DA INVISIBILIZAÇÃO AO JUSTO
RECONHECIMENTO DO MÉRITO: notas sobre o legado de Ibn Khaldun (1332-1406)
Alder Júlio Ferreira Calado
Por entre grandezas e misérias,
marchamos, os humanos: “a vida é misturada”, costuma dizer-se. Aqui, tocamos,
mais enfaticamente, numa prática recorrente. E antiga! Referimo-nos a práticas
de injusta avaliação do legado de certas figuras, ao longo da história. Uma
dessas deploráveis práticas tem a ver, seja com a injustificada superestimação
do valor da obra de certas figuras, seja com a indevida subestimação do
legado cultural de outras (individuais ou coletivas). Graças a um conjunto de
estratégias e combinações circunstanciais, certas figuras acabam tendo, em seu
tempo, uma apreciação desproporcional (positiva ou negativamente) de sua real
contribuição. Isto se dá nos mais diversos campos de saberes e atividades.
Preferimos aqui voltar nossa atenção crítica a casos de injustificada
subestimação do legado de diversas figuras – mulheres e homens, em diversos
lugares e tempos. Tal subdimensionamento manifesto-se, revestido de várias
formas: por meio de abrupta usurpação dos créditos alheios; outras vezes, por
deliberada invisibilização, em proveito de outrem; outras vezes ainda, por
apropriação indébita de autoria, feita tanto de modo explícito, quanto de modo
sub-reptício...
Este é, por exemplo, o caso de não
poucas sábias medievais, cujo legado restou longamente escanteado, em benefício
de nomes masculinos. Como não vamos nos deter sobre este caso, cuidamos apenas
de remeter a quem se interessar, a algumas pesquisadoras e grupos de pesquisa
na área, tais como: pesquisas da Profa. Maria Milagros Rivera Garretas, bem
como ao texto de FORCADES, Teresa. A teologia feminista na
história. Lisboa: Presente, 2013; ou ainda a pesquisas realizadas, no âmbito da
UFPB, por um grupo de pesquisadoras (cf., por ex., o texto Vozes femininas na literatura ocidental: corpo espiritualidade e
relações de gênero (Editora da UFPB: João Pessoa, 2010)
Ocupamo-nos, em seguida, apenas de uma figura singular: a de Ibn
Khaldun, cujos ancestrais remontam ao Iêmen, donde migraram para a região de
Andaluzia (região da Espanha, à época sob o domínio árabe), tendo depois
seguido para Túnis, onde Ibn vem a nascer. Trata-se de um sábio medieval, nascido
em Túnes, em 1332, de uma família de diplomatas e governantes notáveis, em
países ou regiões da África setentrional (abrangendo regiões como a de
Marrocos, Árgelia, Tunísia, Egito, onde, aliás, veio a falecer, em Cairo, em
1406) além da região espanhola de conquista árabe. Khaldun, também, sob a
influência de sua família, exerceu várias funções administrativas, inclusive
como ministro de alguns reis, na África. Esta, porém, não é a atividade na qual
ele se tenha mais notabilizado, mas da qual extraiu valiosos ensinamentos,
graças inclusive a diversas viagens de estudo que fez, na região. É, toda via
ao campo dos saberes que Ibn Khaldun consagrou o melhor de sua vida, e no qual
se baseia o mais rico do seu legado.
Graças à sua enorme capacidade de observação, bem como à sua curiosidade
epistemológica, Khaldun empreende durante décadas um alentado plano de
pesquisas, de caráter enciclopédico. Com efeito suas investigações recobriam
áreas tão diversas, tais como: A Filosofia, a História, a Filosofia da
História, a Política, a Sociologia, a Antropologia, a Psicologia Social, as
ciências da Linguagem, a Literatura, a Economia, o Direito, a Demografia, a
Astronomia, a Matemática, a Teologia...
