sábado, 25 de maio de 2019

EXTRATIVISMO, LOGÍSTICA E FINANÇAS - CONCEITOS-CHAVE PARA UMA MELHOR COMPREENSÃO DOS DESAFIOS GEOPOLÍTICOS ATUAIS: considerações a partir da produção recente de Sandro Mezzadra e Brett Neilson


EXTRATIVISMO, LOGÍSTICA E FINANÇAS - CONCEITOS-CHAVE PARA UMA MELHOR COMPREENSÃO DOS DESAFIOS GEOPOLÍTICOS ATUAIS: considerações a partir da produção recente de Sandro Mezzadra e Brett Neilson

Alder Júlio Ferreira Calado

Em diversas outras oportunidades, fazendo coro com tantas vozes representativas e comprometidas com o destino do planeta dos humanos e de toda a comunidade dos viventes, temo-nos pronunciado sobre, não apenas a possibilidade, mas a necessidade e urgência de um novo modelo de sociedade, alternativo à barbárie capitalista. Tal compromisso implica o empenho diuturno (coletivo e pessoal) na incessante luta por um novo modo de produção, um novo modo de consumo e um novo modo de gestão societal. Para tanto, todavia, cumpre ter bem claro como se comporta o atual modelo hegemônico, como primeiro passo para a sua superação. 

Aqui, não se trata de uma proposta etapista, como se estivéssemos em momentos estanques, quando de fato se trata de 3 dimensões de luta profundamente conectadas, a despeito das características próprias de cada uma. Nas linhas que seguem, no entanto, cuidamos de centrar especial atenção numa dessas primeiras dimensões, sem esquecer suas relações orgânicas. Cuidamos de focar o modo de produção vigente, a partir de uma análise percuciente desenvolvida, entre outros pesquisadores, por Sandro Mezzadra e Brett Nielson, por meio de algumas conferências proferidas, mundo afora, inclusive nos Estados Unidos e na América Latina (cf, por exemplo, https://www.youtube.com/watch?v=48bG0DPEs-0

Um rápido olhar sobre os graves desafios sócio-históricos da atualidade nos permite perceber profundas alterações em curso, no cenário internacional, devidas, em parte considerável, às alterações de monta que se vêm passando no âmbito das estratégias geopolíticas adotadas pelo mercado capitalista, em suas orgânicas conexões com os Estados nacionais, em seu momento atual. Antes mesmo dos conceitos-chave acima indicados, é preciso sublinhar com força ainda maior o de interconexão das distintas esferas componentes da realidade social (econômica, política e cultural), sobre as quais incidem os desdobramentos do capitalismo.



A quem se dá ao trabalho de acompanhar as profundas mutações em curso, no mundo inteiro – não passa despercebido que a elas se tem referido como “mudança de época” -, é possível dar-se conta da produção de alterações inéditas, também no plano geopolítico. Tais alterações profundas, por vezes, têm sido chamadas de “as novas rotas da seda”, numa alusão aos rápidos avanços que, desde algumas décadas, se vêm produzindo, de início, no campo dos chamados “tigres asiáticos” (Taiwan, Cingapura, Hong Kong, Coréia do Sul...) Mais recentemente, tem sido a China que vem tomando a dianteira na produção de tais mutações. E de forma inaudita, de modo a já não ser mais segredo sua capacidade de concorrer, “pari passu”, com a maior potência mundial, os Estados Unidos. Nesse sentido, sob diversos aspectos, a China, não apenas “ameaça”, como de fato dá sinais convincentes de tomar a dianteira, em relação aos Estados Unidos da América. De algumas décadas para cá, a China vem liderando, no plano mundial, um ritmo completamente atípico de crescimento econômico e desenvolvimento tecnológico, seja no que concerne ao seu PIB (crescendo a taxas elevadas, e já há alguns anos), seja nas profundas invenções tecnológicas – de que é prova o número de patentes ali registradas, em nível bem superior ao apresentado pelos Estados Unidos, seja ainda na capacidade de investimentos maciços, mundo a fora, nos mais diversos continentes.

A este propósito, vem sendo sintomáticas sucessivas medidas tomadas pelo Governo Trump contra a economia chinesa, a exemplo das fortes elevações das tarifas comerciais, envolvendo suas relações com a China, ainda que sofrendo represálias à altura. Mais: as mais recentes declarações do Presidente Trump, de que, enquanto dele depender, a China jamais ultrapassará o patamar alcançado pelos Estados Unidos – “America first!” -.

Para quem analisa e acompanha mais de perto os desdobramentos do capitalismo na atualidade - vale aqui ressaltar o trabalho relevante desenvolvido por analistas tais como Pep Escobar -, resulta imperioso perceber o destacado papel não apenas da China, como também de forças aliadas centradas na Eurásia, inclusive a Rússia. De fato, ganham força cada vez maior, no cenário Hodierno, as profundas alterações econômicas e tecnológicas protagonizadas por estas “novas rotas da seda”.

É a partir deste complexo cenário em mutação, que vale a pena situar as contribuições analíticas oferecidas por pesquisadores tais como Sandro Mezzadra e Brett Neilson, dois pesquisadores (um italiano e outro australiano) que, desde os anos 90 vêm trabalhando juntos em relevantes pesquisas sobre este fenômeno, tendo começado a tomar como foco o fenômeno das migrações forçadas.

Uma das contribuições destes autores, no que concerne a uma análise consistente do atual desenvolvimento do Capitalismo, repousa em sua metodologia. À diferença dos pesquisadores convencionais, Mezzadra e Neilson puseram-se, durante décadas, ao trabalho de analisar  os desdobramentos do Capitalismo, mundo a fora, dando-se ao trabalho de acompanhar de perto seu movimento, tendo para tanto que articular fecundamente sua condição de pesquisadores de amplo reconhecimento com sua condição de observadores itinerantes ou como militantes, atentos aos diversos movimentos do Capitalismo, em suas mais diversas manifestações, algumas das quais de difícil apreensão a quem se limita exclusivamente à pesquisa acadêmica, sem tomar em conta a força da observação metódica, acompnahando seus truques e meandros, do modo mais próximo possível, e com atenção voltada ao que nele se passa, nos diversos continentes. Sem desconhecer possíveis equívocos a que todos estão sujeitos, cumpre destacar a força e criatividade de sua condição de pesquisadores-militantes.

