela teve uma dificuldade adicional. Teve
que enfrentar o preconceito de se vedar a prática da medicina, especialmente a
mulheres celibatárias. Não teria chance, se tivesse permanecido solteira. Teve
a oportunidade de ser cortejada por uma figura nobre, também afeita ao campo da
medicina, com quem vem a casar-se, propiciando-lhe uma valiosa parceria, no
campo da medicina, ainda que pairem dúvidas sobre se o mesmo se tenha dado no
âmbito afetivo... Há registros dando conta de intensa correspondência sua com
uma figura masculina do Norte da Europa, dedicada à pesquisa no campo médico.
Aqui remeto a quem interessar possa, à conferência feita sobre Trótula, por
ocasião da apresentação do alentado livro (404 páginas!), publicado em 2013, de
autoria de Dorotea Memoli Apicella, sob o título “Io, Trotula. Storia di una
leggendaria scienzata medievale: https://www.youtube.com/watch?v=xicZAqOzcqE
No que toca mais diretamente à obra principal de Trótula, acerca dos
processos de cura das doenças das mulheres, antes, durante e depois do parto, o
que se deve destacar de suas pesquisas? Vejamos alguns aspectos, a este
respeito. Primeiro, como se percebe, desde o título da obra, seu propósito se
revela de uma notável vastidão, de modo a cobrir casos e situações de doenças
que afetavam as mulheres, em seu tempo, num amplo leque de situações,
abrangendo de cólicas a manifestações diversas do período menstrual, passando
por situações embaraçosas ligadas ao trabalho de parto e ao período
subsequente, até casos ligados a cabelos
estragados, aparecimento de sarnas, cáries, sardas no rosto, aftas, mau hálito,
incluindo muitas receitas para embelezamento dos cabelos, tratamento de queda de
cabelo, casos de fortalecimento dos mesmos, ou de branqueá-los, ou torná-los
pretos, mais longos, mais curtos, etc., etc. A seguir, para efeito ilustrativo,
transcrevemos um desses numerosos registros medicamntosos:
“Além disso, a purificação costuma ser
feita nas mulheres, entre os treze e quatorze anos, ou um pouco antes ou pouco
depois, conforme nelas seja mais intenso o calor ou frio. Dura até aos
cinquenta anos, se ela for magra; às vezes, até aos sessenta ou sessenta e
cinco anos, se é úmida; nas moderadamente gordas, até aos quarenta e cinco
anos. Portanto, se essa purificação ocorrer no tempo e na ordem devidos, a natureza
se alivia, de modo apropriado, dos fluidos superabundantes. Se realmente a
menstruação ocorrer com um fluxo mais ou
menos intenso do que o devido, disto decorrem diversas enfermidades, visto que
isto implica inibição da vontade de comer e de beber; às vezes, ocorre vômito,
outras vezes, têm vontade de comer terra, carvão, excrementos e coisas do
gênero. Algumas vezes, pela mesma razão, se sente dores em torno do colo, das
costas e da cabeça, outras vezes ocorrem febre alta, dor no peito, hidropisia
ou disenteria, ou então dores no peito, mas também outras doenças mais graves.
(...) Por vezes, com efeito, ocorre diarreia por causa da frieza
excessiva do útero ou porque suas veias são muito sutis como ocorre nas
mulheres frágeis, porque aí o fluxo viscoso e excessivo não permite passagem
pela qual possam menstruar; ou porque o fluxo é denso e viscoso, razão
pela qual o aglutinamento da saída do fluxo fica bloqueada ou porque as
mulheres comem gulosamente; ou porque, em razão de algum trabalho, suam muito.
Como comprova Galenus, a mulher que não se exercite muito, nela a menstruação
ocorre com frequência de modo abundante, justamente para ficar bem. (...)”
(Extraido do livro “Sobre a cura das doenças das mulheres, antes, durante e
depois do parto”. Trad. a partir do Latim: AJFC)
Em relação aos diferentes tratamentos estéticos femininos, vale
ressaltar o avanço da medicina árabe, em especial das mulhers sarracenas,
disponibiliazando uma gama notável de produtos e de preparados ligados ao
embelezamento do corpo feminino.
