terça-feira, 24 de junho de 2025

Intérpretes do do Brasil (XXI): a contribuição teórico-prática de Sueli Carneiro ao Feminismo Negro.

Intérpretes do do Brasil (XXI): a contribuição teórico-prática de Sueli Carneiro ao Feminismo Negro. 


Alder Júlio Ferreira Calado 


Reiterando, como hábito, nosso propósito de incentivar nossas organizações de base, por meio de seus militantes, a manterem firme seu/nosso compromisso de transformação social, por meio de nossa formação permanente e pelo exercício cotidiano da memória histórica dos oprimidos, seguimos revisitando figuras de nossa sociedade - mulheres e homens - cuja trajetória de vida e militância nos inspira relevantes ensinamentos para lidarem adequadamente com velhos e novos desafios, que nos são colocados pela atual conjuntura. Desta vez, tratamos de revisitar aspectos fundamentais de Sueli Carneiro, eminente figura de pensadora e de militante das lutas feministas - afrodescendentes da atualidade. 


Iniciamos com uma breve notícia biobibliográfica sobre a autora, passando a realçar aspectos mais relevantes de sua militância e de  obra, para finalmente destacar inspiradoras lições dela recolhidas para um exitoso enfrentamento dos desafios da atualidade.


Breve notícias biobibliográficas sobre Sueli Carneiro 


Aparecida Sueli Carneiro, filha de José Horácio Carneiro e de Eva Camargo Alves, nasceu em São Paulo - SP, em 24 de Junho de 1950. Após concluir o Ensino Médio, optou pela Graduação em Filosofia, pela Universidade de São Paulo (USP), curso que concluiu em 1980. Dando seguimento aos seus estudos, na mesma Universidade, continuou nas trilhas da Filosofia, tendo concluído seu Mestrado, em 1999. Definindo-se, pela Filosofia da Educação, cursou seu Doutorado concluído pela USP em 2005. 


No campo específico da Filosofia da Educação, Sueli Carneiro, em busca de melhor apreender e compreender os processos de dominação a que as Mulheres e os Negros estiveram sujeitos, dedicou-se a perseguir as raízes histórico-filosóficas e educativas de como a sociedade brasileira, através de séculos, vem cultivando relações patriarcais e racistas, combinadas com relações classistas. Disto falam bem seus estudos de Pós-Graduação (Tese e Dissertação), bem como sua vasta produção biográfica, inclusive presente em numerosos artigos publicados na imprensa brasileira, (tanto em jornais quanto em revistas) principalmente no “Correio Braziliense” no qual, de 2000 a 2008 publicou em torno de 150 artigos. Cumpre ainda destacar outros livros de sua lavra: 

  • “ Racismo “Sexismo e desigualdade, no Brasil” (2011)

  • “Mulher Negra: política governamental e a mulher” (1985)

  • “Escritos de uma vida” (2020), no qual reúne seus textos publicados na imprensa brasileira (“Correio Braziliense”);  

  • “ O Gênero e raça: O feminismo negro no Brasil” (2020)

  • “Dispositivo de Racialidade: A Construção do outro como não ser como fundamento do ser” (2023) 


A ideia central da qual milita Sueli Carneiro, principalmente presente em sua tese de Doutorado, é sua busca de compreender a natureza e a extensão das relações raciais e patriarcais, combinadas com as relações de classe social, que marcaram e ainda marcam o cotidiano das Mulheres e dos Negros no Brasil.  


Diferentes depoimentos seus, confirmadas inclusive por pesquisadores e biógrafas que dela se ocuparam, vale lembrar que Sueli Carneiro buscou sempre combinar seus estudos e pesquisas com sua participação política e cultural, principalmente junto aos movimentos de Mulheres e no acompanhamento das lutas do Movimento Negro no Brasil e em outros países. A crescente participação político-cultural nas lutas feministas e no Movimento Negro inspirou também os trabalhos de varias pesquisadoras e Biógrafas de Sueli Carneiro, entre as quais destacam-se Bianca Santana, Rosane Borges, e Yara Frateschi (cf.https://blogdaboitempo.com.br/2021/10/22/o-pensamento-feminista-negro-de-sueli-carneiro-para-alem-dos-reducionismos-de-classe-e-genero/) , também sugerimos conferir o seguinte blog (cf.https://sites.utexas.edu/llilas-benson-magazine/2024/09/25/epistemologias-feministas-negras-aprendendo-com-sueli-carneiro/).