É assim que, desde os anos 90, põem-se a acompanhar, por exemplo, os meandros da migração forçada ou voluntária, especialmente em territórios-chave, alvos dos trabalhadores e trabalhadoras migrantes.

Ainda com relação ao fecundo procedimento metodológico utilizado por Mezzadra e Neilson, importa destacar a forma como, desde os anos 90, se empenham em examinar aspectos mais profundos do fenômeno da migração (forçada ou voluntária), a partir do “locus” ou dos “loci”, em que se dá o fenômeno das migrações: nas fronteiras. A este propósito, em vez de tratarem o conceito “Fronteiras” em sua dimensão estritamente geográfica, cuidaram de mostrar sua complexidade, ao trabalharem o conceito de “Fronteiras” como um campo de tensões, um campo de lutas sociais entre a violência institucionalizada, de um lado, e, de outro, a ousadia dos migrantes – homens e mulheres; pessoas idosas, adultos, jovens e crianças - , de enfrentarem os desafios pela sobrevivência e pela garantia de sua dignidade de trabalhadores e trabalhadoras. Tal instrumento conceitual tem-lhes permitido apreender o fenômeno da migração como relações socias protagonizadas pelo Capitalismo, em sua fase/face atual, à medida que com o objetivo de garantir e ampliar suas taxas de lucro, trata de extrair o máximo de proveito (e de taxas de lucro em diversificar significativamente as formas de “trabalho “livre”, para o que as fronteiras assumem um lugar privilegiado. Neste caso, para além de mero processo de exclusão, faz-se presente uma nova forma de inclusão perversa da força de trabalho.

Mais recentemente, sempre associando seu novo enfoque aos desdobramentos do processo migratório, cuidam de avançar em suas pesquisas, priorizando três formas mais sobressalientes de atuação do Capitalismo, nos diversos continentes, o que fazem por meio de três conceitos-chave: o de extrativismo, o de logística e o de finanças, sempre operando de forma inter-relaciona. Tal pesquisa se acha relatada em seu recente livro, intitulado The Politics of the Operations: Excavating Contemporary Capitalism, que o próprio Sandro Mezzadra cuida de apresentar numa de suas conferências, proferida numa Universidade da Virgínia (crf. “link” acima). Importa assinalar que o referido título do livro traz um subtítulo chamativo “Escavando o Capitalismo contemporâneo”.


Não é certamente por acaso o subtítulo escolhido pelos autores. Com efeito, o subtítulo alude claramente ao primeiro conceito-chave trabalhado pelos autores – o de extrativismo. Em diferentes continentes, inclusive na América Latina (e aqui contando até com a colaboração de governos pós-neoliberais), as grandes empresas de mineração vêm assumindo um lugar privilegiado, no atual modo de produção capitalista. As transnacionais da mineração têm agigantado seus negócios, especialmente nos países periféricos do Capitalismo, situados em vários continentes, com espantosas taxas de lucratividade. Taxas de lucros avantajados que se produzem na proporção inversa aos pavorosos estragos socioambientais: por onde passam deixam trágicas marcas, que nos remetem ao legendário cavalo de Átila, do qual se diz que, por onde passava, nada mais nascia... Exemplos ilustrativos temos bem perto de nós: no Chile, no Peru, etc. E o que dizer do Brasil? As mais recentes e recorrentes tragédias de rompimento de barragens de detritos da mineração, sob o controle de potentes transnacionais, a exemplo da Vale e suas parceiras, constitui apenas uma pequena amostragem do que se passa em outras partes do mundo. Em sua atual face/fase, o Capitalismo não cessa de dar mostras de sua fúria necrófila contra o Planeta, contra os humanos e toda a comunidade dos viventes. A ideologia do progresso a qualquer custo prevalece abertamente e de forma desenfreada, agravando-se ainda mais na atual conjuntura de desmonte do pouco que restava de social nos Estados nacionais. No caso do Brasil, por exemplo, são cada vez mais sombrias as perspectivas apontadas pelo desgoverno obscurantista do atual presidente do Brasil e seus ministros.

Tão relevante quanto este primeiro conceito é o de “Logística”. Por meio dele os autores do livro The Politics of the Operations: Excavating Contemporary Capitalism passam a mostrar um conjunto de formas e artifícios engenhosos com os quais o Capitalismo potencializa ao extremo seu poder necrófilo, valendo-se de Estados nacionais, de formulação e implementação de políticas econômicas que beiram a barbárie, em diversas partes do mundo. Em todas as suas estratégias, prevalecem formas  as mais diversas de extração da mais-valia, sob os mais distintos – mas não menos eficazes – mecanismos de exploração, indo da crescente retirada de direitos sociais e trabalhistas (como a que se deu recentemente, no Brasil, com a “reforma” trabalhista); a multiplicação de formas perversas dos processos de trabalho; a incessante proliferação de formas de precarização das condições de trabalho; a exacerbação de mecanismos sofisticados de substituição da mão de obra convencional por meio das mais refinadas máquinas e equipamentos eletrônicos até o uso em massa dos poderosos algoritmos, por meio dos quais manipulam, como nunca antes, as mentes de parte expressiva da população, em especial os setores mais vulneráveis pelo déficit em formação da consciência cidadã.

Este último exemplo se deu massivamente – e segue acontecendo – em vários países. Primeiro, sob a perversa influência de figuras próximas do atual presidente dos Estados Unidos, tais como Steve Brannnon, durante as últimas eleições nos Estados Unidos, acontecendo algo bem parecido no Brasil, durante a campanha presidencial de Bolsonaro (aqui, sob a influência também de Olavo de Carvalho); na Inglaterra, no processo eleitoral relativo à saída do Reino Unido da Comunidade Europeia, bem como em outras situações semelhantes, em vários países do mundo.

O terceiro conceito-chave trabalhado por Mezzadra e Neilson é o de “Finanças”.