Aspectos
do legado de Hildegard de Bingen
Hildegard von Bingen nasceu em Bermersheim vor der Höhe, Alemanha, no
século XII, em 1198, Era filha de uma família numerosa, da qual ela era a
décima nascida. Isto teve forte consequência em sua vida. Era costume, àquela
época, que as famílias católicas, contampladas com grande prole, se
prontificassem a oferecer um dos filhos ou filhas aos cuidados e ao serviço da
Igreja. Sendo a décima nascida, na família, isto ensejou a “doação” de
Hildegarda de Bingen à Igreja, mais precisamente, a um mosteiro. Tal costume
tinha a ver com uma espécie de “dízimo” devido pelas famílias numerosas à
Igreja. Hildegarda, ainda criança, ficou
sendo cuidada por uma educadora especial.
Cercada daquela ambiência e daqueles cuidados educativos, e sobretudo em
virtude de seus múltiplos talentos e de seu empenho, Hildegarda de Bingen vai
tornando-se, passo a passo, uma figura veneranda e multiplamente abençoada:
mística, teóloga, musicista, compositora, linguista (inclusive tendo sido
autora de um idioma artificial (ao modo do Esperanto), naturalista, terapeuta,
poetisa, profetisa, consellheira política...
Também, ainda criança – e estendendo-se por longo período de sua vida -,
teve sucesivas visões, isto é, passou a ter uma experiência direta de Deus,
algo profundamente inusitado. Mais do isto, trazia-lhe sérios problemas de
convivência, naquele ambiente. Por longo tempo, preferiu guardar em segredo
tais visões frequentes, que, depois,
passou a partillhar com o seu confessor. Este, do espanto inicial, foi
passando a entender melhor, com o trasncorrer do tempo, tratar-se de algo mais
sério, a ponto de chegar a aconselhá-la a registrar por escrito suas frequentes
visões místicas. Os desdobramentos de parte desses fenômenos podem ser melhor acompanhada, por meio do
filme sobre suas visões e outros aspectos de sua vida, filme que se pode ver, por meio do “link”:
https://www.youtube.com/watch?v=nHGNOd5uQgU
Uma vez aceita a recomendação do confessor, tendo este pedido e recebido
autorização do seu superior, Hildegarda von Bingen passa a escrever os relatos
de suas sucessivas visões, de forma poética e utilizando-se de ilustrações
imagéticas – outro talento seu. É neste
campo que ela parece ganahr maior notoriedade. Suas visões constituem uma
bússola também para si mesma, além de precioso tesouro para o aconselhamento de
tanta gente, das mais distintas condições sócio-econômicas. Políticas e
culturais. Mas, em que consistiam mesmo essas visões. A seguir, cuidamos de
fornecer uma breve ilustração de alguns relatos por ela escritos.
Contentemo-nos com o seguinte:
Diferentemente das Beguinas mais notáveis – das quais ele é considerada
precursora – Hildegarda von Bingen, a desperito de muitas barreiras e
incompreensões, vivendo num mundo androcêntrico, não sofreu as perseguições de
que seriam vítimas as Beguinas. Provavelmente, sua condição de Monja
Beneditina, bem como seus múltiplos talentos possam explicar parcialmente tal
diferença.
Num tempo em que seguia rigida e hermética a tradição andocêntrica,
resulta esclarecedora a observação crítica feita por Claudia Opitz, de que “Por
isso o caminho que as mulheres animadas por um sentimento religioso escolheram
nos finais da Idade Média foi o do <<discurso místico >> -
Hildegarda de Bingen definia-se como <<recptáculo do Espírito Santo>>, uma imagem que as místicas que
lhe sucederam adoparam; por isso essas mulheres
podiam julgar-se <<instrumentos de Deus>> e econtraram quase
por todo lado um da <<Igreja pontifical>>, dividida em facções
rivais lutando pelo poder e dilacerada pelo Grande Cisma até à reconciliação
provisória do concílio de Costança (1414-18).” (OPTIZ, Claudia. “O quotidiano
da mulher no final da Idade Media (1250-1500)”, in DUBY, George e PERROT,
Michelle. História das Mulheres. A
Idade Média. Porto, Edições rontamento; São Paulo, EBRADIL, 1992, p.426)
Considerando a vasta obra de Hildegarda Von Bingen, tratamos a seguir,
de ilustrar seus escritos poéticos, com o seguinte poema:
“Ó CORUSCANTE LUZ
“Ó CORUSCANTE LUZ
Ó coruscante luz das estrelas,/ó esplêndida especial beleza de núpcias
reais,/ó fúlgida gemma,/ em excelsa pessoa és ornamento/sem qualquer maculada
ruga./És também sócia dos Anjos/e conidadã dos santos./ Foge, foge ao antro do
inimigo antigo,/e apressada vem ao palácio do Rei.” (Extraido de CARVALHO, J.F.
