Intérpretes do Brasil (VII): Maria Lacerda de Moura, feminista libertária
Alder Júlio Ferreira Calado
Seguimos exercitando nossa memória histórica, recorrendo a figuras emblemáticas de mulheres e homens cujo denso legado de intérpretes nos anima e nos instiga a uma compreensão crítica de nossa realidade social, na perspectiva de sua transformação. Desta vez, trazemos à tona elementos da contribuição de Maria Lacerda de Moura, sempre com o propósito de incentivar nossas organizações de base a cumprirem melhor sua tarefa histórica de protagonistas de profundas mudanças de nossa realidade. Para tanto, diferentemente da prática usual, que segue a cronologia, temos preferido iniciar pelas gerações mais novas de grandes intérpretes, inspirados que somos pela conhecida percepção marxiana, segundo a qual a anatomia do homem ajuda a melhor entender a anatomia do macaco.
Maria Lacerda de Moura é mineira, nascida em Manhuaçu em 1887, filha de Modesto de Araújo Lacerda e de Amélia de Araújo Lacerda, família cujo o pai professava o Espiritismo, sendo também simpático a correntes teosóficas Maria Lacerda casou-se muito cedo - aos 17 anos! - com Carlos Ferreira de Moura (de quem recebeu o sobrenome “de Moura”) em um contexto de intenso sentimento anticlerical, ao mesmo tempo em que se respirava um clima de fortes ventos libertários, a insuflar parcelas minoritárias da população desta época. Eis o ambiente em que Maria Lacerda de Moura foi educada, primeiro, em Manhuaçu, em seguida passando a estudar na Escola Normal de Barbacena, região central de Minas Gerais. Muito cedo, apaixonou-se pelos estudos, dando crescente vazão à sua sede de saber, ao tempo em que, também se empenha em compartilhar seus achados, na imprensa local, hábito ulteriormente estendido a jornais de Minas, do Rio de Janeiro e de São Paulo, chegando mesmo a publicar artigos seus em revistas de outros países, a exemplo da Argentina.
Ainda em Barbacena Maria Lacerda de Moura começou a exercer a profissão de Professora do Ensino Fundamental, ao qual se dedicava com todo o seu entusiasmo, tendo contribuído na luta pela alfabetização, em campanhas então promovidas. Ela, desde então, passou a investir cada vez mais no processo educativo como a principal ferramenta do processo de humanização. Do seu casamento não nasceram filhos, razão por que resolveu adotar duas crianças: Jair, um sobrinho; e Carminda uma órfã carente. Mais tarde, em razão do engajamento de Jair em uma militância fascistas, Maria Lacerda rompe com o filho. Tendo-se separado do marido mantêm com ele uma relação respeitosa.
Ainda, em Barbacena, além de ministrar aulas na Educação Básica, passa a escrever artigos nos jornais locais e da região, atividade que a acompanharia ao longo de sua vida. Ao mesmo tempo, começava a manter crescente correspondência com diferentes intelectuais anarquistas, no Rio de Janeiro, em São Paulo, na América Latina (Argentina, Uruguai) e na Europa (especialmente, na Espanha). Dada a intensificação de seu interesse pelas ideias anarquistas, decide mudar para São Paulo em 1921, aprofundando suas relações com figuras anarquistas do Brasil e fora do Brasil, bem como com organizações e associações operárias de feição anarquista, mantendo correspondência com João Oiticica, Galeão Coutinho, o que lhe permitiu dialogar com as ideias de figuras tais como: Maria Montessori, Paul Robin, Sebastian Faure e Francisco Ferrer y Garcia.
