Alder Júlio Ferreira Calado
Em
distintos continentes, continua a ressoar, por parte de católicos e
católicas, o clamor por reformas, ao interno da Igreja Católica Romana.
Entre os dias 29 e 31 próximos passados, em pelo menos uma quinzena de
países, tivemos manifestações de grupos e movimentos de católicos e
católicas, a expressarem, por meio de cinco pontos (sintetizadores de
vários de seus pleitos) seu empenho em promover urgentes reformas na
Igreja Católica. De fato, o alvo é muito mais amplo. Comporta dezenas de
pleitos, que abrangem distintas dimensões da vida eclesial, a começar
pela sua estrutura organizativa e disciplinar, em especial suas
instâncias de tomada de decisão. Nas breves linhas que seguem,
cuidaremos de repercutir e fundamentar apenas cinco desses muitos
anseios de renovação.
1. O Evangelho à frente do Direito Canônico
O
que, nas origens das comunidades cristãs, parecia tão evidente foi, ao
longo de séculos (principalmente, desde o período constantiniano,
passaria a ser interpretado bem ao gosto do poder clerical, em
detrimento do conjunto dos demais membros da Igreja. A sede de poder de
uma minúscula parcela acabou sobrepondo-se, não apenas aos interesses da
enorme maioria dos membros da Igreja, mas - o que é bem mais grave,
acima até do Evangelho. Com base em estratégias de poder cada vez mais
sofisticadas, uma minúscula minoria de hierarcas passou a implantar
normas, códigos e outros instrumentos legais, com o propósito de fazerem
valer seu crescente monopólio. Até a Bíblia passou a ser cada vez mais
monopólio desta minoria, à medida que era mantida distante do alcance do
povo dos pobres, exatamente seus principais destinatários. Num tempo em
que o saber ler era privilégio de poucos, com a agravante de que a
Bíblia só podia ser lida em Latim... Daí por diante, sucessivas leis
eclesiásticas, em especial o Código de Direito Canônico - foram
substituindo progressivamente a principal fonte de nossa fé cristã - a
Bíblia. Esta, lida apenas em Latim, e por uma minúscula parcela do povo
católico acabava passando como a grande desconhecida da enorme maioria
de seus destinatários, que dela tomavam conhecimento superficial, a
partir do entendimento e da seleção dos hierarcas, em seus sermões.
Enquanto
isto, leis e normas eclesiásticas foram multiplicando-se, de modo a
consolidarem concepções e práticas do quase exclusivo interesse dos seus
autores. O Código de Direito Canônico delas é a expressão maior. Aí
tudo é previsto, tudo é controlado, quase sempre no interesse da
hierarquia. Ritos sacramentais, competências dos controladores das
diversas instâncias eclesiásticas, atribuições de autoridades,
funcionamento das estruturas eclesiásticas como de estruturas de Estado,
inclusive com corpo diplomático, ordenação e transferência de bispos,
deveres dos leigos, previsões punitivas de eventuais desobediências,
etc. Ao fim e ao Cabo,quando se faz uma analogia entre o Código de
Direito Canônico e o Evangelho, grande é o sentimento de distanciamento.
as
consequências resultam muito graves, sob vários aspectos, dos quais
destacamos apenas um: o modo como, com base no Direito Canônico, a
hierarquia enfrentou os numerosos escândalos de abuso sexual contra
crianças e adolescentes, cometido por clérigos (inclusive cardeais). A
tendência predominante foi a de ocultar a responsabilidade pelos atos,
tratando-os como “pecados” (coincidência apenas na dimensão
ético-religiosa) e não como crimes a serem apurados e punidos, no âmbito
da justiça humana. Graças à coragem profética do Papa Francisco, isto
vem sendo alterado, mas ainda longe de se fazer justiça às vítimas, e de
punir os responsáveis, nos termos das instâncias civis. Eis por que se
levanta, cada vez mais forte, este clamor por parte de católicos e
católicas em todo o mundo.
2. Centralidade do Povo de Deus nas instâncias de decisão da vida eclesial, tendo os pobres como núcleo evangélico
Há
mais de meio século, o Concílio Vaticano II já havia dado passos
significativos, nessa direção, em atenção aos veementes apelos dos
sinais dos tempos. Em alguns de seus dezesseis documentos (entre suas
quatro Constituições, seus Decretos e suas Declarações), restaram claros
sinais, nessa direção. Até se pode dizer que, em suas palavras-chave,
dentre as quais: “Refontização”, “Povo de Deus”, “Aggiornamento”,
“Missão”, “Diálogo”, “Colegialidade”, “Ecumenismo”, “Autonomia relativa
das realidades terrestres” e outras, celebrava-se um compromisso de
renovação, em cumprimento, aliás, do que muito se apreciava declarar:
“Ecclesia semper reformanda est”, que o atual Bispo de Roma tem
acentuado. Na Constituição Lumen Gentium”, por exemplo, o documento
conciliar, ao abordar a estrutura organizativa da Igreja, já não começa
falando da Igreja, a partir da hierarquia, mas a partir do “Povo de
Deus”, referindo-se, no caso, ao conjunto de membros da Igreja Católica.
