quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019


IGREJAS AUTO-REFERENCIADAS (ECLESIOARQUIA) OU COMUNIDADES CENTRADAS NO SEGUIMENTO DE JESUS (BASILEACENTRICAS)?

Ainda que veiculada uma noção de Reino de Deus, as Igrejas cristãs, inclusive as reformadas, se comportam, salvo raras exceções, como igrejas auto referenciadas, que se bastam a si mesmas. Tal atitude comporta, por sua vez, todo um leque de consequências graves, ainda muito pouco percebidas, no nível da consciência, urgindo ajudá-las a despertarem deste estado.

No caso específico da Igreja Católica Romana, mesmo após cinquenta anos desde a realização do Concilio Vaticano II, cujos documentos centrais insistem na urgência de se rever um modelo de Igreja, com frequência, descolado da Tradição de Jesus, eis que muito pouca coisa mudou e, pelo correr da carruagem, tende a mudar. Povo de Deus - ao menos ao interno da Igreja Católica Romana - que, numa acepção ortopráxica de Reino de Deus, deveríamos estender para toda a humanidade – é situado pela Lumen Gentium como o sujeito coletivo corresponsável pela organização da Igreja Católica Romana, razão por que vem tratado antes da hierarquia. Seria de se esperar que, passado mais de meio século, isto tivesse alterado visivelmente o modelo de organização da própria Igreja. Não é o que se vê. A hierarquia segue comportando-se como único sujeito decisivo da gestão eclesial, por mais que o atual Bispo de Roma não cesse de chamar a atenção, inclusive mediante documentos emblemáticos, como o faz na Evangelii Gaudium, ainda muito pouco lida pelo clero e, menos ainda, levada a sério.

Por outro lado, cumpre lembrar que o Concílio Vaticano II, realizado há mais de cinquenta anos, foi convocado pelo Papa João XXIII, em 1959, como um ponto de partida – não um ponto de chegada -, ante décadas de atraso em que andava mergulhada a Igreja Católica Romana. Mais recentemente, em sua última entrevista, o Cardeal Carlo Maria Martini, quando perguntado sobre sua avaliação da atual situação organizativa da Igreja Católica, não hesitou em responder que ela se achava com uns duzentos anos de atraso (https://tg24.sky.it/cronaca/2012/09/01/carlo_maria_martini_morte_ultima_intervista_corriere_chiesa_indietro_200_anni.html )... Pois bem, mesmo diante de tal sentimento e o de que o Concílio Vaticano II tenha sido realizado, há mais de meio século, como um ponto de partida, seguem engessadas e pesantes as estruturas eclesiásticas, a despeito da posição profética do Papa Francisco. Ainda bem recentemente, ao intervir no final da Conferência sobre os escândalos de abusos sexuais, na Igreja Católica Romana, o Bispo de Roma lembrava a necessidade da participação das mulheres católicas, nas decisões eclesiais. Sendo assim, reduzem-se as esperanças de segmentos não-hierárquicos – e até de minorias dentre os componentes do próprio clero – de que continuam mínimas as chances de alteração desta ordem de coisas. Em outras palavras, se em tempos passados, os próprios componentes da hierarquia eclesiástica, sentindo-se pressionados pelas urgências de novos tempos, aceitavam ceder a tais pressões e introduziam algumas alterações nas estruturas eclesiásticas, convencidos de que “Reformata, Ecclesia reformanda est”, no presente, contudo, não há sinais de que mudanças necessárias e urgentes venham a acontecer, a dependerem apenas do segmento clerical...

Eis por que cresce o sentimento, entre as fileiras das Batizadas e dos Batizados católicos, de que em vão esperam dos hierarcas eclesiásticos iniciativas de mudança deste panorama, e, em consequência, vão se mostrando dispostos a darem, eles mesmos, elas mesmas – passos em direção a efetivas mudanças. Prova disto dão os crescentes grupos e movimentos protagonizados por Leigos e Leigas, em todo o mundo católico, ao tomarem iniciativas de vários tipos.

