Alder Júlio Ferreira Calado
Neste 17 de abril de 2019, próximo passado, completaram-se 23 anos da
chacina dos Carajás, da qual resultaram vítimas 19 camponeses e mais 69 pessoas
feridas, em Eldorado dos Carajás - PA.
Justa e pertinente, a sessão de memória do trágico episódio, realizada na
Camâra Federal, na manhã do dia 17 (ante-ontem). Com a participação de diversas
representações : movimentos sociais, movimento sindical, parlamentares, e outras
entidades da sociedade civil. Todas as falas expressaram o sentimento de
indignação contra aquela barbárie, bem como a solidariedade com os que lutam
por justiça social no campo e contra a impunidade de tantos crimes abomináveis.
E não se cingiram ao passado, mas sobretudo cuidaram de sublinhar a linha de continuidade
que a atual conjuntura sócio-política apresenta, com o desastrado Governo do
obscurantismo, e seus sucessivos pacotes de maldade contra os "de
baixo". Das falas expressas cuidamos de destacar alguns pontos:
- as raízes da violência no campo não apenas persistem, como se têm
agravado, com os malfeitos espalhados pelo atual Governo: extinção do
Ministério do Trabalho; agravamento do desmonte das Leis de proteção aos Trabalhadores
e Trabalhadoras; a destruição da Previdência Social;
- o claro descompromisso com a Reforma Agrária, substituindo-a pelas
sucessivas medidas favoráveis à grilagem de terras, à invasão de territórios indígenas,
de não demarcação das terras indígenas e quilombolas;
- a bizarra parceria com Governo dos Estados Unidos relativa à Base de
Alcântara;
- a privatização obstinada do patrimônio nacional;
- as gritantes manifestações de subserviência à política corrosiva de Trump
e das grandes transnacionais;
- o incentivo a políticas predatórias de exploração do petróleo e das
grandes jazidas de interação;
- a perseguição e criminalização dos movimentos sociais populares
sindicais; as implementação de políticas de desmonte da saúde, da educação, da
previdência e de outras políticas estruturas da sociedade brasileira;
- reconhecimento da pequena produção agrícola como principal produtora
de alimentos saudáveis e o reconhecimento dos assentamentos da Reforma Agrária,
em suas múltiplas conquistas, inclusive no campo da agroecologia e das feiras
agroecológicas, espalhadas pelo país.
Justamente neste contexto de desmonte criminoso de conquistas históricas
da sociedade brasileira, vale a pena rememorarmos a excelência de um escrito
luminoso, o documento da CNBB intitulado "Igreja e Problemas da Terra”, há
quase quarenta anos. Dedicamos este texto a uma breve rememoração
analítica das linhas-mestras deste Documento emblemático, elaborado ainda
sob o período de Ditadura Civil-Militar, no Brasil, quando ainda contávamos com
uma geração excepcional de bispos-profetas, entre nós...
De que documento se trata? Trata-se de um reflexão profético-pastoral feita
por bispos católicos, em nome da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, a
expressarem sua denúncia do modelo agrário então vigente, em especial das
condições injustiças da organização fundiária então vigente, da posse e uso da
terra, a partir das condições e da experiência de vida e de trabalho dos
Trabalhadores e Trabalhadoras agrícolas. Denunciam o acumpliciamento do Estado
com as grandes empresas atuando no campo. Um documento muito bem elaborado,
inclusive quanto à sua metodologia e sólida documentação fundamentada em dados
oficiais, especialmente no Censo agropecuário de 1975.
O Documento começa constatando a penúria de que eram vítimas parcelas
significativas de trabalhadores do campo, por conta das profundas e crescentes
desigualdades da estrutura fundiária reinante:
Após constatar e denunciar a grave situação de exploração em que vivem
enormes parcelas de trabalhadores e trabalhadoras do campo, o Documento , ao
expressar seu compromisso com a justiça social, afirma ser missão da Igreja manifestar
solidariedade às vítimas de injustiças, e cita os dados oficiais, mostrando que
52,3% dos estabelecimentos rurais compõem-se de áreas com até 10 ha, mas
correspondem a apenas 2,8% das unidades de produção agrícola, enquanto os
estabelecimentos rurais com mais de 1000 ha pertencem a apenas 0,8% dos
proprietários, injustiça que brada aos céus, por tamanha desigualdade.
E não se limita a fazer constatações: também cuida de indicar as raízes sócio-políticas
de tal situação, quais os responsáveis principais desse drama humano e social.
