Intérpretes do Brasil (XIX): a contribuição de Marilena Chauí
Alder Júlio Ferreira Calado
Pelo que podemos perceber como traços dominantes das figuras aqui tomadas como referências destacadas enquanto intérpretes da sociedade brasileira, lidamos com perfis plurais, quanto aos lugares específicos de sua atuação: ora os movimentos populares, ora o campo político - institucional, ora as organizações de resistência à Ditadura empresarial-militar (1964-1985), ora o campo intelectual específico, como é o caso de Marilena Chauí. Tratamos aqui de uma filósofa, de uma escritora, de uma acadêmica com atuação também nos espaços político-institucionais (militante do PT, secretaria da cultura, no município de São Paulo, no Governo Luiza Erundina).
Tendo em vista os objetivos principais que nos movem a escrever estas linhas, costumamos sublinhar o perfil preferencial de seus destinatários - jovens militantes de nossas organizações de base, em especial os Movimentos Sociais comprometidos com as lutas de transformação social de nossa realidade. Tal como fizemos, em relação a outros intérpretes, também procedemos no caso de Marilena Chauí: iniciamos com uma breve notícia bibliográfica sobre a autora, ressaltando suas principais contribuições teórico-metodológicas, concluindo com destaques especiais de sua contribuição como uma das figuras - intérpretes do Brasil.
Breve nota acerca de Marilena Chauí
Marilena de Souza Chauí, filha de Nicolau Alberto Chauí, jornalista, e de Laura de Souza Chauí, Professora, nasceu em São Paulo - SP em 4 de Setembro de 1941. Seus estudos no Ensino Fundamental e no Ensino Médio, tiveram relevante influência na escolha do Curso Superior que viria a fazer. Com efeito, especialmente o Ensino Médio, cursado no Colégio Presidente Roosevelt, Marilena Chauí dá testemunho entusiástico da qualidade do ensino de Filosofia ministrado 3x por semana, pelo professor João Eduardo Rodrigues Villalobos. Isto representou um motivo determinante para a sua escolha do Curso de Filosofia na USP. Tendo concluído a Graduação em Filosofia, sentiu-se determinada a prosseguir seus estudos e suas pesquisas, na mesma área, optando pelo Mestrado em Filosofia, escolhendo como tema a contribuição do filósofo francês Merleau Ponty. Em seguida, cuidou de preparar-se para o Doutorado em Filosofia, tendo-se debruçado sobre a obra do filósofo judeu-luso-holandês Baruch Spinoza.
A instalação do Golpe de Estado no Brasil, tendo ocorrido em 1964, vem a impactar profundamente a vida de Marilena Chauí e de diversos professores seus, na USP, além de centenas de outros docentes das Universidades Públicas de outros estados brasileiros. Episódio que marcará gravemente a biografia intelectual e política de Marilena e de toda uma vasta geração de docentes e de estudantes universitários e secundaristas, além de Governadores (Leonel Brizola, Miguel Arrais), numerosos parlamentares, lideranças sindicais e de movimentos populares, por longos e tenebrosos 21 anos, durante os quais o povo brasileiro teve que amargar perseguições, censura, cassações, torturas, assassinatos e exílio de milhares de brasileiros e brasileiras. Diante dos vários crimes da ditadura empresarial-militar, escandaliza-nos profundamente a abjeta campanha pela anistia, promovida pelas forças obscurantistas da extrema-direita, buscando eternizar a impunidade aos golpistas contumazes.
Marilena Chauí, desde então a partir da Arena Universitária, tem-se destacado por sua reconhecida contribuição como Professora, como pensadora, como escritora e como militante política. Ainda no final dos anos 1960, acompanhou com entusiasmo as lutas libertárias dos estudantes, na França e em vários países do mundo ocidental, inclusive no Brasil, na crítica ao modelo universitário então vigente, bem como na crítica ao modelo de sociedade dominante. Igualmente, durante a década de 1970, fez ecoar seus escritos e sua crítica contra o autoritarismo da Ditadura civil-militar, presente no Brasil e no Cone Sul.
Enquanto isto, não tem cessado de investir em suas pesquisas e na publicação de seus livros, de outros escritos, de entrevistas e outros pronunciamentos. Abaixo segue uma lista reunindo parte expressiva de sua produção: O que é ideologia (1983); O poder do mito (1986); Convite à filosofia (1996); Cultura e democracia: o discurso liberal e a crítica da modernidade (1995); A cidade de Platão (2001); A primeira geração do pensamento ocidental (2001); A utopia e a ordem (2000); Ideologia da competência (2002); Os direitos humanos e a política da igualdade (2003); Filosofia e fundação (2006); Sartre e o problema da liberdade (2006); Tornando-se sujeito: Filosofia e política no pensamento moderno (2011); Os sentidos do pensamento (2010); Pensamento social no Brasil (2013); Filosofia política (2015).