Há, por um lado, grupos e movimentos de Leigos e Leigas que seguem empenhados em dialogar fraternalmente com o segmento clerical, inclusive por meio de convites, documentos e notas de solidariedade à atuação pastoral-profética do Bispo de Roma. Outros há que, sem qualquer intenção de provocar rupturas ou mal-estar, ousam dar passos no limite de suas atribuições canônicas. Outros, contudo, já começam a dar sinais de certo cansaço, e se atrevem a ultrapassar os limites de suas atribuições canônicas, sob alguns aspectos. Por exemplo, ainda recentemente, deu-se a conhecer uma convocação de um sínodo de Leigas e Leigos, por iniciativa própria, um sínodo autoconvocado. Notícias também circulam de iniciativas comunitárias de celebração da Ceia do Senhor, sem a participação de um presbítero ou, com a presença deste em igualdade de participação com os demais membros da comunidade, como aliás se fazia entre as primeiras comunidades cristãs...

À parte excessos cometidos, aqui e ali, somos forçados a reconhecer a ausência de sinais convincentes, da parte dos responsáveis pela manutenção da atual estrutura organizativa eclesiástica, de se sensibilizarem efetivamente diante desse clamor de renovação. Tal posição enrijecida em nada ajuda a unidade da Igreja Católica Romana. Pelo contrário, contribui para incentivar gestos de ruptura, cujo desfecho não nos anima na direção do diálogo e da unidade dentro da diversidade, a médio e longo prazos.

Diante de tais impasses, que iniciativas ajudariam na direção de uma superação dos mesmos? A título de contribuir com esse diálogo, ocorre-me partilhar algumas ideias, ciente e respeitoso de tantas outras.

A despeito de certa descrença, por parte de alguns grupos e movimentos católicos progressistas, de que não se tem muito a esperar do segmento clerical, entendo não devermos descartar reiteradas tentativas de diálogo, seja com membros ou instâncias hierárquicas abertas a tal iniciativa, seja com quaisquer outros segmentos eclesiais dispostos ao mesmo exercício.
Isto não impede que se vá mais longe, de modo a ousarmos passos ainda não ou pouco tentados. Por exemplo:
- Que tal empreendermos passos em direção a um debate maior e a inciativas de organização mais atuante, a médio e longo prazos, do segmento eclesial protagonizado pelas leigas e pelos leigos, inclusive com vistas à organização de conferências nacionais (como primeiro passo para a organização de conferências continentais)?
- Por que não ousarmos passos, a médio e longo prazos, com vistas a um novo Concílio a ser desta vez protagonizado, por delegações proporcionais de todos os segmentos eclesiais?
Convém ressaltar que tais iniciativas constituem apenas algumas de tantas possibilidades a serem debatidas e amadurecidas, não apenas pelo segmento eclesial composto pelas leigas e pelos leigos, mas pelo conjunto católico de Batizadas e Batizados, compromisso a ser assumido no tempo que o Espírito do Ressuscitado nos inspirar...
João Pessoa, 27 de fevereiro de 2019. 

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2019

VENEZUELA: VIA BELIGERANTE ABORTA SAÍDA DEMOCRÁTICA


VENEZUELA: VIA BELIGERANTE ABORTA SAÍDA DEMOCRÁTICA

Alder Júlio Ferreira Calado

No momento em que estas linhas estão sendo digitadas, deve estar iniciando, em Bogotá, um encontro com lideranças e chefes de Estado do continente, acerca dos próximos passos a serem dados, com vistas a uma suposta saída do impasse venezuelano.

A Venezuela segue a desafiar o processo democrático, seja por vias endógenas seja por via exóginas. Nos últimos meses e nos últimos dias, agiganta-se o risco de uma conflagração sangrenta, de grandes proporções, de modo a abortar o caminho democrático como única condição de uma saída democrática, de alcance razoável. Não nutro simpatia pelas escolhas em curso do regime venezuelano. Tenho, de minha parte uma posição próxima da manifestada pelo sociólogo François Houtart (cf., por exemplo: https://dialnet.unirioja.es/descarga/articulo/4834924.pdf ).

Independentemente de qual seja a avalição sobre as escolhas do Governo de fato e legalmente instalado da Venezuela, sucessivas tentativas endógenas e exógenas de superação da atual crise têm resultado frustradas. E, ao que parece, as mais recentes tentativas emitem sinais de nova frustração. E o que nos leva a sinalizar nesta direção? Cuidemos, a seguir (brevissimamente), de pontuar alguns elementos, tomando em consideração uma sucessão de análises de um amplo espectro político-ideológico, indo de analistas venezuelanos a comentaristas europeus; indo de uma interpretação de Causa Operária, passando por boas análises disponibilizadas pela Boitempo, a interpretações de Breno Altmann, de Boaventura de Sousa Santos... (Sobre este último, ver:

Nas linhas que seguem, limitamo-nos a destacar, rapidamente, elementos em forma de questionamentos que considero importante compartilhar.