No caso de Bianca Santana importa realçar, por exemplo, sua extrema dedicação à pesquisa sob diferentes aspectos, a trajetória existencial de Sueli Carneiro, suas raízes familiares, bem como a denunciar o apagamento histórico sobre a condição negra no brasil, contando até objetivamente com a contribuição de Ruy Barbosa, ao protagonizar, em 1890, uma espécie de “Operação Borracha”, ao mandar queimar farta documentação relativa aos crimes cometidos contra os africanos e africanas escravizados no Brasil. 


Quanto a Rosane Borges, trata-se de outra pesquisadora, especialmente no campo da Comunicação Social, tendo-se também dedicado a focar diferentes aspectos da trajetória e das obras de Sueli Carneiro tendo ainda produzido diversos vídeos sobre aquela autora. Igualmente, Yara Frateschi se apresenta como outra pesquisadora do legado desta autora, especialmente no campo da Filosofia, em que destaca a densa contribuição desta intérprete do Feminismo Negro, no Brasil e no mundo, não apenas como pensadora crítica das relações étnicas hegemônicas na sociedade brasileira, como também sua dimensão de ativista comprometida com os processos libertários feministas e afro-brasileiros. 


Pondo em relevo traços mais fortes da vida de Sueli Carneiro 


Uma marca comum observável entre as figuras mais apreciadas do Feminismo e da Negritude, no Brasil e no Mundo têm sido seu empenho em, partindo dos ensinamentos de suas próprias experiências de mulheres negras, combinarem seu compromisso investigativo com suas atividades e militância, em diversas frentes de luta. No caso específico de Sueli Carneiro, também se confirma esta tendência. 


Em longa entrevista, concedida a Mano Brown, há 3 anos atrás. Podemos perceber, traços relevantes de Sueli Carneiro. A começar pelas lembranças compartilhadas, de sua família - seu pai, sua mãe com sete filhos e filhas. À medida que a família vai aumentando, e o salário do pai encurtando, a família vai sendo empurrada para a periferia, cada vez mais distante. Sueli, passa a compreender, pouco a pouco, o “destino” reservado aos negros, em nossa sociedade. Após concluir o Ensino Médio, e já ensaiando passos de inserção no Movimento Negro e no Movimento Feminista, Sueli Carneiro, escolhe o campo da filosofia e da filosofia da educação, como caminho de luta e de resistência, combinando com sua militância nos movimentos populares, especialmente no movimento feminista e no movimento negro.


Como pesquisadora, após concluir o seu Mestrado e seu Doutorado, empenha-se em combinar esta condição, com a sua contribuição de políticas públicas voltadas para as classes populares. Sempre combinando na prática e na teoria, as dimensões, de Gênero, Raça e Classe. Vale a pena, por exemplo, conferir o teor de toda a sua entrevista, acessando https://open.spotify.com/episode/2eTloWb3Nrjmog0RkUnCPr .


Tendo em vista que, justamente hoje, 24/06/2025, Sueli Carneiro completa seus bem vividos 75 anos, cuidamos de abreviar nosso trabalho, no intuito de prestar-lhe uma homenagem especial, em reconhecimento e gratidão, pela sua vida de luta e de resistência, sempre fiel à causa do feminismo negro.


João Pessoa, 24 de Junho de 2025. 


sábado, 21 de junho de 2025

Vivenciando XV Semana Teológica Pe. José Comblin


No Brasil e em escala mundial, amargamos uma quadra histórica atípica e distópica, de profundo alcance destrutivo para o Planeta, para os humanos e os demais viventes. Uma conjuntura de crescente ascenso das forças de Direita, notoriamente cruéis e ameaçadoras para os empobrecidos e as empobrecidas. Inclusive, ao interno das Igrejas cristãs, a Profecia se tem mostrado cada vez mais escassa. É em tal contexto que se dá a organização da XV Semana Teológica Pe. José Comblin (STPJC).

