sexta-feira, 29 de novembro de 2024

Intérpretes do Brasil (VII): Maria Lacerda de Moura, feminista libertária

 Intérpretes do Brasil (VII): Maria Lacerda de Moura, feminista libertária


Alder Júlio Ferreira Calado



Seguimos exercitando nossa memória histórica, recorrendo a figuras emblemáticas de mulheres e homens cujo denso legado de intérpretes nos anima e nos instiga a uma compreensão crítica de nossa realidade social, na perspectiva de sua transformação. Desta vez, trazemos à tona elementos da contribuição de Maria Lacerda de Moura, sempre com o propósito de incentivar nossas organizações de base a cumprirem melhor sua tarefa histórica de protagonistas de profundas mudanças de nossa realidade. Para tanto, diferentemente da prática usual, que segue a cronologia, temos preferido iniciar pelas gerações mais novas de grandes intérpretes, inspirados que somos pela conhecida percepção marxiana, segundo a qual a anatomia do homem ajuda a melhor entender a anatomia do macaco.


Maria Lacerda de Moura é mineira, nascida em Manhuaçu em 1887, filha de Modesto de Araújo Lacerda e de Amélia de Araújo Lacerda, família cujo o pai professava o Espiritismo, sendo também simpático a correntes teosóficas Maria Lacerda casou-se muito cedo - aos 17 anos! - com Carlos Ferreira de Moura (de quem recebeu o sobrenome “de Moura”) em um contexto de intenso sentimento anticlerical, ao mesmo tempo em que se respirava um clima de fortes ventos libertários, a insuflar parcelas minoritárias da população desta época. Eis o ambiente em que Maria Lacerda de Moura foi educada, primeiro, em Manhuaçu, em seguida passando a estudar na Escola Normal de Barbacena, região central de Minas Gerais. Muito cedo, apaixonou-se pelos estudos, dando crescente vazão à sua sede de saber, ao tempo em que, também se empenha em compartilhar seus achados, na imprensa local, hábito ulteriormente estendido a jornais de Minas, do Rio de Janeiro e de São Paulo, chegando mesmo a publicar artigos seus em revistas de outros países, a exemplo da Argentina.


Ainda em Barbacena Maria Lacerda de Moura começou a exercer a profissão de Professora do Ensino Fundamental, ao qual se dedicava com todo o seu entusiasmo, tendo contribuído na luta pela alfabetização, em campanhas então promovidas. Ela, desde então, passou a investir cada vez mais no processo educativo como a principal ferramenta do processo de humanização. Do seu casamento não nasceram filhos, razão por que resolveu adotar duas crianças: Jair, um sobrinho; e Carminda uma órfã carente. Mais tarde, em razão do engajamento de Jair em uma militância fascistas, Maria Lacerda rompe com o filho. Tendo-se separado do marido mantêm com ele uma relação respeitosa.


Ainda, em Barbacena, além de ministrar aulas na Educação Básica, passa a escrever artigos nos jornais locais e da região, atividade que a acompanharia ao longo de sua vida. Ao mesmo tempo, começava a manter crescente correspondência com diferentes intelectuais anarquistas, no Rio de Janeiro, em São Paulo, na América Latina (Argentina, Uruguai) e na Europa  (especialmente, na Espanha). Dada a intensificação de seu interesse pelas ideias anarquistas, decide mudar para São Paulo em 1921, aprofundando suas relações com figuras anarquistas do Brasil e fora do Brasil, bem como com organizações e associações operárias de feição anarquista, mantendo correspondência com João Oiticica, Galeão Coutinho, o que lhe permitiu dialogar com as ideias de figuras tais como: Maria Montessori, Paul Robin, Sebastian Faure e Francisco Ferrer y Garcia.


Embora haja muito cedo exercitado a escrita de artigos e livros - “Em torno da Educação” (1918), “Renovação” (1919) -, é sobretudo entre as décadas de 1920 e meados de 1930 (período de 15 anos), que Maria Lacerda concentra sua maior produção bibliográfica. Com efeito, durante este período, ela escreveu, além de em jornais tais como: “A Plebe”, “O Combate”, “O Ceará”, bem como revistas como “Renascença” e outras (inclusive da Argentina), também é autora de uma considerável lista de livros:


  •  “A Mulher brasileira e o problema trabalhista” (1920);

  • “O problema da Educação” (1921);

  • “A Fraternidade e a escola” (1922);

  • “A Mulher e a Maçonaria” (1922);

  • ““A Mulher moderna e seu papel na sociedade atual e na formação da formação da civilização futura” (1923);

  • “A Mulher é uma degenerada?” (1924);

  • “Lições de Pedagogia” (1926);

  • “Religião do amor e da beleza” (1926);

  • ““Feminismo? e caridade?” Em: O Combate (1928);

  • “Civilização: troncos e escravos” (1931);

  • “Clero e Estado”(1931);

  • “Amai e não vos multipliqueis” (1932);

  • “Serviço militar para mulher? me recuso!” (1933)

  • “Clero Romano e a educação laica” (1934);

  • “Clero e fascismo: Horda de embrutecedores” (1934);

  • “Filho dileto da Igreja e do Capital” (1935);


Digna de especial atenção ainda é sua fecunda experiência de vivência coletiva, de jaez anarquista, em uma comunidade rural, em Guararema - São Paulo, que abrigou diferentes personagens anarquistas brasileiros e europeus (franceses, italianos, espanhois). Aí teve a oportunidade de dialogar e de compartilhar um rico aprendizado, na perspectiva anarquista, compreendida em suas diferentes vertentes: anarco-comunista, anarco-sindicalista, o chamado “anarquismo individualista”. Fruto dessa convivência em Guararema, Maria Lacerda vai refletir em alguns de seus livros, estas posições, não hesitando em enfrentar duras oposições ao seu modo de sentir, de pensar e de agir. Maria Lacerda veio a falecer no Rio de Janeiro em 1945 aos 57 anos.


Quais as principais ideias anarquistas sustentadas por Maria Lacerda, em seus textos?


