sexta-feira, 8 de novembro de 2024

Intérpretes do Brasil (IV): Vânia Bambirra

 Intérpretes do Brasil (IV): Vânia Bambirra 


Alder Júlio Ferreira Calado 


Ao iniciarmos esta série de artigos sobre personalidades que consideramos relevantes intérpretes do Brasil, nosso propósito maior segue sendo o de estimular nossos militantes de base, em sua tríplice tarefa, junto às nossas organizações de base, em especial os Movimentos Populares do Campo e da Cidade: Contribuir com sua organização permanente, com o seu processo formativo contínuo e com suas atividades de resistência e de enfrentamento exitoso dos grandes desafios da atualidade, em escalas local, nacional, latino-americana e mundial.


Após havermos rememorado aspectos do legado de Ruy Mauro Marini, Lélia Gonzalez e Clóvis Moura, trazemos agora apontamentos sobre outra intérprete da formação social brasileira, em tempos da Teoria Marxista da depẽndencia. Vânia Bambirra nasceu em Belo Horizonte, em 1940, filha de uma dona de casa e de um alfaiate, vinculado ao Partido Comunista do Brasil (PCB). Sua mãe, descendente de Italianos, pertencia a uma família de recursos, enquanto seu pai vinha de família de classes populares. Por conta de seu envolvimento na insurreição comunista de 1935, havia sido preso. Vânia lembra que, de volta a casa, o primeiro gesto do pai foi o de soltar os pássaros engaiolados: “Seu canto é triste”. 


Desde cedo, sentiu-se estimulada pelos seus pais a valorizar os estudos, empenhado-se, já durante o Ensino Médio, em dar curso à sua curiosidade epistemológica, principalmente quanto aos desafios de nossa realidade social.


Não foi por acaso que fez questão de ingressar no curso de Sociologia e Política (com extensão para Administração Pública), na Faculdade de Ciências Econômicas, da Universidade Federal de Minas Gerais, no final dos anos 50, tendo obtido sua Graduação em 1962, prosseguindo rumo ao Mestrado na área, na Universidade de Brasília, para o que fora uma das contempladas com uma bolsa de estudos. Desde muito jovem, acompanhou de perto os movimentos e lutas por moradia, na periferia de Belo Horizonte, também sentiu-se tocada pela questão agrária, acompanhou de perto a realização do I Congresso Nacional das Ligas Camponesas, tendo inclusive conhecido suas principais lideranças, a exemplo de Francisco Julião, a quem mais tarde teria a oportunidade de entrevistar no México. Somente mais tarde concluiria o seu Doutorado em Economia.


Quando se preparava para concluir seu Mestrado, na Universidade de Brasília, em 1964, eis que ocorre o Golpe Empresarial-Militar no Brasil. Teve invadida sua sala de trabalho, tendo encontrado no chão todos os seus livros, sujos de lama das botas, sentindo-se forçada a transferir-se para São Paulo, na clandestinidade, junto com Theotônio dos Santos, seu companheiro. Em São Paulo, nasceu sua filha, em 1964. Diante das crescentes hostilidades e perseguições, inclusive, por conta de seus vínculos militantes na organização Revolucionária Marxista “Política Operária", tiveram que buscar exílio em meados de 1966 no Chile.  


O Chile vivia, então, em um contexto de efervescência e de esperança, sob o Governo do Presidente Eduardo Frei, da Democracia Cristã. Vania, Theotônio e família foram bem acolhidos, sendo inicialmente convidados a trabalhar em um órgão de pesquisa sobre opinião pública, sendo posteriormente convidados a integrar o famoso CESO (Centro de Estudos Sócio Econômico), em companhia de uma Equipe de notáveis pesquisadores, a exemplo de Sergio Ramos, Orlando Caputo, Roberto Pizarro, André gunder frank, além de outros que posteriormente aí trabalharam, tais como Roberto Martinez, Marta Harnecker, Jaime Osório Cristian Sepulveda, Eder Sader, Emir Sader, Marco Aurélio Garcia, entre outros. 


Quanto ao Brasil, nosso povo teve que adiar seus sonhos - o das Reformas de Base (a Reforma Agrária, a Reforma Urbana, a Reforma da Educação, a reforma Bancária) -, por longos e tenebrosos 21 anos de uma cruel ditadura, da qual resultaram cassações, prisões, perseguições, banimentos, torturas e assassinatos, vitimando milhares de brasileiros e brasileiras (intelectuais, estudantes, camponeses, operários, instituições democráticas), fechamento do Parlamento, restrições do Judiciário, imposição de leis, de decretos e de atos, destituindo lideranças sindicais e intervindo nas diretorias dos Sindicatos, proibindo o funcionamento da vida democrática da sociedade brasileira.


