Mulheres do Medievo, para além dos Cânones: Notas sobre duas sessões acadêmicas das místicas medievais
Alder Júlio Ferreira Calado
As pesquisas já desenvolvidas e em curso sobre a Idade Média, em diferentes campos de conhecimento, inclusive sobre o lugar das Mulheres, tem sinalizado descobertas de grande alcance, de modo a irem consolidando a imensa riqueza do legado medieval, em especial no que diz respeito ao protagonismo de mulheres escritoras, sábias e místicas. Registro com alegria, o crescente interesse despertado por esta temática. Com efeito, chamam a atenção diversos grupos de pesquisas interdisciplinares, que se vêm realizando em várias partes do mundo, inclusive no Brasil. Destaco, com maior ênfase, aqueles grupos de pesquisas e de estudos, a exemplo do Grupo Christine de Pizan (https://grupochristinedepizan.com.br/) que se vê empenhado em reconhecer e trazer a lume o papel destacado das mulheres, na Idade Média, como sábias, como místicas, como escritoras, cujos nomes foram longamente silenciados ou ignorados, graças a toda uma onda androcêntrica, ainda a ser superada, a contento.
Nem sempre o ambiente acadêmico propicia feitos socialmente relevantes, especialmente em um contexto marcado pelos recentes retrocessos neofascistas. Eis por que impactam positivamente eventos tais como os que tive alegria de acompanhar ainda que virtualmente. Refiro-me a duas memoráveis sessões.
Nesta manhã de 24/02/2023, tive a oportunidade de acompanhar virtualmente a apresentação e avaliação da Tese intitulada "Traduzindo Narrativas Místicas de Autoria Feminina Medieval: Uma análise literária das obras de Juliana de Norwich e Margery Kempe", de autoria de Fernanda Cardoso Nunes, sob a orientação de Luciana Calado Deplagne, com a co-orientação de Isabel Maria da Cruz Lousada. Da Banca Examinadora participaram as professoras Cláudia Costa Brochado (UnB), Karine Simoni (UFSC), Maria Simone Marinho Nogueira (UEPB), Isabela Albuquerque Rosado do Nascimento (UPE).
O segundo momento acadêmico memorável teve lugar em Poitier neste 27/02, a Jornada de estudos internacional ECRIRE AVEC LE COEUR: Savoir, spiritualité et autorité des femmes mystique au Moyen Âge, organizado na Université de Poitiers.
Acerca do trabalho apresentado por Fernanda Cardoso, e das observações avaliativas das examinadoras da tese, restrinjo-me a destacar pontos que entendo mais relevantes. Começo por ressaltar as duas grandes figuras em torno das quais gira o núcleo do trabalho. Refiro-me às místicas medievais Juliana Norwich (1343– data posterior a 1416) e Margery Kempe (1373 – data posterior a 1438).
Juliana de Norwich, nascida na mesma cidade que lhe dá nome, na Inglaterra, em meados do século XIV, tornou-se conhecida sobretudo por sua obra "Revelações do Amor Divino", na qual, seja por aconselhamento de seu confessor, seja por iniciativa própria, houve por bem escrever e compartilhar suas visões/revelações de Deus.
São poucos seus dados biográficos relativos aos seus primeiros anos de vida. Sabe-se que provinha de família conhecida, cujo pai era o prefeito da cidade, razão por que não se deve subestimar o nível de sua instrução. Após seus trinta anos, Juliana dedicou-se mais intensamente a uma vida ascética,vivendo em profundo silêncio,em uma morada na mata perto de Norwich, vez por outra, recebia visitas, inclusive da parte de Margery Kempe, em busca de aconselhamento com Juliana.
Foi neste período que, possivelmente incentivada pelo seu confessor, passou a escrever suas visões/revelações, nas quais narra, em treze momentos, suas visões/revelações de Deus. Juliana cuida, então, de descrever sua profunda experiência de Deus, destacando sua tentativa de expressar sua compaixão pelos sofrimentos, pelas dores, pela Paixão de Jesus.
Aos olhos de quem não professa algum credo, tais narrativas podem parecer desimportantes, mas, considerando a suprema hierarquia eclesiástica da época, em que não se aceitava que as mulheres pudessem manter vínculo tão forte com Deus, iniciativas como a de Juliana (e outras místicas) se apresentam com forte teor de transgressão, sobretudo quando lhes foram por longo tempo negados seus nomes e sua autoria.