Já em seu livro em torno da “Em torno da Educação” (1918), Maria Lacerda suscita divergências e até escandaliza parte expressiva de seus leitores e leitoras ao questionar o tipo de Educação dominante, em sua época. Crítica, em especial, os valores dominantes em seu tempo:


  • Ausência ou o lugar desprezível reservado às crianças e às mulheres, sempre propugnando por uma igualdade de direitos;

  • Atribuindo à mentalidade clericalista a imposição de dogmas religiosos, contestava tal atitude, estendendo sua crítica também à concepção de família, então dominante, julgando ser abusivo o controle absoluto da família pelo homem;

  • Denunciava ainda o casamento na forma imposta pelo clero, obrigando as mulheres a se submeterem aos caprichos do marido denunciando o costume de se exigir apenas das mulheres o dever de fidelidade, enquanto o marido tudo podia;

  • Sustentava que a vida conjugal, no tocante à mulher, não devia restringir-se à procriação, mas também deveria está orientada ao prazer;

  • Expressava profunda inquietação com a tendência de se cultivar o dever das mulheres, de terem numerosa prole (preocupação bem presente por exemplo em seu livro “Amai e não os vois o multipliquei”);    

  • Sustentava que as relações conjugais não se dessem em razão dos caprichos do clericalismo, mas por livre escolha dos cônjuges.


Vasto é o leque de suas críticas e proposições, inspiradas na perspectiva anarquista. Neste sentido, vale a pena, não apenas beber na fonte do seu legado, como também recolher preciosos comentários e análises sobre Maria Lacerda, feitas – especialmente nas últimas décadas –, por pesquisadores e pesquisadoras, entre os quais Miriam Moreira Leite, em seu livro “Outra face do feminismo – Maria Lacerda de Moura” (São Paulo: Editora Ática, 1984), e mais recentemente, além de Margareth Rago, Patrícia Lessa que escreveu o livro “Amor & Libertação em Maria Lacerda de Moura”, publicado em 2020 pela editora Entremares. Neste último livro, a pesquisadora Patrícia Lessa se reporta a uma dimensão curiosa do Anarquismo praticado por Maria Lacerda e os integrantes da comunidade anarquista de Guararema: a paixão pela natureza, pelo naturalismo, pelo profundo respeito aos animais (“pessoas não-humanas”), em razão do que condenavam a prática conhecida como “vivisseccionista”, além de praticarem o vegetarianismo. Outro aspecto ainda vivenciado pela comunidade anarquista de Guararema prende-se à defesa do pacifismo, razão pela qual diversos integrantes daquela comunidade (franceses, italianos, espanhois), objetores de consciência,  tinham-se recusado a participar da Primeira Guerra Mundial.

Vale observar como, após um período de relativo esquecimento ou invisibilização da obra e do legado de Maria Lacerda, a retomada do interesse sobre esta figura, por parte de pesquisadores e pesquisadoras, desde 1984, por meio de teses, de dissertações livros e artigos além de reedições de seus principais livros, inclusive o conhecido “A Mulher é uma Degenerada”, inicialmente publicado em 1924, e reeditado 1932 e, mais recentemente em 2018 pela Editora  Tenda de Livros; Neste livro Maria Lacerda empenha-se em refutar os argumentos pseudo-científicos apresentados pelo Médico Portugues Miguel Augusto Bombarda, que defendia a suposta inferioridade das mulheres em relação aos homens por motivos ligados à sua natureza biológica. O livro está disponível em audiobook:  https://youtu.be/3zr2RI-OBqQ?si=mFg-JXEvStZoznPp


Importa igualmente, acessar relevantes páginas da “internet”, em especial os “sites” onde se acham um rico acervo de seus escritos, além de diversas “lives” sobres esta grande autora produzidas por vários especialistas e grupos de pesquisas, quer no âmbito acadêmico ou fora dele. É assim que conseguimos recolher tantas preciosidades da lavra de Maria Lacerda, bem como da rica experiência de propostas e de lutas dos Anarquistas, inclusive no âmbito da Educação Popular. Com efeito, desde as últimas décadas do século XIX e nas primeiras décadas do século XX, as pesquisas revelam a enorme contribuição oferecida pelos movimentos e grupos anarquistas no campo da Educação Popular. 

Neste legado, Maria Lacerda inscreve sua reconhecida marca de intelectual, ora criando ou fortalecendo associações anarquistas, ora contribuindo com as lutas feministas, ora participando, ao lado das feministas e operárias, na luta de classes contra o capitalismo, sobretudo manifesto em sua vertente fascista. Entre essas lutas também se destaca sua participação em defesa do voto feminino, ao lado de Bertha Lutz e outras protagonistas das lutas  “sufragistas”, nos anos 30. Cumpri aqui evocar sua crítica às feministas de então, por entender que não lhes bastava lutar pelo direito ao voto - direito que, em uma população na qual as mulheres em que somente as mulheres alfabetizadas, que constituíam apenas 3,4% da população feminina, podiam votar -, mas cumpria priorizar as lutas da enorme das mulheres. Encampando as lutas operárias contra o Capitalismo. 

Quais  ensinamentos extrair do legado de Maria Lacerda de Moura? 

Neste momento de nossa sombrinha quadra histórica no Brasil e no mundo (o tenebroso genocidio sionista cometido contra os palestinos, o ascenso de práticas nazifascistas a mais recente intentona de golpe de Estado no Brasil, a tentativa da ultra Direita, de proibir a interrupção da gravidez mesmo em crianças estupradas, entre outros despautérios), a revisitação da obra de intelectuais da estatura de Maria Lacerda de Moura nos parece de grande atualidade, por instigar nossas organizações de base a cumprirem sua tarefa histórica, de resistência e de enfrentamento exitoso dos enormes desafios da atualidade, começando por superarem nossa ameaçadora letargia. 


João Pessoa, 29 de Novembro de 2024



sábado, 23 de novembro de 2024

Intérpretes do Brasil (VI): Manoel Bonfim, um pensador heterodoxo de nossa história

Intérpretes do Brasil (VI): Manoel Bonfim, um pensador heterodoxo de nossa história


Alder Júlio Ferreira Calado


Em continuidade do exercício de revisitação de figuras brasileiras - homens e mulheres - que consideramos intérpretes de referência de nossa realidade histórico-social, cuidamos, nas linhas que seguem, de trazer alguns elementos biobliográficos de sua trajetória, bem como destacar traços específicos de sua contribuição, desta feita, focando a figura de Manuel Bonfim. Ao fazê-lo, não nos cansamos de insistir no propósito maior destas linhas: estimular o compromisso revolucionário de nossas organizações de base - Movimentos Populares do Campo e da Cidade, coletivos feministas, movimentos de mulheres e de comunidades quilombolas, dos povos das águas e das florestas, dos ribeirinhos e outros coletivos empenhados em melhor compreenderem criticamente nossa sociedade, na perspectiva de sua transformação.      


