segunda-feira, 23 de maio de 2022

O PIONEIRISMO DOS ANARQUISTAS, NA EDUCAÇÃO POPULAR, NO BRASIL: apontamentos a partir do artigo de Ivonaldo Leite*


Alder Júlio Ferreira Calado


Lastreado em estudos e pesquisas que ousam enfrentar o ostracismo a que se tem relegado a densa contribuição dos Anarquistas a Educação Popular, no Brasil, o artigo “O insubmisso fio sócio-histórico autogestionário:  o lugar da educação popular libertária na história brasileira” (Revista Espaço Acadêmico: https://periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/60533/751375154083), de Ivonaldo Leite, vem juntar-se ao esforço de restituir aos Anarquistas brasileiros seu lugar de pioneirismo na Educação Popular no Brasil.


A História também comporta paradoxos. Um deles tem a ver com o injustificado  esquecimento a que foi submetido o denso aporte dos Anarquistas à Educação Popular, no Brasil, de que trata Ivonaldo, em seu instigante artigo, buscando examinar as razões de tal lacuna na História da Educação brasileira, em sua versão hegemônica apontando a hipótese, com base em Bourdieu, para o Campo Científico hegemônico. Este assume o poder de ditar critérios para definir o que é ou não relevante, conforme suas conveniências políticas conjunturais. Isto sucede, aliás, não apenas em relação ao esquecimento do legado anarquista para a Educação Popular no Brasil. Estende-se também para múltiplas tarefas acadêmicas.


Se por um lado é certo que há um reconhecimento razoável do aporte anarquista ao movimento operário brasileiro, por outro lado, também é certo que isso concerne especialmente, à Educação Popular, esta é frequentemente apresentada como tendo surgido apenas nos anos 50 do século passado.


À medida que nos dispomos, como fez Ivonaldo Leite, a rastrear o contexto histórico compreendido entre o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX, no que concerne ao campo educativo protagonizado pelos Anarquistas, registramos sua densa contribuição à Educação Popular, no Brasil. Migrantes europeus, os Anarquistas chegaram ao Brasil, no último quartel do século XIX, contratados pelo “Barões do café”, para trabalharem em suas lavouras. Iniciado o embrionário processo industrial, eles passaram a trabalhar nos espaços urbanos. Graças a sua experiência com as ideias libertárias trazidas da Europa, os Anarquistas migrantes vão ter uma forte influência na organização do incipiente operariado brasileiro, especialmente nos Estados mais desenvolvidos com o processo industrial.


Naquela época, os anarquistas protagonizaram diversas frentes de luta, combinando lutas sindicais independentes dos Capitalistas e do Estado; empreenderam diversas frentes de luta no campo da cultura, por meio do teatro libertário, da divulgação de poema e de diferentes meios artísticos; vale ainda destacar seu pioneirismo na comunicação, a propósito do que, fizeram circular, como constata o gráfico elaborado por Ivonaldo Leite, em seu artigo ora comentado, cerca de 500 periódicos entre o período mencionado. Sobre isto, recomendo conferir o referido gráfico, do qual importa realçar, por relevantes e oportunos, alguns dos periódicos mencionados: Jornal “A Lanterna” (São Paulo, 1901-1935); Jornal “O Amigo do Povo” (São Paulo, 1902-1904); Jornal “A Voz do Trabalhador” (Rio de Janeiro, 1908-1915); Jornal “A Plebe” (São Paulo, 1917-1951); Jornal “Tribuna do Povo” (Alagoas, 1916-1917); Jornal “O Sindicalista” (Rio Grande do Sul, 1921-1927); Jornal “A Hora Social” (Pernambuco, 1919-1920); Jornal “Il Diritto” (Paraná, 1897-1899); Jornal “A Nova Era” (Minas Gerais, 1906-1907); Jornal “Voz do Graphico” (Ceará, 1920-1922); Jornal “O Trabalho” (Pará, 1901-1907), etc.


Numa época em que saber ler era "privilégio" de poucos, resulta impactante a iniciativa dos Anarquistas, de aproveitarem a pausa para o almoço dos operários, não hesitando em lerem, em voz alta, para eles panfletos e jornais sobre a realidade que os cercava, contribuindo assim para exercitarem junto a eles sua consciência de classe.


Nessas ocasiões também costumavam ler poemas e trechos de autores de grandes figuras de referência, inclusive no plano internacional. Tais atividades se desenvolviam: “pari-passu”, outras tarefas mais especificamentes educativas, artísticas e culturais. 


Ao longo do período mencionado (final do século XIX e primeiras décadas do século XX), dezenas de unidades escolares (abrangendo a Escola Primária e Secundária e o curso chamado “avançado”), em vários Estados brasileiros: Universidade Popular de Ensino Livre (UPEL, 1904, Rio de Janeiro); Universidade   Popular de Cultura Racionalista  e  Científica (1915, São Paulo); Escola União Operária (1895, Porto Alegre); Escola Libertária Germinal (1903, São Paulo); Escola Sociedade Internacional (1904,,Santos); Escola Noturna (1907, Santos); Escola Eliseu Reclus (1906, Porto Alegre); Escola 1º de Maio (1903; Rio de Janeiro); Escola da Liga da Construção Civil (1920, Niterói); Escola Moderna (1909, São Paulo); Escola Germinal (1906, Fortaleza); Escola Noturna Liga Operária (1911, Sorocaba); Escola Moderna de Petrópolis (1913, Petrópolis).


