sexta-feira, 19 de abril de 2019

TERRA DE TRABALHO X TERRA DE NEGÓCIO: apontamentos em torno do Documento da CNBB intitulado “Igreja e Problemas da Terra” resultante da 18a. Assembleia Geral da CNBB, de 14 de fevereiro de 1980


Alder Júlio Ferreira Calado

Neste 17 de abril de 2019, próximo passado, completaram-se 23 anos da chacina dos Carajás, da qual resultaram vítimas 19 camponeses e mais 69 pessoas feridas, em Eldorado dos Carajás - PA. 

Justa e pertinente, a sessão de memória do trágico episódio, realizada na Camâra Federal, na manhã do dia 17 (ante-ontem). Com a participação de diversas representações : movimentos sociais, movimento sindical, parlamentares, e outras entidades da sociedade civil. Todas as falas expressaram o sentimento de indignação contra aquela barbárie, bem como a solidariedade com os que lutam por justiça social no campo e contra a impunidade de tantos crimes abomináveis. E não se cingiram ao passado, mas sobretudo cuidaram de sublinhar a linha de continuidade que a atual conjuntura sócio-política apresenta, com o desastrado Governo do obscurantismo, e seus sucessivos pacotes de maldade contra os "de baixo". Das falas expressas cuidamos de destacar alguns pontos:
- as raízes da violência no campo não apenas persistem, como se têm agravado, com os malfeitos espalhados pelo atual Governo: extinção do Ministério do Trabalho; agravamento do desmonte das Leis de proteção aos Trabalhadores e Trabalhadoras; a destruição da Previdência Social; 
- o claro descompromisso com a Reforma Agrária, substituindo-a pelas sucessivas medidas favoráveis à grilagem de terras, à invasão de territórios indígenas, de não demarcação das terras indígenas e quilombolas;
- a bizarra parceria com Governo dos Estados Unidos relativa à Base de Alcântara;
- a privatização obstinada do patrimônio nacional;
- as gritantes manifestações de subserviência à política corrosiva de Trump e das grandes transnacionais;
- o incentivo a políticas predatórias de exploração do petróleo e das grandes jazidas de interação;
- a perseguição e criminalização dos movimentos sociais populares sindicais; as implementação de políticas de desmonte da saúde, da educação, da previdência e de outras políticas estruturas da sociedade brasileira;
- reconhecimento da pequena produção agrícola como principal produtora de alimentos saudáveis e o reconhecimento dos assentamentos da Reforma Agrária, em suas múltiplas conquistas, inclusive no campo da agroecologia e das feiras agroecológicas, espalhadas pelo país.

Justamente neste contexto de desmonte criminoso de conquistas históricas da sociedade brasileira, vale a pena rememorarmos a excelência de um escrito luminoso, o documento da CNBB intitulado "Igreja e Problemas da Terra”, há quase quarenta anos. Dedicamos este texto a uma breve rememoração analítica  das linhas-mestras deste Documento emblemático, elaborado ainda sob o período de Ditadura Civil-Militar, no Brasil, quando ainda contávamos com uma geração excepcional de bispos-profetas, entre nós...


De que documento se trata? Trata-se de um reflexão profético-pastoral feita por bispos católicos, em nome da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, a expressarem sua denúncia do modelo agrário então vigente, em especial das condições injustiças da organização fundiária então vigente, da posse e uso da terra, a partir das condições e da experiência de vida e de trabalho dos Trabalhadores e Trabalhadoras agrícolas. Denunciam o acumpliciamento do Estado com as grandes empresas atuando no campo. Um documento muito bem elaborado, inclusive quanto à sua metodologia e sólida documentação fundamentada em dados oficiais, especialmente no Censo agropecuário de 1975.

O Documento começa constatando a penúria de que eram vítimas parcelas significativas de trabalhadores do campo, por conta das profundas e crescentes desigualdades da estrutura fundiária reinante:

Após constatar e denunciar a grave situação de exploração em que vivem enormes parcelas de trabalhadores e trabalhadoras do campo, o Documento , ao expressar seu compromisso com a justiça social, afirma ser missão da Igreja manifestar solidariedade às vítimas de injustiças, e cita os dados oficiais, mostrando que 52,3% dos estabelecimentos rurais compõem-se de áreas com até 10 ha, mas correspondem a apenas 2,8% das unidades de produção agrícola, enquanto os estabelecimentos rurais com mais de 1000 ha pertencem a apenas 0,8% dos proprietários, injustiça que brada aos céus, por tamanha desigualdade. 

E não se limita a fazer constatações: também cuida de indicar as raízes sócio-políticas de tal situação, quais os responsáveis principais desse drama humano e social. Mostra como o principal fator reside no próprio modelo político, à medida que implementa políticas econômicas que beneficiam os interesses dos setores empresariais, a exemplo do que se passava com os escandalosos incentivos fiscais, concedidos a grandes empresas, em função dos projetos agropecuários subvencionados pela SUDENE e pela SUDAM, e trata de pôr o dedo na ferida:
- num determinado período, a SUDAM aprova em torno de 336 projetos agropecuários para a região amazônica, para o que do total de 7 bilhões de cruzeiros, as grandes empresas contribuíram apenas com 2 bilhões de cruzeiros, enquanto o Poder público subsidiou em torno de 5 bilhões de cruzeiros, isto é, mais de 70%... Pior é que tais projetos não apresentaram a produtividade prometida, tendo alcançado índices de produtividade inferiores aos obtidos por pequenos produtores...