e MENDONÇA, J.T. Flor Brilhante. Editora
Assírio & Alvim (Cf. www.assirio.pt). P.25)
Traços
biobibliográficos de Hadewijch d´Anvers
Bem rarefeitos são os dados biográficos de Hadewijch d´Anvers, “Et pour
cause”... Seus escritos poéticos se revelam extremamente incômodos ao mundo
androcêntrico do seu tempo e para além do mesmo. Não é por acaso que seus
escritos místicos só foram aparecer publicados cerca de seis séculos depois...
É uma das principais Beguinas, nascida no século XIII (por volta de 1240). De
modo e em grau diferenciados de outras colegas suas, como Margarete Porete
(que teve queimados seus escritos, em praça de Paris, sendo ela mesma, depois,
vítima da mesma fogueira inquisitorial), também Hadewijch d´Anvers teve que
enfrentar muitas adversidades. O fato de ser uma Beguna era a principal. O
movimento das Beguinas, tendo surgido no final do século XII, logo se espalhou
pelo Norte da Europa, pela região do Reno, pela Baviera, pelo Norte da França e
principalmente pela região dos Frandres (Bélgica), também Norte da Itália e até
na Espanha. A certa altura, ganhou tal densidade, que se estimava em duzentos
mil o número de Beguinas, àquela época. Elas viviam em casas agrupadas,
compartilhando momentos conjuntos de oração e de outras atividades. Viviam do
próprio trabalho (tecidos, bordados, artesanatos), dedicando, ainda, aos
cuidados das pessoas mais vulneráveis do seu tempo: os anciãos, os órfãos, os
doentes, os marginalizados. Dentre elas, havia verdadeiras sábias, a exemplo de
Hadewijch d´Anvers. À semelhança das demais Beguinas, também preferiu
consagra-se ao amor e ao serviço dos outros, sem pronunciar votos, nem viver sob a tutela eclesiástica de varões, sem que
isto implicasse atitude de desrespeito
aos sacramentos ou à vida cristã.
“O que o Amor tem de mais doce são
suas violências;
Seu abismo insondável é sua forma
mais bela;
Perder-se nele, é alcançar a meta;
Ter fome dele é nutrir-se e
deliciar-se;
A inquietude de amor é um estado seguro;
Sua mais grave ferida é um supremo
bálsamo;
Seu definhar é nossa força;
Eclipsando-se é que ele se faz
descobrir;
Se dói é saúde pura;
Se ele se esconde, ele nos revela
seus segredos;
É recusando-se, que ele se libera;
Não tem rima nem razão e é a poesia;
Ao cativar-nos, ele nos liberta;
Seus mais duros golpes são suas mais
doces consolações; Se ele tudo quer de nós, quanto benefício!
É quando ele se afasta, que ele mais
se aproxima de nós; Seu mais profundo silêncio é seu canto mais alto;
Sua pior coléra é sua recompensa mais
gratificante;
Sua ameaça nos tranquiliza
E sua tristeza consola todos as
tristezas:
Nada ter é sua riqueza
inesgotável.”
À semelhança das grandes referências de sábias medievais, a produção literária de Hadewijch d’Anvers é paradigmática. A ela se devem, inclusive, os
primeiros registros escritos da língua flamenga. Aqui, porém, destacamos apenas
um de seus tantos poemas místicos;
“O que o Amor tem de mais doce são suas violências:/Seu abismo
insondável é sua forma mais bela:/ nele perder-s
3. O
efeito reparador da memória histórica: a contribuição dos grupos de pesquisa
Impactam-nos profundamente o caráter e a extensão dos males provocados –
ontem e hoje! – do modelo androcêntrico de organização societal. Aqui, as
relações sociais de gênero se tecem (quase) sempre de modo subordinado à ótica
e aos interesses dos homens, em franco prejuízo das mulheres, nos diferentes
espaços de sociabilidade, permeando todas as esferas da vida social, econômica,
política, cultural, religiosa... Não se trata de negar propriamente o lugar das
mulheres, mas, antes, de saber qual lugar lhes é reservado. Não cabe dizer que,
nessas sociedades, não haja lugar para as mulheres. As evidências se impõem.