Como no Brasil, sucederia algo parecido no Chile, em 11 de Setembro de 1973, com o golpe de Estado deferido por Pinochet, com o apoio da burguesia e do Governo dos Estados Unidos. A exemplo de tantos outros intelectuais, também Vânia Bambirra foi forçada a exilar-se no México, após breve passagem pelo Panamá (quatro meses), tendo seguido depois, com a família, para o México. Após concluir seu Doutorado, continuou sua intensa militância, seja no México, seja no Chile, em companhia de diversos outros brasileiros e latino-americanos, tais como Ruy Mauro Marini e Theotônio dos Santos e diversos outros.


Em seu exílio no México, após prestar concurso público, bem sucedido, Vânia Bambirra passa a lecionar e a integrar um notável grupo de pesquisadores e pesquisadoras, na Universidade Nacional do México (UNA), tendo dado sequência às suas pesquisas e publicado diversos livros e outros escritos. Em consequência dos efeitos da Anistia (ainda que dúbia e restrita), retorna ao Brasil, na primeira metade dos anos 80, tendo atuado como assessora de relevantes causas sociais e políticas, tendo inclusive contribuído para o PDT e outras forças de esquerda, naquele período. Vânia Bambirra vem a falecer, no Brasil, em dezembro de 2014, deixando sua marca indelével como uma revolucionária Marxista, com enormes aportes teórico-práticos para as classes populares, em vista da construção de um novo modo de produção, de consumo e de gestão societal. 


Nas trilhas da Teoria Marxista da Dependência 


O legado de Vânia Bambirra se explica fundamentalmente por ter-se nutrido, de um lado, pela sua precoce e permanente curiosidade epistemológica, e, de outro, pela militância revolucionária. Sua assiduidade no acompanhamento das organizações de base, na periferia de Belo Horizonte e depois, em tantas outras iniciativas, como sua participação na POLOP (Organização Revolucionária Marxista Política Operária) constituem uma indicação convincente. 


Não bastasse seu apreço pela constante compreensão da realidade social, o que a levou a cursar Sociologia Política e Administração Pública, sempre associadas à Economia Política, Vânia Bambirra mostrou-se desde cedo, interessada em compreender, de forma crítico-propositiva os problemas sociais do campo e da cidade. Não foi à toa, por exemplo, a escolha do tema trabalhado em seu Mestrado - as Ligas Camponesas, tendo ela também participado na militância por esta causa. De seu compromisso revolucionário muito diz, inclusive, seu discurso de conclusão da Graduação, cujo teor se pode conferir pelo acesso a um dos repositórios de seus escritos, facilmente disponibilizados na internet. 


Já nos primeiros anos do seu exílio no Chile, em continuidade de suas pesquisas, escreveu um corajoso e ousado ensaio, intitulado “Los errores de la teoría del foco”, publicado em 1967 em um contexto em que, sob a influência de Régis Debray, se mostrava amplamente dominante, na América latina, esta estratégia de enfrentamento da exploração e da opressão dos povos latino-americanos. 


Revelando-se ainda dotada de grande capacidade analítica e, ao mesmo tempo, de grande intuição e honestidade intelectual, Vânia Bambirra também ousou avaliar criticamente a narrativa dominante, na história da Revolução Cubana, ao escrever e publicar, por Editorial Nuestro Tiempo, 1978, “La Revolución Cubana: Una Reinterpretación”, sustentando a tese de que o sucesso da Revolução Cubana não se deveu apenas ao foquismo, mas sobretudo a uma combinação das lutas políticas (inclusive a greve geral) com a via insurrecional. 


Constam ainda de sua produção investigativa, no Chile, escritos de grande relevância acerca do feminismo na perspectiva marxista: “La Mujer Chilena y la Transición al Socialismo” (1971) e “La liberación de la Mujer y la Lucha de clases” (1972). Isto só reforça o reconhecimento da posição revolucionária marxista, testemunhada por Vânia Bambirra, em uma época do despertar do Movimento feminista internacional contra as relações profundamente androcêntricas então reinantes, inclusive ao interno das forças de esquerda. 


