Intérpretes do Brasil (VI): Manoel Bonfim, um pensador heterodoxo de nossa história
Alder Júlio Ferreira Calado
Em continuidade do exercício de revisitação de figuras brasileiras - homens e mulheres - que consideramos intérpretes de referência de nossa realidade histórico-social, cuidamos, nas linhas que seguem, de trazer alguns elementos biobliográficos de sua trajetória, bem como destacar traços específicos de sua contribuição, desta feita, focando a figura de Manuel Bonfim. Ao fazê-lo, não nos cansamos de insistir no propósito maior destas linhas: estimular o compromisso revolucionário de nossas organizações de base - Movimentos Populares do Campo e da Cidade, coletivos feministas, movimentos de mulheres e de comunidades quilombolas, dos povos das águas e das florestas, dos ribeirinhos e outros coletivos empenhados em melhor compreenderem criticamente nossa sociedade, na perspectiva de sua transformação.
Manuel Bonfim, sergipano de Aracaju, nasceu em 1868 cuja mãe (Maria Joaquina Bonfim, era herdeira de grande propriedade fundiária), e de Paulino José Bonfim, um vaqueiro cujo sobrenome se devia ao lugarejo do sertão sergipano chamado “Bonfim do Carira”. A família dos avós de Manoel Bonfim era, portanto, dona de engenho de cana de açúcar. Por conta da riqueza herdada pela mãe, Manuel Bonfim reuniu condições privilegiadas para a sua formação. Terminado o Ensino Médio, cursou medicina, entre Salvador-BA e Rio de Janeiro - RJ. Após exercer a medicina durante certo período, tendo trabalhado como médico em corporações militares do Rio de Janeiro, em consequência da morte prematura de sua filha, optou pelo Magistério, dedicando-se a lecionar e a gerir prestigiosas instituições educacionais do Distrito Federal, inclusive da Escola Normal, tendo ainda sido o Coordenador da Instrução Pública, por duas gestões.
Mais do que ensinar e ser Gestor, Manoel Bonfim empenha-se em pesquisar, a partir de sua experiência docente no “Pedagogium”, instituição que abrigou trabalhos de pesquisas por ele coordenados. Em busca de aprimorar seu novo ofício, Manoel Bonfim vai estudar em Paris, na famosa Universidade de Sorbonne, entre 1902 e 1903, tendo aí a oportunidade de aprofundar seus conhecimentos, para além da mera experiência, não apenas em Pedagogia, como também em Psicologia. De volta ao Brasil, tratará de dar seguimento às suas pesquisas, bem como aos seus escritos.
Manoel Bonfim forma parte de um escasso grupo de intelectuais que ousam navegar a contracorrente do pensamento hegemônico de seu tempo. Apoiado em uma formação interdisciplinar, e para além das fronteiras do Brasil combinando achados de diferentes campos de saberes e fazeres - Biologia, História, Filosofia Social, Sociologia, Pedagogia, Psicologia, Literatura, Jornalismo e outros -, Manoel Bonfim ousa desafiar escritores e pensadores de referência, em sua época, a exemplo de Sílvio Romero e outros do seu tempo. Trata-se de uma época em que predominavam preconceitos de raça, revestidos inclusive de indumentária supostamente científica, como o da teoria da supremacia racial, além do determinismo geográfico (refletido, por exemplo, em “Os Sertões” de Euclides da Cunha) cultuando-se a tese do branqueamento. Preconceitos correntes na Europa e no Brasil, contra os quais se levantou Manoel Bonfim.
De 1905, com efeito, data a publicação de sua obra-prima, “A América Latina. Males de origem”, trabalho de fôlego, de Jaez histórico-sociológico, cujos conteúdos se acham distribuídos em cinco capítulos. Ao longo dessas páginas, ele cuida de refutar, com base científica, teses falaciosas de caráter racista e determinista, valendo-se de argumentos demonstrando, de ilustrações históricas, o caráter errático em que se apoiava a ideologia do branqueamento bem como desfazendo as teses do suposto determinismo geográfico.
Ainda no mesmo livro, Manoel Bonfim empenha-se em alertar os povos latino-americanos contra as ameaças da doutrina Monroe, por meio da qual os Estados Unidos, sob o pretexto de proteger os povos e os territórios da América Latina, buscavam dominá-los. Outro conceito aí desenvolvido - que ele constroi, inspirando-se na analogia com a Biologia - é o de “Parasita”, para explicar o subdesenvolvimento dos países Latino-Americanos, vítimas seculares do sistema de dominação e exploração imposto pelas nações centrais do Capitalismo que, comportando-se como “parasitas”, construíam suas riquezas a partir da pilhagem das riquezas dos povos latino-americanos.
Manoel Bonfim, não se limitando a apontar apenas os “males”, cuidou igualmente de acenar para os “remédios”: assegurar ao povo brasileiro e aos povos latino-americanos o ensino público e laico, especialmente o Ensino Fundamental. Tal foi o seu compromisso com a Educação, que Manoel Bonfim também chegou a compor o quadro docente da “Universidade Popular Aberta”, uma iniciativa, ainda que passageira, foi protagonizada pelos anarquistas, no final do século XIX. Bonfim dedicou o melhor de si a apostar na Educação como indispensável caminho de libertação pessoal e social, fazendo assim coro com outras vozes libertárias do seu tempo, a exemplo de José Martí (1853 – 1895), e de José Carlos Mariátegui (1894-1930) para os quais, o conhecimento também liberta. Nesta mesma linha de pensamento e de compromisso, Manoel Bonfim agirá também no plano político, ao exercer o mandato de Deputado Federal, sempre engajado nas melhores causas da Educação Popular, que reconhecia como a principal fonte do processo de humanização e de emancipação libertária.