Embora haja muito cedo exercitado a escrita de artigos e livros - “Em torno da Educação” (1918), “Renovação” (1919) -, é sobretudo entre as décadas de 1920 e meados de 1930 (período de 15 anos), que Maria Lacerda concentra sua maior produção bibliográfica. Com efeito, durante este período, ela escreveu, além de em jornais tais como: “A Plebe”, “O Combate”, “O Ceará”, bem como revistas como “Renascença” e outras (inclusive da Argentina), também é autora de uma considerável lista de livros:
“A Mulher brasileira e o problema trabalhista” (1920);
“O problema da Educação” (1921);
“A Fraternidade e a escola” (1922);
“A Mulher e a Maçonaria” (1922);
““A Mulher moderna e seu papel na sociedade atual e na formação da formação da civilização futura” (1923);
“A Mulher é uma degenerada?” (1924);
“Lições de Pedagogia” (1926);
“Religião do amor e da beleza” (1926);
““Feminismo? e caridade?” Em: O Combate (1928);
“Civilização: troncos e escravos” (1931);
“Clero e Estado”(1931);
“Amai e não vos multipliqueis” (1932);
“Serviço militar para mulher? me recuso!” (1933)
“Clero Romano e a educação laica” (1934);
“Clero e fascismo: Horda de embrutecedores” (1934);
“Filho dileto da Igreja e do Capital” (1935);
Digna de especial atenção ainda é sua fecunda experiência de vivência coletiva, de jaez anarquista, em uma comunidade rural, em Guararema - São Paulo, que abrigou diferentes personagens anarquistas brasileiros e europeus (franceses, italianos, espanhois). Aí teve a oportunidade de dialogar e de compartilhar um rico aprendizado, na perspectiva anarquista, compreendida em suas diferentes vertentes: anarco-comunista, anarco-sindicalista, o chamado “anarquismo individualista”. Fruto dessa convivência em Guararema, Maria Lacerda vai refletir em alguns de seus livros, estas posições, não hesitando em enfrentar duras oposições ao seu modo de sentir, de pensar e de agir. Maria Lacerda veio a falecer no Rio de Janeiro em 1945 aos 57 anos.
Quais as principais ideias anarquistas sustentadas por Maria Lacerda, em seus textos?
Já em seu livro em torno da “Em torno da Educação” (1918), Maria Lacerda suscita divergências e até escandaliza parte expressiva de seus leitores e leitoras ao questionar o tipo de Educação dominante, em sua época. Crítica, em especial, os valores dominantes em seu tempo:
Ausência ou o lugar desprezível reservado às crianças e às mulheres, sempre propugnando por uma igualdade de direitos;
Atribuindo à mentalidade clericalista a imposição de dogmas religiosos, contestava tal atitude, estendendo sua crítica também à concepção de família, então dominante, julgando ser abusivo o controle absoluto da família pelo homem;
Denunciava ainda o casamento na forma imposta pelo clero, obrigando as mulheres a se submeterem aos caprichos do marido denunciando o costume de se exigir apenas das mulheres o dever de fidelidade, enquanto o marido tudo podia;
Sustentava que a vida conjugal, no tocante à mulher, não devia restringir-se à procriação, mas também deveria está orientada ao prazer;
Expressava profunda inquietação com a tendência de se cultivar o dever das mulheres, de terem numerosa prole (preocupação bem presente por exemplo em seu livro “Amai e não os vois o multipliquei”);
Sustentava que as relações conjugais não se dessem em razão dos caprichos do clericalismo, mas por livre escolha dos cônjuges.