Em seus 112 números ou parágrafos, o Documento da CNBB, intitulado "Igreja e Problemas da Terra", datado de 14 de fevereiro de 1980, vai se revelando, assim, uma radiografia emblemática, uma chave preciosa de leitura analítica da questão fundiária e respectiva política agrícola, reinantes no Brasil dentão. Documento elaborado dentro da conhecida metodologia do VER-JULGAR-AGIR, seguida pela Igreja Católica, desde os tempos da Ação Católica especializada (JAC< JEC< JIC, JOC, JUC). O primeiro passo deste procedimento metodológico - que no Documento se estende até ao número 55, compõe-se de um mergulho na leitura analítica da realidade do campo, no Brasil, mostrando as raízes de suas profundas e crescentes desigualdades sociais, bem como as condições sub-humanas enfrentadas pelos Trabalhadores e Trabalhadoras do campo - os sem-terra, os posseiros, os parceiros subordinados, os bóias-frias, os trabalhadores temporários ou sazonais, os volantes, os "clandestinos", em contraste brutal com os privilégios do latifúndio, das empresas agropecuárias e agroindustriais, financiadas nabascamente pelo erário,  às custas e em detrimento dos direitos dos camponeses e camponesas, vivendo em condições precárias de trabalho, em grande parte vive sendo obrigados a viver como acampados em míseros barracos cobertos de lona preta. 

Após iniciar focando a injusta repartição da terra, cuida de focar o perfil e a diversidade dos enormes segmentos da população rural do Brasil, vítimas dessas graves injustiças sociais. O Documento traz à tona as precárias condições de vida e de trabalho, não apenas dos camponeses sem-terra, como também de diferentes grupos indígenas, na Amazônica e em outras regiões, bem assim dos quilombolas, dos ribeirinhos, dos seringueiros, dos migrante, e de outros grupos humanos, espalhados pelo Brasil rural. De cada um desses grupos de trabalhadores rurais, o Documento trata de descrever e analisar as condições concretas dessas populações, assim como cuida de focar suas raízes históricas, principalmente sua evolução degradante, a partir dos anos 50. À medida que líamos tão rica análise, vinham-nos à memória outros textos que reafirmam a cruel realidade. Dentre estes, destaco dois: uma simples crônica, de autoria do Pe. Olímpio Torres, da Diocese de Pesqueira, publicada no Jornal Era Nova, de 12 de junho de 1953 (texto compartilhado pelo historiador Edson Silva). Nela, o autor denunciava, indignado, a expansão desgovernada da pecuária pelos melhores territórios da Serra do Ororubá, em Pesqueira - PE, à custa e em detrimento da rica produção agrícola até então predominante. Não por acaso, referia-se com ironia a tal situação, tratando  a pecuária como "sua majestade, o boi". O segundo texto que povoava nossa mente, enquanto líamos o Documento da CNBB, tratava-se do livro de Victor Asselin, Grilagem: Corrupção e Violência Em Terras do Carajás, Petrópolis: Vozes, 1982.

Voltando ao Documento, ainda focando o momento do VER, isto é, da análise da realidade agrária brasileira, após apresentar dados oficiais apontando uma crescente concentração da terra, as expulsões de milhares de trabalhadores de suas terras de trabalho, o privilegiamento das empresas agropecuárias e agro-industriais, com projetos assegurados com recursos públicos, inclusive o Proálcool, a expansão desenfreada da agropecuária, do inadequado reflorestamento, ao tempo em que se estimulava o desmatamento em terras amazônicas, as invasões de territórios indígenas, o devastamento de reservas públicas, o aumento estúpido dos conflitos agrários, daí resultando centenas de vítimas, em sua imensa maioria, de camponeses sem-terra e seus aliados, o Documento também se debruça sobre os principais responsáveis por tal situação: com um reconhecimento de que, de algum modo, todos temos parcela de responsabilidade, ante o que se passa, devendo despertar para um esforço comum de alcançar as raízes deste mal. Aponta a cumplicidade dos organismos do Estado na produção de tais desigualdades, ao denunciar a concessão pelo Estado de verdadeiras fortunas do orçamento público ao desenvolvimento de projetos agropecuários que só agravam as desigualdades e as injustiças sociais, apontando responsabilidades de órgãos tais como a SUDENE, o DNOCS, a SUDAM, acusando-os de cumplicidade com os privilégios das grandes empresas agropecuárias e agro-industriais, denunciando ainda os profundos estragos da pesca predatória, feita com navios equipados com frigoríficos, a invadirem rios da Amazônica e a levarem danos e horrores à população ribeirinha e aos pescadores artesanais

Um outro segmento significativo da população vitimada pelas injustiças e pelas desigualdades sociais, é o que é formado pelos migrantes, Trata-se de um contingente numeroso, constantemente alvejado pela ausência ou pelas políticas econômicas em curso, responsáveis principais pelo desenraizamento cultural de parcelas expressivas de nossa população. Trata-se de um segmento resultante do êxodo forçado, das expulsões do campo, razão por que sentem obrigados a migrar para regiões urbanas periféricas, destinadas a engrossar o contingente de desempregados e de grupos vivendo as agruras mais doloridas, reinantes nas periferias de nossas cidades.

O passo metodológico seguinte percorrido pelo Documento, é o do JULGARE, isto é, concernente a um confronto dessa realidade com o que diz\ a Palavra de Deus, os profetas, os Evangelhos, os textos do Novo Testamento, a Patrística, em breve, a Doutrina Social da Igreja, incluindo as encíclicas sociais de João XXIII, de Paulo VI, de João Paulo II, além de relevantes textos conciliares, a exemplo da Gaudium et Spess e de outros textos relativos, por ex., à Conferência Episcopal Latino-Americana de Puebla. O Documento nos põe diante das exigências cristãs de uma verdadeira justiça social, capaz de mostrar as autenticas raízes das injustiças sociais: a avidez de lucros e de riquezas à custa e em detrimento dos trabalhadores mais pobres. 