Excepcionalmente intensa, durante este período, foi a produção investigativa realizada, não apenas por Vânia Bambirra, mas por um grupo de pesquisadores do CESO (Centro de Estudios Socioeconómicos), do qual também faziam parte, entre outros, Sergio Ramos, Theotonio dos Santos, Orlando Caputo, André Gunder Frank, Roberto Pizarro, Ruy Mauro Marini, além de Vânia Bambirra, entre outros. Tratava-se de uma equipe de pesquisadores e pesquisadoras de altíssimo nível intelectual e de compromisso político, em permanente diálogo entre si e com pesquisadores e pesquisadoras latino-americanos e de outros continentes, especialmente inspirados e comprometidos com a teoria marxista-leninista.


É esta equipe que se empenha diuturnamente na análise marxista da realidade latino-americana e mundial, dispostas a fazer uma leitura crítica das teses então dominantes, tanto em relação ao pensamento hegemônico dos integrantes da CEPAL (Órgão pertencente à ONU, sediado no Chile, que sustentava a tese desenvolvimentista, que atribuía apenas a fatores externos o subdesenvolvimento dos países latino-americanos), quanto em relação às teses sustentadas pelos partidos comunistas oficiais, segundo os quais o atraso dos países latino-americanos se devia, ora ao seu estágio feudal, ora ao fato de que o desenvolvimento desses países só poderia acontecer, por meio de uma aliança com a burguesia nacionalista, o que se mostrou uma falácia. 


Uma das marcas mais tocantes do legado de Vânia Bambirra, além das acima mencionadas, é seu profundo sentimento de pertença aos povos latino-americanos e caribenhos. Seu compromisso revolucionário de militante comunista e de pesquisadora, ao ter origem no Brasil, mas sempre voltada para a América Latina, se afirma em âmbito da Pátria Grande, não apenas em razão de seu exílio no Chile e depois no México, como também graças à natureza revolucionária do seu compromisso de libertação da América Latina, incluindo o Brasil. Neste sentido, chama a atenção um breve depoimento de sua filha Nádia Bambirra, nascida em novembro de 1964, oito meses após o início do Golpe Empresarial-Militar de 1964, que obrigou seus pais (Vânia e Theotônio) a caírem na clandestinidade, em São Paulo, transportando-se depois em meados de 1966, para o exílio no Chile, aí permanecendo até o final de 1973, por força do Golpe de Pinochet, daí seguindo para o novo exílio, no México, após breve passagem pelo Panamá. Neste breve depoimento, Nádia fez questão de dizer que aprendeu desde criança a ser uma latino americana mais do que uma brasileira, tendo aprendido a falar português somente quinze anos depois, quando do retorno da família ao Brasil.


Ainda no Chile, cercada de condições estruturais e afetivas, Vânia dispõe de tempo e se empenha em prosseguir crescentemente em interpretar as condições históricas que condenavam os diversos países da América Latina e do Caribe ao subdesenvolvimento. Para tanto, recorreu com persistência ao paradigma marxista-leninista, tendo tido oportunidade de ler, além de “O Capital” e obras-chave de Marx e Engels também as obras completas de Vladimir Lenin, bem como todo um acervo crítico de clássicos marxistas e de pensadores críticos caribenhos. Por mais de uma vez, foi convidada a participar em Cuba, de encontros temáticos e debates relevantes, inclusive, com a presença de Fidel Castro e de Che Guevara.


Importa observar que, nestes e noutros debates, não por arrogância, mas com segurança e altivez, Vânia sempre participava dialogando - por vezes discordando de seus interlocutores, fazendo-o com respeito e sempre tomando em conta, de modo honesto, os argumentos e as teses dos debatedores. Assim procedeu, inclusive, já no México, quando compareceu à UNAM, para ser examinada, em um concurso público para Professora Titular, na Faculdade de Economia da mesma UNAM, ante uma Banca Examinadora da qual fizeram parte figuras de referência, a exemplo de Agostini Cuevas, de amplo reconhecimento internacional como pesquisador na área da Sociologia do Desenvolvimento latino-americano, inclusive no campo da Teoria da Dependência. Nesta ocasião, tendo disposto de um brevíssimo tempo (15 dias) para elaborar uma tese, e submetê-la a essa banca examinadora, Vânia Bambirra ousou sustentar sua própria interpretação do fenômeno da dependência, na perspectiva Marxista, fazendo críticas respeitosas a pontos sustentados pelos próprios membros da Banca, com eles mantendo um diálogo aberto e fraterno. A Banca Examinadora lhe outorgou o título de Doutora, com louvor. 


