REMEMORAÇÃO RETROPROSPECTIVA DE UM MOVIMENTO
POPULAR A CAMINHO DE SEUS 50 ANOS
Alder Júlio Ferreira Calado
Ontem como hoje, os movimentos
sociais populares continuam sendo o principal segmento da sociedade civil
responsável, juntamente com outras organizações de base, pelas mudanças sociais
mais relevantes. Trata-se de um amplo leque de movimentos sociais,
caracterizados por suas respectivas bandeiras de luta. São movimentos sociais,
sindicais e populares (sem esquecer dos sindicatos patronais...) do campo e da
cidade, protagonistas de uma extensa diversidade de lutas sociais que,
didaticamente, podemos classificar por meio de certas categorias:
- Classe:
Nesta categoria, cuidamos de
distinguir entre organizações e
movimentos da sociedade civil que atuam em direção oposta: os que lutam para
preservar e ampliar seus interesses de classe dominante, de um lado; e, de
outro, aqueles movimentos sociais, sindicais e populares, que lutam para mudar
as relações hegemônicas vigentes. Tomamos o cuidado, todavia, de distinguir,
mesmo no âmbito dos que também se chamam movimentos populares, entre os que se
empenham em defender e promover apenas suas respectivas bandeiras de luta
(terra, moradia, aumento salarial, etc.) e os que, também fazendo isto,
priorizam os interesses da Classe Trabalhadora, entendida como composta por todos-os-que-vivem-do-seu-trabalho”.
Neste sentido, nem todo movimento popular se caracteriza como um movimento
classista.
- Espacialidade: aqui situamos os movimentos sociais populares do
campo e o das cidades, a lidarem, cada qual, com suas bandeiras específicas;
- Gênero: são movimentos diversos a propugnarem pela igualdade nas
relações sociais de gênero. A despeito do registro da existência de alguns
grupos ou movimentos protagonizados por homens, trata-se, em sua enorme maioria
de movimentos sociais femininos e feministas, a lutarem contra uma tendência
crescente de crimes e violências contra a condição feminina, oscilando de
feminicídios a estupros, agressões
múltiplas, discriminações, flagrantes desigualdades sociais (nas relações de
trabalho, na percepção salarial, nas estatísticas de desemprego...);
- Etnia: aqui nos voltamos para aqueles movimentos sociais populares
protagonistas de causas de natureza étnica: desde os povos originários vitimas
das formas mais perversas de colonização e de neocolonialismo, a desrespeitarem
gravemente seus direitos mais elementares (sua cultura, seus territórios, suas
crenças, seu tipo de organização...) às comunidades quilombolas, vítimas como
os povos originários, de semelhantes mazelas históricas, ainda passando por
outros povos tradicionais, das florestas, das águas, pescadores, ribeirinhos,
etc.
- Geração: alcançam os vários segmentos populares, a partir de suas
características etárias, tais como o Movimento das Crianças e Adolescentes (MAC), os vários movimentos estudantis, outros
mais protagonistas do mundo das artes e da Cultura, e até alguns segmentos de
pessoas idosas.
Além destas categorias, devem ser
lembrados muitos movimentos populares que se organizam a partir de motivações
específicas, ligadas às mais diversas Políticas Públicas.
Dentre tantos movimentos populares,
aqui tratamos, de passagem, apenas de um deles: O quase cinquentenário
Movimento das Comunidades Populares (MCP), organizado em vários Estados e
Regiões do Brasil, e, durante essas décadas, assumindo distintos nomes,
conforme a conjuntura sócio-política apresentada.
O MCP é sucedâneo da JAC (Juventude
Agraria Católica), uma das cinco expressões da chamada Ação Católica
Especializada, voltada para a ação cidadã de jovens cristãos católicos, ligados
ora ao meio estudantil (JEC), ora mais associados à Classe Média (JIC), ora ao
meio universitário, (JUC) que, em resistência à Ditadura Civil-Militar, acabou
desembocando na formação da Ação Popular, juntamente com outros segmentos de
esquerda), ora ao meio operário (JOC, que constituiu a expressão mais relevante
da Ação Católica Especializada), ora protagonistas da causa camponesa (JAC).