Manuel Bonfim, sergipano de Aracaju, nasceu em 1868 cuja mãe (Maria Joaquina Bonfim, era herdeira de grande propriedade fundiária), e de Paulino José Bonfim, um vaqueiro cujo sobrenome se devia ao lugarejo do sertão sergipano chamado “Bonfim do Carira”. A família dos avós de Manoel Bonfim era, portanto, dona de engenho de cana de açúcar. Por conta da riqueza herdada pela mãe, Manuel Bonfim reuniu condições privilegiadas para a sua formação. Terminado o Ensino Médio, cursou medicina, entre Salvador-BA e Rio de Janeiro - RJ. Após exercer a medicina durante certo período, tendo trabalhado como médico em corporações militares do Rio de Janeiro, em consequência da morte prematura de sua filha, optou pelo Magistério, dedicando-se a lecionar e a gerir prestigiosas instituições educacionais do Distrito Federal, inclusive da Escola Normal, tendo ainda sido o Coordenador da Instrução Pública, por duas gestões. 


Mais do que ensinar e ser Gestor, Manoel Bonfim empenha-se em pesquisar, a partir de sua experiência docente no “Pedagogium”, instituição que abrigou trabalhos de pesquisas por ele coordenados. Em busca de aprimorar seu novo ofício, Manoel Bonfim vai estudar em Paris, na famosa Universidade de Sorbonne, entre 1902 e 1903, tendo aí a oportunidade de aprofundar seus conhecimentos, para além da mera experiência, não apenas em Pedagogia, como também em Psicologia. De volta ao Brasil, tratará de dar seguimento às suas pesquisas, bem como aos seus escritos.


Manoel Bonfim forma parte de um escasso grupo de intelectuais que ousam navegar a contracorrente do pensamento hegemônico de seu tempo. Apoiado em uma formação interdisciplinar, e para além das fronteiras do Brasil combinando achados de diferentes campos de saberes e fazeres - Biologia, História, Filosofia Social, Sociologia, Pedagogia, Psicologia, Literatura, Jornalismo e outros -, Manoel Bonfim ousa desafiar escritores e pensadores de referência, em sua época, a exemplo de Sílvio Romero e outros do seu tempo. Trata-se de uma época em que predominavam preconceitos de raça, revestidos inclusive de indumentária supostamente científica, como o da teoria da supremacia racial, além do determinismo geográfico (refletido, por exemplo, em “Os Sertões” de Euclides da Cunha) cultuando-se a tese do branqueamento. Preconceitos correntes na Europa e no Brasil, contra os quais se levantou Manoel Bonfim.      


De 1905, com efeito, data a publicação de sua obra-prima, “A América Latina. Males de origem”, trabalho de fôlego, de Jaez histórico-sociológico, cujos conteúdos se acham distribuídos em cinco capítulos. Ao longo dessas páginas, ele cuida de refutar, com base científica, teses falaciosas de caráter racista e determinista, valendo-se de argumentos demonstrando, de ilustrações históricas, o caráter errático em que se apoiava a ideologia do branqueamento bem como desfazendo as teses do suposto determinismo geográfico.


Ainda no mesmo livro, Manoel Bonfim empenha-se em alertar os povos latino-americanos contra as ameaças da doutrina Monroe, por meio da qual os Estados Unidos, sob o pretexto de proteger os povos e os territórios da América Latina, buscavam dominá-los. Outro conceito aí desenvolvido - que ele constroi, inspirando-se na analogia com a Biologia - é o de “Parasita”, para explicar o subdesenvolvimento dos países Latino-Americanos, vítimas seculares do sistema de dominação e exploração imposto pelas nações centrais do Capitalismo que, comportando-se como “parasitas”, construíam suas riquezas a partir da pilhagem das riquezas dos povos latino-americanos.


Manoel Bonfim, não se limitando a apontar apenas os “males”, cuidou igualmente de acenar para os “remédios”: assegurar ao povo brasileiro e aos povos latino-americanos o ensino público e laico, especialmente o Ensino Fundamental. Tal foi o seu compromisso com a Educação, que Manoel Bonfim também chegou a compor o quadro docente da “Universidade Popular Aberta”, uma iniciativa, ainda que passageira, foi protagonizada pelos anarquistas, no final do século XIX. Bonfim dedicou o melhor de si a apostar na Educação como indispensável caminho de libertação pessoal e social, fazendo assim coro com outras vozes libertárias do seu tempo, a exemplo de José Martí (1853 – 1895), e de José Carlos Mariátegui (1894-1930) para os quais, o conhecimento também liberta. Nesta mesma linha de pensamento e de compromisso, Manoel Bonfim agirá também no plano político, ao exercer o mandato de Deputado Federal, sempre engajado nas melhores causas da Educação Popular, que reconhecia como a principal fonte do processo de humanização e de emancipação libertária.


Nesta mesma toada Manoel Bonfim também vai escrever vários textos, enaltecendo o papel da Educação Pública. Em seu ofício de Educador, escreveu o livro “Lições de Pedagogia” e “Lições de Psicologia".  


Impõe-se ainda, assinalar a qualidade de polígrafo de Manoel Bonfim. No campo da História, por exemplo, convém ressaltar a famosa trilogia de sua lavra: “Brasil na América” (1929), “O Brasil na História” (1930) e “Brasil Nação” (1932). Nesta trilogia Manoel Bonfim empenha-se, primeiro, acentuar a necessidade de se conhecer o Brasil organicamente vinculado a América latina, e não de modo isolado, como se fosse um produto exclusivo da colonização portuguesa, sem vínculo com a colonização ibérica, razão pela qual propugnava por uma libertação conjunta da “Pátria Grande”. Neste sentido, associa-se, direta ou indiretamente, as figuras dos grandes libertadores da América Latina na perspectiva bolivariana.


Enquanto isso, em seu “O Brasil na História”, Bonfim, ao refutar com sólidos argumentos as versões ideologizante da história de nossa gente, cuida de sublinhar o protagonismo dos Indígenas sobretudo nos séculos XVI e XVII, ao destacar sua contribuição à formação de nossa nacionalidade, inclusive no campo da cultura (língua, costumes, valores, crenças, culinárias, pintura, dança, etc.). Ao rejeitar as teses racistas, reconhece as positividades da mestiçagem, em desfavor da tese do branqueamento.


Em seu “O Brasil Nação”, o autor revisita relevantes páginas de nossa história, em busca de uma compreensão crítica da formação de nossa nacionalidade, destacando especialmente a natureza e as estratégias das elites contra a enorme maioria de nossa gente, composta por indígenas e africanos escravizados, gente do campo, dominada e explorada pelas elites européias e grupos dominantes locais.