Uma primeira observação:  a despeito de certa autonomia que o Capital financeiro guarda em relação ao Capital comercial e ao Capital produtivo, nunca se pode ou se deve perder de vista que as três formas constituem manifestações distintas  de sua célula mater", o Capital. Evidência por vezes esquecida ou subestimada. Isto também se dá na atualidade. À diferença das demais foram ou manifestações como se dá o Capital, no caso do Capital financeiro, estamos diante de sua manifestação parasitária e mais nociva, à medida que logra cumprir suas funções em qualquer conjuntura social, econômica, política ou cultural. Por vezes, até sucede que é justamente em momentos de crise mais agudos, que os rentistas se dão melhor, extraindo as mais avantajadas taxas de lucro. Que o digam seus paraísos fiscais espalhados pelo mundo. Nestes devem ser procurados os destinos do dinheiro mais sujo, obtidos por força do sigilo das contas movimentadas livremente pelas mais nocivas e deletérias negociatas, relativas às mais sórdidas atividades econômicas, a exemplo da produção e do comércio de armamentos, de drogas as mais lucrativas do mundo capitalista..

O financismo alimenta os crimes e os criminosos do mais alto poder destrutivo para o Planeta e para os humanos, à medida que recepciona e movimenta o dinheiro resultante das operações provenientes de todos os ramos de atividade: da produção industrial às atividades comerciais; do extrativismo predatório à atividades culturais e da educação, até às atividades religiosas...

O tema da corrupção, inclusive onde e quando convertida em forma de endemia, mesmo quando se manifesta mais gravemente, quando comparada ao caráter necessariamente corrompido do que se pratica, por exemplo, nos paraísos fiscais, assume uma dimensão nanica. Se os cidadãos e cidadãs alcançassem ou desvendassem os sofisticados mecanismos que encobrem tal corrupção-mater, por certo se voltariam para ações que, sem deixar correr solta a corrupção endêmica num determinado Estado, passariam a priorizar a raiz mais funda desta manifestação do Capital financista. Graças, porém, à ação dos aparelhos ideológicos do Mercado e do Estado, com atuação mais influente da mídia comercial, as atenções acabam concentrando-se nas manifestações da corrupção convencionais, desviando as atenções e a ação combativa da raiz mais drástica da corrupção, em especial nos paraísos fiscais...

Resulta, por conseguinte, uma certa concrentação do rentismo, inclusive quando assume formas grotescas de extração de escandalosas taxas de lucro, em relação às quais os Estados nacionais – em última instância, serviçais do Mercado capitalista e seus aparelhos ideológicos, se mostram incapazes de irem à raiz da corrupção mais deletéria. Um exemplo corriqueiro deste tipo de corrupção legalizada se dá nas cobranças astronômicas de taxas de juros e de serviços cobrados pelos bancos e semelhantes instâncias financistas...

Por um novo modo de produção alternativo à barbárie capitalista

Como acima enunciado, o propósito destas linhas foi o de, a partir das investigações e anaálises oferecidas por Sandro Mezzadra e Brett Neilson e outros, destacar alguns aspectos atinentes ao modo de produção capitalista, em seu atual estágio de barbárie. Ao fazê-lo, também cuidamos de alertar para o fato de que a superação da barbárie capitalista demanda que se vá além apenas do seu modo de produção, devendo-se associar essas lutas ao esforço concomitante de superar também o atual modo de consumo hegemônico e o atual modo de gestão societal.

Em grau molecular, já é possivel observarmos, aqui e ali, manifestações deste combate associado, protagonizado por algumas organizações de base de nossa sociedade, nas quais reside a maior parcela de responsabilidade, na busca de tal horizonte. Para tanto, sem que se tenha que abandonar as lutas convencionais pela via dos Estados nacionais, cumpre a essas mesmas forças ter sempre presente a urgência de investir incessantemente em experiências seminais, nessa direção.

João Pessoa, 25 de maio de 2019




terça-feira, 21 de maio de 2019

QUAL FORMAÇÃO MISSIONÁRIA PARA OS TEMPOS DE HOJE? Interpelações para nossas Escolas de formação Missionária




Alder Júlio Ferreira Calado


Das diversas experiências de inspiração combliniana – em torno de uma dezena -, uma delas completa este ano 30 anos: as Escolas de Formação Missionária, tendo sido a primeira a de Juazeiro – BA.

Ação transformadora se mostra, sob as mais diversas manifestações, integrantes e inafastáveis da Criação: os seres são mutáveis: minerais, vegetais, animais, presentes, por conseguinte, os seres humanos. Tudo sofre a ação do tempo, cada qual em seu ritmo e em seu tempo próprios.