Dando sequência aos preparativos de organização da XV STPJC, cuja 1ª Jornada Comunitária realizaremos, junto à Comunidade de Nossa Senhora de Fátima, no Alto das Populares, em Santa Rita-PB, no próximo dia 19 de Julho, estamos propondo como tarefa de reflexão comunitária, este breve texto, seguido de três questões provocativas a serem discutidas em pequenos grupos.

Atendo-nos ao tema geral desta XV STPJC - “José Comblin, com os empobrecidos de hoje, assumindo o Projeto de Jesus” -, partimos da constatação de um crescente distanciamento das práticas eclesiásticas predominantes, em relação à Tradição de Jesus. Ao revisitarmos, por exemplo, o livro “Jesus de Nazaré”, de autoria de Comblin, publicado pela Vozes em 1971, e conferindo o extenso elenco de citações neotestamentárias, especialmente dos Evangelhos, e comparando com o cenário das atividades predominantes nas Igrejas cristãs de hoje, percebemos um crescente distanciamento entre as práticas eclesiásticas corriqueiras, de um lado, e, de outro, as práticas características de Jesus e das primeiras comunidades cristãs.

Eis por que importa destacar trechos mais relevantes do livro de Comblin, que é composto por seis capítulos, versando sobre diferentes temas vinculados à vida de Jesus - 1. “O Homem”; 2. “Livre”; 3. “Irmão”; 4. “O Pai”; 5. “A Esperança”; 6. “A Missão”. Nesta Jornada, que nos baste uma especial atenção a algumas citações que julgamos mais oportunas para o nosso momento histórico (dentro e fora dos espaços eclesiais). Por exemplo:

Ao rememorar a convivência com seus discípulos, Comblin menciona “a desigualdade do relacionamento entre Jesus e os Doze” argumentando a partir do próprio Evangelho: “‘Não me escolhestes a mim: mas eu vos escolhi’ (Jo 15,16). Com essas condições, já se explica porque os evangelhos não dão valor às relações ‘interpessoais’ ou à psicologia da amizade. O relacionamento de Jesus com os seus discípulos não pode ser compreendido fora do quadro da missão. Jesus não se liga à família dos seus discípulos, aos amigos ou colegas. Tudo está subordinado à missão; ‘Outro dentre os discípulos lhe disse: Senhor, deixa-me primeiro enterrar meu pai. Mas Jesus replicou-lhe: Segue-me e deixa que os mortos enterrem os seus mortos’ (Mt 8,21-22).” (p. 22). Comblin ressalta ainda que “Essa prioridade da missão não deve ser interpretada no sentido de uma relação de pura funcionalidade. Dentro da vida comum a serviço de uma missão comum, nasceu um entrosamento profundo e um verdadeiro apego dos discípulos baseado num reconhecimento verdadeiramente humano. Os discípulos não são os sacerdotes serventes do culto de seu Deus, e tampouco são servidores ou empregados a serviço de uma empresa de conquista de pessoas. São colaboradores e realmente amigos.” (p. 23)

Outra atitude exemplar em Jesus observamos quando ele se relaciona com as multidões: “Jesus atraiu as multidões. Quando o povo teve conhecimento das curas maravilhosas que fazia, as multidões acorreram. Assim também acontece hoje quando surge a fama de um taumaturgo: as multidões se precipitam. Milhares e milhares de misérias humanas habitualmente escondidas aparecem à luz do dia. E Jesus não se nega à multidão. Ensina-lhe. Não reserva os seus ensinamentos a um grupo privilegiado. Fala para todos, aberta e publicamente, de acordo com as suas parábolas, a do semeador e a da semente, por exemplo (Mc 1,28,32,38; 2,1-11).” (p. 25-26)

