THOMAS MÜNTZER, FIGURA-ALVO DE UM CAPÍTULO NEBULOSO NAS ORIGENS DA REFORMA
Alder Júlio Ferreira Calado
Até o dia 31 de outubro deste ano, vêm se sucedendo diversos eventos comemorativos dos 500 anos da Reforma. Sob distintos aspectos, as Igrejas reformadas e outros segmentos cristãos, inclusive a Igreja Católica Romana – o Papa Francisco já esteve, e vai estar a participar de alguns deles, realimentando as incessantes buscas de reconstrução da unidade dos cristãos, em novo estilo, que vá além de meras formalidades. Esforço, aliás, que o Bispo de Roma vem testemunhando, também, em relação a outras comunidades cristãs não reformadas (caso das Igrejas Ortodoxas).
A Reforma constitui, sob diversos ângulos de análise, um relevante marco, na história do Cristianismo e do próprio Ocidente. Não parece suscitar dúvidas razoáveis o reconhecimento das múltiplas contribuições oferecidas, ontem e hoje, pelas Igrejas Reformadas, o que não invalida, por outro lado, o reconhecimento de sombras, em sua trajetória (hoje, por exemplo, desponta inquietante a onda de fundamentalismos), algo também presente em outras instituições religiosas. Com efeito, sob distintos aspectos, têm vindo a lume, tanto no plano cultural, quanto na esfera política, bem como no terreno econômico, sobre tais contribuições, têm se pronunciado, inclusive no mundo acadêmico, figuras de ampla respeitabilidade, a exemplo de Max Weber, para mencionar um único autor.
Como ignorar, por exemplo, a densa contribuição do movimento reformador liderado por Lutero, e, alguns séculos antes dele, pelos movimentos pauperísticos da Idade Média, animados por personalidades como a de Valdo, e, mais tarde, por outros movimentos liderados por figuras como as de John Wycliffe, Jan Hus, etc. E não se trata de movimentos meramente contestatários daquela (des)ordem estabelecida pelos privilegiados de então, por meio de gravíssimos e rotineiros vícios, com terríveis consequências para a enorme maioria daquelas populações (exacerbado clericalismo, escandaloso comércio do sagrado – simonia -, vendas de indulgências, luxúria das autoridades eclesiásticas, corrupção sistêmica, acesso oportunista a cargos eclesiásticos por meros interesses econômicos e políticos, opressão dos fiéis, especialmente dos camponeses, com cobranças de dízimo, vida desregrada dos clérigos, negação objetiva dos valores do Evangelho, exclusivismo da leitura da Bíblia apenas pelo clero, até por conta da proibição da leitura da Bíblia, na língua do povo nativo (pois só em Latim era permitido ler a Bíblia, sendo o segmento clerical o único que entendia esta língua... Aqui se destaca sua ação de denúncia. Cumpre, porém, ter presente, ao mesmo tempo, sua ação anunciadora do Reino de Deus, na medida em que tais movimentos reformadores, para além de suas denúncias proféticas que, por vezes, lhes custaram a vida, também cuidaram de protagonizar fecundas iniciativas de anúncio, de alternatividade – a começar pela anúncio e a do testemunho de um estilo de vida simples, pobre e a serviço dos pobres e marginalizados, em coerência com o Evangelho. Sua ação profética, vale ressaltar, comportava uma denúncia e um anúncio: não basta apenas denunciar, é preciso também anunciar, isto é, sinalizar atitudes concretas alternativas (“Não são os que dizem: ´Senhor, Senhor´..., mas os que fazem a vontade do meu Pai”).
Mais. As contribuições do Movimento Reformador transpõem os espaços eclesiásticos: alcançam, de algum modo, o universo das relações humanas e sociais. A despeito dos contratestemunhos, cumpre sempre ter presente a ação de reformadores tais como John Wesley, para quem “Minha Paróquia é o mundo”, algo similar ao que hoje anuncia o Bispo de Roma, com a expressão “Saída em missão”....
Sua ação profética deve incidir, também, em outros planos, No terreno cultural-educativo, por exemplo, o Movimento Reformador mostrou-se um grande incentivador do letramento popular. A restituição da Bíblia aos cristãos implicou o incentivo progressivo de parcelas de cidadãos e cidadãs à aquisição do seu direito à leitura, o que, por sua vez, lhes propicia o empoderamento de instrumentos relevantes ao exercício crítico, numa perspectiva emancipadora. É claro que são bem mais amplas as contribuições protagonizadas pelo Movimento da Reforma. Mas, nessas linhas, miramos um foco específico: o caso ainda mal resolvido em relação à figura do teólogo Thomas Müntz. Para tanto, fornecemos uma brevíssima notícia biográfica deste teólogo, com o propósito de realçar aspectos mais fortes de sua contribuição ao enfrentamento dos desafios do seu tempo; e, por último, assinalamos a necessidade de extrairmos algumas lições para hoje de seu legado.