É sabido que crises humanitárias acontecem, neste instante, em diferentes países, mundo a fora, a merecerem iniciativas internacionais de verdadeira ajuda humanitária. Por que será que o caso Venezuela - que está longe de ser o mais grave - desperta tanto sentimento de solidariedade?

O que os pobres da Venezuela têm de tão importante - a mais do que outros povos - para merecerem tanta atenção e interesse, desde Trump e seus aliados?

No passado - recente e menos recente -, em que resultaram tais ajudas humanitárias (inclusive no Brasil dos inícios dos anos 60, com a participação de organismos tais como a USAAID)?

Em que resultaram, na pratica, ações de intervenção similares, no Iraque, na Líbia, etc.?

Pode-se mesmo dizer que daí rebrotou a Democracia? Qual Democracia?

À parte eventual (e duvidoso!) Interesse humanitário de grandes corporações estadunidenses e respectivos governos aliados, será que o petróleo deve ser considerado seu alvo especial?

Que saída democrática é possível, sem a participação decisiva das diversas forças que constituem o povo venezuelano? É o povo venezuelano ou são as forças exógenas a quem deve caber a decisão, em busca de uma saída democrática?

As potências e os grupos externos, tão interessados em determinar o destino do povo venezuelano, achando-se em semelhante situação, aceitariam a saída que se está a propor, inclusive a da criação de um presidente autoproclamado?

Com relação à propagada "ajuda humanitária", esta alcança que ordem de valor (20 milhões de dólares), quando comparada ao sequestro de dezenas de bilhões de dólares, feitos pelo Governo Trump, contra o povo venezuelano?

No caso do Governo brasileiro diante de profundos desafios enfrentados, não será, no mínimo, temerária uma adesão incondicional à tese de invasão (ou algo semelhante) do território venezuelano?
Diante da conhecida e reconhecida tradição diplomática do Brasil, no conjunto das nações, não parece evidente seu perfil já provado e aprovado, em vez de um perigoso adesismo às soluções de força?

João Pessoa, 25 de fevereiro de 2019.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2019

RICARDO BOECHAT, UM JORNALISTA DIFERENCIADO: traços do perfil de um cidadão aguerrido



Alder Júlio Ferreira Calado

As linhas que seguem, já haviam sido concebidas há algum tempo. Somente agora, contudo, num contexto de comoção pelo trágico acidente de que foi vítima há uma semana, é que vêm a público. De todo modo, entendo dever compartilhar, a quem interessar possam, algumas ideias que sua trajetória – principalmente, nos últimos anos – me inspira.
Seria supérfluo de minha parte, assinalar não ser necessário subscrever todas as teses de Ricardo Boechat – como, aliás, de qualquer outra figura -, mas, considerando tempos de pós-verdade e de “Fake News”, prefiro fazê-lo. Sem qualquer pretensão de classificar seu perfil político, apenas assiná-lo que o avalio como um democrata progressista, apartidário, com notáveis traços anárquicos. Aqui e agora, me ponham a realçar alguns aspectos de seu percurso profissional, que me tocam mais particularmente. E o faço, centrando atenção em 3 dimensões que hora sublinho: a dimensão ética, seu senso de humor, sua inventividade.
Do ponto de vista ético, Boechat começa a despertar a atenção pelo fato de declarar-se com certa frequência um ateu. Para um largo público, isto já seria suficiente para tomar-se cuidado com seus ditos e escritos. Eu não estranharia a divulgação, por certos segmentos de nossa sociedade (os segmentos fundamentalistas) de uma interpretação, segundo a qual o acidente de que foi vítima teria sido um castigo de Deus... É triste ouvir esse tipo de interpretação! Simplesmente, denuncia nossa profunda cegueira humana e, em relação ao mundo dito cristão, uma traição ao Evangelho do “poeta da compaixão”.
O que se poderia dizer do comportamento ético apresentado nos mais distintos ambientes jornalísticos e não jornalísticos, por esta figura emblemática? É conhecida e reconhecida sua postura de transparência. Com frequência, é capaz de expor, sem restrições, sua posição jornalística e de cidadão, ao ancorar situações e fatos, os mais espinhosos. Independentemente dos riscos de equívocos, que tantas vezes enfrentou, ao comentar questões extremamente polêmicas, não hesitava em dizer seu lado, agradasse ou desagradasse a ouvintes e telespectadores. Qualidade rara, num contexto dominado pelo “paradigma da pós-verdade” principalmente considerando-se os limites de sua função de jornalista, perante as redes de comunicação a que estava profissionalmente vinculado. Comentários e críticas contundentes dele se ouviam, diariamente, a cerca de tantos fatos e situações, seja no âmbito da Política, seja no âmbito da economia, etc. Quando eventualmente se sentia flagrado em equívoco, não hesitava em reconhecer publicamente, após o cuidado habitual de averiguar suas fontes, algo nada comum no jornalismo dominante, no Brasil e alhures. A despeito de seus limites como ser humano, suas atitudes sinalizavam uma paixão pela verdade. E o fazia, não em nome de alguma religião ou de algum deus – declarava-se ateu -, mas em razão de sua consciência e de seu compromisso com a verdade. Tal atitude contrasta, frequentemente, com a de tantas figuras que, em nome de Deus ou de sua religião, agem com esperteza, com meios termos, reféns da conveniência e de seus interesses inconfessos. “Este povo me louva com os lábios, mas longe e mim está o seu coração”...