Comblin chama a atenção ao aspecto da “liberdade”, na pessoa e no discurso de Jesus. “Jesus foi, antes de tudo, um homem livre. Fez resplandecer a sua liberdade diante dos adversários. O seu exemplo emancipou a consciência dos seus discípulos e abalou o poder daqueles que pretendiam discipliná-la. Morreu depois de três anos de vida pública apenas, porque não quis ocultar, nem sequer atenuar, as manifestações exteriores de sua liberdade: morreu porque desafiou a prudência e a sabedoria dos poderosos que se sentiram ameaçados pela sua liberdade. Essa liberdade não é apenas um traço de caráter, um sinal distintivo da sua personalidade. É muito mais: Jesus mostrou-se como homem livre porque a libertação e a liberdade eram o núcleo da sua mensagem. Paulo condensa essa mensagem em poucas palavras: ‘Fostes chamados, irmãos, à liberdade’ (Gl 5,13). ‘Para ficarmos livres é que Cristo nos libertou’ (Gl 5,1).” E continua Comblin, “Essa aspiração à liberdade, esse sentimento de liberdade, Jesus não os criou, não os inventou; encontrou-os no meio do seu povo. Porém, soube e quis mergulhar até o fundo da alma do seu povo, o povo de Israel, e suscitar do fundo da alma do seu povo uma exigência absolutamente radical, como nenhum israelita tinha feito até então.” (p.29).

Ao tratar da relação entre os judeus e os processos de libertação ao longo da história, Comblin, à luz do Antigo Testamento, destaca: “(...) a liberdade de Israel não se refere à sua relação com as demais nações puramente no plano da política internacional: a liberdade era e devia ser um modo de ser, uma forma de vida coletiva e pessoal com outra qualidade. Ser livre não é ser independente; é viver segundo o modo da liberdade (…)”. E continua, “O povo de Israel não é propriedade de ninguém: pertence a Deus. Nele, portanto, não há dominadores e dominados. Todos são membros da mesma aliança. Pois a aliança não é apenas um pacto entre Deus e as criaturas. É também um pacto em que todos os seres humanos ligados ao mesmo Deus se unem uns aos outros. É a primeira alusão na história da humanidade a um ponto reunido por um acordo voluntário. Quando se celebrou a aliança no monte Sinai, Deus disse: ‘Vós me sereis um povo de reis e de sacerdotes’ (Ex 19,6) (...) Deus quis dizer que os Israelitas não seriam servidores nem reis nem sacerdotes. Todos seriam reis e sacerdotes: todos seriam iguais entre si. As diferenças entre eles seriam apenas no serviço (assim postula o livro do Deuteronômio). A missão de Jesus situa-se na linha da promessa de um povo de reis e sacerdotes: um povo de irmãos, todos unidos por um mesmo pacto e uma aliança de fraternidade, todos iguais e respeitosos uns dos outros, de acordo com o espírito das leis que explicitaram esse espírito.” (p. 32).

A compreensão do sentido de liberdade e da libertação de Jesus, ressaltada no segundo capítulo, perpassa a compreensão de que ele “Era judeu e entendia a liberdade como os judeus.” “As pessoas livres já estavam presentes. Jesus já as tinha ao alcance da palavra. Esse povo formado pelos pobres de Israel era educado no espírito dos profetas. Não seria necessário suscitá-las. Elas, esse resto do verdadeiro Israel, seriam as emissárias, as missionárias da liberdade no mundo inteiro. O que era necessário fazer, então? Nada mais, nada menos do que proteger e garantir a liberdade desses pobres de Israel das ameaças, da sedução e da falsa educação dos líderes religiosos que, como maus pastores, enganavam o povo de Israel. As pessoas livres estavam aí, porém seduzidas, mantidas numa falsa escravidão por uma falsa interpretação dos fariseus, dos sacerdotes, dos escribas.” (p. 35). (...) “Era preciso ressuscitar o povo adormecido pelos maus conselheiros, paralisados por uma religião de preceitos e de obras, de temor e de rigor que lhe tirava completamente o espírito de liberdade e a perspectiva da vocação universal. Jesus definiu o seu próprio combate no ponto central. Era preciso desenganar o povo de Deus e restituir-lhe o sentido da vocação, despertá-lo para estar a serviço do Reino de Deus, devolver-lhe a sua autoestima e a consciência das energias divinas que Deus lhe entregara.” (p.36).