José Comblin dava constantes mostras de sabedoria no uso do tempo. Recorrente, seu cuidado com a necessidade de renovação das experiências humanas, inclusive no campo da formação. Em meados dos anos 90, quando se completava em torno de pouco mais de uma década desde o início de experiências tais como o Seminário Rural e o Centro de Formação Missionária, eis que já acenava para a necessidade de avaliação e renovação daquelas experiências formativas. E o que dizer, hoje, após trinta anos do início da experiência das Escolas de Formação Missionária?
Há, com efeito, diversos aspectos a serem priorizados, nesta perspectiva: perfil de coordenadores e coordenadoras destas escolas, tipo de trabalho priorizado planejamento ritmo de atividades desenvolvidas, atualização de conteúdos e metodologia, processo de admissão dos candidatos e candidatas, critérios de seleção, periodicidade e duração dos cursos, processo avaliativo, efetivo acompanhamento pelos coordenadores e coordenadoras, das tarefas de formação contínua dos formandos e dos formadores entre outros desafios.
Nas linhas que seguem, tratamos de sublinhar as principais mudanças socioeclesiais em curso, bem como os desafios daí decorrentes. Em seguida, rememoramos aspectos axiais do projeto formativo que caracteriza o quefazer missionário da pedagogia proposta. Enfim, cuidamos de propor à discussão de formandos e formadores algumas pistas com o propósito de renovação sempre com base nos critérios inspirados pelos valores do Reino de Deus, bem como de nossa caminhada eclesial, à luz do testemunho profético-pastoral do Papa Francisco.
Sociedade e Igreja(s) sacudidas por um mundo em transformação
Com frequência, temos lido ou ouvido que, mais do que um tempo de mudança –a rigor, toda época é, de certo modo, uma época que comporta alterações, mudanças -, estamos a viver uma “mudança de época”, isto é uma profunda reviravolta, e nos mais distintos campos de nossa vida social, econômica, política, cultural... Um dos primeiros requisitos de quem se dispõe a fazer o seguimento de Jesus, é buscar manter-se atento aos sinais dos tempos, mantendo-se olhos, ouvidos, intuição, abertos a compreender o que se passa em nosso chão de cada dia, como condição para uma vida missionária, conforme o Projeto de Deus. Eis um dos primeiros passos a cumprir, com vistas a um assumir consciente e eficaz de nossa missão. Eis por que somos instados e instadas a exercitar o discernimento, dom do Espírito Santo, para termos bem presentes as condições socioeclesiais a partir das quais somos chamados a cumprir nosso papel missionário. Como, então, compreender o mundo de hoje, campo de nossa missão? Vamos destacar alguns pontos-fortes de nossa realidade em mudança.
Nosso primeiro olhar volta-se ao espectro geral de nossas sociedades, inclusive do Brasil, nas diferentes esferas de sua realidade. Temos presentes os desdobramentos destrutivos, característicos da atual face-fase do capitalismo, em suas manifestações mais deletérias, comandadas pelo seu setor financista. Como o capitalismo se organiza, em todos os tempos e, mais acentuadamente nos tempos atuais, como uma globalização, de modo a atingir o conjunto das sociedades sob seu controle, só faz sentido organizarmos as resistências locais ou nacionais, buscando entender melhor as relações orgânicas entre o que se passa nos micro-contextos e as profundas influências exercidas desde os macro-contextos. Deste modo, tomamos consciência da complexidade e da extensão dos desafios que nos cercam mais diretamente, sublinhando alguns destes aspectos a merecerem nossa especial atenção:
- Como tudo está ligado a tudo, de pouco adianta por exemplo, restringirmos nossas lutas mais fortes, seguindo apenas a sucessão descontrolada das pautas-bomba impostas pelo atual desgoverno;
- Somos chamados a enfrentar um desafio ainda maior: o de, partindo da resistência de políticas estatais governamentais de alto teor destrutivo, somos instados a organizar nossa resistência, de modo a enfrentar exitosamente as raízes mais fundas de tais políticas.

Situemos, como exemplo ilustrativo, o caso do governo atual. Inútil procurar entender seus nocivos malfeitos, a partir apenas de suas figuras mais representativas, a começar do próprio presidente. Hão de ser entendidos a partir de quem os inspira, de quem dita seus passos mais importantes. E tais mandantes não se acham principalmente no Brasil. Hão de ser procurados fora do país, mais diretamente no atual governo dos Estados Unidos e de Israel. Sua primeira grande fonte de inspiração é a insana figura do atual presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. Desde o processo eleitoral protagonizado pelo atual presidente do Brasil, suas principais estratégias constituem uma certa réplica do que foi aplicado nas eleições de Donald Trump.
Por outro lado, por rigor analítico, deve-se reconhecer que o próprio Trump trabalha a serviço das grandes corporações transnacionais que regem o Capitalismo mundial, principalmente as grandes empresas de armamentos e de petróleo. Neste sentido para fins de comprovação, basta reportar-nos a recentes medidas tomadas por Bolsonaro, a exemplo das que estimulam o armamento da população, em vez de garantir segurança pública aos cidadãos, como dever do Estado.
Daí resulta, a necessidade de buscar entender a sucessão de desatinos praticados seja por Trump, seja pelos seus assessores mais próximos, seja por Olavo de Carvalho e seus súditos imediatos no Brasil, inclusive os filhos Bolsonaro e o próprio, sem o que se corre o risco de sofrer os efeitos sem localizar sua verdadeira raiz.
Resta, por conseguinte fundamental compreendermos que tal engrenagem produz efeitos concretos e trágicos, em escala mundial, também no Brasil, com ressonâncias efetivas no cotidiano de nossas comunidades.
Em resumo, a sociedade brasileira enfrenta um de seus maiores desafios das últimas décadas, à medida que se trata de um plano destrutivo de envergadura, nas mais distintas  esferas de nossa realidade: maior agressão socioambiental desrespeito aos direitos dos povos indígenas, das comunidades quilombolas, dos povos da floresta, das mulheres (Cf. índices crescentes do feminicídio, das vítimas da comunidade LGBTI, dos nordestinos)...
No plano da atual conjuntura eclesial, seguimos enfrentando outro cenário não menos desafiante. A Igreja Católica Romana (e outras Igrejas cristãs) tem se situado de modo fortemente contraditório à luz dos ensinamentos do Evangelho e da própria orientação do Papa Francisco. Salvo poucas exceções (das quais o Bispo de Roma, merece o primeiro dos destaques), a Igreja Católica Romana segue com sua estrutura pesada, sem conseguir sequer ser fiel às decisões tomadas no concílio Ecumênico Vaticano II, realizado há mais de 50 anos. Em seus 16 documentos (constituições, decretos, declarações) havia-se chegado a um consenso mínimo por força do qual o Povo de Deus deveria passar a ser o principal protagonista de a organização eclesial, o que não se tem visto. Apesar de avanços pontuais, segue sendo a hierarquia quem dita as regras, por meio de uma pesada estrutura multissecular, na qual os fiéis leigos e leigas tem um lugar simbólico, quando se trata da tomada de decisões.

Quais os traços mais fortes de nossa proposta de formação em nossas escolas de Formação Missionária?
Tendo presente o cenário acima brevemente esboçado convém ocupar-nos da especificidade da proposta formativa vivenciada em nossas Escolas Missionárias. Como sabemos, a proposta formativa perseguida pelas escolas de formação missionária tem características próprias, dentre as quais:
- Promover, especialmente entre os pobres, o Seguimento de Jesus, profeta itinerante do Reino de Deus e Sua justiça;
- Vivência e testemunho de uma espiritualidade incarnada, a serviço do Reino de Deus no processo de humanização, isto é, em busca de uma vida em plenitude, de modo a favorecer o desenvolvimento de nossa condição enquanto seres humanos, enquanto cidadã(o)s e cristã(o)s;
- Vivenciar e fortalecer os valores do Reino de Deus: justiça, compaixão, solidariedade, partilha, serviço à humanidade;
- Promover uma formação contínua, a partir do Projeto de Deus, do povo dos pobres como protagonistas de um novo mundo possível e necessário;
- Incessante atenção aos sinais dos tempos, adequadamente interpretados e levados à sério;
- Assumir a Liberdade, não apenas como um horizonte a alcançar, mas também por caminhos de liberdade;
- Testemunhar, no chão do cotidiano, o compromisso com a causa libertadora dos pobres, com eles e como eles; tomar tempo para uma formação continuada, tanto no plano comunitário quanto no pessoal, exercitando uma mística de conversão, de oração, de autovigilância, de crítica e autocrítica.