Nos anos 1980, integrou-se ao grupo de protagonistas fundadores do Partido dos Trabalhadores (PT), enquanto, no governo de Luíza Erundina, então prefeita de São Paulo, exerceu o cargo de secretária de Cultura. Em diversas entrevistas concedidas a órgãos da imprensa, a exemplo do programa de TV Roda Viva, foi provocada sobre diferentes temas espinhosos, inclusive acerca do dilema de conciliar sua posição de intelectual com o exercício de cargo administrativo. Sempre reconheceu a quase incompatibilidade ético-política do exercício nessas diferentes esferas da realidade social, tendendo a avaliar como incompatíveis, pelo fato de que, enquanto intelectual que persegue a coerência com o pensar político filosófico, no exercício de cargos governamentais, o que está em jogo é antes o poder, não necessariamente a coerência ética. Situação, aliás, que se deu também em relação a outros nomes, a exemplo de Paulo Freire. Quando o intelectual se rende estritamente ao poder - foi o caso de Fernando Henrique Cardoso - ele não hesita em escolher o poder, dando as costas à sua responsabilidade de intelectual.
Marilena Chauí, sempre solidamente calcada em argumentos críticos, tem-se revelado como uma intérprete dos dramas mais agudos da sociedade brasileira. Em seus escritos, em suas palestras, em suas entrevistas e outros pronunciamentos, servindo-se de conceitos tais como “Democracia”, “Resistência”, “Ideologia”, “Ideologia da Competência”, entre outros, ela segue oferecendo valiosas contribuições a uma compreensão crítica de nossa sociedade. Ainda recentemente, em palestra/entrevista, acerca dos complexos desafios de nossa atualidade, ela recorria aos conceitos de “Atopia” e “Acronia”, como fecundos instrumentos conceituais para interpretar os dramas mais agudos dos tempos de hoje. Em razão da aposta cega que o atual modo de produção, de consumo e de gestão societal privilegia, por exemplo, a “Inteligência Artificial” e a diversos equipamentos tecnológicos sofisticados, ela exemplifica o caso do “celular” como sendo emblemático para induzir acriticamente os usuários a absolutização deste equipamento eletrônico, de tal modo a perder de vista as noções de espaço (“atopia”), e de tempo (“acronia”), desconsiderando tanto a dimensão espacial quanto a dimensão temporal ou histórica, tudo se reduzindo apenas ao que o usuário contempla na tela do seu celular.
Destacando aspectos mais relevantes dos escritos de Marilena Chauí
A memória histórica dos oprimidos segue sendo uma fonte fecunda de aprendizado e de sinergia revolucionária para os militantes de ontem e de hoje, bem como para nossas organizações de base. Revisitar o pensamento e os feitos de Marilena Chauí também tem este sentido. Tendo a Academia como palco maior de sua atuação, ela também estende seu agir para a arena político-partidária, sem descuidar de outras forças sociais comprometidas com a transformação de nossa realidade.
Seu ponto de partida - bem indicado, aliás, por seus escritos - têm sido o filosofar, conjugado com seu agir militante. Ela encontra, para tanto, um amparo teórico-metodológico em três autores (Baruch Espinoza, Merleau Ponty e, com menor incidência, Karl Marx) referenciais, notoriamente distintos, nos quais encontra uma síntese, indo além do mero filosofar, à medida que também se compromete com as lutas populares, em busca de uma sociedade alternativa.
Suas lutas vêm se dando, com efeito, em diversas frentes. Nos embates ideológicos, Marilena Chauí, seja por meio de seus livros, a exemplo de “O que é Ideologia”, seja em suas concorridas palestras, se empenha em desnudar os truques e camuflagens característicos dos aparelhos ideológicos do Mercado e do Estado - para o que recorrem a quase onipresença de sua mídia e de suas redes digitais, além da Família, da Escola, das Igrejas, etc. Outra frente que ela vem assumindo desde os anos 1980, é a luta partidária, por meio de sua militância no Partido dos Trabalhadores (PT). Sua atuação também tem se destacado por enfrentar estratégias e táticas das forças da Direita e da Extrema - Direita, inclusive em períodos mais recentes.
Embora admitindo não se tratar de um terreno de luta preferencial, ela também contribuiu no campo administrativo, ao assumir a Secretaria de Cultura, no Governo Luiza Erundina, no Município de São Paulo. A despeito de sua resistência à militância neste plano, seu trabalho à frente da Secretaria de Cultura de São Paulo teve amplo reconhecimento graças inclusive a qualidade do seu Plano de trabalho, então posto em prática: o objetivo não era apenas o de assegurar as diversas comunidades do centro e das periferias urbanas de São Paulo, de fluir o direito à cultura, em suas diversas dimensões, mas também o de garantir-lhes o direito de produzirem Cultura (Teatro, Música, Dança, etc), bem como o de aplicar políticas culturais integradas.
Marilena Chauí continua sendo alvo de interesse para além do campo acadêmico, razão por que segue sendo frequentemente convidada a participar de entrevistas (a exemplo das concedidas ao Programa “Roda Viva”), a ministrar palestras - várias delas disponibilizadas no Youtube -, bem como de mesas redondas e semelhantes. Vale a pena que nossas organizações de base se apliquem, cada vez mais e melhor, em aprofundar o pensamento e as diversas contribuições que ela vem oferecendo a uma compreensão crítica de nossa sociedade, em busca da contínua transformação de nossas relações sociais, econômicas, políticas e culturais.
João Pessoa, 14 de Abril de 2025
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