É na JAC que tem origem o MCP. Tendo
em vista a crescente onda de violência e repressão movidas contra as organizações
de resistência popular, os vários segmentos da Ação Católica Especializada
passaram a ser vítimas de crescente perseguição, inclusive de desbaratamento
por parte da Ditadura, razão pela qual seus sobreviventes passam a atuar pela
sigla MER (Movimento de Evangelização Rural). Estamos nos anos 70. Tempos
tenebrosos, de uma correlação de forças profundamente desigual. As organizações
de resistência à Ditadura Civil-Militar, em seu período mais violento,
enfrentam desafios acima de suas forças: passam a ser, uma após outra,
dizimadas, sob vários aspectos. É aí que começam a ganhar força os espaços
eclesiais, graças, não apenas a uma geração de bispos profetas (Dom Helder, Dom
Paulo Evaristo Arns, Dom Ivo Lorscheiter, Dom Antônio Batista Fragoso, Dom José
Maria Pires – para destacar apenas estes, de um elenco mais amplo), mas também
à atuação cidadã de alguns segmentos eclesiais progressistas (as CEBs, o CIMI,
a CPT, a ACR, o MER, a CPO, as Comissões de Justiça e Paz, as PCIs, os CDDHs, o CEBI, entre outros, e
teologicamente bem fundamentados na Teologia da Libertação (sobre tais
segmentos, já tivemos oportunidade de refletir, algumas vezes (cf. textos de
alder calado). Graças aos compromissos
assumidos, desde o Pacto das Catacumbas (1965), e fortalecidos pela Conferência
Episcopal Latino-Americana de Medellín (1968), esses segmentos eclesiais
passaram a ser o principal vetor de resistência ao regime ditatorial,
permitindo o acolhimento em seus núcleos de muitos sobreviventes à perseguição
crescente movida pelo regime imperante.
O MER constitui, por conseguinte, um
desses segmentos de resistência que, pela sua radicalidade, veio a enfrentar,
não raramente, algumas dificuldades em seu relacionamento com a hierarquia. Por
esta razão e por outros fatores conjunturais, o MER houve por bem assumir
outros nomes, conforme a tendência da conjuntura. De MER passou um tempo
assumindo-se como uma corrente sindical de trabalhadores independentes (CTI),
enquanto tempos depois, optou por atuar como um movimento de comissões de lutas
(MCL), até desaguar, nos anos 2000, assumindo-se como Movimento das Comunidades
Populares.
Relevante assinalar, na
cinquentenária trajetória do MCP, alguns traços que tem conseguido guardar,
através de distintas conjunturas:
- mantém-se enraizado nos mais
diversos ambientes e lutas populares, no campo e na cidade. Marca decisiva para
qualquer organização que se pretenda comprometida com as causas libertárias de
construção de um novo modo de produção, de um novo modo de consumo e de um novo
modo de gestão societal, mantendo-se leal, não apenas ao rumo aonde busca
chegar, como também às veredas compatíveis com tal rumo;
- tem buscado manter-se autônomo,
quer em relação ao Mercado, quer em relação às instâncias governamentais;
- sua meta de autonomia não se esgota
em decisões formais: trata de optar por caminhos concretos que viabilizem seu
desiderato: seja pelas vias da automanutenção, viabilizada pelos tostões em
caixa-comum, para financiar suas atividades;
- mantendo, a duras custas, seu
periódico formativo e informativo, “Jornal A Voz das Comunidades”, fazendo
questão de fazê-lo chegar às mãos de seus membros, não apenas como instrumento
informativo, mas sobretudo como ferramenta de formação contínua;
- fomentando atividades de visitas,
reuniões, encontros, atos de mobilização, nos distintos setores em que se acha
organizado (de modo a abranger, entre outros, Juventude, Cultura, Saúde,
Moradia, experiências agroecológicas, Artes, trabalhos coletivos, mutirões,
etc., etc.);
- tem mantido a realização de seus
Encontros (municipais, estaduais, nacionais), durante os quais cuida de
examinar a conjuntura e daí extrair um plano de lutas, com ampla participação
de seus membros...