Que passos somos chamados e chamadas a empreender diante de tais desafios?
Em vez de meras indicações, preferimos aqui propor alguns questionamentos, em tom provocativa e fraterno, tendo em vista nosso compromisso formativo ao interno de nossas escolas de formação Missionária:
- Que critérios vêm caracterizando nossas práticas formativas membros da coordenação de formandos e formandas, de professores e professoras, em todos os espaços formativos de que participamos;
- Como são admitidos os candidatos e candidatas às nossas escolas de formação missionária? Quais os critérios que orientam tal processo (quem os indica?; Como é feito o trabalho de divulgação de nossas Escolas?; Junto a quem fazemos contatos, no trabalho de sensibilização e despertar dos candidatos?);
- Dada a admissão dos candidatos e candidatas, como eles vêm a participar nas decisões tomadas, quanto a diversos aspectos (planejamento, conteúdos, dinâmica, metodologia, avaliação, efetiva participação nos trabalhos gerais, inclusive de infraestrutura), no acompanhamento contínuo dos estudos, após o período presencial?
- Como se dá o financiamento de nossas Escolas? (que e como contribui para o funcionamento de nossas diversas atividades?)
- Como se dão as relações com as comunidades diocesanas e paroquiais?

João Pessoa, 21 de maio de 2019.


quarta-feira, 8 de maio de 2019

"A TERRA É MINHA CASA E A HUMANIDADE MINHA FAMÍLIA": anotações em torno da visita apostólica do Papa Francisco à Bulgária e à Macedônia do Norte


"A TERRA É MINHA CASA E A HUMANIDADE MINHA FAMÍLIA": anotações em torno da visita apostólica do Papa Francisco à Bulgária e à Macedônia do Norte

Alder Júlio Ferreira Calado

Foi encerrada, ontem, mais uma marcante e frutuosa viagem apostólica do Papa Francisco, mundo a fora, desta vez visitando a Bulgária (de 05/05 a 06/05), e à Macedônia do Norte (anteontem, 06/05), dois países europeus periféricos, situados entre os mais pobres daquele continente. Uma trintena de viagens apostólicas do Bispo de Roma, alcançando todos os continentes - eis algo extraordinário, especialmente tomando-se em conta o fato de que Francisco alcança esta marca, em apenas seis anos de pontificado, e com seus bem vividos 82 anos. Atribui-se a Khalil Gibran a autoria do título deste relato, mas ousamos dizer que tem muito a ver com o Papa Francisco que se tem revelado um incansável profeta itinerante de nossos dias. Disto da testemunho, inclusive, o título que escolheu para sua percuciente encíclica social Laudato si'- Sulla cura della casa comune.


Visita apostólica à Bulgária

Em seus dois dias de visita à Bulgária, o Papa Francisco, desde o momento das boas-vindas, expressas pelo Presidente da República da Bulgária, nos remete ao objetivo axial de suas viagens apostólicas, inclusive nestas à Bulgária e, depois, à Macedônia do Norte. Em suas palavras de saudação ao Bispo de Roma, o Presidente da Bulgária Rumen Radev, lembra o mote que Francisco adota para esta visita: "Pacem in Terris", numa feliz alusão a uma das marcas proféticas de seu antecessor, Papa João XXIII, figura apreciada pelo povo búlgaro, e não por acaso. O bom Papa João, antes de ser eleito papa, passou cerca de dez anos, vivendo na Bulgária, como delegado apostólico, uma convivência de um denso testemunho ecumênico, a que o Presidente da Bulgária fez questão de se referir, e de forma bem acentuada, à medida que, ao saudar o Papa Francisco, rememorava a multissecular história do Cristianismo naquela terra eslava. Na ocasião, sublinhou especialmente o papel missionário dos santos Cirilo e Metódio, na semeadoura da fé cristã entre os povos eslavos, razão por que ambos os santos são venerados como copadroeiros da Europa, ao lado de São Bento (padroeiro da Europa Ocidental). Mas, a ênfase mais retumbante da saudação de boas-vindas dirigidas ao Papa pelo Presidente da República da Bulgária, foi posta na defesa e promoção de uma cultura de paz, caracterizada pelo compromisso comum das autoridades búlgaras e do Papa, de engajamento como construtores de pontes, e não de muros: "Muros é fácil levantar. Difícil é construir pontes! Dizia. Nesse sentido, assinalou, com entusiasmo, alguns traços da cultura de paz, presentes na Bulgária, lembrando que apenas a alguns metros daquele local, encontravam-se convivendo em harmonia e concórdia um templo ortodoxo, uma mesquita, um templo católico e uma sinagoga. E, mais forte ainda, foi sua referência ao povo búlgaro, no tocante ao desafio dos migrantes, em que a aposta vinha sendo no sentido de promover o respeito e o acolhimento, criando condições de entendimento pacífico de múltiplas culturas, diversas línguas, variedade de grupos de várias procedências, línguas e culturas. 

Por seu turno, em resposta à saudação feita pelo Presidente da Bulgária, o Papa Francisco, após destacar aspectos vários da história do povo búlgaro - dos primeiros centros de irradiação da fé cristã; o pioneirismo profético-pastoral de figuras como o dos santos Cirilo e Metódio; o espírito ecumênico testemunhado pelo povo búlgaro, entre outros -, sublinha o espírito de acolhimento do povo búlgaro aos migrantes, até porque, nas últimas décadas, constata-se um declínio da população búlgara, indicando-o também como emigrante, além do testemunho ecumênico presente naquela terra.