Seria demais esperar, então, uma referência a toda a humanidade… De
todos os modos, abria-se mais a tomar em conta o “sensus fidelium”,
ainda que em passos incipientes.
Este
ar primaveril, todavia, expressão da iniciativa profético-pastoral do
Papa João XXIII, duraria pouco tempo. Uma crescente onda de
reacionarismo, apoiada por poderosas forças conservadoras da sociedade
civil, acabou por sufocar esse abençoado movimento, ou, pelo menos, de
interrompê-lo por longas décadas, principalmente durante os pontificados
de João Paulo II e de Bento XVI. Mesmo assim, as vozes proféticas
mantiveram-se.
Em
meados dos anos 90, inicia-se uma nova fase de resistência
profético-pastoral, em alguns países, protagonizados por Leigos e
Leigas, e, em menor intensidade, também por associações de Religiosas e
Religiosos e de Presbíteros. Dezenas de grupos, associações e movimentos
retomaram, em novo estilo, seu clamor por mudanças. E hoje, unem-se numa
só voz, para bradarem por urgentes reformas na Igreja Católica Romana,
pondo especial ênfase na centralidade da organização eclesial vir a ser
protagonizada pela porção do Povo de Deus, atuante na Igreja Católica
Romana, de modo que todos os seus segmentos - ordenados e não-ordenados,
sejam respeitados como protagonistas, em todos as instâncias de de
tomada de decisões relativas à vida eclesial.
3.
Reconhecimento da legitimidade do clamor da mulheres católicas, de
participarem, ao lado dos homens católicos, das diversas instâncias
decisórias da vida da Igreja
Nos
mais diversos espaços eclesiais, constata-se amplamente majoritária a
participação de mulheres - leigas, religiosas - nas celebrações, nas
diferentes iniciativas e serviços oferecidos à comunidade eclesial. No
caso das Comunidades Eclesiais de Base, sua participação alcança, por
vezes, mais de dois terços dos participantes. Resulta, portanto,
estranho e injusto negar-se-lhes também o direito de decidirem, ao lado
dos demais protagonistas. De outro modo, resultaria injustificável, do
ponto de vista evangélico e do ponto de vista dos direitos humanos,
excluir da tomada de decisões tão relevante segmento. Se isto já não é
aceitável, no âmbito das sociedades, o que justificaria, de forma
consistente, estender tais desigualdades ao exercício pleno da cidadania
eclesial? Mais. Como a hieraquia justificaria seu empenho em combater
regimes ditatoriais e em defender estruturas democráticas, no âmbito
societal, e não fazê-lo “ad intra”?
4.
Reconhecer a legitimidade às mulheres vocacionadas - tal como já sucede
aos homens vocacionados -, a exercerem os diferentes ministeriais
Começamos
por dissipar uma interpretação equivocada deste pleito, ainda que
amplamente divulgada: não se trata de permitir indiscriminadamente o
acesso a ministérios ordenados a quem o desejar, com ou sem
critérios. Não é disto que se trata. O pleito sob clamor tem a ver com
mulheres católicas que, sentindo-se vocacionadas a um determinado
ministério, na comunidade eclesial, e, ao mesmo tempo, contando com o
reconhecimento criterioso desses sinais por parte da comunidade
eclesial, venham a ter reconhecida a legitimidade de sua vocação, tal como
sucede aos vocacionados masculinos, na perspectiva do chamado por
Jesus: "Não foram vocês que Me escolheram, mas fui Eu que os escolhi,
para que vocês vão e deem fruto, e este fruto permaneça." (Jo 15, 16).
Ademais,
não se trata, no fundo, de nada de novo. Com reconhecido acerto, várias
Igrejas cristãs - inclusive as ditas históricas - já o fazem, ao
reconhecerem a legitimidade das mulheres vocacionadas, a exercerem distintos
ministérios (ordenados e não-ordenados) na respectiva comunidade
eclesial. Além do reconhecimento de legítimo direito de cidadania
eclesial, hão de se destacar ainda multiformes ganhos pastorais
específicos. Com as recentes pesquisas teológicas, em especial no campo
da Teologia Feminista, conta-se com uma fundamentação neotestamentária
relativamente farta, a apontar experiências de diaconisas, em exercício
junto às comunidades cristãs primitivas. A isto também devemos aduzir o
atual estado de evolução do "sensus fidelium", graças ao crescente
reconhecimento dos legítimos direitos das mulheres, em relação aos
homens.
5.
Reconhecer a legítima liberdade a homens e mulheres vocacionados aos
diferentes ministérios, ordenados e não-ordenados, de exercerem seus
respectivos ministérios, escolhendo livremente seu estado civil.
Já
durante o Concílio Ecumênico Vaticano II, muito se discutiu acerca
desta questão, sem, contudo, obter-se um desfecho favorável. Ainda que
freado ou interrompido, ao tempo do Papa Paulo VI, com a Encíclica
"Sacerdotalis Celibatus", nunca se deteve completamente esta questão,
voltando ela a estar na ordem do dia, em especial a partir do
pontificado do Papa Francisco. Parece que este ponto, de tão evidente
em seus fundamentos, é questão de pouco tempo, para se chegar a uma
solução que já se arrastou demasiado no tempo.
João Pessoa, 06 de novembro de 2017.
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