Sob esse clima, é que se deu a
realização do mais recente Encontro do MCP, na Paraíba, realizado em sua sede,
em Santa Rita – PB, no Alto das Populares, sobre o qual cuido, a seguir, de
fornecer uma breve notícia.
Tratou-se de um Encontro de
confraternização de antigos e novos militantes, inclusive em vista da visita de
antigos militantes do MER, vindos de outros Estados, principalmente da Paraíba,
desde o Alto Sertão (Carrapateira, Cajazeiras, Uiraúna, Patos...), do Agreste
(Itabaiana, Mogeiro), do Brejo (Alagoa Grande), de Mamanguape, da Área
Metropolitana de João Pessoa (João Pessoa, Santa Rita, Bayeux).
Carinhosamente preparado o ambiente
pelos anfitriões, a partir das oito horas do dia 22 de outubro próximo passado,
foram chegando os participantes, e cumprimentando-se alegremente, em volta de
uma mesa, servindo-se de um apetitoso café da manhã. Por volta das 9 horas,
ouve-se o chamado de Tiago, a quem fora delegada a tarefa de expressar as
boas-vindas aos participantes, bem como de introduzi-los à programação do
Encontro. Tiago pergunta aos presentes com que motivações vieram ao Encontro,
foram convidados para que objetivos. Sucede-se uma roda de intervenções, já com
a indicação de que cada qual cuide de apresentar-se: nome, vindo de onde, de
que Estado, de que região, de que Assentamento, comunidade, sindicato, fazendo
que atividades, etc.
Vivenciada esta fase, e reavivada a
programação do dia, passou-se à exibição de um vídeo que, por meio de uma ampla
sucessão de fotos (tomadas em distintas etapas de MCP), por meio de músicas
características do movimento, e por meio de faixas ou escritos, tratou-se de
rememorar o MCP, em suas distintas etapas. Este procedimento propiciou aos
participantes um estímulo especial de reencontro com seu movimento. A partir
daí, nova roda de intervenções, em que antigos e novos militantes, a partir de
sua atuação específica no MCP, passaram a destacar momentos mais impactantes de
sua vivência, de sua relação com o movimento.
Ainda na parte da manhã, propôs-se
que se formassem quatro grupos, para refletirem sobre questões ligadas a
facetas da trajetória do MCP, numa perspectiva avaliativa, e sobre as urgências
atuais que o movimento se sente mais desafiado a priorizar. Aqui também se
incluiu alguma discussão sobre os principais pontos do mais recente Encontro
nacional do MCP, realizado em Feira de Santana – BA.
Após um saboroso almoço, preparado
por militantes do movimento, a exemplo de Maíra, os participantes retomaram os
trabalhos, a começar pela socialização dos principais pontos levantados nos
grupos, a que se seguiu nova roda de intervenções, sendo os participantes
estimulados a considerarem em suas falas o que consideravam constituírem as
grandes prioridades do MCP, e como, a partir da realidade de sua área
(sindical, assentamento, etc.), poderiam organizar-se para levar a termo tais
prioridades, tomando em consideração os onze eixos de lutas, tirados no último
Encontro nacional, com foco mais forte em cima das lutas em torno da
escandalosa dívida pública.
A coordenação deste Encontro, em
Santa Rita, assumiu o compromisso de socializar oportunamente uma síntese deste
encontro. O propósito destas linhas, é claro, não foi este, mas o de ressaltar
alguns aspectos do cotidiano de um movimento popular e de suas atividades que
vêm resistindo ao tempo – ele está a dois anos de completar meio século! -, de
modo consequente, a despeito dos tremendos desafios enfrentados e a serem
enfrentados. Uma inspiração de resistência propositiva para as classes
populares, em tempos sombrios. Viva o MCP!
Olinda, 09 de novembro de 2017.
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