Manoel Bonfim é também co-autor, juntamente com Olavo Bilac, do romance intitulado “Através do Brasil” (tendo contato com mais 60 edições), tematizando as aventuras e viagens pelas regiões do Brasil, partindo do Norte, de personagens populares, a descobrirem paisagens geográficas e culturais de nossa terra e de nossa gente. Em se tratando de um autor polígrafo, Manoel Bonfim também se notabilizou no campo da literatura infantil, tendo mantido, por vários anos, a edição da Revista infantil O Tico-Tico, que circulou durante décadas, rivalizando com outras do gênero. No campo da Filosofia, também é de Manoel Bonfim a autoria do livro Pensar e Dizer: estudo do símbolo no pensamento e na linguagem (1923). Já ao final de sua trajetória existencial, Manoel Bonfim escreveu seu último texto, “Cultura e Educação do povo brasileiro” (1932), que parece ter restado inconcluso, sendo difícil encontrá-lo. 

      

O que mais destacar do legado de Manoel Bonfim?


Tal como outras grandes figuras de intérpretes de nossa realidade, Manoel Bonfim apresenta um elenco de predicados e de produções a merecerem nosso reconhecimento e nossa homenagem, principalmente por se tratar de um autor cujo denso legado segue sendo ainda pouco conhecido e reconhecido. Ao visitá-lo, são múltiplos os aprendizados que dele recolhemos. Em primeiro lugar, digna de reconhecimento é sua paixão pelo povo brasileiro, pelos “de baixo”. Toda a sua vida, de pesquisador, foi dedicada a conhecer nossa história, indo a suas mais fundas raízes. Não escolheu caminhos fáceis, de reverência servil ao pensamento dominante de sua época, nem se deixou atrair pelas costumeiras lisonjas acadêmicas, tendo inclusive recusado participar da Academia Brasileira de Letras, e mesmo do Instituto Histórico-Geográfico do Brasil, cargos que o teriam projetado exponencialmente. Teve a coragem de enfrentar as correntes dominantes de seu tempo, em especial as teses hegemônicas pretensamente científicas acerca do determinismo racial e geográfico.


Nele, observamos o respeito à verdade dos fatos históricos, bem como os caminhos percorridos nesta direção. A via da interseccionalidade se faz presente em seu itinerário investigativo, ao combinar diversos saberes, em função de preciosos achados. Mesmo desconhecendo a extensão de suas leituras sobre fontes marxistas, percebemos algum tipo de influência, inclusive no que diz respeito à metodologia, à medida que apresenta sensibilidade dialética, em que certas dimensões tais como a da Totalidade, a do Movimento, a da Interação Universal, entre outras, se fazem presentes.


No momento em que atravessamos uma quadra histórica sombria, pelo avanço da ultra-Direita, em escala mundial, ameaçando cada vez mais a vida no Planeta, semeando o terrorismo de Estado e a cultura golpista, multiplicando os indices de desigualdades sociais e outros males, temos muito a aprender de figuras como a de Manoel Bonfim. De seu denso legado recolhemos inspirações múltiplas, capazes de reacender nossas esperanças, por meio das lutas, em um novo mundo possível, necessário e urgente.


João Pessoa, 23 de novembro de 2024.


sexta-feira, 15 de novembro de 2024

Intérpretes do Brasil (V): a força dialética do pensamento de Álvaro Vieira Pinto

 Hoje, 11 de Novembro quando começamos a rascunhar este texto sobre Álvaro Borges Vieira Pinto, estaria completando 115 anos. Tocados pela notícia do recente Manifesto assinado por diversas de nossas Organizações de Base - Movimentos Populares, organizações sindicais e partidárias, entre outras, expressando sua contrariedade diante da tendência do Governo, de ceder às pressões da Direita de porém “no lombo dos trabalhadores” os custos da famigerada Lei do Teto de Gastos apelidada de “Arcabouço fiscal”, alegra-nos retomar o exercício da memória histórica dos explorados e oprimidos, dando sequência aos estudos de nossos bons clássicos, desta feita rememorando a contribuição heurística de Álvaro Vieira Pinto. 


Ele nasceu em Campos dos Goytacazes, Município do Rio de Janeiro, em 11 de Novembro de 1909, filho de uma família de ascendência Portuguesa, de 3 filhos e uma filha. Álvaro Vieira Pinto teve um itinerário formativo marcadamente Heterócrito. Tendo passado inicialmente pela formação em Medicina, e aí atuado, como médico e pesquisador, durante vários anos, ele vai incursionar por múltiplos e distintos campos de saberes: pela Filosofia, pela Antropologia, pela Cultura, pela Linguística, pela Ciência, pela Matemática, pela Física, pela Demografia, pela Educação, pela Tecnologia, pela Sociologia… exerceu, nestes campos, em tempos distintos a função de exímio pesquisador, além de docente e tradutor, conhecedor que era de diversos idiomas.


Após vários anos de trabalho no campo da Medicina, investigando a temática do câncer, em 1949, segue para a França, dedicando-se à apresentação de um trabalho, em Filosofia, tematizando a Cosmologia em Platão, oque resultou na publicação da tese intitulada “Ensaios sobre a dinâmica da cosmologia de Platão” (1049). De volta ao Brasil, assumiu a docência em História da Filosofia, na então Universidade do Brasil, hoje UFRJ. Foi, porém, a partir de 1955, com a fundação do Instituto Superior de Estudos do Brasileiros  (ISEB), que sua atuação vai adquirir crescente notoriedade, seja como Chefe do Departamento de Filosofia do ISEB (1956-1961), seja como Diretor Executivo do ISEB, entre 1961 e 1964.

O ISEB constituiu uma iniciativa reconhecidamente fecunda. Órgão vinculado ao Ministério de Educação o ISEB correspondia ao esforço público de elaboração crítica de um projeto desenvolvimentista autônomo, inspirado em uma concepção de Nação soberana (sem xenofobia), confiado a uma seleta equipe de intelectuais de perfil variado - integrava em seus quadros, desde liberais e marxistas, tais como Cândido Mendes de Almeida, Hélio Jaguaribe, Roberto Campos, Roland Corbisier, Inácio Rangel, Álvaro Vieira Pinto, Alberto Gueiros Ramos, Nelson Werneck Sodré . Em uma conjuntura de crescente efervescência política, especialmente na transição do Governo Juscelino Kubitschek para o Governo Jânio Quadros (substituído, após sua renúncia, pelo Vice-Presidente João Goulart) os intelectuais liberais foram cedendo terreno ao grupo considerado mais próximo da perspectiva marxista.      