Ainda no segundo capítulo, no tópico “O Combate”, Comblin resgata algumas passagens de denúncias e acusações diretas a fariseus, a escribas, a herodianos: “Atenção! Guardai-vos do fermento dos fariseus e do fermento de Herodes!” (Mc 8,15); “Os escribas e os fariseus ocupam a cátedra de Moisés; dizem e não praticam. Amarram pesados fardos nas costas dos homens, mas eles próprios não os querem mover nem com o dedo” (Mt 23,2-4). “Praticam todos os seus atos de modo a serem vistos pelos homens. Gostam dos primeiros lugares nos banquetes e das primeiras cadeiras nas sinagogas; gostam de receber saudações nas praças e de ser chamados rabbi pelos homens” (Mt 23,5-7). “Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas, que fechais o reino dos céus aos homens! Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas que percorreis terra e mar para granjear um prosélito e, uma vez conquistado, o tornais merecedor do inferno duas vezes mais do que vós! Ai de vós, guias cegos! (...) (Mt 23,13-33)”. E, na sequência, destaca a preocupação das autoridades sobre a mensagem de Jesus: “A luta de Jesus não vai diretamente contra as autoridades sociais, nem contra as autoridades judaicas: é apenas uma luta contra o partido religioso, contra uma interpretação da religião. Porém, as autoridades perceberam muito bem que essa interpretação de Jesus não é uma opinião qualquer de uma nova escola rabínica, uma entre muitas. Adivinham que esta nova interpretação questiona a sociedade inteira. (...) Mas a posição de liberdade e de proclamação da liberdade do povo de Israel constituíram uma ameaça. Daí a preocupação das autoridades. Jesus não faz nenhum ato de insurreição. Mas tampouco faz qualquer gesto de conciliação para tranquilizar as autoridades. Mantém toda a sua liberdade.” (pp.40-42).

Nesse percurso sobre as temáticas do livro “Jesus de Nazaré”, Comblin, no capítulo 4, em que trata do “Pai”, destaca um importante aspecto da caminhada de vida e da espiritualidade reinocêntrica de Jesus. No tópico “Vivência”, diz Comblin:

“Se os evangelhos não nos fornecem nenhuma doutrina abstrata sobre o Pai, podemos reconstruir a partir das atitudes de Jesus o modo de se viver como seus filhos. O Pai é conhecido numa vivência. Jesus mostra-nos que o que importa não é invocar constantemente o nome de Deus, e sim viver de um modo tal que corresponda à vontade do Pai. O que o Pai quer não é que os filhos fiquem sempre preocupados com Ele, e sim realizem neste mundo o seu plano e cumpram a missão que Ele lhes entregou. (...) Nisso, o cristianismo é diferente de todas as religiões conhecidas e Jesus revela um Deus desconhecido: um Deus que não se interessa pelo culto e nem deseja culto, mas quer uma existência humana dedicada ao serviço das pessoas. Jesus não inventou nenhum culto, nem praticou um culto: porém ele veio ‘para servir e dar a vida em resgate para humanidade’ (Mt 20,28). O Pai não quer homenagens nem louvores, Ele quer que a missão de servir a humanidade seja cumprida.” (p.77). Continua Comblin: “Com essas condições, o verdadeiro serviço a Deus não é vivido por meio da dedicação a um culto. Deus não precisa de escravos a seu serviço. O serviço de Deus é cumprir uma missão. A obediência a Deus significa a dedicação de todas as energias humanas para organizar a própria vida na realização da missão recebida. Jesus obedece ao Pai, não no templo de Jerusalém, oferecendo sacrifícios, e sim nas estradas da Galileia, realizando a sua missão de pregador, taumaturgo e testemunha. Esse relacionamento de obediência criadora e criativa repercute no relacionamento de Jesus com a realidade e com as pessoas do seu tempo.” (p.78).