Em seguida, o Papa Francisco se dirige a um outro local próximo daquela praça, para encontrar-se com o Patriarca Neófito, da Igreja Ortodoxa daquele país. Neste encontro, o foco das inquietações do Papa Francisco, expresso em suas abençoadas palavras, foi posto na defesa e promoção do ecumenismo, prática testemunhada, décadas atrás, pelo bom Papa João, de tal modo que costumava dizer que não importando onde se encontrasse, sentia-se sempre disposto a acolher irmãos e irmãs da Bulgária, independentemente de sua identidade confessional pois havia tido uma marcante experiência de convivência ecumênica. Mas, de que ecumenismo se trata? O Papa Francisco destacou, em sua fala, três fortes dimensões do ecumenismo de base, que aprecia vivenciar: um ecumenismo do sangue, um ecumenismo do pobre e um ecumenismo da missão, conforme se pode ver/ouvir por meio do seguinte link: https://www.youtube.com/watch?v=zTj51KosD2A&t=181s

Com efeito, por ocasião do encontro com o Patriarca Neófito, o Papa Francisco, compartilhava o sentido que atribui ao Ecumenismo de base, por meio de três dimensões. No Ecumenismo de sangue, ele se sente remetido ao sangue dos mártires da Bulgária. Em diferentes momentos da história do Cristianismo naquela terra, uma das mais antigas a receber as sementes da Evangelização, não poucos cristãos tiveram que testemunhar com o próprio sangue, sua fé. Sangue que, ao inundar aquela terra, irrigou e fez florescer missionários e missionárias, a seguirem anunciando e testemunhando o Evangelho. Com relação ao Ecumenismo do pobre, Francisco se referia ao cultivo da presença de Jesus nos pobres e sofredores, em quem somos chamados a reconhecer o próprio Jesus, que veio para servir e dar sua vida em favor de muitos. No que toca ao Ecumenismo da Missão, sublinhou a necessidade de todos estarmos vigilantes e atentos ao chamamento do Senhor, para sermos suas testemunhas, nos diferentes lugares, nas distintas periferias do mundo.
Outro compromisso cumprido, ainda no domingo, pelo Papa Francisco, foi a celebração eucarística. Convém lembrar que os católicos constituem talvez menos de 1% da população búlgara: menos de 70 mil católicos para uma população total de cerca de 7 milhões de habitantes. Mas, são animadores os testemunhos ouvidos, da parte deste pequeno segmento. O próprio ambiente de vasta diversidade religiosa (ortodoxos, muçulmanos, católicos, protestantes, judeus) representa um saudável aprendizado de convivência respeitosa, no país. A liturgia eucarística foi celebrada com intensa animação dos participantes. A homilia feita pelo Bispo de Roma mantém suas características já conhecidas: profundamente enraizada no Evangelho, ricamente pedagógica, concisa. O Bispo de Roma mostra-se sempre muito feliz em ressaltar as palavras-chave contidas na passagem evangélica. O tema do dia sublinhava a pedagogia de Jesus, em seu trato com Pedro, a quem Jesus convida para ser pescador de homens. Para tanto, dirige perguntas espinhosas a Pedro: "Pedro, você me ama?" Jesus, não satisfeito com a resposta positiva de Pedro, volta a fazer-lhe a mesma pergunta, outras duas vezes, de modo a inquietar Pedro: "Mestre, Você sabe tudo, você sabe que eu O amo". Só então, Jesus o chama para apascentar as ovelhas do Reino de Deus. Não bastassem as fragilidades de Pedro, inclusive por havê-lo renegado, por ocasião de sua paixão, Jesus destacar a importância da missão que propunha a Pedro: a de apascentar o rebanho que lhe foi confiado. E apascentar, no sentido próprio aplicado por Jesus, isto é, devendo o pastor impregnar-se do cheiro das ovelhas. É a disponibilidade, é a disposição para servir as pessoas mais necessitadas. Em sua homilia, passa, então, o Bispo de Roma a destacar três palavra-chave, recolhidas desta passagem evangélica: "Deus chama, Deus surpreende, Deus ama". É Jesus quem toma a iniciativa de chamar seus discípulos e discípulas, propondo-lhes o seguimento do Projeto de Deus que Ele mesmo veio anunciar e inaugurar. Quem chama, também assegura as condições da missão, vela e zela pelos seguidores do Reino de Deus e sua justiça, como o fez Pedro, a enfrentar sérios desafios no cumprimento de sua missão. Além de chamar, Jesus também surpreende aqueles e aquelas que se dispuseram a segui-Lo. Em tantas ocasiões, tantas tarefas que lhes pareciam impossíveis, Jesus mostra caminhos surpreendentes de superação. Igualmente, Jesus mostra seu amor àqueles e àquelas que decidem segui-Lo. Estes e estas não são jamais deixados à deriva. Sentem que contam com o amor de Deus, inclusive nas horas mais desesperadoras. Eles e elas provam o amor de Jesus, na caminhada. Também o mesmo acontece aos discípulos e discípulas de hoje.

Na segunda-feira, dia 6, o Papa continua cumprindo sua agenda de um profeta itinerante. Vai ao encontro das crianças, com quem conversa, e a quem lembra as marcas de quem se torna discípulo ou discípula de Jesus, isto é, toma consciência de qual é sua carteira de identidade, por meio das marcas mais relevantes: Deus é nosso Pai, e todos somos irmãos e irmãs, independentemente de tantas características - econômicas, políticas, culturais. Somos todos irmãos, filhos e filhas de um Pai amoroso. E somos chamados a pôr em prática Sua Lei, que é a Lei do Amor.

Outro compromisso denso cumprido pelo Bispo de Roma deu-se no Encontro pela Paz. Irmanando-se aos vários delegados ou representantes de outras confissões cristãs (Ortodoxos, Católicos, Reformados), membros representantes do Islã e do Judaísmo, resultou deveras tocante a forma como se realizou o encontro.