Uma breve notícia biográfica acerca do teólogo Thomas Müntzer
Em que pese um relativo desconhecimento ainda vigente, Thomas Müntzer (1490-1521) situa-se, ao lado de Lutero, nas origens da Reforma do século XVI, como uma das principais referências de protagonista deste Movimento. Por volta de 1515, ele é reconhecido com Lutero como partícipes de um grupo especial de pregadores da Reforma, com relativa aproximação pelos objetivos comuns: levantar sua voz contra os desatinos da alta hierarquia eclesiástica, protagonista de graves e numerosos escândalos que eles trataram de denunciar, com vigor, culminando, no caso de Lutero, com a afixação na porta da igreja de Wittemberg, em 31 de outubro de 1517 *(véspera da Festa de Todos os Santos), suas famosas 95 teses, contestando os desmandos da hierarquia eclesiástica. A essa altura, tanto Lutero quanto Müntzer seguiam irmanados, na luta comum contra os escândalos eclesiásticos. Não tardam, porém, a se desentenderem. O ponto de dissenso começa a aparecer e a ganhar força, a partir do clamor dos camponeses contra a opressão sofrida pelas injustiças sociais por eles sofridas da parte, não apenas dos hierarcas, mas igualmente da parte dos príncipes feudais. Até certo ponto, Lutero também manifestava preocupação com os “excessos” cometidos, reconhecendo a justeza do grito dos camponeses. À medida, contudo, que os camponeses iam despertando sua consciência crítica, estimulados, inclusive, pelos sermões de Müntzer, de um lado, e de sua crescente familiarização com a Bíblia, até então mantida afastada de seu alcance, os camponeses, animados em especial pelos Anabatistas, passaram a aumentar o poder de sua oposição, a ponto de inquietarem o próprio Lutero, que temia a retirada de apoio por parte dos príncipes, às suas atividades reformistas. A partir daí, vai arruinando-se a relação entre Lutero e Müntzer. Este, por sua vez, vai progressivamente intensificando sua ação solidária junto aos camponeses, principalmente por meio de seus sermões, cada vez mais apreciados por crescentes parcelas de camponeses e outras camadas populares da Alemanha.
Além de sua intervenção por meio dos sermões, há de se reconhecer a grande influência de sua presença e participação nas reuniões e manifestações dos camponeses, sempre no sentido de incentivo. Com relação ao temário explorado em seus sermões, cumpre destacar o tom milenarista preponderante, além do exaustivo recurso a fontes bíblicas. Neles, todavia, são muito frequentes as citações literais ou indiretas, tanto do Antigo quanto do Novo Testamentos.
Ainda quanto às suas incursões pelos textos bíblicos, convém sublinhar sua posição atípica, em relação aos pregadores convencionais. Suas constantes incursões bíblicas não o afastavam da ideia de que a Palavra de Deus não se esgota nos textos da Sagrada Escritura. O Espírito Santo continua a revelar-Se e a inspirar, nos dias de hoje, aquelas pessoas que se dispõem a escutar o que o Espírito lhes tem a inspirar. Este traço assinala uma herança das ideias pregadas pelo Abade Gioacchino da Fiori, formulador da chamada Era do Espírito Santo. Ele entendia que, ao longo da história do Povo de Deus, três épocas deviam ser observadas: A Era do Pai, isto é, aquela em que o Povo de Deus se regia pela estrita obediência ao Pai; A Era do Filho, correspondendo ao tempo da revelação de Deus feita por e em Jesus, o Cristo; e a Era do Espírito Santo, caracterizada pela ação da liberdade, em que o Espírito Santo inspirava diretamente, para além dos textos escriturísticos, a ação dos cristãos.