O último procedimento metodológico, o do AGIR, que corresponde aproximadamente a uma quarta parte do Documento, empenha-se em explicitar os compromissos da CNBB, em solidariedade de seguirem denunciando as raízes estruturais desses males sociais, ao tempo em que explicitam sua solidariedade com a causa libertadora dos oprimidos, em especial dos trabalhadores sem terra.

Essas rápidas considerações acerca do Documento-referência da CNBB, é claro, não podem e não devem substituir a leitura integral de "Igreja e Problemas da Terra ", cujo "link" se pode encontrar disponível em: https://pstrindade.files.wordpress.com/2015/01/cnbb-doc-17-igreja-e-problemas-da-terra.pdf

Como ilustração da força profética e do alcance analítico do referido Documento, permito-me citar alguns números do mesmo Documento, como um aperitivo à leitura integral do mesmo:

"O modelo político a serviço da grande empresa  
18. A política de incentivos fiscais é uma das causas fundamentais da expansão das grandes empresas agropecuárias à custa e em detrimento da agricultura familiar. Até julho de 1977, a Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia havia aprovado 336 projetos agropecuários, nos quais seriam investidos 7 bilhões de cruzeiros. Dessa importância, apenas 2 bilhões correspondiam a recursos próprios das empresas, enquanto os restantes 5 bilhões, mais de 70% do total, eram provenientes dos chamados incentivos fiscais.  
19. A política de incentivos fiscais desvia dinheiro de todos para uso de uma minoria, não atendendo às exigências do bem comum. Esse dinheiro deixa de ser aplicado em obras de interesse público para ser desfrutado, como coisa própria, pela grande empresa. Embora se reconheça oficialmente que a maior parte da alimentação em nosso país provém dos pequenos produtores, até hoje não se promoveu uma política de incentivos fiscais ou de renda em seu favor. Essa política revela o Estado comprometido com os interesses dos grandes grupos econômicos.  
20. Essa orientação oficial estimulou a entrada da grande empresa no campo. Um vultoso programa oficial, o PROÁLCOOL, baseado em subsídios governamentais, já está aumentando a concentração da terra, a expulsão de lavradores, quando poderia ser uma oportunidade privilegiada para uma redistribuição de terras.  
21. A política de incentivos, na Amazônia, não aumentou a produtividade das grandes fazendas de gado, que apresentam uma taxa de utilização da terra inferior a dos pequenos produtores. Conclui-se daí que, por ora, os grandes grupos econômicos apenas visam beneficiar-se dos incentivos fiscais.  
22. Ainda na Amazônia, grandes empresas invadem os rios com navios pesqueiros equipados com frigoríficos. Desenvolvendo pesca predatória, levam à fome as populações ribeirinhas que completam sua dieta pobre com a pesca artesanal.  
Pescadores artesanais de áreas costeiras são igualmente prejudicados por projetos turísticos e por dejetos industriais.  
A questão das terras dos povos indígenas  
23. Nenhuma das comunidades indígenas, em contato com a sociedade nacional, escapou às investidas sobre suas terras.  
24. Apesar da vigência do Estatuto do índio, os conflitos em áreas indígenas se tornam cada vez mais violentos e generalizados. Tais conflitos se ligam aos seguintes fatores: não demarcação oficial de suas terras; invasão de seus territórios já demarcados; comercialização e apropriação pela FUNAI dos recursos de suas terras; preconceito de que o índio é um estorvo ao desenvolvimento; não reconhecimento de que suas terras lhes cabem, por direito, como povos; desconhecimento das exigências específicas do relacionamento do índio com a terra segundo sua cultura, seus usos, costumes e sua memória histórica; enfim, total marginalização do índio da própria política indigenista, no seu planejamento e na sua execução.  
Migrações e violência no campo  
25. Há no país, milhões de migrantes, muitos dos quais obrigados a sair do seu lugar de origem, ao longo dos anos, devido principalmente à concentração da propriedade da terra, à extensão das pastagens e à transformação nas relações de trabalho na lavoura. 
 4 Sem contar os milhares de migrantes que, como extensão da migração interna, têm se dirigido aos, países vizinhos.  
26. Uma grande parte dos lavradores migrou para as grandes cidades à procura de uma oportunidade de trabalho, indo engrossar a massa marginalizada que vive em condições subumanas nas favelas, invasões e alagados, em loteamentos clandestinos, cortiços e nas senzalas modernas dos canteiros de obras da construção civil.   
O desenraizamento do povo gera insegurança pelo rompimento dos vínculos sociais e, perda dos pontos de referência culturais, sociais e religiosos, levando à dispersão e à perda de identidade.  
27. Outra parte se dirige às regiões agrícolas pioneiras à procura de terras. Entretanto, com frequência, sua tentativa de fixar-se à terra choca-se contra uma série de barreiras: dificuldade para obter o título definitivo da terra, no caso de compra; a falta de apoio ou o próprio fracasso das companhias colonizadoras; nova expulsão da terra, ante a chegada de novos grileiros ou de reais ou pretensos proprietários.  
28. Em quase todas as unidades da Federação, sob formas distintas surgem conflitos entre, de um lado, grandes empresas nacionais e multinacionais, grileiros e fazendeiros e, de outro, posseiros e índios. Violências de toda ordem se cometem contra esses últimos para expulsá-los da terra. Nessas violências, já se comprovou amplamente, estão envolvidos desde jagunços e pistoleiros profissionais até forças policiais, oficiais de justiça e até juízes. Não raro observa-se a anomalia gravíssima da composição de forças de jagunços e policiais para executar sentenças de despejo.  
29. A situação tem-se agravado muito depressa. Tomando como referência a região de Conceição do Araguaia, no sul do Pará, podemos ter uma idéia da velocidade e amplitude da situação de conflito. No começo de 1979, havia 43 conflitos identificados e cadastrados. Seis meses depois, os conflitos já eram 55. No final do ano já eram mais de 80. No Estado do Maranhão, tradicionalmente conhecido como o Estado das terras livres, abertas à entrada de lavradores pobres, foram arrolados, em 1979, 128 conflitos, algumas vezes envolvendo centenas de famílias. Em três casos, pelo menos, o número de famílias envolvidas ultrapassa o milhar, sendo grande a concentração da violência nos vales do Mearim e do Pindaré.  
30. Estudos recentes mostraram que a cada três dias, em média, os grandes jornais do sudeste publicam uma notícia de conflito pela terra. Comprova-se que essas notícias correspondem a menos de 10% dos conflitos cadastrados pelo movimento sindical dos trabalhadores na agricultura. Um levantamento do número de vítimas que sofreram violências físicas, feito através de jornais, indica que mais de 50% delas morrem nesses confrontos.  
31. Isso mostra a extrema violência da luta pela terra em nosso país, com características de uma guerra de extermínio, em que as baixas mais pesadas estão do lado dos lavradores pobres. Esse processo se acentua na chamada Amazônia Legal, embora ocorra também em outras regiões.  "