Encontro ecumênico pela paz:
Um dos momentos mais significativos da visita do Papa Francisco à terra e à gente da Bulgária se deu por ocasião do Encontro pela Paz, por diversas boas razões. Esta sua 29a. visita apostólica pelo mundo, como verdadeiro peregrino da paz, alcança, nesta oportunidade, o ápice de seu objetivo: reunir diferentes segmentos da sociedade, pela via da esfera da fé, da esperança e da ação, em sua reconhecida diversidade de expressões (ortodoxos, católicos, reformados, muçulmanos, judeus...) em busca de caminhos e ações concretas em vista da paz mundial. Muito fecunda revelou-se a escolha feita pelos organizadores do evento do "formato" do Encontro, envolvendo ações protagonizadas pelos mais distintos segmentos religiosos ali reunidos. A começar do belíssimo coral de crianças a entoar calorosamente a conhecida canção "We are the world" (cf. https://www.youtube.com/watch?v=WGgaD_k_EwI)  fazia-se evidenciada a verdadeira bandeira daquele evento. Mais: felicíssima também foi a iniciativa de se fazer a leitura/oração do Canto das Criaturas, conhecido como um lema de alcance universal, da lavra de Francisco de Assis. Canto recitado com notável respeito dos presentes. Um tocante louvor aos mais distintos elementos da Mãe-Natureza e de todas as criaturas. Pela sua força poética e mística, vale a pena rememorar alguns trechos desta magnífica obra de Francisco de Assis:
“Louvado sejas, ó meu Senhor, com todas as tuas criaturas,
especialmente o meu senhor irmão Sol,
o qual faz o dia e por ele nos alumias.
E ele é belo e radiante, com grande esplendor:
de ti, Altíssimo, nos dá ele a imagem.
Louvado sejas, ó meu Senhor, pela irmã Lua e as Estrelas:
no céu as acendeste, claras, e preciosas e belas.
Louvado sejas, ó meu Senhor, pelo irmão Vento
e pelo Ar, e Nuvens, e Sereno, e todo o tempo,
por quem dás às tuas criaturas o sustento.
Louvado sejas, ó meu Senhor, pela irmã Água,
que é tão útil e humilde, e preciosa e casta.
Louvado sejas, ó meu Senhor, pelo irmão Fogo,
pelo qual alumias a noite:
e ele é belo, e jucundo, e robusto e forte.
Louvado sejas, ó meu Senhor, pela nossa irmã a mãe Terra,
que nos sustenta e governa, e produz variados frutos,
com flores coloridas, e verduras.”


Sempre tomando-se em consideração as características de cada segmento religioso ali reunido, Foram também recitadas expressivas leituras extraídas de salmos, como o Salmo 122 do qual destacamos o seguinte trecho: “Haja paz dentro dos teus muros e segurança nas tuas cidadelas! "
Em favor de meus irmãos e amigos, direi: "Paz seja com você! Em favor da casa do Senhor, nosso Deus, buscarei o seu bem.
, de amplo conhecimento e apreciação pelos segmentos presentes. Foram, igualmente, recolhidos tocantes testemunhos expressos por representantes de cada setor religioso, dentre os participantes do mesmo evento. Vale assinalar, nesta ocasião, o protagonismo dos jovens e das crianças, ao longo deste Encontro. Também foram ouvidas as breves e profundas palavras do Bispo de Roma. Todas podem ser conferidas no "link" seguintes; (cf. https://www.youtube.com/watch?v=WGgaD_k_EwI)

Ao sublinharmos a relevância e a fecundidade deste momento, sentimo-nos tomados pela feliz lembrança da força revolucionária das ações moleculares ou da "correntezas subterrâneas". Justamente num momento de expansão das forças de morte, a clamarem por mais guerras e conflitos, que ameaçam os humanos e agridem o Planeta e toda a comunidade de viventes - que nos baste ilustrar esse panorama necrófilo com o que se vem passando em nosso país, com o atual desgoverno, a serviço das forças mais portadoras de ações obscurantistas e de morte. Vale a pena seguirmos firmes, a apostar na força revolucionária de acontecimentos como este. Não é à-toa que a figura do Bispo de Roma segue sendo cada vez mais apreciada (mas também odiada pelas forças obscurantistas) como uma liderança mundial de novo tipo. Não como uma manifestação na aposta em um novo guru, mas, ao contrário, por indicar pistas concretas de que um novo mundo é possível, necessário e urgente.

Visita apostólica à Macedônia do Norte

O Bispo de Roma dedica todo o último dia de sua visita apostólica à terra e à gente da Macedôni
a do Norte, considerada um dos países mais pobres da Europa, como aliás também a Bulgária. A Macedônia do Norte, ex-integrante da antiga Iugoslávia, tornou-se independente em 1991. Hoje, conta com uma população de pouco mais 2 milhões de habitantes, cuja composição é marcada pela diversidade de culturas, de nações e de religiões. Situa-se na região dos Bálcãs ocidentais, atuando como uma ponte entre a Europa e o Oriente Médio, donde recebe levas de migrantes, não obstante seus poucos recursos econômicos. A exemplo da Bulgária, a Macedônia do Norte (assim chamada, para distinguir-se da Macedônia Grega) também possui fundas raízes cristãs.: mamais que milenar é sua história de implantação da fé cristã. Ao mesmo tempo, também é palco de convivência com gente de outros credos: muçulmanos, judeus, além de ortodoxos, católicos e reformados. Tem uma história de convivência multiétnica, multicultural, uma riqueza para o mútuo aprendizado do incessante exercício do diálogo multicultural. Como lembrou o Papa, em sua saudação inicial: tal qualidade transpõe os limites da tolerância, alcançando o exercício do respeito pela diversidade cultural.  Mais uma vez, Francisco nos remete a uma figura geométrica – o poliedro – que prefere tanto à pirâmide quanto a círculos fechados. O poliedro representa mais propriamente a convivência com a diversidade, sem prejuízo de nenhum interlocutor e para o bem de todos.

Ainda em sus palavras iniciais, dirigidas ao povo da Macedônia, inclusive às autoridades presentes, além de refrescar positiva e criticamente a memória histórica, na perspectiva dos valores do Reino de Deus, o Papa Francisco também enfatiza  sabedoria de se aprender a conviver, com respeito mútuo, com as diferenças, como uma riqueza a ser compartilhada. Ao mesmo tempo, como na Bulgária e praticamente em todas as demais visitas apostólicas precedentes, centra suas atenções e o seu cuidado principalmente no reconhecimento dos d, promoção e defesa dos direitos dos pobres, em especial dos migrantes. Mas, não apenas destes. Também, faz questão de lembrar as condições de vida e de trabalho, dos jovens, a penúria de tantos anciãos e anciãs, vivendo em situações de precariedade, bem como das crianças muitas vezes destituídas do direito de viverem como crianças – “infância roubada”... Com relação especificamente aos jovens, importa fazer  a seguinte observação.
Um dos momentos mais relevantes da visita do Papa Francisco à Macedônia do Norte se deu em seu encontro com os jovens. Um sinal forte pelo qual isto pode ser afirmado, reside na postura de intenso entusiasmo de que o Bispo de Roma esteve tomado, durante todo o encontro com os jovens. Sua fala vinah carregada de uma força especial, capaz de contagiar seus ouvintes - jovens ou não. Vale a pena conferir sons e imagens deste momento (cf. o "link":