Mostra como o principal fator reside no próprio modelo político, à medida que
implementa políticas econômicas que beneficiam os interesses dos setores
empresariais, a exemplo do que se passava com os escandalosos incentivos
fiscais, concedidos a grandes empresas, em função dos projetos agropecuários
subvencionados pela SUDENE e pela SUDAM, e trata de pôr o dedo na ferida:
- num determinado período, a SUDAM aprova em torno de 336 projetos
agropecuários para a região amazônica, para o que do total de 7 bilhões de
cruzeiros, as grandes empresas contribuíram apenas com 2 bilhões de cruzeiros,
enquanto o Poder público subsidiou em torno de 5 bilhões de cruzeiros, isto é,
mais de 70%... Pior é que tais projetos não apresentaram a produtividade
prometida, tendo alcançado índices de produtividade inferiores aos obtidos por
pequenos produtores...
Em seus 112 números ou parágrafos, o Documento da CNBB, intitulado
"Igreja e Problemas da Terra", datado de 14 de fevereiro de 1980, vai
se revelando, assim, uma radiografia emblemática, uma chave preciosa de leitura
analítica da questão fundiária e respectiva política agrícola, reinantes no
Brasil dentão. Documento elaborado dentro da conhecida metodologia do VER-JULGAR-AGIR,
seguida pela Igreja Católica, desde os tempos da Ação Católica especializada
(JAC< JEC< JIC, JOC, JUC). O primeiro passo deste procedimento metodológico
- que no Documento se estende até ao número 55, compõe-se de um mergulho na
leitura analítica da realidade do campo, no Brasil, mostrando as raízes de suas
profundas e crescentes desigualdades sociais, bem como as condições sub-humanas
enfrentadas pelos Trabalhadores e Trabalhadoras do campo - os sem-terra, os
posseiros, os parceiros subordinados, os bóias-frias, os trabalhadores temporários
ou sazonais, os volantes, os "clandestinos", em contraste brutal com
os privilégios do latifúndio, das empresas agropecuárias e agroindustriais, financiadas
nabascamente pelo erário, às custas e em detrimento dos direitos dos
camponeses e camponesas, vivendo em condições precárias de trabalho, em grande
parte vive sendo obrigados a viver como acampados em míseros barracos cobertos
de lona preta.
Após iniciar focando a injusta repartição da terra, cuida de focar o
perfil e a diversidade dos enormes segmentos da população rural do Brasil,
vítimas dessas graves injustiças sociais. O Documento traz à tona as precárias
condições de vida e de trabalho, não apenas dos camponeses sem-terra, como
também de diferentes grupos indígenas, na Amazônica e em outras regiões, bem
assim dos quilombolas, dos ribeirinhos, dos seringueiros, dos migrante, e de
outros grupos humanos, espalhados pelo Brasil rural. De cada um desses grupos
de trabalhadores rurais, o Documento trata de descrever e analisar as condições
concretas dessas populações, assim como cuida de focar suas raízes históricas,
principalmente sua evolução degradante, a partir dos anos 50. À medida que líamos
tão rica análise, vinham-nos à memória outros textos que reafirmam a cruel
realidade. Dentre estes, destaco dois: uma simples crônica, de autoria do Pe.
Olímpio Torres, da Diocese de Pesqueira, publicada no Jornal Era Nova, de 12 de junho de 1953 (texto
compartilhado pelo historiador Edson Silva). Nela, o autor denunciava,
indignado, a expansão desgovernada da pecuária pelos melhores territórios da
Serra do Ororubá, em Pesqueira - PE, à custa e em detrimento da rica produção agrícola
até então predominante. Não por acaso, referia-se com ironia a tal situação,
tratando a pecuária como "sua majestade, o boi". O segundo
texto que povoava nossa mente, enquanto líamos o Documento da CNBB, tratava-se
do livro de Victor Asselin, Grilagem:
Corrupção e Violência Em Terras do Carajás, Petrópolis: Vozes, 1982.
