Alder Júlio Ferreira Calado
Estamos a vivenciar, de modo mais intenso, as comemorações relativas à semana da Consciência Negra. Ao mesmo tempo - já agora, a partir do calendário oficial -, hoje se celebra o dia da Proclamação da República, somos mesmo uma República? Como e por quem foi gestada, e a partir dos interesses de quem? De lá para cá, que evolução vimos tendo? Quem ganha e quem perde com esta República? Como nela se situam as classes populares: os povos originários, as comunidades quilombolas, os camponeses e camponesas, os operários e operárias, os povos das águas, das florestas, ribeirinhos, os pescadores…? E como vivem os segmentos privilegiados de nossa sociedade: os do mundo das finanças, dos paraísos fiscais do agronegócio, das grandes indústrias, das grandes empresas comerciais e de serviço, os controladores da mídia corporativa, todos respaldados pelo Estado e seus respectivos aparelhos?
Considerando, por exemplo, a saga de Canudos, numa perspectiva crítica, o que terá representado para a comunidade de Canudos, esta República, desde suas origens? E o que dizer da saga dos povos originários e, em especial, do povo negro? O processo de colonização se revelou extraordinariamente cruel para com os “debaixo”, especialmente no processo histórico brasileiro.
Diferentemente do contexto histórico do processo de colonização ocorrido em outros países americanos, a sociedade brasileira apresenta espantosas especificidades. Destas, com base em autores tais como Décio Freitas, Clóvis Moura, Jacobe Gorender, Júlio Chiavenato, entre outros, destacamos três: a quantidade de africanos e africanas aqui escravizados, a extensão territorial do processo escravagista e a extensão temporal.
Do ponto de vista do efetivo demográfico de africanos e africanas aqui escravizados, o Brasil desponta como insuperável, em relação a outros países, levando-se em conta, inclusive, a subestimação dos números oficiais. No tocante à extensão territorial, há de se lembrar que, no Brasil, o processo escravagista se deu em todas as regiões, diferentemente dos Estados Unidos, cujo efetivo de africanos escravizados se concentra basicamente ao sul do país. Com relação a extensão temporal, vale destacar que, enquanto entre 1808 e 1830, o processo formal de abolição fez-se coincidir com a separação política das respectivas metrópoles, eis que, no caso do Brasil, o processo formal de abolição se estendeu, como é sabido, até 1888, 66 anos após a impropriamente chamada “Independência do Brasil”...
E, na prática, o que redundou para os afro-brasileiros e afro-brasileiras a Proclamação da República um ano após a abolição formal da escravatura, no Brasil? Com que objetivos concretos se fez a abolição, e no que ela resultou para as condições de vida e de trabalho os ex escravos?
Fazendo um rápido balanço desses 130 anos de República no Brasil, vale a pena questionar, do ponto de vista dos “debaixo’’, tantas situações a ela ligadas. E não se trata de qualquer desprezo ou subestimação ao valor da República enquanto tal, isto é, de um verdadeiro organismo a serviço do Público, como se observa a partir mesmo de sua etimologia - “Res publica” -, mas de questionar o verdadeiro sentido que os “donos do Poder” ( parafraseando Raymundo Faoro ), têm feito desta República, quando avaliamos a situação concreta da enorme maioria da população brasileira, majoritariamente negra, nas condições de trabalho, nas condições de vida, no acesso ao emprego, na ocupação de cargos decisórios no País, no Estado no município, nas repartições públicas?
Qual é a real posição majoritária ocupada por membros do Povo Negro? No sistema carcerária, por exemplo, quem perfaz a enorme maioria da população prisional no Brasil? Qual o percentual de negros e negras ocupando cargos decisivo, nesta República? Seja na esfera da União, dos Estados ou dos Municípios, seja ainda nos respectivos poderes (Legislativo,Judiciário e Executivo e mesmo nas Forças Armadas), na mídia corporativa, nas empresas, etc. A quantos membros do Povo Negro - mulheres e homens - se dá a oportunidade de ler e interpretar a lei maior do país, a Constituição, por exemplo no título II, capítulo II, art 7º e em outros artigos, relativos aos direitos sociais tais como em relação ao valor do salário-mínimo, alimentação, habitação, a saúde, a educação, ao lazer e outros itens ali assegurados formalmente? Quando se veem em sua situação concreta no dia a dia, o que pensar dos direitos constitucionalmente assegurados e não usufruídas devidamente? Para quem, no dia a dia, se volta esta República? Qando se lança um olhar, por outro lado, para as condições de vida privilegiadas usufruídos pelas elites brasileiras, econômicas, políticas e culturais, que avaliação se pode ter? No sistema público de saúde, por exemplo, quem recorre ao SUS? Quem usa transporte público? Onde se acham matriculados seus filhos? E em relação as classes populares, quais as condições de defesa que lhe são assegurados, no sistema judiciário? São Tantas perguntas... República deveria ter a ver com coisa pública, isto é, com a situação do público, quer dizer da população, do conjunto dos cidadãos e cidadãs. Quem de fato tira proveito na gestão desta República? São perguntas tantas que poderíamos acrescentar, no sentido de lembrar as elites brasileiras de sua perversidade, ao comemorarmos 130 anos de república, durante os quais, não apenas não tivemos oportunidade de assegurar direitos formalmente inscritos nas leis, como também a manter privilégios seculares até hoje.
Nem tudo, entretanto, na trajetória do povo negro das classes populares, se resume a trevas e reveses. Há, sim, muito também a comemorar. Ontem como hoje, tem sido animadora sua trajetória de resistência, nos diversos Campos da realidade. De fato, as lutas do Povo trabalhador brasileiro nos inspiram, a todos os componentes das classes populares, a manterem viva sua esperança, a medida que buscam beber sua força da memória histórica dos oprimidos, no Brasil, na América Latina e no mundo. De esperança e luta continuará sendo a saga do povo negro, em busca de uma verdadeira República democrática, socioambientalmente comprometida, economicamente justa, politicamente participativa e culturalmente diversa, que faça jus a dignidade dos humanos e do planeta, por meio da construção, a curto, médio e longo prazos, de um novo modo de produção, de consumo e de gestão societal, ainda que de maneira processual e molecular.
João Pessoa, 15 de Novembro de 2019
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