Tais investigações restaram comunicadas em sua principal e mais conhecida
obra, intitulada O Livro dos Exemplos (em árabe
transliterado Kitab al-ibar) Trata-se de uma obra verdadeiramente
enciclopédica, não apenas pela enorme diversidade temática ai tratada, como
também pela extensão da obra, vinda a público em vários volumes, totalizando
1475 páginas.
Antes de fornecer alguns elementos do conteúdo da obra, cuidamos de
registrar, ainda que de passagem, alguns traços de sua metodologia de trabalho.
Corresponde a um alentado projeto de pesquisa que lhe demandou anos a fio de
trabalho – segundo um de seus tradutores, ele consagrou a esta obra vinte anos
de pesquisa. Ainda que Khaldun tenha confessado que a escrita propriamente dita
de sua obra lhe tenha sobrevindo em apenas cinco meses, ao modo de uma
impetuosa torrente, é razoável supor que o processo de pesquisa lhe tenha
tomado árduos anos de investigação. Mesmo sem registro de sua parte, é legítimo
supor – como o faz um de seus tradutores, Abdesselam Cheddadi - que, em
razão de sua complexidade e extensão, a elaboração de sua obra tenha sido precedida
ou acompanhada de numerosas anotações, algo, aliás, comum, à sua época.
Ainda no âmbito metodológico, cumpre destacar a força e a fecundidade do
seu empenho – EM CONTEXTO AINDA DA IDADE MÉDIA, PORTANTO SÉCULOS ANTES DO
ACLAMADO INÍCIO DA CIÊNCIA MODERNA, DOS ENCICLOPEDISTAS, DOS FUNDADORES
OCIDENTAIS DA SOCIOLOGIA – em ater-se, durante seu trabalho investigativo, à
positividade dos fatos observados, ao que seus estudiosos mais prestigiados associam sua famosa tríade metodológica de investigação: ir além da “retórica”
e da “dialética”, e buscar fazer prevalecer a “demonstração”! Eis, em pleno
século XIV, exemplo emblemático de efetivo emprego do método científico. Um de
seus mais prestigiados estudiosos, o filósofo Abdesselam Cheddadi, professor da
Universidade de Rabat, Marrocos, , que se dedicou, por mais de vinte anos, a
pesquisar e a publicar livros sobre ele e sua obra, tendo, inclusive, traduzido
(do árabe) e anotado O Livro dos Exemplos (Paris: Gallimar).
Abdesselam Cheddadi avalia que Khaldoun empenhou-se em elaborar uma espécie de enciclopédia histórica, buscando fundamentar sua pesquisa “em leis”,
em princípios e dados objetivos, tendo oferecido uma contribuição inédita,
original, seja em relação a obras procedendo do mundo árabe ou do mundo ocidental.
Percebe-se, com efeito, como seus escritos evocam, sob vários aspectos, a
figuras ocidentais de referência, que vieram até séculos depois dele, lembrando
um Francis Bacon (1561-1626), de um Nicolau Maquiavel (1469-1527), um
Thomas Hobbes (1588-1679), um René Descartes (1596-1650), de Isaac Newton
(1643-1727), um Montesquieu (1689-1755), um Diderot (1713-1784), as famosas Règles
de la Méthode Sociologique, de Émile Durkheim (1858-1917)...
No que concerne mais diretamente a aspectos temáticos por ele desenvolvidos,
buscamos destacar, “en passant”, traços de seus escritos. Espelham sua
capacidade de exímio observador. E de um observador privilegiado, sob vários
aspectos:
-desde suas origens familiares, sempre contou, ao longo da vida, com
condições altamente propícias ao seu mister de observador perspicaz: teve
acesso a uma instrução de qualidade, tendo frequentado e trabalhado como
docente em instituições de ensino de reconhecido prestígio internacional;
- soube associar e potencializar tais condições, com constantes
deslocamentos por vários países (Tunísia, Marrocos, Argélia, Egito, a região
da Andaluzia e adjacências – Sevilha, Granada, Castela...),
- Foi amplamente favorecido por farta documentação encontrada em centros
de excelência, em especial no Egito;
- Sua postura inventiva foi fundamental, para realizar uma obra com
reconhecidos traços de originalidade.