“Vejamos em primeiro lugar como o serviço ao Pai marca a realidade. Constata-se que a aceitação radical de sua missão tornou Jesus uma pessoa livre e despreocupada em relação aos acontecimentos e às situações do mundo exterior. Ficou livre do medo, das preocupações, da angústia que não abala a sua personalidade. Até nos piores momentos da sua existência, a aceitação de sua missão ocupou de tal forma a sua pessoa que a angústia não encontrou espaço no seu interior. O temor não consegue perturbar as raízes da missão de Jesus. Nada consegue perturbar a sua pessoa e o seu espírito. Daí esses textos famosos: ‘Não estejais preocupados por causa de vossa vida (...) o vosso Pai celeste as alimenta (....) Não vos inquieteis (...) vosso Pai celeste sabe que necessitais de tudo isto (...) Não vos preocupeis, pois, com o dia de amanhã, porque o dia de amanhã trará os seus cuidados. Basta a cada dia o seus cuidados’ (Mt 6,25-34).” (p.78).

“Em meio a todos esses acontecimentos e através deles, Jesus percebe o advento de uma realidade inelutável: O Reino de Deus. Esse conceito de Reino de Deus é uma criação sua (...) Na ideia de Jesus, porém, o Reino de Deus reunia todos os aspectos da sua esperança: sintetiza tanto a meta final como as provações e as resistências (...).” (p.92). 


Não é o servidor maior que o senhor, nem o mensageiro maior do que aquele que o enviou. Se vocês compreenderam isso, serão felizes se o puserem em prática (Jo 12,16-17)”. (p.114).



Motivados pela Esperança e confiantes na Missão para a qual Jesus nos envia, por meio do Espírito do Ressuscitado, somos chamados a refletir sobre as seguintes questões:


  1. À semelhança (ou diferentemente) do tempo de Jesus, na Galileia, e de outros tempos, que outros rostos de empobrecidos e empobrecidas podemos observar, em nossos dias?


  1. Em nossas Igrejas atuais, cresce a tendência ao louvor, à adoração e ao extremo devocionismo. Como Jesus testemunhava sua obediência ao Pai?


  1. Que experiências e práticas ensaiadas entre nós nos ajudam a dar razão à nossa Esperança (cf. I Pd 3:15)? 




João Pessoa, 14 de junho de 2025


Contribuição do Grupo Kairós






terça-feira, 17 de junho de 2025

Angelina, presente! Fidelidade e compromisso com a Classe Trabalhadora

 Angelina, presente! Fidelidade e compromisso com a Classe Trabalhadora


Alder Júlio Ferreira Calado


Uma das marcas proféticas mais fecundas das Leigas e dos Leigos católicos, no Brasil e no mundo, decorre diretamente das atividades protagonizadas pela Juventude Operária Católica (JOC), especialmente durante as décadas de 1950 a 1960. Tanto ao interno da Igreja Católica, quanto em relação à sociedade civil, a JOC conta com amplo reconhecimento de seu compromisso profético com a causa libertadora dos trabalhadores e trabalhadoras no Brasil, na América Latina e no mundo. Maria Angelina de Oliveira, que teve sua páscoa definitiva no dia 14/06/2025, constitui uma das figuras mais comprometidas da JOC ao longo de sua vida, havendo exercido sua direção consecutivamente do plano regional, ao plano nacional e internacional. Seu início na JOC data de 1955, aos 21 anos, em João Pessoa, ao lado de outros militantes jocistas igualmente comprometidos, a exemplo de Elias Cândido do Nascimento e João Fragoso. Em 1957, graças ao seu reconhecido engajamento, Angelina assume a Coordenação Regional da JOC no Nordeste. Naquela ocasião, a chamada Ação Católica Especializada (JAC, JEC, JIC, JOC e JUC) ganhava especial relevância no Brasil, em uma conjuntura sócio-eclesial de notória efervescência, inclusive por conta do ascenso dos movimentos e das lutas sociais no Brasil. No âmbito da Igreja Católica, graças à fundação da CNBB, com a dinâmica especial impressa por figuras episcopais como a de Dom Helder Câmara, a de Dom José Vicente Távora, a de Dom Antônio Batista Fragoso e outros nomes comprometidos com a JOC e com a causa libertadora dos pobres, Angelina se destaca cada vez mais nesta caminhada, a ponto de ser eleita para a Coordenação Nacional da JOC, em 1960. Em 1964 assumiu o trabalho de extensão da JOC na Colômbia e em 1966 foi responsável pelo Serviço de Formação e Extensão do movimento, atuando na Ásia, África e América Latina. Por ocasião da realização do Conselho Mundial da JOC, em 1969, no Líbano, Angelina passa também a integrá-lo como vice-presidente. 