Nesta mesma toada Manoel Bonfim também vai escrever vários textos, enaltecendo o papel da Educação Pública. Em seu ofício de Educador, escreveu o livro “Lições de Pedagogia” e “Lições de Psicologia".
Impõe-se ainda, assinalar a qualidade de polígrafo de Manoel Bonfim. No campo da História, por exemplo, convém ressaltar a famosa trilogia de sua lavra: “Brasil na América” (1929), “O Brasil na História” (1930) e “Brasil Nação” (1932). Nesta trilogia Manoel Bonfim empenha-se, primeiro, acentuar a necessidade de se conhecer o Brasil organicamente vinculado a América latina, e não de modo isolado, como se fosse um produto exclusivo da colonização portuguesa, sem vínculo com a colonização ibérica, razão pela qual propugnava por uma libertação conjunta da “Pátria Grande”. Neste sentido, associa-se, direta ou indiretamente, as figuras dos grandes libertadores da América Latina na perspectiva bolivariana.
Enquanto isso, em seu “O Brasil na História”, Bonfim, ao refutar com sólidos argumentos as versões ideologizante da história de nossa gente, cuida de sublinhar o protagonismo dos Indígenas sobretudo nos séculos XVI e XVII, ao destacar sua contribuição à formação de nossa nacionalidade, inclusive no campo da cultura (língua, costumes, valores, crenças, culinárias, pintura, dança, etc.). Ao rejeitar as teses racistas, reconhece as positividades da mestiçagem, em desfavor da tese do branqueamento.
Em seu “O Brasil Nação”, o autor revisita relevantes páginas de nossa história, em busca de uma compreensão crítica da formação de nossa nacionalidade, destacando especialmente a natureza e as estratégias das elites contra a enorme maioria de nossa gente, composta por indígenas e africanos escravizados, gente do campo, dominada e explorada pelas elites européias e grupos dominantes locais.
Manoel Bonfim é também co-autor, juntamente com Olavo Bilac, do romance intitulado “Através do Brasil” (tendo contato com mais 60 edições), tematizando as aventuras e viagens pelas regiões do Brasil, partindo do Norte, de personagens populares, a descobrirem paisagens geográficas e culturais de nossa terra e de nossa gente. Em se tratando de um autor polígrafo, Manoel Bonfim também se notabilizou no campo da literatura infantil, tendo mantido, por vários anos, a edição da Revista infantil O Tico-Tico, que circulou durante décadas, rivalizando com outras do gênero. No campo da Filosofia, também é de Manoel Bonfim a autoria do livro Pensar e Dizer: estudo do símbolo no pensamento e na linguagem (1923). Já ao final de sua trajetória existencial, Manoel Bonfim escreveu seu último texto, “Cultura e Educação do povo brasileiro” (1932), que parece ter restado inconcluso, sendo difícil encontrá-lo.
O que mais destacar do legado de Manoel Bonfim?
Tal como outras grandes figuras de intérpretes de nossa realidade, Manoel Bonfim apresenta um elenco de predicados e de produções a merecerem nosso reconhecimento e nossa homenagem, principalmente por se tratar de um autor cujo denso legado segue sendo ainda pouco conhecido e reconhecido. Ao visitá-lo, são múltiplos os aprendizados que dele recolhemos. Em primeiro lugar, digna de reconhecimento é sua paixão pelo povo brasileiro, pelos “de baixo”. Toda a sua vida, de pesquisador, foi dedicada a conhecer nossa história, indo a suas mais fundas raízes. Não escolheu caminhos fáceis, de reverência servil ao pensamento dominante de sua época, nem se deixou atrair pelas costumeiras lisonjas acadêmicas, tendo inclusive recusado participar da Academia Brasileira de Letras, e mesmo do Instituto Histórico-Geográfico do Brasil, cargos que o teriam projetado exponencialmente. Teve a coragem de enfrentar as correntes dominantes de seu tempo, em especial as teses hegemônicas pretensamente científicas acerca do determinismo racial e geográfico.
Nele, observamos o respeito à verdade dos fatos históricos, bem como os caminhos percorridos nesta direção. A via da interseccionalidade se faz presente em seu itinerário investigativo, ao combinar diversos saberes, em função de preciosos achados. Mesmo desconhecendo a extensão de suas leituras sobre fontes marxistas, percebemos algum tipo de influência, inclusive no que diz respeito à metodologia, à medida que apresenta sensibilidade dialética, em que certas dimensões tais como a da Totalidade, a do Movimento, a da Interação Universal, entre outras, se fazem presentes.
No momento em que atravessamos uma quadra histórica sombria, pelo avanço da ultra-Direita, em escala mundial, ameaçando cada vez mais a vida no Planeta, semeando o terrorismo de Estado e a cultura golpista, multiplicando os indices de desigualdades sociais e outros males, temos muito a aprender de figuras como a de Manoel Bonfim. De seu denso legado recolhemos inspirações múltiplas, capazes de reacender nossas esperanças, por meio das lutas, em um novo mundo possível, necessário e urgente.
João Pessoa, 23 de novembro de 2024.
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