Em síntese, estamos diante de um dos mais lúcidos e proféticos documentos produzidos pela CNBB, cujas ressonâncias se revelam de notória atualidade, quarenta anos depois...

João Pessoa, 19 de abril de 2019.

sexta-feira, 12 de abril de 2019


JOSÉ COMBLIN: MEMÓRIA, COMPROMISSO E REINVENÇÃO
Alder Júlio Ferreira Calado
Texto iniciado em 22/03/2019, somente hoje compartilhado, devido a perda de parte do artigo, num desses acidentes não raros do mundo digital.

Celebramos, hoje, a data natalícia de Pe. José Comblin (22/03/1923), que fez sua páscoa definitiva a 27/03/2011, apenas quatro dias após haver celebrado seu aniversário natalício. Também hoje, celebramos o Dia Mundial da Água, elemento vital do qual Pe. José também se destacou como exímio cuidador. Num contexto de tanto obscurantismo necrófilo, faz-nos bem trazermos à memória vivificante figuras como a de Pe. José Comblin. É o que nos propomos, a seguir, de modo breve.
 Em seus bem vividos oitenta e oito anos, José Comblin nos brindou com sua incansável luta, em várias frentes, pela defesa e promoção da vida - dos humanos e do Planeta. Em função desta meta, dedicou-se completamente: em sua vocação, em seus estudos e pesquisas, em sua missão na América Latina.... Desde cedo, aparecem convincentes os sinais de sua vocação de servir à vida, sob múltiplos aspectos. A este respeito, também, a Missionária Mônica Muggler, na bem elaborada biografia que compôs deste "Profeta da Liberdade" - "José Comblin, uma vida conduzida pelo Espírito" (São Bernardo do Campo: Nhanduti Editora, 2013) nos traz preciosos elementos a este respeito. Vale a pena *revisitar este livro! Nestas linhas, limitamo-nos a três frentes de contribuição a que se entregou José Comblin: a ação do Espírito Santo no mundo, a causa libertadora dos pobres e a formação continuada.

Contribuição à compreensão da ação do Espírito Santo no mundo

Na literatura teológica contemporânea, tem sido amplamente reconhecida a qualidade extraordinária da contribuição do teólogo José Comblin, um dos fundadores da Teologia da Libertação ( participou do primeiro grupo de teólogos da Libertação, juntamente com Gustavo Gutiérrez, Juan Luiz Segundo, Hugo Assmann, Enrique Dussel e outros ), no que toca especialmente a pesquisa pneumatológica. Dos seus mais de setenta livros e mais de quatrocentos artigos publicados, cerca de uma dezena é dedicada especificamente à ação do Espírito Santo no mundo, dentre os quais: O Espírito no Mundo. Petrópolis: Vozes, 1978;  OTempo da Ação:  Ensaio sobre  o Espírito e a História. Petrópolis: Vozes, 1982; A Força da Palavra. São Paulo: Paulus, 1986; O Espírito Santo e a Libertação . São Paulo: Loyola, 1988;Vocação para a Liberdade. São Paulo: Paulus, 1998 ; Povo de Deus . São Paulo: Paulus, 2002; A Vida em Busca da Liberdade.São Paulo: Paulus, 2007; O Espírito Santo e a Tradiçaõ de Jesus. São Paulo: Nhandutti Editora, 2013.  Estas e outras obras  focam, com efeito, a ação libertadora do Sopro Fontal, do Espírito Santo. Isto não quer dizer que tantas outras obras de sua lavra não enveredem por semelhantes trilhas, como a que o nosso Grupo Kairós está arefletir – “O Caminho” (São Paulo:Paulus, 2008). Na verdade, todo o percurso existencial de José Comblin se acha marcado por  uma força ubíqua do Espírito Santo, como muito bem o retrata a mencionada biografia. O que dizer, em poucas linhas, sobre o cerne desta contribuição? Restringimo-nos a sublinhar o seguinte. Qual verdadeiro profeta da Liberdade, Comblin especialmente como teólogo, trata de denunciar os graves descaminhos de nossas Igrejas Cristãs, em relação ao cerne de nossa fé: o Evangelho, tal como anunciado, vivido e testemunhado por Jesus, em sua caminhada pelas aldeias da Palestina, acompanhado  de seus discípulos e discípulas. Graves desvios que quase sempre têm sua raiz mais funda na avidez do poder, o que nos põe às antípodas da Boa Notícia de Jesus: “Entre vocês, não seja assim! Sucumbindo a esta tentação, o segmento clerical foi cada vez mais distanciando-se do espírito de fraternidade reinante nas primeiras comunidades cristãs. Durante séculos, as Igrejas, a começar da Igreja Católica Romana  foram tomando distância da Tradição de Jesus, por meio de estratégias vulpinas, inclusive pela via teológica, helenizante a urdir uma sucessão de doutrinas estranhas aos ensinamentos do Ressuscitado, sucumbindo às alianças com o poder reis e imperadores. Confortante, ao mesmo tempo, é saber da resistência profética conduzida pelo Espírito Santo junto com o povo dos pobres, em diferentes momentos da história, a exemplo dos movimentos pauperísticos do Medievo, inclusive sob a inspiração de Francisco de Assis. Em vários de seus textos, Comblin rememora esses testemunhos proféticos, inclusive em Vocação para a Liberdade.