A vasta produção bibliográfica de Álvaro Vieira Pinto situa-se principalmente entre as décadas de 1960 e 1970. Dela trataremos de destacar as que mais impacto produziram. De 1956 data a publicação do seu “Ideologia e desenvolvimento Nacional”, trabalho no qual o autor desenvolve as premissas sobre as quais ele assentava sua proposta de desenvolvimento nacionalista, destituída de rasgos xenofóbicos. Vivíamos, então, sob o Governo do Presidente Café filho, apenas um ano antes do Governo Juscelino Kubitschek (1956-1960), era caracterizada por enorme empolgação desenvolvimentista, com o lema “Brasil, 50 anos em cinco”, tempo marcado por crescente investimento de capitais transnacionais a exemplo do que era feito na indústria automobilística. Nesta obra, Álvaro Vieira Pinto cuidava de demonstrar a relevância fundamental de se ter claras as diretrizes para a edificação de um sólido e autônomo desenvolvimento nacionalista, que partisse de um profundo conheciemnto e valorização de nossas potencialidades, enquanto Nação. 


Cumpri observar o aprofundamento crítico seguido por Àlvaro Vieira Pinto, de tal sorte que, já em 1960, ele produz um de seus mais fecundos trabalhos: “Consciência e realidade Nacional”, obra em 2 volumes excedendo mil páginas.  (o primeiro volume tem 406 páginas, enquanto o segundo volume totaliza 636), ainda dos primeiros anos da década de 1960 datam seus livros “A Questão da Universidade”, (1962), “Por que os Ricos não fazem Greve?” (1962), ambas as produções ecoando claramente os anseios e clamores pelas reformas de base, assinalando também o ascenso dos movimentos populares, a exemplo das lutas sindicais, do movimento estudantil e de setores progressistas Católico e Protestantes.


Não foi certamente por acaso que, justamente em julho de 1962, se realizou, em Recife, a famosa “Conferência do Nordeste” promovida pelo Setor Social de mais de uma dezena de Igrejas Protestantes,cujo o tema debatido durante oitos dias, foi “Cristo e a Revolução Social Brasileira”. Assim, compreende-se melhor o empenho de Álvaro Vieira Pinto, inclusive quanto ao Diretor Executivo do ISEB, quando ousou escrever o texto “Porque os ricos não fazem Greve?”, bem como o texto “A Questão da Universidade”, fazendo ressonância de sua conferência pronunciada a convite dos estudantes da UNE (União Nacional dos Estudantes), em um tempo em que Darcy Ribeiro era o Reitor da UnB (Universidade de Brasília).      


Com o acirramento crescente dos conflitos, entre as demandas populares pelas reformas sociais e o aumento da reação das forças dominantes, o Golpe de Estado de 1964 veio a se instalar em um de Abril de 1964, daí resultando toda sorte de repressão contra as forças populares e seus aliados, inclusive Álvaro Vieira Pinto, que após alguns dias de clandestinidade passados em Minas Gerais, buscou exílio na Iugoslávia, por um ano, e em seguida, com o apoio também de Paulo Freire (já exilado no Chile), Álvaro Vieira Pinto foi exilar-se, no Chile, até 1968, contando inclusive com a acolhida afável de Paulo Freire, que o chamava de “Mestre Brasileiro”. De retorno ao Brasil antes do AI-5, foi forçado a um espécie de exílio em seu próprio país, tendo que sobreviver em um deprimente anonimato - sob Pseudônimo, sobreviveu traduzindo textos para a Editora Vozes, tendo continuado a registrar seus manuscritos, posteriormente publicados na forma de livros. 


Elementos principais da inventividade de Álvaro Vieira Pinto


Prosseguindo a destacar relevantes traços da produção bibliográfica de Álvaro Vieira Pinto a partir da sequência de suas obras principais, trataremos de realçar conceitos-chave, temas geradores e pistas ousadas nelas contidas.  Em “Ciência e existência”, cujos manuscritos, datados desde 1969, datilografados por sua esposa, só vinheram a público pela Editora Contraponto, em 2005, o autor se revela com extraordinária originalidade, situando-se desde a perspectiva dos países periféricos. Nesta obra, Álvaro Vieira Pinto propõe uma abordagem crítica acerca da relação dialética entre Ciência e Existência, a rememorar como, no processo de humanização, os seres humanos se empenham, em coletividade, em produzirem sua existência, buscando transitar da consciência ingênua à consciência crítica, itinerário que lhes permite desenvolver, de modo orgânico, um conjunto de saberes, desde os mais primitivos ao saber científico, enfatizando, porém, sua relação dialética, em que não tem lugar qualquer valoração discriminatória em prejuízo dos saberes populares e outros saberes pré científicos. 


Outro texto relevante produzido por Álvaro Vieira Pinto só viria a lume em 1982. Trata-se do seu “Sete lições de Educação de Adultos”, elaborado em sua experiência de exílio no Chile, na convivência com Paulo Freire. Nele, o autor lida com diferentes aspectos referentes a Educação de jovens e adultos. Discute a noção de Educação, sua historicidade, seu objeto, seus protagonistas, ressaltando em especial os desafios concernentes a educação de jovens e adultos. 


“O conceito de tecnologia” constitui uma primorosa elaboração de análise histórico filosófica, sempre na perspectiva dialética, que o autor produziu nos inícios do anos 70, mas que restou desconhecido por décadas, tendo sido publicado somente em 2005. Trata-se de uma publicação póstuma - Álvaro Vieira Pinto faleceu em 1987 -, composta de dois alentados volumes, cada qual distribuído em duas partes, em que o autor se empenha em navegar, de modo original e competente, pelos meandros da tecnologia, abordando, além das noções de “técnica” e “tecnologia”, e de modo histórico, as complexas relações entre os seres humanos e a máquina, através dos tempos. Ao longo das quatro partes em que o livro está dividido, Alvaro Vieira Pinto cuida inclusive de desmontar interpretações segundo as quais conceitos como “Era da tecnologia” (ou “Era da informação” e similares) sejam algo novo, na história da humanidade, por quanto, desde os seus inícios, para produzirem sua própria existência, os seres humanos têm recorrido a instrumentos ou máquinas, nos limites de suas possibilidades históricas.


Outra publicação póstuma, de autoria de Alvaro Vieira Pinto, foi a que se intitula “Sociologia dos Países Subdesenvolvidos”, escrito ainda nos anos 70, mas só publicado em 2008. Como indica seu título, trata de tecer uma análise crítica sobre a natureza histórico social do subdesenvolvimento, de modo a desmascarar as injunções concretas, repletas de premissas falseadoras que as relações históricas acabam sedimentando os destinos socioeconômicos tanto dos países ricos quanto dos países subdesenvolvidos 

              

A que nos convida Álvaro Vieira Pinto?


