Alder
Júlio Ferreira Calado
As linhas que seguem, já haviam sido concebidas há algum
tempo. Somente agora, contudo, num contexto de comoção pelo trágico acidente de
que foi vítima há uma semana, é que vêm a público. De todo modo, entendo dever compartilhar,
a quem interessar possam, algumas ideias que sua trajetória – principalmente,
nos últimos anos – me inspira.
Seria supérfluo de minha parte, assinalar não ser necessário
subscrever todas as teses de Ricardo Boechat – como, aliás, de qualquer outra
figura -, mas, considerando tempos de pós-verdade e de “Fake News”, prefiro
fazê-lo. Sem qualquer pretensão de classificar seu perfil político, apenas
assiná-lo que o avalio como um democrata progressista, apartidário, com notáveis traços
anárquicos. Aqui e agora, me ponham a realçar alguns aspectos de seu percurso
profissional, que me tocam mais particularmente. E o faço, centrando atenção em
3 dimensões que hora sublinho: a dimensão ética, seu senso de humor, sua
inventividade.
Do ponto de vista ético, Boechat começa a despertar a atenção
pelo fato de declarar-se com certa frequência um ateu. Para um largo público,
isto já seria suficiente para tomar-se cuidado com seus ditos e escritos. Eu não
estranharia a divulgação, por certos segmentos de nossa sociedade (os segmentos
fundamentalistas) de uma interpretação, segundo a qual o acidente de que foi
vítima teria sido um castigo de Deus... É triste ouvir esse tipo de interpretação!
Simplesmente, denuncia nossa profunda cegueira humana e, em relação ao mundo dito
cristão, uma traição ao Evangelho do “poeta da compaixão”.
O que se poderia dizer do comportamento ético apresentado nos
mais distintos ambientes jornalísticos e não jornalísticos, por esta figura
emblemática? É conhecida e reconhecida sua postura de transparência. Com
frequência, é capaz de expor, sem restrições, sua posição jornalística e de
cidadão, ao ancorar situações e fatos, os mais espinhosos. Independentemente
dos riscos de equívocos, que tantas vezes enfrentou, ao comentar questões extremamente
polêmicas, não hesitava em dizer seu lado, agradasse ou desagradasse a ouvintes
e telespectadores. Qualidade rara, num contexto dominado pelo “paradigma da
pós-verdade” principalmente considerando-se os limites de sua função de
jornalista, perante as redes de comunicação a que estava profissionalmente
vinculado. Comentários e críticas contundentes dele se ouviam, diariamente, a
cerca de tantos fatos e situações, seja no âmbito da Política, seja no âmbito
da economia, etc. Quando eventualmente se sentia flagrado em equívoco, não
hesitava em reconhecer publicamente, após o cuidado habitual de averiguar suas
fontes, algo nada comum no jornalismo dominante, no Brasil e alhures. A
despeito de seus limites como ser humano, suas atitudes sinalizavam uma paixão
pela verdade. E o fazia, não em nome de alguma religião ou de algum deus –
declarava-se ateu -, mas em razão de sua consciência e de seu compromisso com a
verdade. Tal atitude contrasta, frequentemente, com a de tantas figuras que, em
nome de Deus ou de sua religião, agem com esperteza, com meios termos, reféns
da conveniência e de seus interesses inconfessos. “Este povo me louva com os
lábios, mas longe e mim está o seu coração”...
Chama igualmente a atenção sua abertura diante de pontos de
vista diversos dos seus, bem como soa impactante seu senso de autocrítica. Em
não raras situações, em que analisa determinadas atitudes alheias eticamente
reprováveis, especialmente quando ao trazer seus argumentos denunciativos,
costumava levantar hipóteses, incluindo a si mesmo ou os seus, como possíveis
alvos da mesma crítica, para confirmar que sua posição seria a mesma com que
trata erros alheios. Procedimento eticamente bastante saudável!
Ainda quanto à dimensão ética de seu perfil de jornalista e
de cidadão, importa destacar seu extraordinário senso de justiça, bem como sua
sensibilidade e solidariedade para com toda sorte de vítima de injustiça. Ao
perceber qualquer fato concreto ou qualquer situação objetiva envolvendo, não importa quem, não media
esforço nem palavra para se posicionar em defesa da vítima, com admirável
coragem. Desassombrado, passava a denunciar o fato e a cobrar responsabilidade,
fosse quem fosse a fonte de injustiça. Não é à toa nem por acaso o número de
processos de que foi vítima, situação que não o continha, em seu ímpeto de
denúncia, fosse o alvo qualquer esfera de poder ou qualquer autoridade de
referência, de direita ou de esquerda, ou de centro... O caso mais recente
sobre o qual se debruçou durante semanas, foi a ruptura da barragem de
Brumadinho, inclusive no dia mesmo do acidente que resultou no seu precoce
desaparecimento.
Ricardo Boechat sempre se mostrou um crítico mordaz do
Estado brasileiro, em todos os seus aparelhos. Lidava com relativo pessimismo
quanto às chances de mudança do Estado, com relação ao atendimento das demandas
sociais, em especial relativas aos segmentos majoritários da população. Exemplo
desta postura habitual eram seus comentários, durante as campanhas
eleitorais...
Outro aspecto relevante em sua atuação jornalística e de
cidadão, prende-se ao seu extraordinário senso de humor. A este respeito, são
abundantes os testemunhos compartilhados por tanta gente que o conhecia de
perto. Um senso de humor inteligente, criativo, a evocar, por exemplo, as
travessuras dignas de um repentista. E aqui não me refiro apenas à sua atuação
em parceria com o humorista José Simão, nos momentos diários de humor,
divulgados pela Rádio Band FM, mas em tantas outras ocasiões, inclusive durante
os intervalos de programas por ele apresentados. Como exemplo ilustrativo,
sugiro conferir a seguinte entrevista, concedida em 2011: https://www.youtube.com/watch?v=_DQ05_MXHlo .
Um outro aspecto que dele/nele merece ser ressaltado tem a
ver com seu alto potencial criativo. Em múltiplas e embaraçosas situações,
sempre dava a conhecer seu talento de inventividade. A começar pela excelência
de articulação de seu discurso (oral ou escrito): revelava-se um exímio tecelão
de palavras, destacando-se pela riqueza vocabular, pela propriedade dos termos
empregados e pela fluência sintática.
Num cenário de escassez de exercício crítico da cidadania e
de condutas duvidosas de lideranças e de profissionais da imprensa, faço votos
de que o legado de Ricardo Boechat, como
cidadão e como jornalista, inspire e fortaleça o compromisso com a defesa e
promoção da dignidade dos injustiçados.
João Pessoa, 19/02/2019
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