Chama igualmente a atenção sua abertura diante de pontos de vista diversos dos seus, bem como soa impactante seu senso de autocrítica. Em não raras situações, em que analisa determinadas atitudes alheias eticamente reprováveis, especialmente quando ao trazer seus argumentos denunciativos, costumava levantar hipóteses, incluindo a si mesmo ou os seus, como possíveis alvos da mesma crítica, para confirmar que sua posição seria a mesma com que trata erros alheios. Procedimento eticamente bastante saudável!
Ainda quanto à dimensão ética de seu perfil de jornalista e de cidadão, importa destacar seu extraordinário senso de justiça, bem como sua sensibilidade e solidariedade para com toda sorte de vítima de injustiça. Ao perceber qualquer fato concreto ou qualquer situação objetiva  envolvendo, não importa quem, não media esforço nem palavra para se posicionar em defesa da vítima, com admirável coragem. Desassombrado, passava a denunciar o fato e a cobrar responsabilidade, fosse quem fosse a fonte de injustiça. Não é à toa nem por acaso o número de processos de que foi vítima, situação que não o continha, em seu ímpeto de denúncia, fosse o alvo qualquer esfera de poder ou qualquer autoridade de referência, de direita ou de esquerda, ou de centro... O caso mais recente sobre o qual se debruçou durante semanas, foi a ruptura da barragem de Brumadinho, inclusive no dia mesmo do acidente que resultou no seu precoce desaparecimento.

Ricardo Boechat sempre se mostrou um crítico mordaz do Estado brasileiro, em todos os seus aparelhos. Lidava com relativo pessimismo quanto às chances de mudança do Estado, com relação ao atendimento das demandas sociais, em especial relativas aos segmentos majoritários da população. Exemplo desta postura habitual eram seus comentários, durante as campanhas eleitorais...
Outro aspecto relevante em sua atuação jornalística e de cidadão, prende-se ao seu extraordinário senso de humor. A este respeito, são abundantes os testemunhos compartilhados por tanta gente que o conhecia de perto. Um senso de humor inteligente, criativo, a evocar, por exemplo, as travessuras dignas de um repentista. E aqui não me refiro apenas à sua atuação em parceria com o humorista José Simão, nos momentos diários de humor, divulgados pela Rádio Band FM, mas em tantas outras ocasiões, inclusive durante os intervalos de programas por ele apresentados. Como exemplo ilustrativo, sugiro conferir a seguinte entrevista, concedida em 2011: https://www.youtube.com/watch?v=_DQ05_MXHlo .

Um outro aspecto que dele/nele merece ser ressaltado tem a ver com seu alto potencial criativo. Em múltiplas e embaraçosas situações, sempre dava a conhecer seu talento de inventividade. A começar pela excelência de articulação de seu discurso (oral ou escrito): revelava-se um exímio tecelão de palavras, destacando-se pela riqueza vocabular, pela propriedade dos termos empregados e pela fluência sintática.

Num cenário de escassez de exercício crítico da cidadania e de condutas duvidosas de lideranças e de profissionais da imprensa, faço votos de que  o legado de Ricardo Boechat, como cidadão e como jornalista, inspire e fortaleça o compromisso com a defesa e promoção da dignidade dos injustiçados.

João Pessoa, 19/02/2019