A realização do Concílio Vaticano II constituiu-se uma oportunidade preciosa de exame crítico deste modo de agir eclesiástico, pouco conforme à inspiração do Espírito Santo. Um  sinal desta atitude profética foi o chamamento do Papa João XXIII para um concílio, com propósito não de imposições dogmáticas, mas com intuições e propostas  pastorais, pondo o Povo de Deus, e não a hierarquia, como centro do processo organizativo da Igreja. Intuições e propostas ainda mais aprofundadas, de modo inédito, quando da realização em Medellín, 1968, da II Conferência Episcopal Latino-Americana, marcada pelo chamamento ao protagonismo dos cristãos, especialmente dos católicos, em direção a uma Igreja dos Pobres, fazendo inclusive o que passou a ser conhecido como “Opção pelos pobres”. Sucede que, passados mais de cinquenta anos, ainda estamos longe desta meta. As incansáveis contribuições do atual Bispo de Roma, Francisco, ainda não têm sido suficientes para despertar o segmento clerical de sua pose principesca, denunciada na bela exortação apostólica do Papa Francisco, “Evagelii Gaudium”.

Nessa trincheira de resistência profética, animada por Francisco, vale a pena ressaltar as profundas confluências observáveis entre o Bispo de Roma e o legado de José Comblin. Trata-se de personalidades em constante diálogo (implícito).

Em defesa e promoção da vida, a começar dos mais vulneráveis

Outra marca inapagável do legado de Comblin reside em sua dedicação incansável à defesa e promoção da vida, em sua plenitude, a começar por aqueles que vivem sob constante ameaça de negação de sua dignidade. Em um de seus tantos escritos – aqui me refiro ao intitulado Um novo amanhecer para a Igreja? (Paulus, 2001) - Comblin afirmava que os pobres não constituíam apenas uma questão a mais, dentre as importantes, para os cristãos, mas “a” questão central de nossa fé. Lida/ouvida esta frase, sem a devida atenção, pode até soar aos ouvidos de cristãos por demais aferrados a uma rotina confessional, muito apegada a ritos e devoções doutrinárias, como se tratasse de algo chocante, uma espécie de reducionismo, cometido pelo teólogo Comblin. Ou seja: soa-lhes como algo novo, quando, na verdade, se trata do grande critério ensinado e praticado por Jesus, inclusive um critério definidor de nossa verdadeira adesão à Sua Mensagem, como se acha tão explícita, por ex., no cap. 25 de Mateus: “Eu tive fome..”, “Eu tive sede....”, “Eu estava esfarrapado...”, “Eu estava enfermo...”, “Eu estava preso....”. Em  outras palavras, como é comum entre os verdadeiros profetas e profetisas do Reino de Deus e do Movimento de Jesus, cabe-lhes sacudir nossas consciências adormecidas pelo excesso de acessórios que acumulamos, no dia-a-dia de nossas relações eclesiásticas, de modo a escantearmos o essencial de nossa vocação e de nossa missão: a fidelidade ao Evangelho.

 De fato, ao acompanharmos os passos de Comblin, percebemos como não se limitou a pregar o Evangelho, mas a testemunhá-lo, das mais variadas formas. Quem o conheceu, pode bem testemunhar sua fidelidade profética à causa do povo dos pobres. Ao conversarmos sobre ele com pessoas mais simples de nossa gente, são unânimes em destacar, de pronto, algum de seus feitos: sua capacidade de escuta, seu empenho em aprender com os mais simples, sua disposição sincera em insistir junto às pessoas mais simples, de pouca ou nenhuma letra, em que cada uma delas, ao ler a Palavra de Deus, buscasse escutar o que lhe falava a Palavra ao seu coração, à sua mente, especialmente em contexto de círculos bíblicos, sempre partindo de sua realidade concreta e dos demais participantes. Atenho-me, de passagem, a um dentre centenas de casos. Trago o caso de Nilza, uma das Missionárias do Meio Popular, atuando em Alagoa Grande. Com que entusiasmo e admiração Nilza nos conta da solidariedade de Pe. José à sua condição de missionária acampada, em rancho de lona preta. Em solidariedade a toda aquela gente do mesmo Acampamento, lá ia Pe. José, a levar uma palavra de incentivo. Mais do que isto: quanto Nilza nos conta dever a Pe. José, pela ajuda em construir sua casinha digna, indo visitá-la e às demais pessoas daquele Assentamento. Nilza segue atuando, ao lado de outras missionárias, tais como Maria da Soledade, Fátima e outras, ajudando na coordenação da Escola Missionária de Mogeiro, uma das mais fecundas experiências formativas do legado Combliniano, da qual nos ocuparemos em seguida, não sem antes sublinhar o lugar especial que o povo dos pobres assume, ao lono da vida missionária de José Comblin, conforme nos atestam também pessoas amigas, como Eduardo Hoorneat e outras que o acompanharam mais de perto. É conhecida sua dedicação aos trabalhos realizados, durante a já perseguida Conferência de Puebla (1979) oportunidade que atuou como assessor de alguns bispos profetas, tendo que enfrentar perseguição por parte de autoridades, tais como o Cardeal Trugillo. Ainda assim, vale a pena relembrar a fidelidade aos pobres ilustrada, por exemplo, entre os números 31 a 39 do documento de Puebla, traçando um perfil fidedigno do rosto dos pobres da América Latina.