Ao destacarmos, ainda que superficialmente, aspectos do legado de Álvaro Vieira Pinto,  não conseguimos evitar um sentimento de indignação, diante do quase esquecimento, por longo tempo, desta figura genial. Especialmente as novas gerações incumbe a tarefa de seguirem cavocando as obras de Alvaro Vieira Pinto, tanto as publicadas quanto seus manuscritos ainda não vindos a lume. 


Não é a toa a referência que Paulo Freire fazia ao amigo Alvaro Vieira Pinto, ao trata-lo como “mestre”.  Com efeito, muito dele ainda temos a aprender. Seu sólido compromisso com a busca dos saberes, sempre voltada ao serviço dos injustiçados, com o seu fascínio pela luta incessante de transformar “Massa” em “Povo”, servindo-se do instrumental dialético e seus conceitos básicos de Totalidade, de relacionalidade, de historicidade, de movimento, entre outros.


Impactam-nos, ainda,  sua dedicação, sua persistência e sua sede de saber, que o fariam circular, de modo orgânico, pelos mais diferentes campos de saberes, do que resulta uma lista ampla de conceitos por ele trabalhados, principalmente conceitos tais como “Nação”, “Desenvolvimento”, “Subdesenvolvimento”, “Consciência”, “Consciência ingênua”, “Consciência crítica”, “Ideologia”, “Cultura”, “Educação”, “Técnica”, “Tecnologia”, e tantos outros.


João Pessoa, 15 de novembro de 2024

   


sexta-feira, 8 de novembro de 2024

Intérpretes do Brasil (IV): Vânia Bambirra

 Intérpretes do Brasil (IV): Vânia Bambirra 


Alder Júlio Ferreira Calado 


Ao iniciarmos esta série de artigos sobre personalidades que consideramos relevantes intérpretes do Brasil, nosso propósito maior segue sendo o de estimular nossos militantes de base, em sua tríplice tarefa, junto às nossas organizações de base, em especial os Movimentos Populares do Campo e da Cidade: Contribuir com sua organização permanente, com o seu processo formativo contínuo e com suas atividades de resistência e de enfrentamento exitoso dos grandes desafios da atualidade, em escalas local, nacional, latino-americana e mundial.


Após havermos rememorado aspectos do legado de Ruy Mauro Marini, Lélia Gonzalez e Clóvis Moura, trazemos agora apontamentos sobre outra intérprete da formação social brasileira, em tempos da Teoria Marxista da depẽndencia. Vânia Bambirra nasceu em Belo Horizonte, em 1940, filha de uma dona de casa e de um alfaiate, vinculado ao Partido Comunista do Brasil (PCB). Sua mãe, descendente de Italianos, pertencia a uma família de recursos, enquanto seu pai vinha de família de classes populares. Por conta de seu envolvimento na insurreição comunista de 1935, havia sido preso. Vânia lembra que, de volta a casa, o primeiro gesto do pai foi o de soltar os pássaros engaiolados: “Seu canto é triste”. 


Desde cedo, sentiu-se estimulada pelos seus pais a valorizar os estudos, empenhado-se, já durante o Ensino Médio, em dar curso à sua curiosidade epistemológica, principalmente quanto aos desafios de nossa realidade social.


Não foi por acaso que fez questão de ingressar no curso de Sociologia e Política (com extensão para Administração Pública), na Faculdade de Ciências Econômicas, da Universidade Federal de Minas Gerais, no final dos anos 50, tendo obtido sua Graduação em 1962, prosseguindo rumo ao Mestrado na área, na Universidade de Brasília, para o que fora uma das contempladas com uma bolsa de estudos. Desde muito jovem, acompanhou de perto os movimentos e lutas por moradia, na periferia de Belo Horizonte, também sentiu-se tocada pela questão agrária, acompanhou de perto a realização do I Congresso Nacional das Ligas Camponesas, tendo inclusive conhecido suas principais lideranças, a exemplo de Francisco Julião, a quem mais tarde teria a oportunidade de entrevistar no México. Somente mais tarde concluiria o seu Doutorado em Economia.


Quando se preparava para concluir seu Mestrado, na Universidade de Brasília, em 1964, eis que ocorre o Golpe Empresarial-Militar no Brasil. Teve invadida sua sala de trabalho, tendo encontrado no chão todos os seus livros, sujos de lama das botas, sentindo-se forçada a transferir-se para São Paulo, na clandestinidade, junto com Theotônio dos Santos, seu companheiro. Em São Paulo, nasceu sua filha, em 1964. Diante das crescentes hostilidades e perseguições, inclusive, por conta de seus vínculos militantes na organização Revolucionária Marxista “Política Operária", tiveram que buscar exílio em meados de 1966 no Chile.  


O Chile vivia, então, em um contexto de efervescência e de esperança, sob o Governo do Presidente Eduardo Frei, da Democracia Cristã. Vania, Theotônio e família foram bem acolhidos, sendo inicialmente convidados a trabalhar em um órgão de pesquisa sobre opinião pública, sendo posteriormente convidados a integrar o famoso CESO (Centro de Estudos Sócio Econômico), em companhia de uma Equipe de notáveis pesquisadores, a exemplo de Sergio Ramos, Orlando Caputo, Roberto Pizarro, André gunder frank, além de outros que posteriormente aí trabalharam, tais como Roberto Martinez, Marta Harnecker, Jaime Osório Cristian Sepulveda, Eder Sader, Emir Sader, Marco Aurélio Garcia, entre outros. 


Quanto ao Brasil, nosso povo teve que adiar seus sonhos - o das Reformas de Base (a Reforma Agrária, a Reforma Urbana, a Reforma da Educação, a reforma Bancária) -, por longos e tenebrosos 21 anos de uma cruel ditadura, da qual resultaram cassações, prisões, perseguições, banimentos, torturas e assassinatos, vitimando milhares de brasileiros e brasileiras (intelectuais, estudantes, camponeses, operários, instituições democráticas), fechamento do Parlamento, restrições do Judiciário, imposição de leis, de decretos e de atos, destituindo lideranças sindicais e intervindo nas diretorias dos Sindicatos, proibindo o funcionamento da vida democrática da sociedade brasileira.