Voltando ao Documento, ainda focando o momento do VER, isto é, da
análise da realidade agrária brasileira, após apresentar dados oficiais
apontando uma crescente concentração da terra, as expulsões de milhares de trabalhadores
de suas terras de trabalho, o privilegiamento das empresas agropecuárias e agro-industriais,
com projetos assegurados com recursos públicos, inclusive o Proálcool, a expansão
desenfreada da agropecuária, do inadequado reflorestamento, ao tempo em que se
estimulava o desmatamento em terras amazônicas, as invasões de territórios
indígenas, o devastamento de reservas públicas, o aumento estúpido dos
conflitos agrários, daí resultando centenas de vítimas, em sua imensa maioria,
de camponeses sem-terra e seus aliados, o Documento também se debruça sobre os principais
responsáveis por tal situação: com um reconhecimento de que, de algum modo,
todos temos parcela de responsabilidade, ante o que se passa, devendo despertar
para um esforço comum de alcançar as raízes deste mal. Aponta a cumplicidade
dos organismos do Estado na produção de tais desigualdades, ao denunciar a
concessão pelo Estado de verdadeiras fortunas do orçamento público ao
desenvolvimento de projetos agropecuários que só agravam as desigualdades e as
injustiças sociais, apontando responsabilidades de órgãos tais como a SUDENE, o
DNOCS, a SUDAM, acusando-os de cumplicidade com os privilégios das grandes
empresas agropecuárias e agro-industriais, denunciando ainda os profundos
estragos da pesca predatória, feita com navios equipados com frigoríficos, a
invadirem rios da Amazônica e a levarem danos e horrores à população ribeirinha
e aos pescadores artesanais
Um outro segmento significativo da população vitimada pelas injustiças e
pelas desigualdades sociais, é o que é formado pelos migrantes, Trata-se de um
contingente numeroso, constantemente alvejado pela ausência ou pelas políticas
econômicas em curso, responsáveis principais pelo desenraizamento cultural de
parcelas expressivas de nossa população. Trata-se de um segmento resultante do
êxodo forçado, das expulsões do campo, razão por que sentem obrigados a migrar
para regiões urbanas periféricas, destinadas a engrossar o contingente de
desempregados e de grupos vivendo as agruras mais doloridas, reinantes nas
periferias de nossas cidades.
O passo metodológico seguinte percorrido pelo Documento, é o do JULGARE,
isto é, concernente a um confronto dessa realidade com o que diz\ a Palavra de
Deus, os profetas, os Evangelhos, os textos do Novo Testamento, a Patrística,
em breve, a Doutrina Social da Igreja, incluindo as encíclicas sociais de João
XXIII, de Paulo VI, de João Paulo II, além de relevantes textos conciliares, a
exemplo da Gaudium et Spess e de
outros textos relativos, por ex., à Conferência Episcopal Latino-Americana de
Puebla. O Documento nos põe diante das exigências cristãs de uma verdadeira
justiça social, capaz de mostrar as autenticas raízes das injustiças sociais: a
avidez de lucros e de riquezas à custa e em detrimento dos trabalhadores mais
pobres.
O último procedimento metodológico, o do AGIR, que corresponde
aproximadamente a uma quarta parte do Documento, empenha-se em explicitar os
compromissos da CNBB, em solidariedade de seguirem denunciando as raízes
estruturais desses males sociais, ao tempo em que explicitam sua solidariedade
com a causa libertadora dos oprimidos, em especial dos trabalhadores sem terra.
Essas rápidas considerações acerca do Documento-referência da CNBB, é
claro, não podem e não devem substituir a leitura integral de "Igreja e
Problemas da Terra ", cujo "link" se pode encontrar disponível
em: https://pstrindade.files.wordpress.com/2015/01/cnbb-doc-17-igreja-e-problemas-da-terra.pdf
Como ilustração da força profética e do alcance analítico do referido Documento,
permito-me citar alguns números do mesmo Documento, como um aperitivo à leitura
integral do mesmo:
"O modelo político a serviço da grande empresa
18. A política de incentivos fiscais é uma das causas fundamentais da
expansão das grandes empresas agropecuárias à custa e em detrimento da
agricultura familiar. Até julho de 1977, a Superintendência do Desenvolvimento
da Amazônia havia aprovado 336 projetos agropecuários, nos quais seriam
investidos 7 bilhões de cruzeiros. Dessa importância, apenas 2 bilhões
correspondiam a recursos próprios das empresas, enquanto os restantes 5
bilhões, mais de 70% do total, eram provenientes dos chamados incentivos
fiscais.
19. A política de incentivos fiscais desvia dinheiro de todos para uso
de uma minoria, não atendendo às exigências do bem comum. Esse dinheiro deixa
de ser aplicado em obras de interesse público para ser desfrutado, como coisa
própria, pela grande empresa. Embora se reconheça oficialmente que a maior
parte da alimentação em nosso país provém dos pequenos produtores, até hoje não
se promoveu uma política de incentivos fiscais ou de renda em seu favor. Essa
política revela o Estado comprometido com os interesses dos grandes grupos
econômicos.
20. Essa orientação oficial estimulou a entrada da grande empresa no
campo. Um vultoso programa oficial, o PROÁLCOOL, baseado em subsídios
governamentais, já está aumentando a concentração da terra, a expulsão de
lavradores, quando poderia ser uma oportunidade privilegiada para uma
redistribuição de terras.
21. A política de incentivos, na Amazônia, não aumentou a produtividade
das grandes fazendas de gado, que apresentam uma taxa de utilização da terra
inferior a dos pequenos produtores. Conclui-se daí que, por ora, os grandes
grupos econômicos apenas visam beneficiar-se dos incentivos
fiscais.