Basta que nos interroguemos sobre tarefas do tipo: quem cuida das crianças?
Quem garante os cuidados da casa? Quem se ocupa da alimentação, da roupa, da
limpeza, das compras, etc., etc., etc.? É claro que aí elas têm lugar
assegurado... Estão-lhes, sim, assegurados os espaços privados, para
trabalharem à exaustão. Mas, não os espaços públicos, relativos às artes, aos
saberes, às decisões...
No caso específico da Idade Média – mais precisamente, jo período focado
-, isto fica às escâncaras! São vedados às mulheres os espaços públicos!
Relativas às ciências, aos saberes, às letras, às artes, etc. Constituem
apanágio exclusivo dos homens. Toda a estrutura de organização societal, nos
diferentes níveis de orgaanização, são controlados pelos homens. E hão de se
dar mal as mulheres que ousarem “pagar para ver”. E algumas felizmente o
ousaram, ainda que sabendo as consequências que teriam que amargar: a usurpação,
a invisibilização, a perseguição, a condenação, as torturas, a fogueira, o
assassinato... A Liberdade, definitivamente,
não é um presente de Papai Noel, que cai do céu gratuitamente! Ainda
assim, vale a pena seguir firme por suas trlhas. É o que percebemos da parte
dessas mulheres.
Nesse sentido, é que nos socorremos da força reparadora da memória histórica,
grande aliada de todas as vítimas, também das mulheres, à medida que ela vai
permitindo a descoberta de fontes, de instrumentos a reveralarem as mais
vulpinas estratégias empregadas pelos adoradores do poder, do dinheiro, do
prestígio, da acumulação de privilégios, arrancados – à força ou pela via
ideológica, mas não menos violenta – às respectivas vítimas.
Por meio das incursões investigativas, protagonizadas por pessoas e
grupos de pesquisa, comprometidos com a verdade histórica, a partir do olhar
das vítimas, vão sendo desveladas estratégias e táticas de manutenção ou
ampliação de privilégios à custa de diferentes tipos de vítimas. Graças a tais
investigações, é que se tem acesso a toda uma multiplicidade de artifícios que
funcionam como espessos véus a esconderem os verdadeiros fatores de opressão,
de exploração e de marginalização. A título ilustrativo, aqui vale destacar a longa e profícua pesquisa
protagoniazada, por décadas, por figuras como Karl Marx, permitindo ao “de
baixo” tomarem consciência das astúcias das forças dominantes, empenhadas em
manter e ampliar seus privilégios. De modo semelhante, pessoas e grupos de
pesquisa, espalhados por vários países, em especial grupos feministas, tratam
de desvendar, nos mais distingos campos de pesquisa, os mais diversos
artifícios voltados para mascarar a realidade, aos olhos das vítimas desta
mesma realiade. Com isto, não estamos a insinuar que o mero exercício da
memória histórica, com todo o seu potencial reparador, seja capaz, apenas por
si mesma, de assegurar o processo de libertação – e aqui, não nos restringimos
apenas à libertação das mulheres, mas de todas as vítimas deste modelo,
inclusive dos segmentos dominantes, que se acham, também eles, impedidos de
responder ao chamamento para a Liberdade, que o processo de humanização requer.
Mas, a memória histórica constitui um passo primeiro, sem o qual outros mais
importantes não se darão.
Reparando para o nosso horizonte repleto de sinais sombrios, não
devemos, por outro lado, perder de vista sinais promissores de um processo
revolucionário em curso, ainda que em doses moleculares. Um desses sinais vem assinalado
por mulheres e homens que, em seu cotidiano, vão mostrando que é, sim,
possível, necessário e urgente um outro mundo, em que todos caibamos com
dignidade – seres humanos e toda a comunidade dos viventes.
João Pessoa, 5 de janeiro de 2017.
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