Vasto é o leque de suas críticas e proposições, inspiradas na perspectiva anarquista. Neste sentido, vale a pena, não apenas beber na fonte do seu legado, como também recolher preciosos comentários e análises sobre Maria Lacerda, feitas – especialmente nas últimas décadas –, por pesquisadores e pesquisadoras, entre os quais Miriam Moreira Leite, em seu livro “Outra face do feminismo – Maria Lacerda de Moura” (São Paulo: Editora Ática, 1984), e mais recentemente, além de Margareth Rago, Patrícia Lessa que escreveu o livro “Amor & Libertação em Maria Lacerda de Moura”, publicado em 2020 pela editora Entremares. Neste último livro, a pesquisadora Patrícia Lessa se reporta a uma dimensão curiosa do Anarquismo praticado por Maria Lacerda e os integrantes da comunidade anarquista de Guararema: a paixão pela natureza, pelo naturalismo, pelo profundo respeito aos animais (“pessoas não-humanas”), em razão do que condenavam a prática conhecida como “vivisseccionista”, além de praticarem o vegetarianismo. Outro aspecto ainda vivenciado pela comunidade anarquista de Guararema prende-se à defesa do pacifismo, razão pela qual diversos integrantes daquela comunidade (franceses, italianos, espanhois), objetores de consciência, tinham-se recusado a participar da Primeira Guerra Mundial.
Vale observar como, após um período de relativo esquecimento ou invisibilização da obra e do legado de Maria Lacerda, a retomada do interesse sobre esta figura, por parte de pesquisadores e pesquisadoras, desde 1984, por meio de teses, de dissertações livros e artigos além de reedições de seus principais livros, inclusive o conhecido “A Mulher é uma Degenerada”, inicialmente publicado em 1924, e reeditado 1932 e, mais recentemente em 2018 pela Editora Tenda de Livros; Neste livro Maria Lacerda empenha-se em refutar os argumentos pseudo-científicos apresentados pelo Médico Portugues Miguel Augusto Bombarda, que defendia a suposta inferioridade das mulheres em relação aos homens por motivos ligados à sua natureza biológica. O livro está disponível em audiobook: https://youtu.be/3zr2RI-OBqQ?si=mFg-JXEvStZoznPp
Importa igualmente, acessar relevantes páginas da “internet”, em especial os “sites” onde se acham um rico acervo de seus escritos, além de diversas “lives” sobres esta grande autora produzidas por vários especialistas e grupos de pesquisas, quer no âmbito acadêmico ou fora dele. É assim que conseguimos recolher tantas preciosidades da lavra de Maria Lacerda, bem como da rica experiência de propostas e de lutas dos Anarquistas, inclusive no âmbito da Educação Popular. Com efeito, desde as últimas décadas do século XIX e nas primeiras décadas do século XX, as pesquisas revelam a enorme contribuição oferecida pelos movimentos e grupos anarquistas no campo da Educação Popular.
Neste legado, Maria Lacerda inscreve sua reconhecida marca de intelectual, ora criando ou fortalecendo associações anarquistas, ora contribuindo com as lutas feministas, ora participando, ao lado das feministas e operárias, na luta de classes contra o capitalismo, sobretudo manifesto em sua vertente fascista. Entre essas lutas também se destaca sua participação em defesa do voto feminino, ao lado de Bertha Lutz e outras protagonistas das lutas “sufragistas”, nos anos 30. Cumpri aqui evocar sua crítica às feministas de então, por entender que não lhes bastava lutar pelo direito ao voto - direito que, em uma população na qual as mulheres em que somente as mulheres alfabetizadas, que constituíam apenas 3,4% da população feminina, podiam votar -, mas cumpria priorizar as lutas da enorme das mulheres. Encampando as lutas operárias contra o Capitalismo.
Quais ensinamentos extrair do legado de Maria Lacerda de Moura?
Neste momento de nossa sombrinha quadra histórica no Brasil e no mundo (o tenebroso genocidio sionista cometido contra os palestinos, o ascenso de práticas nazifascistas a mais recente intentona de golpe de Estado no Brasil, a tentativa da ultra Direita, de proibir a interrupção da gravidez mesmo em crianças estupradas, entre outros despautérios), a revisitação da obra de intelectuais da estatura de Maria Lacerda de Moura nos parece de grande atualidade, por instigar nossas organizações de base a cumprirem sua tarefa histórica, de resistência e de enfrentamento exitoso dos enormes desafios da atualidade, começando por superarem nossa ameaçadora letargia.
João Pessoa, 29 de Novembro de 2024