O segundo momento acadêmico, alvo destas linhas, refere-se ao acompanhamento virtual que fiz da “Jornada de estudos internacional ECRIRE AVEC LE COEUR: Savoir, spiritualité et autorité des femmes mystique au Moyen Âge”, organizado por pesquisadoras e pesquisadores da Université de Poitiers, em parceria com a coordenadora do Grupo Christine de Pizan, e a colaboração de pesquisadoras de outras universidades europeias e da UFPB (João Pessoa-PB, Brasil). Este evento foi iniciado pela conferência de abertura proferida por Blanca Garí da Universitat de Barcelona, sob o título “Identité féminine et Mystique au Moyen Âge” (Identidade feminina e Mística na Idade Média). A conferencista cuidou de justificar o interesse despertado por mulheres da Idade Média que ousaram compartilhar suas experiências místicas e narrando-as com autonomia e liberdade, em um contexto histórico de adversidades. Blanca Gari tratou igualmente de caracterizar a forma assumida pelos escritos daquelas mulheres.
A primeira sessão desta jornada de estudos teve por título Les voies sensorielles des femmes mystiques. A sessão foi composta por duas comunicações. A primeira, de autoria de Hélène TORCHEBOEUF, intitulou-se "A experiência mística de Mechthild de Magdeburg: uma encenação teatral de o inefável através dos sentidos". Nela, a autora traz à tona um dos traços característicos das Místicas medievais, fortemente presente em Mechthild de Magdeburg:a força dos sentidos, na relação com o Sagrado.Tratava-se de uma beguina, participante de um vigoroso movimento de mulheres da baixa Idade Média, conhecido pela sua autonomia ante as Ordens Religiosas do seu tempo, controladas pelos clérigos, para quem soava impensável uma relação direta de mulheres com Deus.
A linguagem teatral também constituiu uma expressão desta relação das Místicas com Deus, à medida que, em busca de traduzir o inefável, a linguagem teatral bem se presta à expressão dos sentidos, por meio do emprego de metáforas e alegorias.
Em seguida, foi apresentada a comunicação intitulada "A utopia sensorial nos escritos místicos de Marguerite d'Oingt",de autoria de Luciana Deplagne, na qual se propõe enfatizar a dimensão utópica presente nos escritos de Marguerite d'Oingt, e o faz, distribuindo sua exposição em três eixos, partindo da análise de escritos de Marguerite ďOingt, feita na perspectiva do conceito de "utopia", trabalhado por Jean-Pierre Albert, a partir do qual recorre ao filósofo Ernst Bloch, no qual se inspira para entender a utopia polissensorial da Mística Marguerite d'Oingt, indutora e seguidora de uma experiência do Divino como algo concreto, experimentado desde já.
Coube a Katherine Ziemann dar sequência aos trabalhos, com sua comunicação intitulada “Distraída por Deus/Esperando Deus”, na qual, sublinha outra particularidade das místicas medievais: o modo como se relacionam com Deus, combinando uma postura de atenção contemplativa de deus com uma atitude espontânea, “distraída”, de completa entrega ao que lhes têm a dizer a Divindade. Katherine Ziemann destaca especialmente o caminho místico trilhado por Bridget de Suède, atendo-se ainda ao modo contemplativo vivido por Julien de Norwich.
Não podendo dispor de todo o tempo destinado às comunicações, por circunstâncias imprevistas, (pelo fecundo tempo do diálogo exercitado pelas expositoras animado por Ria Lemaire, bem como em respeito ao horário combinado com os responsáveis pela apresentação das músicas de encerramento), Ria Lemaire resumiu o conteúdo de sua comunicação intitulada “Historicizando os caminhos das mulheres místicas”. Nela, a autora, fundamentada em recentes pesquisas feitas por Alison Beach, Cynthia Cyrus e Lifschitz propõe uma nova elaboração historiográfica, capaz de desvendar/desvelar meandros de ocultação, de distorção, de reducionismo em que relevantes elementos da identidade feminina ou das mulheres medievais ainda seguem imersos. Aponta, no mesmo trabalho, a parcela de responsabilidade de autores modernos, preconceituosos em relação à cultura medieval, especialmente no que toca a autenticidade dos escritos femininos.
O evento termina com a apresentação do grupo musical Flos de Spina, composto por vozes de 5 mulheres que cantam composições da mística Hildegarde de Bingen. Tendo o evento encerrado com as palavras finais de Martin Aurell, professor da Université de Poitiers e um dos organizadores da Jornada.
Ao celebrarmos o 08 de Março, convém seguir recuperando o protagonismo das Mulheres de ontem e de hoje, o que se dá também no Brasil, haja vista a Programação, não apenas do dia 08/03, nem só do mês de Março, mas estendendo-se por todo o ano, inclusive com as marchas e manifestações das Mulheres Indígenas, Quilombolas e Camponesas, como no caso da Marcha das Margaridas.
João Pessoa, 07 de fevereiro de 2023.
Nenhum comentário:
Postar um comentário