22. Ainda na Amazônia, grandes empresas invadem os rios com navios
pesqueiros equipados com frigoríficos. Desenvolvendo pesca predatória, levam à
fome as populações ribeirinhas que completam sua dieta pobre com a pesca
artesanal.
Pescadores artesanais de áreas costeiras são igualmente prejudicados por
projetos turísticos e por dejetos industriais.
A questão das terras dos povos indígenas
23. Nenhuma das comunidades indígenas, em contato com a sociedade
nacional, escapou às investidas sobre suas terras.
24. Apesar da vigência do Estatuto do índio, os conflitos em áreas
indígenas se tornam cada vez mais violentos e generalizados. Tais conflitos se
ligam aos seguintes fatores: não demarcação oficial de suas terras; invasão de
seus territórios já demarcados; comercialização e apropriação pela FUNAI dos
recursos de suas terras; preconceito de que o índio é um estorvo ao
desenvolvimento; não reconhecimento de que suas terras lhes cabem, por direito,
como povos; desconhecimento das exigências específicas do relacionamento do
índio com a terra segundo sua cultura, seus usos, costumes e sua memória
histórica; enfim, total marginalização do índio da própria política
indigenista, no seu planejamento e na sua execução.
Migrações e violência no campo
25. Há no país, milhões de migrantes, muitos dos quais obrigados a sair
do seu lugar de origem, ao longo dos anos, devido principalmente à concentração
da propriedade da terra, à extensão das pastagens e à transformação nas
relações de trabalho na lavoura.
4 Sem contar os milhares de migrantes que, como extensão da
migração interna, têm se dirigido aos, países vizinhos.
26. Uma grande parte dos lavradores migrou para as grandes cidades à
procura de uma oportunidade de trabalho, indo engrossar a massa marginalizada
que vive em condições subumanas nas favelas, invasões e alagados, em
loteamentos clandestinos, cortiços e nas senzalas modernas dos canteiros de
obras da construção civil.
O desenraizamento do povo gera insegurança pelo rompimento dos vínculos
sociais e, perda dos pontos de referência culturais, sociais e religiosos,
levando à dispersão e à perda de identidade.
27. Outra parte se dirige às regiões agrícolas pioneiras à procura de
terras. Entretanto, com frequência, sua tentativa de fixar-se à terra choca-se
contra uma série de barreiras: dificuldade para obter o título definitivo da
terra, no caso de compra; a falta de apoio ou o próprio fracasso das companhias
colonizadoras; nova expulsão da terra, ante a chegada de novos grileiros ou de
reais ou pretensos proprietários.
28. Em quase todas as unidades da Federação, sob formas distintas surgem
conflitos entre, de um lado, grandes empresas nacionais e multinacionais,
grileiros e fazendeiros e, de outro, posseiros e índios. Violências de toda
ordem se cometem contra esses últimos para expulsá-los da terra. Nessas
violências, já se comprovou amplamente, estão envolvidos desde jagunços e
pistoleiros profissionais até forças policiais, oficiais de justiça e até
juízes. Não raro observa-se a anomalia gravíssima da composição de forças de
jagunços e policiais para executar sentenças de despejo.
29. A situação tem-se agravado muito depressa. Tomando como referência a
região de Conceição do Araguaia, no sul do Pará, podemos ter uma idéia da
velocidade e amplitude da situação de conflito. No começo de 1979, havia 43
conflitos identificados e cadastrados. Seis meses depois, os conflitos já eram
55. No final do ano já eram mais de 80. No Estado do Maranhão, tradicionalmente
conhecido como o Estado das terras livres, abertas à entrada de lavradores
pobres, foram arrolados, em 1979, 128 conflitos, algumas vezes envolvendo
centenas de famílias. Em três casos, pelo menos, o número de famílias
envolvidas ultrapassa o milhar, sendo grande a concentração da violência nos
vales do Mearim e do Pindaré.
30. Estudos recentes mostraram que a cada três dias, em média, os
grandes jornais do sudeste publicam uma notícia de conflito pela terra.
Comprova-se que essas notícias correspondem a menos de 10% dos conflitos
cadastrados pelo movimento sindical dos trabalhadores na agricultura. Um
levantamento do número de vítimas que sofreram violências físicas, feito
através de jornais, indica que mais de 50% delas morrem nesses
confrontos.
31. Isso mostra a extrema violência da luta pela terra em nosso país,
com características de uma guerra de extermínio, em que as baixas mais pesadas
estão do lado dos lavradores pobres. Esse processo se acentua na chamada
Amazônia Legal, embora ocorra também em outras regiões. "
Em síntese, estamos diante de um dos mais lúcidos e proféticos
documentos produzidos pela CNBB, cujas ressonâncias se revelam de notória
atualidade, quarenta anos depois...
João Pessoa, 19 de abril de 2019.