Como no Brasil, sucederia algo parecido no Chile, em 11 de Setembro de 1973, com o golpe de Estado deferido por Pinochet, com o apoio da burguesia e do Governo dos Estados Unidos. A exemplo de tantos outros intelectuais, também Vânia Bambirra foi forçada a exilar-se no México, após breve passagem pelo Panamá (quatro meses), tendo seguido depois, com a família, para o México. Após concluir seu Doutorado, continuou sua intensa militância, seja no México, seja no Chile, em companhia de diversos outros brasileiros e latino-americanos, tais como Ruy Mauro Marini e Theotônio dos Santos e diversos outros.


Em seu exílio no México, após prestar concurso público, bem sucedido, Vânia Bambirra passa a lecionar e a integrar um notável grupo de pesquisadores e pesquisadoras, na Universidade Nacional do México (UNA), tendo dado sequência às suas pesquisas e publicado diversos livros e outros escritos. Em consequência dos efeitos da Anistia (ainda que dúbia e restrita), retorna ao Brasil, na primeira metade dos anos 80, tendo atuado como assessora de relevantes causas sociais e políticas, tendo inclusive contribuído para o PDT e outras forças de esquerda, naquele período. Vânia Bambirra vem a falecer, no Brasil, em dezembro de 2014, deixando sua marca indelével como uma revolucionária Marxista, com enormes aportes teórico-práticos para as classes populares, em vista da construção de um novo modo de produção, de consumo e de gestão societal. 


Nas trilhas da Teoria Marxista da Dependência 


O legado de Vânia Bambirra se explica fundamentalmente por ter-se nutrido, de um lado, pela sua precoce e permanente curiosidade epistemológica, e, de outro, pela militância revolucionária. Sua assiduidade no acompanhamento das organizações de base, na periferia de Belo Horizonte e depois, em tantas outras iniciativas, como sua participação na POLOP (Organização Revolucionária Marxista Política Operária) constituem uma indicação convincente. 


Não bastasse seu apreço pela constante compreensão da realidade social, o que a levou a cursar Sociologia Política e Administração Pública, sempre associadas à Economia Política, Vânia Bambirra mostrou-se desde cedo, interessada em compreender, de forma crítico-propositiva os problemas sociais do campo e da cidade. Não foi à toa, por exemplo, a escolha do tema trabalhado em seu Mestrado - as Ligas Camponesas, tendo ela também participado na militância por esta causa. De seu compromisso revolucionário muito diz, inclusive, seu discurso de conclusão da Graduação, cujo teor se pode conferir pelo acesso a um dos repositórios de seus escritos, facilmente disponibilizados na internet. 


Já nos primeiros anos do seu exílio no Chile, em continuidade de suas pesquisas, escreveu um corajoso e ousado ensaio, intitulado “Los errores de la teoría del foco”, publicado em 1967 em um contexto em que, sob a influência de Régis Debray, se mostrava amplamente dominante, na América latina, esta estratégia de enfrentamento da exploração e da opressão dos povos latino-americanos. 


Revelando-se ainda dotada de grande capacidade analítica e, ao mesmo tempo, de grande intuição e honestidade intelectual, Vânia Bambirra também ousou avaliar criticamente a narrativa dominante, na história da Revolução Cubana, ao escrever e publicar, por Editorial Nuestro Tiempo, 1978, “La Revolución Cubana: Una Reinterpretación”, sustentando a tese de que o sucesso da Revolução Cubana não se deveu apenas ao foquismo, mas sobretudo a uma combinação das lutas políticas (inclusive a greve geral) com a via insurrecional. 


Constam ainda de sua produção investigativa, no Chile, escritos de grande relevância acerca do feminismo na perspectiva marxista: “La Mujer Chilena y la Transición al Socialismo” (1971) e “La liberación de la Mujer y la Lucha de clases” (1972). Isto só reforça o reconhecimento da posição revolucionária marxista, testemunhada por Vânia Bambirra, em uma época do despertar do Movimento feminista internacional contra as relações profundamente androcêntricas então reinantes, inclusive ao interno das forças de esquerda. 


Excepcionalmente intensa, durante este período, foi a produção investigativa realizada, não apenas por Vânia Bambirra, mas por um grupo de pesquisadores do CESO (Centro de Estudios Socioeconómicos), do qual também faziam parte, entre outros, Sergio Ramos, Theotonio dos Santos, Orlando Caputo, André Gunder Frank, Roberto Pizarro, Ruy Mauro Marini, além de Vânia Bambirra, entre outros. Tratava-se de uma equipe de pesquisadores e pesquisadoras de altíssimo nível intelectual e de compromisso político, em permanente diálogo entre si e com pesquisadores e pesquisadoras latino-americanos e de outros continentes, especialmente inspirados e comprometidos com a teoria marxista-leninista.


É esta equipe que se empenha diuturnamente na análise marxista da realidade latino-americana e mundial, dispostas a fazer uma leitura crítica das teses então dominantes, tanto em relação ao pensamento hegemônico dos integrantes da CEPAL (Órgão pertencente à ONU, sediado no Chile, que sustentava a tese desenvolvimentista, que atribuía apenas a fatores externos o subdesenvolvimento dos países latino-americanos), quanto em relação às teses sustentadas pelos partidos comunistas oficiais, segundo os quais o atraso dos países latino-americanos se devia, ora ao seu estágio feudal, ora ao fato de que o desenvolvimento desses países só poderia acontecer, por meio de uma aliança com a burguesia nacionalista, o que se mostrou uma falácia. 


Uma das marcas mais tocantes do legado de Vânia Bambirra, além das acima mencionadas, é seu profundo sentimento de pertença aos povos latino-americanos e caribenhos. Seu compromisso revolucionário de militante comunista e de pesquisadora, ao ter origem no Brasil, mas sempre voltada para a América Latina, se afirma em âmbito da Pátria Grande, não apenas em razão de seu exílio no Chile e depois no México, como também graças à natureza revolucionária do seu compromisso de libertação da América Latina, incluindo o Brasil. Neste sentido, chama a atenção um breve depoimento de sua filha Nádia Bambirra, nascida em novembro de 1964, oito meses após o início do Golpe Empresarial-Militar de 1964, que obrigou seus pais (Vânia e Theotônio) a caírem na clandestinidade, em São Paulo, transportando-se depois em meados de 1966, para o exílio no Chile, aí permanecendo até o final de 1973, por força do Golpe de Pinochet, daí seguindo para o novo exílio, no México, após breve passagem pelo Panamá. Neste breve depoimento, Nádia fez questão de dizer que aprendeu desde criança a ser uma latino americana mais do que uma brasileira, tendo aprendido a falar português somente quinze anos depois, quando do retorno da família ao Brasil.