Traços da inventividade da pedagogia combliniana
Uma terceira trincheira da contribuição de José Comblin, tem a ver com sua condição de Educador, alguém profundamente comprometido com o processo formativo das comunidades, das pastorais sociais e, sobretudo, das organizações missionárias populares. Também, nesta trincheira, pode-se observar a linha de continuidade de sua teologia pneumatológica. Aqui, a criatividade ocupa lugar privilegiado. As experiências formativas que animou, longe de reproduzirem o que ensinam as escolas oficiais ou a Catequese tradicional, constituem iniciativas que estão sempre a convidar seus participantes, para exercitarem o dom da criatividade. Vale a pena destacar, ainda que de passagem, algumas marcas desse processo formativo. Em primeiro lugar, sempre se trata de iniciativas que brotam do chão da realidade do povo dos pobres. Não se trata de propor, de forma professoral, determinadas condutas, de cima para baixo, nem de fora para dentro, mas de construir-se, a partir do protagonismo de educadores e educandos, em sua dinâmica convivências uma proposta formativa, acompanhada de marcas tais como:
- A continuidade como traço inafastável: quem chega a participar de uma experiência formativa, é chamado a assumir o compromisso de continuar formando-se ao longo da vida, seja no convívio comunitário, seja nos desafios pessoais;
-   uma formação permanentemente atenta e vigilante aos sinais dos tempos, isto é, ao que o Espírito Santo tem a inspirar, em relação aos verdadeiros desafios e urgências do Planeta, dos humanos e de toda a comunidade dos viventes;
- uma formação cujos conteúdos e métodos se acham profundamente articulados, em função dos compromissos libertários do povo dos pobres e, em âmbito também local, conforme as urgências sentidas pelas comunidades do entorno;
- um processo formativo que se dá no horizonte de uma educação integral, isto é, do ser humano como um todo e todos os seres humanos;
- na ousadia de superação incessante de toda dicotomia, inclusive no combate da dicotomia entre trabalho manual e trabalho intelectual: todos fazem de um tudo;
- um processo formativo no qual todos se assumem como aprendentes uns dos outros, sem qualquer tom professoral, mas no exercício do diálogo entre todos;
- no cultivo de uma memória histórica coletiva (dos movimentos sociais populares e de nossos povos tradicionais- e também alimentado pelo estudo de biografias de figuras de referência, cuja memória também alimenta a mística revolucionária;
 - o cotidiano exercício de uma espiritualidade incarnada não apenas se renova pela revisitação da memória histórica dos oprimidos, como também alimenta o constante reavivamento do horizonte a perseguir – o da Tradição de Jesus, sem o que empalidecem e perdem força as atividades do dia-a-dia, correndo o risco de perda de rumo: em outras palavras: alimentar-se da Esperança do Movimento de Jesus, como condição de perseverança no Caminho;
- um processo formativo atento e observante da interconexão orgânica entre passado-presente-futuro, de modo a revestir as ações do dia-a-dia de uma linha de continuidade, de modo a costurar os tempos da Graça;
- uma formação que cultiva, dia após dia, desde o chão das relações comunitárias e pessoais, a criticidade e a autocriticidade, seja do ponto de vista coletivo, seja do ponto de vista de cada pessoa, donde decorrem responsabilidades e tarefas pessoais e coletivas, a serem cumpridas, não por cobranças externas, mas pelo exercício de uma autodisciplina que formandos e formadores vão aprendendo a introjetar e a testemunhar, com leveza e alegria.

Como se percebe, múltiplo e denso é o legado de Comblin, sobre o qual se tem debruçado um conjunto cada vez mais vasto de pesquisadores e pesquisadoras, além de tantos amigos e amigas do Padre José, a exemplo daqueles e daquelas, como a Irmã Agostinha Vieira de Melo, que fizeram questão de registrar seu testemunho, por ocasião da celebração dos seus oitenta anos, sob a forma de livro, “A esperança dos pobres vive“.

João Pessoa, 12 de abril de 2019

segunda-feira, 1 de abril de 2019

FRANCISCO, PROFETA ITINERANTE PELAS ALDEIAS DO MUNDO: anotações sobre a viagem do Bispo de Roma ao Marrocos



FRANCISCO, PROFETA ITINERANTE PELAS ALDEIAS DO MUNDO: anotações sobre a viagem do Bispo de Roma ao Marrocos

Alder Júlio Ferreira Calado

Em sua 28a. visita apostólica a povos e comunidades dos cinco continentes, Francisco se encontra, desta vez, na terra e com o povo marroquino, nos dias 30 e 31 de março de 2019. Desde sua saudação antecipada (cf. https://www.youtube.com/watch?v=xKMjnS5L3kU) aos visitados, deixa claro seu propósito: vai como um mensageiro da paz e promotor de fraternidade. Vai também levar sua palavra de reconhecimento, de confirmação na fé e de agradecimento à comunidade cristã, no Marrocos. Trata-se de uma pequena minoria (menos de 1%, em torno de 30 mil pessoas em meio a uma população estimada em torno de 35 milhões de habitantes) naquele país majoritariamente de tradição islâmica. Contudo, antes de se encontrar com os cristãos e cristãs vivendo ecumenicamente, a serviço daquela gente, não hesita em comprovar seu propósito de compromisso humano, ao visitar, no primeiro dia de sua viagem, os migrantes, ele próprio sendo um migrante e filho de migrantes. Sua fala dirigida aos migrantes, ali reunidos para este encontro de "fratellanza" - e o fazendo, após ouvir atentamente impactantes testemunhos de migrantes (cf. o "link": https://www.youtube.com/watch?v=2G-buYHR86Y)