Que linha de argumentação Müntzer seguia, em seus apreciadíssimos sermões? Como teólogo de sólida formação bíblica, suas homilias se caracterizavam sobretudo por dois traços: de um lado, partindo das condições sociais concretas da enorme maioria dos seus ouvintes – e falando-lhes em linguagem bem ao seu alcance! -, Müntzer recorria a numerosas citações bíblicas – do Antigo e do Novo Testamentos. Em especial, os livros proféticos e os de caráter apocalíptico. Em busca de oferecer aos seus ouvintes, em grande parte, aliados e comprometidos com a luta contra as injustiças e as tremendas desigualdades sociais, é compreensível como se apoia em textos de conteúdo invectivo contra os poderosos, socorrendo-se de autores bíblicos como Isaías, Jeremias, Ezequiel e outros. Ao mesmo tempo, recorre a textos vétero e neotestamentários de apelo apocalíptico, que inspiram esperança numa vida alternativa àquela então reinante, ameaçadores aos poderosos e opressores.
Daí, por exemplo, o foco que elegeu para um dos seus famosos sermões, em que trata de refletir sobre o segundo capítulo do Livro de Daniel. Neste capítulo do Livro de Daniel, encontra-se o relato do sonho enigmático tido pelo rei da Babilônia (atual Iraque). O rei Nabucodonosor saiu profundamente perturbado de um sonho terrível. Como de hábito, recorreu aos seus magos e astrólogos, deles exigindo, não apenas que interpretasse, mas também que lhe narrassem o sonho que tivera. Tarefa que resultou impossível para os seus súditos, razão porque mandou matar a todos os sábios daquela região, ordem que alcançaria até sábios que não prestavam culto ao rei, como Daniel e seus companheiros Ananias, Misael e Azarias, judeus, que haviam sido trazidos como escravos para a Babilônia. Daniel, tendo orado ao seu Deus, com seus companheiros, teve a visão e interpretação do sonho do rei. Por meio de um súdito do rei, fez chegar até ele seu pedido para atender às suas exóticas exigências, de contar e interpretar seu sonho. Chamado à presença do rei Nabucodonosor, Daniel, invocando o poder de seu Deus, graças a quem veio a saber contar e interpretar o sonho do rei, cumpriu o prometido. O rei vira em sonho uma enorme estátua, cuja cabeça era de ouro, enquanto de prata eram o peito e os ombros; de bronze, eram sua barriga e os quadris, tendo as pernas de ferro, tendo os pés, parte de barro, e parte de ferro. Quanto à interpretação, isto representava a sucessão de ruínas a ser enfrentada, cada qual à sua vez, a começar pela Babilônia... Narrativa e interpretação que o rei reconheceu como fiéis, ainda que a contragosto: pelo sonho, era constrangido a reconhecer que havia um Deus superior a reis e imperadores, inclusive a ele. Não teve alternativa, senão a premiar a Daniel, e a mandar difundir o nome do Deus de Daniel como o único poderoso...
Naquele contexto de crescente efervescência das massas camponesas, como expressão de resistência às multiformes manifestações de exploração, dominação e marginalização sofridas, o papel desempenhado por Müntzer, para além de sua dimensão profética (de denunciar aquela estrutura iníqua, e, ao mesmo tempo, de anunciar possibilidades alternativas), tem muito a ver também com sua dimensão formativa, à medida que ele ia transformando espaços que, em tese, tendiam ao imobilismo, em espaços formativos possíveis às vítimas daquele sistema. Seus sermões e suas visitas constantes a essa gente sofrida repercutiam fortemente no coração e nas mentes daqueles camponeses, passando de mero sentimento a ações mais contundentes de resistência, o que acabou desaguando em conflitos crescentes, em especial entre 1524 e 1525, cujo desfecho foi marcadamente trágico, com milhares de mortes, inclusive com a prisão, tortura e decapitação de Thomas Müntzer, em maio de 1525.
Eis alguns traços da trajetória existencial de Müntzer, em quem encontramos uma profunda busca de coerência entre sentir-pensar-agir, em relação ao que parece ter tido um reconhecimento bem aquém do que se lhe seria devido, inclusive a julgar por uma comparação com figuras outras. Esta situação merece de nossa parte uma reflexão crítico-avaliativa, na perspectiva da Tradição de Jesus.
Que lições nos é possível extrair do legado de Thomas Müntzer, em vista de um exitoso enfrentamento dos desafios de hoje?