Ainda no Chile, cercada de condições estruturais e afetivas, Vânia dispõe de tempo e se empenha em prosseguir crescentemente em interpretar as condições históricas que condenavam os diversos países da América Latina e do Caribe ao subdesenvolvimento. Para tanto, recorreu com persistência ao paradigma marxista-leninista, tendo tido oportunidade de ler, além de “O Capital” e obras-chave de Marx e Engels também as obras completas de Vladimir Lenin, bem como todo um acervo crítico de clássicos marxistas e de pensadores críticos caribenhos. Por mais de uma vez, foi convidada a participar em Cuba, de encontros temáticos e debates relevantes, inclusive, com a presença de Fidel Castro e de Che Guevara.


Importa observar que, nestes e noutros debates, não por arrogância, mas com segurança e altivez, Vânia sempre participava dialogando - por vezes discordando de seus interlocutores, fazendo-o com respeito e sempre tomando em conta, de modo honesto, os argumentos e as teses dos debatedores. Assim procedeu, inclusive, já no México, quando compareceu à UNAM, para ser examinada, em um concurso público para Professora Titular, na Faculdade de Economia da mesma UNAM, ante uma Banca Examinadora da qual fizeram parte figuras de referência, a exemplo de Agostini Cuevas, de amplo reconhecimento internacional como pesquisador na área da Sociologia do Desenvolvimento latino-americano, inclusive no campo da Teoria da Dependência. Nesta ocasião, tendo disposto de um brevíssimo tempo (15 dias) para elaborar uma tese, e submetê-la a essa banca examinadora, Vânia Bambirra ousou sustentar sua própria interpretação do fenômeno da dependência, na perspectiva Marxista, fazendo críticas respeitosas a pontos sustentados pelos próprios membros da Banca, com eles mantendo um diálogo aberto e fraterno. A Banca Examinadora lhe outorgou o título de Doutora, com louvor. 


Retomando sua trajetória no Chile, cumpre ainda ressaltar que também foi durante este período, que Vânia Bambirra produziu seu “Opus magnum”, “El Capitalismo Dependiente Latinoamericano”, que ela elaborou entre 1968 e 1970. Nele, a autora, entre os principais pontos aí abordados, inicia por explicitar o itinerário metodológico seguido na obra, destacando o referencial marxista como a fonte da qual partia para a sustentação de suas teses. Assim, parte da tese de que o que se passava nos países latino-americanos constituía uma expressão, não apenas das condições impostas desde fora, mas uma manifestação do próprio modo capitalista de atuar no mundo.


Também no início do livro, Vânia Bambirra cuida de contestar - sempre respeitosamente as teses sustentadas por Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto, autores de “Dependencia y desarrollo en América Latina. Ensayo de interpretação sociológica”, criticando seus argumentos por não atentarem para as profundas raízes históricas e econômicas do fenômeno da dependência, faltando-lhes profundidade na sustentação. A este propósito, resta oportuno lembrar a acusação feita no Brasil, por diversos críticos de Fernando Henrique Cardoso e José Serra, ao imputar-lhes a tentativa de negar importância aos teóricos marxistas da dependência, tendo assim contribuído para o seu apagamento, especialmente no período da ditadura militar.


Ainda neste mesmo livro, Vânia Bambirra empreende um frutuoso mergulho na história social e econômica de um considerável número de países latino-americanos, em busca de desvendar as especificidades de cada país em sua respectiva inserção na divisão internacional do trabalho no universo das relações sociais do Capitalismo. No intuito de demonstrar que o fenômeno da dependência se insere organicamente no quadro geral do sistema capitalista, não se limitando a meras heranças coloniais nem a avaliação de uma suposta burguesia nacionalista, Vânia esboça uma tipologia que lhe permite distribuir em dois ou mais grupos de países, conforme as características econômicas de cada um, passando a analizar suas diferenças e pontos comuns em relação ao processo histórico do desenvolvimento capitalista, em escala mundial. Esta análise é feita de modo sempre conectado aos conceitos-chave do Materialismo histórico-dialético do Marxismo-Leninismo e em diálogo com os principais intérpretes da Teoria Marxista.


Densa é a bibliografia de Vânia Bambirra apresentada seja em forma de livros, seja em forma de capítulos de livros organizados em colaboração com outros autores e autoras, seja ainda mediante a publicação de vários artigos em revistas latino-americanas. Triste é constatar que muito pouco ainda se conhece de sua densa produção, no Brasil, sendo ela bem mais conhecida e reconhecida em outros países do que no Brasil. 


O que recolher do denso legado de Vânia Bambirra? 


Em um contexto de graves retrocessos, em diversos campos da realidade social, inclusive no Brasil, em que a maioria da Câmara Federal votou contra uma taxação simbólica de 0,5% sobre as riquezas dos muito ricos, mais do que nunca nossas organizações de base são chamadas a fazerem seu papel organizativo, formativo e de mobilização por meio do Trabalho de Base.


Um primeiro ensinamento que podemos extrair dos feitos e escritos por Vânia Bambirra nos remete à relevância do processo formativo contínuo, inclusive como marca essencial do próprio processo de humanização. Deste processo contínuo de formação também faz parte o exercício da memória histórica dos explorados e oprimidos, razão pela qual sempre recorremos aos grandes intérpretes da sociedade brasileira, homens e mulheres. Há poucos minutos, por exemplo, acabamos de ouvir a primorosa análise feita por Marilena Chaui, Dando a Real com Leandro Demori recebe a filósofa Marilena Chaui a interpretar a profunda crise instalada no Brasil, e alhures, com o crescente avanço das forças de Direita e o impactante recuo das forças de esquerda diante do predomínio dos valores marcados pela “atopia” (desaparecimento da dimensão de espacialidade) e da “acronia” (perda da dimensão de temporalidade), graças à submissão à logica e aos valores do universo tecnocratico da era digital, que subverte os valores civilizacionais, a começar por valores como “Liberdade”, “autonomia” e outros, reduzidos que se tornam a uma mera servidão voluntária aos valores do Mercado Capitalista.  


Em sintonia com os grandes intérpretes do Brasil, personalidades como Vânia Bambirra, Lélia Gonzalez, Clóvis Moura, Ruy Mauro Marini, Florestan Fernandes, Paulo Freire, Álvaro Vieira Pinto, Marilena Chauí e outros, Vânia Bambirra nos instiga - especialmente as nossas organizações de base, em particular os Movimentos Populares do campo e da Cidade -, a nos dotar de instrumentos de resistência e de luta, inclusive mediante o exercício contínuo da memória histórica, combinando-a com o trabalho de base.


João Pessoa, 08 de Novembro de 2024