Um fenômeno absolutamente insólito, na história da Igreja Católica Romana, inclusive na história do Papado: o atual Bispo de Roma se mostra protagonista de uma trajetória improvável, a julgar pela caminhada recente e menos recente do Papado e da própria Igreja Católica, à medida que
- tem buscado, desde o início da assunção de suas funções, restituir "a" prioridade da missão cristã: testemunhar o Reino de Deus e sua Justiça, como fiel discípulo-missionário de Jesus;
- por isto mesmo, cuida, em primeiro lugar, de lançar seu olhar para toda a humanidade, em sua complexa diversidade, de modo sempre respeitoso e sempre disposto ao diálogo fecundo, isto é, de aprender com os outros, consciente de que o Espírito sopra onde quer, donde a necessidade de estarmos sempre atentos e vigilantes aos Seus sinais, acolhendo-os e levando-os a sério;
- com coração e mente de pastor e profeta, que a todos acolhe, a começar dos mais necessitados, denuncia corajosamente a cultura amplamente predominante de uma Igreja "auto-referenciada", ao tempo em que anuncia com entusiasmo e convicção, a urgência de uma "Igreja em saída";
- seu legado conjuga, de modo fecundamente articulado, gestos, palavras e escritos: antes de pregar, cuida de dar o exemplo de vida;
- Percorre o mundo - um complexo de aldeias portadoras de uma enorme diversidade, que ele trata de costurar com um fio de unidade: Deus é de todos, é Pai de todos os filhos e filhas, razão por que toma corpo e credibilidade seu apelo ao exercício da fraternidade universal, qual Francisco dos tempos presentes;
- Revela-se um profeta itinerante, a percorrer incansavelmente as aldeias do mundo, em cada uma sentindo-se acolhido e acolhendo como Jesus, profeta-itinerante pelas aldeias da Galileia;
- Mostra-se de tal modo comprometido com a sorte do Planeta, que grandes especialistas na área ecológica - cristãos e não crentes - avaliam sua "Laudato sì", encíclica que a todos nos interpela em defesa e promoção de nossa Casa comum - como um documento do mais alto nível de profundidade, na contemporaneidade;
- consagra sua vida à causa do Reino de deus, razão por que tem nos pobres - entendidos em seu sentido amplo - como "a" prioridade dentre os cuidados dos pastores.


Qual agulha de diligente costureiro da unidade na diversidade, Francisco também se mostra um exímio tecelão de tempos, ao costurar criativamente passado, presente e futuro: ainda na semana passada, num encontro com jovens, ele os incentivava a serem pessoas apaixonadas, fincando sua memória em suas raízes históricas (passado) e mantendo seu olhar no horizonte (futuro), com o compromisso de uni-los, articuladamente, conforme os valores da Tradição de Jesus (presente).
Antes de prosseguir com o comentário sobre a visita do Bispo de Roma à terra e à gente de Marrocos, sinto-me chamado a compartilhar um fato deveras intrigante que sucede, no mesmo dia, entre duas lideranças antagônicas: enquanto o Presidente Bolsonaro, negligenciando a olhos vistos o risco de complicar ainda mais as relações do Brasil com o mundo árabe – inclusive do ponto de vista econômico -, ao aderir acriticamente à perigosa iniciativa de Trump, de transferir de Telaviv para Jerusalém, a capital de Israel, acarretando grave crise internacional, o Papa Francisco, por sua vez, viaja, no mesmo dia, para uma visita apostólica ao Marrocos, onde, dentre vasta programação, consta a assinatura conjunta com a autoridade do Marrocos uma declaração de defesa de Jerusalém, como território controlado, não apenas por Israel, mas também por crentes judeus, muçulmanos e cristãos, apostando por consequência em caminhos de paz fundada na justiça.

Voltando à viagem do Papa Francisco à terra e à gente marroquinas, Francisco cumpriu uma verdadeira maratona, tal a intensidade de compromissos agendados, dos quais tratamos de sublinhar aspectos de alguns deles.

A quem se dá ao trabalho de ver/ouvir com atenção a sucessão de atos realizados, durante este encontro com os migrantes, resulta impactante a qualidade do encontro: a calorosa recepção, os diversos depoimentos/testemunhos prestados por migrantes vindos de várias partes do mundo, sobretudo da África, inclusive de Camarões, os números artísticos apresentados por crianças, a densa fala do bispo que o acolheu, além da fala do próprio Francisco.

Dos depoimentos prestados, é tocante o testemunho denso, claro e cheio de sabedoria expresso pelo migrante Jackson, falando em Francês. Testemunho de agradecimento a Cáritas local, pelo empenho em ajudá-lo a regularizar sua documentação; destacou traços emblemáticos, característicos da experiência vivida pelos migrantes, em geral, aludindo aos migrantes, não apenas aqueles que conseguem regularizar seus papéis; ressalta a importância do direito de viver lá onde vive sua família; chama a atenção da relevância de se viver do próprio trabalho.

Muita plasticidade estética podíamos perceber nos números apresentados pelas crianças, inclusive com sua alusão aos carregadores de água, em região desértica. As breves palavras do Pe. Germain, encarregado de fazer a saudação ao Papa Francisco, carregam uma tocante sabedoria evangélica, de quem se põe a serviço da causa libertadora dos “de baixo”. Dentre outros aspectos referidos pelo Pe. Germain, alguns resultaram especialmente impactantes. Muito relevante e oportuna, a ênfase que deu ao trabalho ecumênico ali realizado, graças à participação de católicos, ortodoxos, reformados, no atendimento fraterno, no cuidado solícito a migrantes, às crianças, aos enfermos, aos estudantes marroquinos, por meio de sua participação no ensino, naquele país. Uma ação pastoral marcada pela prática de um ecumenismo de base. Lembrou a presença ali de muitos sacerdotes, religiosos e religiosas, de diversas famílias congregacionais, a exemplo daqueles ligados à família religiosa ”Fidei donum” (que também atua no Brasil), da família Charles de Foucauld, bem como da família franciscana, ora em festa pela celebração dos 800 anos da presença apaziguadora de Francisco de Assis, em terras marroquinas, num tempo de plenas cruzadas... igualmente marcante foi o a iniciativa do Pe. Germain, de destacar a presença de religiosas de diversas congregações, a exemplo de uma missionária franciscana, italiana, com seus bem vividos 97 anos (com admiráveis condições de saúde, sem aparentar a idade que tinha). Ocasião em que, tocado pela apresentação, da irmã franciscana, o Papa se levanta para cumprimentá-la. Vale a pena conferir o “link” abaixo:

Em resposta a tanta beleza compartilhada, chegou a vez do Bispo de Roma. Começa ressaltando o caráter ecumênico do Encontro, expressando alegria e agradecimento pelo que havia visto, ouvido e sentido. Retoma o sentimento já antes compartilhado da minúscula presença de cristãos entre os irmãos e irmãs do Marrocos. Algo, porém, que faz questão de expressar que não o preocupa, ainda que reconheça dificuldades que aquela situação pode ocasionar, para o trabalho. Prefere sublinhar sua alegria e gratidão pelo testemunho daquela gente, vinda de tantos países, tornando-se missionários e missionárias a serviço da Tradição de Jesus, também seguida por ilustres precursores, a exemplo de Francisco de Assis e de Charles de Fouculd. Do primeiro, chega a rememorar um episódio marcante: o em que envia àquela terra seus confrades, dizendo-lhes que cuidem de testemunhar o Evangelho, se necessário também com palavras! Do segundo – Charles de Foucauld – destaca sua atitude cristã de universalidade, por meio de o exercício de uma fraternidade radical. Compartilha o sentimento de alegria, ao perceber que as sementes do Evangelho estão fazendo seu trabalho, em meio àqueles irmãos e irmãs do Marrocos. E passa a parafrasear aquela pergunta feita por Jesus, sobre a que compararia o Reino de Deus: a uma mulher que se vale de uma pequena porção de fermento para misturá-la a certa quantidade de trigo: a pequena quantidade de fermento é suficiente para levedar toda a massa. E justifica, a justo título, sua profunda confiança nas coisas pequenas, desde que fiéis à Tradição de Jesus. Aqui, não se trata de grandes obras administrativas, feitas à base de estruturas e recheadas de propaganda, muito menos de proselitismo. Neste jeito de fazer missão o Papa não acredita: podem estragar a qualidade do sal e pode suceder que a luz já não mais brilhe...
O terceiro momento vivenciado, digno de destaque, se dá com a celebração da Missa, na catedral de Rabat, encerrando esta rica experiência missionária, proporcionada pela visita apostólica do Papa Francisco ao Marrocos. As imagens da celebração final permitem perceber o entusiasmo dos participantes, a calorosa acolhida do Bispo de Roma, a beleza dos cantos executados, a densidade da homilia. (Cf link: https://www.youtube.com/watch?v=LZ-OtTpODD0 )

Homilia orientada especialmente pelo Evangelho do IV Domingo da Quaresma, que nos traz à reflexão a conhecida parábola do filho pródigo, que o teólogo José Antonio Pagola prefere chamar, a justo título, de a “parábola do Pai bondoso”. Nela, conta-se que um dos dois filhos –o mais novo – dirige-se ao pai, insistindo em que ele lhe transfira sua parte de herança, e, em seguida, abandona a casa paterna. Sai pelo mundo, numa aventura irresponsável, a consumir sua fortuna em farras infindas e na luxúria, ao ponto de perceber que havia consumido toda a herança recebida. Ao mesmo tempo, sobrevém à região onde se encontrava um grave período de fome. Impactado e tangido pela penúria, vai sobreviver recorrendo à lavagem dos porcos, de que lhe foi mandado cuidar. Caindo em si, pensou: enquanto passo um tempo de extrema penúria, lembro a fartura da casa do meu pai, que abandonei irresponsavelmente. Aqui não fico mais. Vou levantar-me e caminhar em direção ao meu pai. Encontrando-o, vou dizer-lhe: Meu pai, já não sou digno de ser tratado como teu filho. Peço-te que me trates ao menos como um de teus criados. O pai, por sua vez, que jamais havia deixado de esperar a volta do filho, apressou-se em abraçá-lo e beijá-lo. Mais: chama seu empregado e lhe ordena que vista e calce seu filho, confortavelmente, e que abata o novilho gordo, para brindar com uma grande festa a volta de seu filho. O filho mais velho, que se encontrava no campo, ao retornar, ouviu de longe o som da festa, e tratou de perguntar ao empregado da casa, de que se tratava. Ele lhe conta o ocorrido. O filho mais velho se revolta, e não quer entrar. O pai vem –lhe ao encontro, e explica as razões de sua alegria e da festa que mandou preparar para seu irmão. Mas, mesmo assim, o filho mais velho se mantém arredio e rancoroso, queixoso do pai... Na referida homilia, Francisco cuida de fazer o que habitualmente está habituado a fazer. Resume didaticamente a parábola, e se aplica diligentemente a tirar as lições, sempre de modo profético e com o coração de pastor, fazendo ressaltar sempre a compaixão do Pai para com todos os seus filhos e filhas.

Eis mais uma viagem apostólica realizada pelo Papa Francisco, trazendo bem sua marca de pastor, de profeta, de um cidadão do mundo. Não é por acaso que hoje é avaliado como a mais importante personagem do nosso mundo, uma verdadeira liderança de novo tipo. Tomara que seu exemplo arraste ou atraia sempre mais os católicos e católicas, no sentido de se abrirem para uma verdadeira mudança das estruturas da Igreja, sob o impulso do evangelho, da Tradição de Jesus.

João Pessoa, 01 de abril de 2019.