E o que disse Francisco aos jovens da Macedônia? Em síntese, cuidemos de destacar seus pontos mais fortes.;
- "Sonhar nunca é demais!" A partir deste mote, Francisco se dirige aos jovens como um verdadeiro pedagogo, a serviço da causa do Evangelho. Tal sua postura pedagógica, que, em não poucos momentos, nos remetia a figuras como Paulo Freire, José Comblin, Dom Hélder, por exemplo. Ai de quem não ousa sonhar, e assim se vai tornando presa fácil da resignação, da tristeza, do desânimo. Quem não sonha corre o seriorisco de sucumbir à paralisia;
- ainda quando o sonho possa induzir a equívocos, mesmo assim, preferível incorrer em alguns equívocos a conformar-se quieto, de braços cruzados, à sombra de uma falsa segurança.
- os sonhos são movidos pela esperança, que dá sentido ao viver, ao con-viver.
- o exercício do sonho e da esperança constitui um antídoto à onda do consumismo, das novas ondas e modas das redes sociais e outras ferramentas de comunicação que, ao promoverem contatos, renunciam a uma vida de comunidcação, em comunidade;
- a vida em comunidade é a melhor forma de se exercitar os sonhos e as verdadeiras esperanças;
- o isolamento não favorece os bons sonhos, antes os sufoca;
- os sonhos mais fecundos nascem de um saudável enraizamento na história do seu povo, de sua gente: a memória fertiliza a esperança, à medida que não se limita ao passado, impulsiona a novos horizontes;
- tal exercício da memória histórica deve fazer-se também os os mais velhos, com os avós e os anciãos, portadores de memória, sendo eles elas a raiz histórica na qual os jovens devem ter plantada sua história, como uma árvore que só pode dar frutos, a partir de sua conexão com as raízes;
- volta a trazer o exemplo de uma cidadã macedônia, Madre Teresa de Calcutá que, como jovem, ousou sonhar alto, sonhar servir à humanidade, desde a Índia, priorizando os trabalhos com os mais necessitados;
- insiste em que os jovens também ousem sonhar alto, para o que ainda como grande pedagogo - os remete aos artesãos de seu país, com tradição de talhar as pedras, isto é, com tal inspiração, sejam também capazes de sonhar coisas novas...



Não cessamos de ressaltar o vigor e a criatividade do atual Bispo de Roma, aos seus abençoados 82 anos, e dispondo de apenas um pulmão. Como explicar tal vitalidade, tal vigor, tal jovialidade? Pois bem, já no avião, de volta ao Vaticano, um jornalista - dentre alguns que lhe fizeram pergunta sobre o balanço de sua recém-finda visita apostólica, limitou-se a fazer apenas uma pergunta: "Como explicar tal vitalidade da parte do Papa, numa visita a dois países, com tantas atividades, e sem apresentar sinais de cansaço: Francisco responde que não sabe explicar, e tudo atribui a um dom de Deus. Apenas diz que, quando está em viagem, não se cansa, cansa-se depois... Cuida de entregar-se totalmente àquela missão.


Outro compromisso cumprido pelo Papa Francisco, na Macedônia do Norte, teve a ver particularmente com a comunidade católica local, por meio da celebração da Missa, na praça central da capital. Em sua homilia, ao comentar a passagem do evangelho correspondente à leitura do dia (sobre o pão da vida, que é Jesus), realçou, com sua habitual pedagogia, as diferentes formas com que a fome se manifesta, na atualidade e também naquela terra. Lembrou as diversas formas de fome e de sede sentidas por nossas gentes:
0 diante de um noticiário recheado de mentiras e de propagandas consumistas, o Papa chamava a atenção da fome de verdade, de justiça de solidariedade, de partilha, isto é, dos valores fundamentais do Reino de Deus, pregado e vivido por Jesus.

Em seu último compromisso na Macedônia, fez questão de visitar o Memorial dedicado a Madre Teresa de Calcutá, originária daquela terra, que teve a ousadia de radicalizar o Evangelho, indo anunciar e testemunhar, junto aos pobres da Índia, a Boa Nova do Reino de Deus.

Que aspectos mais fortes sublinhamos, como lições a recolher desta experiência missionária do Bispo de Roma?

Das anotações acima registradas, acerca de mais uma visita apostólica cumprida pelo Papa Francisco. Pomo-nos a destacar o seguinte. Chama-nos a atenção, em primeiro lugar, a fidelidade do Bispo de Roma ao espírito do Evangelho, da Boa Nova anunciada e inaugurada por Jesus. E aqui, não se trata de recorrer a passagens isoladas do seu pontificado (palavra usada aqui no sentido do ofício de quem se põe a caminho de construir pontes de diálogo entre os povos)
É, portanto, marcante e animadora sua coerência entre gestos, palavras e escritos, em seus sete anos de papado. Outra marca sua: sua posição de profeta itinerante, a percorrer o mundo, em missão de verdadeira paz, fundada na justiça. Salta, igualmente, aos olhos seu compromisso profético-pastoral com a causa libertadora dos pobres e desvalidos: os últimos, os deserdados, os que não contam para a cultura mercantilista dominante. Neste sentido, resulta relevante perguntar-nos, a este propósito: que povos e que países tem priorizado, em suas visitas apostólicas? Quem são, como grupos e pessoas, seus alvos preferidos? Qual tem sido seu estilo de pôr-se em diálogo com as gentes visitadas? Qual tem sido sua aposta decisiva: encontrar-se com os grandes deste mundo ou encontrar-se com as expressões mais reconhecidas das periferias geográficas e existenciais? A serviço de quê, e a serviço de quem, organiza sua agenda cotidiana, de caráter profético-pastoral? O que tem tomado como o centro de sus maiores inquietações: a autopreservação institucional ou as grandes prioridades?

João Pessoa, 08 de maio de 2019