Retomando sua trajetória no Chile, cumpre ainda ressaltar que também foi durante este período, que Vânia Bambirra produziu seu “Opus magnum”, “El Capitalismo Dependiente Latinoamericano”, que ela elaborou entre 1968 e 1970. Nele, a autora, entre os principais pontos aí abordados, inicia por explicitar o itinerário metodológico seguido na obra, destacando o referencial marxista como a fonte da qual partia para a sustentação de suas teses. Assim, parte da tese de que o que se passava nos países latino-americanos constituía uma expressão, não apenas das condições impostas desde fora, mas uma manifestação do próprio modo capitalista de atuar no mundo.


Também no início do livro, Vânia Bambirra cuida de contestar - sempre respeitosamente as teses sustentadas por Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto, autores de “Dependencia y desarrollo en América Latina. Ensayo de interpretação sociológica”, criticando seus argumentos por não atentarem para as profundas raízes históricas e econômicas do fenômeno da dependência, faltando-lhes profundidade na sustentação. A este propósito, resta oportuno lembrar a acusação feita no Brasil, por diversos críticos de Fernando Henrique Cardoso e José Serra, ao imputar-lhes a tentativa de negar importância aos teóricos marxistas da dependência, tendo assim contribuído para o seu apagamento, especialmente no período da ditadura militar.


Ainda neste mesmo livro, Vânia Bambirra empreende um frutuoso mergulho na história social e econômica de um considerável número de países latino-americanos, em busca de desvendar as especificidades de cada país em sua respectiva inserção na divisão internacional do trabalho no universo das relações sociais do Capitalismo. No intuito de demonstrar que o fenômeno da dependência se insere organicamente no quadro geral do sistema capitalista, não se limitando a meras heranças coloniais nem a avaliação de uma suposta burguesia nacionalista, Vânia esboça uma tipologia que lhe permite distribuir em dois ou mais grupos de países, conforme as características econômicas de cada um, passando a analizar suas diferenças e pontos comuns em relação ao processo histórico do desenvolvimento capitalista, em escala mundial. Esta análise é feita de modo sempre conectado aos conceitos-chave do Materialismo histórico-dialético do Marxismo-Leninismo e em diálogo com os principais intérpretes da Teoria Marxista.


Densa é a bibliografia de Vânia Bambirra apresentada seja em forma de livros, seja em forma de capítulos de livros organizados em colaboração com outros autores e autoras, seja ainda mediante a publicação de vários artigos em revistas latino-americanas. Triste é constatar que muito pouco ainda se conhece de sua densa produção, no Brasil, sendo ela bem mais conhecida e reconhecida em outros países do que no Brasil. 


O que recolher do denso legado de Vânia Bambirra? 


Em um contexto de graves retrocessos, em diversos campos da realidade social, inclusive no Brasil, em que a maioria da Câmara Federal votou contra uma taxação simbólica de 0,5% sobre as riquezas dos muito ricos, mais do que nunca nossas organizações de base são chamadas a fazerem seu papel organizativo, formativo e de mobilização por meio do Trabalho de Base.


Um primeiro ensinamento que podemos extrair dos feitos e escritos por Vânia Bambirra nos remete à relevância do processo formativo contínuo, inclusive como marca essencial do próprio processo de humanização. Deste processo contínuo de formação também faz parte o exercício da memória histórica dos explorados e oprimidos, razão pela qual sempre recorremos aos grandes intérpretes da sociedade brasileira, homens e mulheres. Há poucos minutos, por exemplo, acabamos de ouvir a primorosa análise feita por Marilena Chaui, Dando a Real com Leandro Demori recebe a filósofa Marilena Chaui a interpretar a profunda crise instalada no Brasil, e alhures, com o crescente avanço das forças de Direita e o impactante recuo das forças de esquerda diante do predomínio dos valores marcados pela “atopia” (desaparecimento da dimensão de espacialidade) e da “acronia” (perda da dimensão de temporalidade), graças à submissão à logica e aos valores do universo tecnocratico da era digital, que subverte os valores civilizacionais, a começar por valores como “Liberdade”, “autonomia” e outros, reduzidos que se tornam a uma mera servidão voluntária aos valores do Mercado Capitalista.  


Em sintonia com os grandes intérpretes do Brasil, personalidades como Vânia Bambirra, Lélia Gonzalez, Clóvis Moura, Ruy Mauro Marini, Florestan Fernandes, Paulo Freire, Álvaro Vieira Pinto, Marilena Chauí e outros, Vânia Bambirra nos instiga - especialmente as nossas organizações de base, em particular os Movimentos Populares do campo e da Cidade -, a nos dotar de instrumentos de resistência e de luta, inclusive mediante o exercício contínuo da memória histórica, combinando-a com o trabalho de base.


João Pessoa, 08 de Novembro de 2024                           




 



             


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