Isto lhes custou constantes perseguições pelo Estado, que não admitia quaisquer iniciativas sindicais, culturais e educativas que não estivessem sob seu rígido controle. Para Ivonaldo Leite, embasado em outros estudos e pesquisas sobre o tema realizados por alguns autores de referência, a explicação do esquecimento do relevante legado anarquista, a Educação Popular, no Brasil, deve-se à Natureza do Campo Científico hegemônico na Academia Brasileira. 


Importa tomar em conta que toda aquela rede de iniciativa libertária a despeito de ser obra de uma massa de militância perseguida se mostrava de grande potencial transformador, contando inclusive com a fecunda participação de intelectuais libertários, homens e mulheres, dentre os quais José Oiticica e Maria Lacerda de Moura. Os valores principais destes preciosos autores da Educação Popular, se assentavam na aposta de uma Educação Popular laica, emancipadora, feminista, autogestionária e de caráter libertário.


No tocante à participação das mulheres, cumpre ressaltar, entre elas, a figura de Maria Lacerda de Moura, que desenvolveu estudos e escreveu sobre o tema, feminismo, distinguindo, a concepção então dominante de um feminismo que pouco ou nada tinha a ver com seu entendimento de feminismo. 


Ivonaldo Leite, a este respeito, compartilha em seu artigo, uma impactante citação de Maria Lacerda  de Moura, sobre o que esta entende por feminismo: 


A palavra "feminismo", de significação  elástica,  deturpada, corrompida, mal interpretada, já não diz nada das reivindicações feministas. Resvalou para o ridículo, numa  concepção vaga, adaptada incondicionalmente a tudo quanto se refere à mulher. Em qualquer gazela [sic], a cada  passo,  vemos  a expressão "vitórias do feminismo" – referente, às  vezes, a  uma  simples questão  de  modas!  Ocupar  uma posição  de  destaque  em  qualquer repartição pública, cortar os cabelos "à  la  garçonne",  viajar  só, mestudar em academias, publicar um livro de versos,  ser  "diseuse",  divorciar-se três ou quatro vezes [...], atravessar a  nado o Canal  da  Mancha,ser campeã de qualquer esporte – tudo isso consiste "nas  vitórias do feminismo", vitórias que nada significam perante  o  problema  da emancipação  integral  da  mulher (...) Não  posso  aceitar  nem  o feminismo de votos e muito menos o feminismo de caridades. E enquanto isso  a  mulher  se  esquece  de reivindicar o direito de ser dona de seu próprio corpo, o direito da posse de si mesma. [...] Estou com os que sonham  mais  alto,  uma  sociedade onde haja pão para todas as bocas, onde se aproveitem todas as energias humanas, onde se possa cantar um hino à alegria de viver na expansão de  todas  as  forças  interiores,  num sentido  mais  alto  –  para  uma limitação  cada  vez  mais  ampla  da sociedade  sobre  o  indivíduo.  (...) Dêem o nome que quiserem, pouco importa: o que esse feminismo [...] reivindica é o "Direito Humano", o Direito   Individual,   acima de qualquer  outro  direito,  além  dos direitos limitados ao parlamentarismo, além dos direitos de classe (MOURA, 1928, pp. 1 - 4 apud. LEITE, 2022, pp. 103 - 104)

 

Ao fim e ao cabo destas revelações feitas por Ivonaldo Leite e pelos autores em que se baseou, ficamos atômicos ao percebermos que, tanta riqueza pedagógica, na perspectiva da Educação Popular, acabou no ostracismo. O que teria levado estudiosos e pesquisadores da Educação Brasileira, a fazerem “Tabula Rasa” desta densa e vigorosa contribuição legada pelos Anarquistas? Em seu artigo, ele sustenta a hipótese - e o faz, a justo título - de que isto é obra do campo científico hegemônico, na Academia Brasileira. Hipótese que podemos estender ainda para a prevalência de um sentimento de que o sistema educativo é obra exclusiva do Estado, onde se faz presente uma certa aceitação do Estado como tutor da sociedade civil.


De nossa parte, cumpre-nos seguir cavoucando cada vez mais, no sentido de continuarmos a pesquisar sobre este tema desafiante, não apenas em escala brasileira, mas também no âmbito latinoamericano e do caribe. Trata-se de unir forças nesta direção, sem que isto venha a nos fazer ignorar a relevância da Educação Popular no Brasil, a partir da Escola Nova e da Educação Popular tal como apresentada, na Segunda Metade do Século XX.


*Este texto foi gravado em áudio pelo autor (em razão de sua deficiência visual), e transcrito-digitado por Gabriel Luar Calado Bandeira, e Eliana Alda de Freitas Calado, que também o revisou. Com meus agradecimentos.

João Pessoa, 23 de maio de 2022.


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