Como sucede a qualquer instituição social, as grandes datas comemorativas também propiciam potencialmente o exercício de um olhar (auto)avaliativo, com propósito prospectivo. As breves notas aqui alinhavadas, buscam inspirar-se neste horizonte. O propósito de avaliar procura levantar aspectos felizes e outros sombrios, fios também presentes, em qualquer percurso existencial, afinal as ambiguidades também são marcas presentes no processo de humanização, a não confundir com certa tendência hoje dominante, de transformar tal traço numa condição determinista da vocação humana, portanto, a legitimar uma síndrome da ambiguidade... Com amparo na Tradição de Jesus, entendemos que as ambiguidades fazem, sim, parte de qualquer percurso existencial, não poupando, por certo, as instituições e as organizações sociais, inclusive as instituições cristãs, e, dentre elas, as Igrejas Reformadas. Por outro lado, uma coisa é constatar este fato; outra é convertê-lo num determinismo do qual nem vale a pena tentar livrar-nos, donde a tendência acentuada, hoje, a uma legitimação normótica ou até de uma exaltação à conduta ambígua como modelo ou estilo de vida pessoal e coletivo...
Um primeiro ponto a merecer atenção: a que se deve a secundarização, anonimato ou mesmo ampla ignorância de figuras – mulheres e homens – portadores de uma história de vida tão densa? De vez em quanto, temos voltado a este intrigante fenômeno – o da invisibilização de figuras talentosas ou especiais. Uma dessas personalidades é o teólogo Thoma Müntzer, cujo reconhecimento público se mostra bem aquém dos seus méritos, não apenas para o Movimento da Reforma, como também para o Ocidente e para os humanos, em geral. Com efeito, afora da Alemanha – em especial junto à população da antiga Alemanha Oriental, trata-se de um nome pouco conhecido, inclusive no plano acadêmico. Müntzer, portanto, faz parte daquela galeria de mulheres e homens portadores de uma memória perigosa, subversiva, a ser evitada, o quanto possível...
Outro aspecto que nos chama a atenção, enquanto uma outra lição daí a recolher, nos remete, do ponto de vista dos critérios característicos do Movimento de Jesus, à sua postura ética de integridade. Sua ação se fazia, concatenando – e não cindindo – espaços eclesiais e espaços societais. O que buscava mudar o impelia a lutar, não apenas por mudanças internas das estruturas eclesiásticas, mas igualmente empenhar-se na luta pela mudança do modelo societal em vigor.
Ao fazê-lo, buscou inspiração em fontes não apenas escriturísticas, mas também apoiando-se na memória perigosa de movimentos e figuras precursoras da Reforma: os movimentos pauperísticos (Valdenses, por exemplo) e em figuras emblemáticas, tais como Pierre Valdo (ou Valdès), John Wycliffe, Jan Hus... Não para copiá-los, mas para neles buscar inspiração em práticas e gestos que orientaram os lutadores e as lutadoras, de então. Como costumava lembrar Eduardo Galeano, “O passado tem muito a dizer ao futuro”...
Como não reconhecermos, ontem e hoje, a força transformadora do exemplo, da pedagogia do exemplo: “Não são os que dizem: ´Senhor, Senhor´... mas os que fazem a vontade do meu Pai.” Disto não tem sido exemplo nossa história recente e atual, a debater-se triste e tragicamente com graves cisões entre o dito e o feito: “Tra il dire e il fare, c´è in mezzo il mare”...
Há, também, a sublinhar o papel transformador do processo formativo. Ao seu modo, e segundo as possiblidades do seu tempo, Müntzer cuidou também de alimentar o processo formativo dos camponeses, favorecendo a formação de um pensamento crítico de seus contemporâneos, ao qual se articulavam dinamicamente práticas consequentes.
Temos como igualmente decisiva sua proximidade com os mais vulneráveis, com os “de baixo”, não apenas por via dos sermões, mas igualmente pela sua presença exemplar.
Isto não quer dizer que as opções de um Müntzer, àquela época, ou as de Camilo Torres, na Colômbia dos anos 60 tenham que ser reeditadas, por várias razões, inclusive porque outras são as condições objetivas de hoje, sem esquecermos a necessidade de reavaliarmos o sentido e o alcance das estratégias militares no processo revolucionário. Se estas, bem ou mal, atenderam às demandas políticas de determinado tempo ou conjuntura, elas merecem ser repensadas, à luz de uma reavaliação do próprio conceito de Revolução.
Convém, ainda, buscar extrair adequada lição de exercício de uma mística revolucionária, no sentido evangélico, para os tempos de hoje. Aqui sublinhamos que, sem tal empenho, corremos o risco de perder de vista nossa condição humana de pessoas limitadas, a necessitarmos, dia a dia, de autocrítica, em busca de um esforço ininterrupto de superação de nossos próprios limites, donde também o necessário apelo à Fonte do discernimento e da sabedoria.
João Pessoa – Olinda, 15 de abril de 2017.
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