É assim que, a partir de 1374, Khaldoun empreende um tempo de retiro,
para conceber, planejar e iniciar sua obra principal – O Livro dos Exemplos.
Seu propósito inicial era o de elaborar uma história dos povos do Magrebe -
região setentrional da África. Compõe-se de três partes: uma longa introdução
(chamada de “Prolegômenos”); uma história universal dos povos árabes e do
Oriente Médio; e uma história dos povos do Magrebe, com extensão aos povos da
África Negra.
De acordo com Cheddadi, ele iniciou sua pesquisa por volta de 1374, e
quatro anos depois, havia terminado de redigir os “Prolegômenos”. Ao
instalar-se, em seguida, no Egito (Cairo), e havendo tido contato com farta
documentação, resolve estender seu propósito inicial de uma história universal
dos povos árabes, e assume um projeto mais audacioso, para além dos povos do
Magrebe, e para além do horizonte estritamente histórico, passando a
interessar-se por uma abordagem ricamente multidisciplinar.
Nos “Prolegômenos”, cuida de fincar as bases teórico-conceituais, a
partir das quais trataria de formular sua proposta de história universal. Ainda
nos “Prolegômenos”, em vista de uma ampla diversidade temática, empenha-se em
desenvolver conceitos-chave, tais como: poder, civilização... E tantos outros
do campo da História, da Ciência Política, da Sociologia, da Antropologia
(especialmente, a Antropologia Cultural), a Psicologia Social, da Economia, da
Geografia, da Demografia, das ciências da linguagem, da Literatura, da
Teologia, etc.
Sobre tal alcance poucos intelectuais europeus ou ocidentais se
pronunciaram, mesmo após sua tradução ter-se dado em finais do século XIX. Um desses poucos intelectuais a se
pronunciarem, foi o históriador Arnold Toynbee (Londres, 1889-1975), fazendo-o,
aliás de forma exagerada, afirmando, a cerca da obra de Khaldun: "a philosophy of history which is
undoubtedly the greatest work of its kind that has ever yet been created by any
mind in any time or place." "uma filosofia da história que é, sem dúvida, o maior
trabalho do gênero já criado por alguma mente, em qualquer tempo ou lugar.”
Não deixa de ser intrigante o fato de que todo esse potencial tenha
passado tanto tempo (séculos!) numa quase invisibilidade, não tendo despertado
interesse maior entre seus contemporâneos. No caso da Europa, só veio a ser
traduzido com razoável divulgação, no final do século XVIII... Pode-se imaginar
o espanto, de que foram tomados os intelectuais de referência da época, ao
constatarem, no fundamental, uma surpreendente coincidência, sob vários
aspectos, de seus achados investigativos. Há, também, de se perguntar: uma vez
em contato com a tradução dos escritos de Ibn Khaldun, quantos e quais desses
cientistas sociais ocidentais chegaram a reconhecer explicitamente a relevância
do trabalho de Ibn Khaldoun? E, ainda hoje, que lugar ele tem ocupado em nosso
sistema de ensino superior – na graduação e na pós-graduação? Trata-se de um
autor conhecido? Mais que conhecido, estudado, junto com os clássicos
normalmente lidos e trabalhados?
Sugestões de vídeos sobre Ibn
Khaldoun:
https://www.youtube.com/watch?v=2D13izXNZAc
https://www.youtube.com/watch?v=Lt1jzQug59g
https://www.youtube.com/watch?v=2Qy7jEau7HI
https://www.youtube.com/watch?v=0iDRu2xLMkw
https://www.youtube.com/watch?v=8vP44yhkvXU
https://www.youtube.com/watch?v=c5GG5fj7pmQ
https://www.youtube.com/watch?v=K0SwI-wQzSA
João Pessoa, 06 de março de 2017.
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