Em 1971, plena Ditadura Empresarial-Militar, ela retorna ao Brasil, indo residir e trabalhar em Recife-PE., como operária numa fábrica de tecidos. Dada seu compromisso social com os trabalhadores e trabalhadoras, vem a ser perseguida e presa, após o que foi militar em Crateús-CE, Diocese da qual era Bispo Dom Antônio Batista Fragoso, que também militava na JOC desde recém-ordenado padre, tendo ele próprio sido assistente da JOC. 


Após breve passagem por João Pessoa, Angelina segue para o Rio de Janeiro, para integrar a equipe da Pastoral Operária, bem como militar junto à Central de Favelas e Associações de Moradores. Foi em 2011, com seu retorno a João pessoa, que tivemos a alegria, no Grupo Kairós, de contar com a participação efetiva de Angelina, ao lado de outros membros do Grupo, tais como João Fragoso, Elias Cândido do Nascimento (da Ação Católica Operária), Magdala Melo (ex-Jecista), entre outros. 


Dada a necessidade de ir morar com suas irmãs, em Recife, continuou a acompanhar ativamente as atividades da JOC, em diversas regiões do Brasil e do Mundo. Sempre que lidamos com gente como Angelina, sentimo-nos propensos a parafrasear Bertolt Brecht, ao afirmar: “Há mulheres que lutam um dia e são boas, há outras que lutam um ano e são melhores, há as que lutam muitos anos e são muito boas. Mas há as que lutam toda a vida e estas são imprescindíveis”. Angelina, presente!


João Pessoa, 17 de junho de 2025





terça-feira, 3 de junho de 2025

O alcance beligerante da omissão: nossas organizações de base na berlinda

O alcance beligerante da omissão: nossas organizações de base na berlinda

                                                                     Álder Júlio Ferreira Calado


          A ofensiva das forças de Direita não cessa de prosperar em várias trincheiras, da escala internacional, latino-americana ao plano Nacional. Prossegue, desde décadas, o genocídio contra o povo Palestino, ao vivo e em cores, a dizimar crianças e mulheres, com a escandalosa cumplicidade do Ocidente e, em certa medida, também com a omissão de aliados históricos. Em outra conjuntura, por exemplo, nos anos 1960, seria impensável a atual posição dominante dos governos dos países árabes, salvo uma ou outra exceção. Em vão, esperar compromisso concreto da parte do Ocidente, tanto dos Estados Unidos quanto dos governos europeus, ( quase ) todos cúmplices da tragédia de Gaza. Também, em âmbito Latino-Americano, salvo honrosas exceções, a exemplo de Cuba, da Venezuela, da Colômbia, da Bolívia, do Chile e países da Comunidade de Estados Latino-americanos e do Caribe, CELAC – , são bastante tímidos os acenos de solidariedade ao Povo Palestino, isto quando o silêncio não fala mais alto...

           No caso do Brasil, não apenas no que concerne ao Oriente Médio, mas a diversas outras questões internacionais e nacionais, tendemos, enquanto organizações de base (forças populares, movimentos sociais, sindicais e organizações partidárias de esquerda), a torcerem e esperar que os conflitos se resolvam apenas pela via da institucionalidade, limitando-nos a raras manifestações públicas, quando não a meras notas de repúdio. A este propósito, importa observar a armadilha em que o Governo brasileiro incorre reiteradamente, graças ao potencial articulado de forças inimigas da sociedade, a exemplo do monopólio financeiro, do Banco Central, da mídia comercial, entre outros, com os quais o Governo teima em atuar, sob a forma de “Frente Ampla”, não se dando conta do tamanho da armadilha a que sucumbe.

          Uma simples atenção aos frutos de nossas ações, no decorrer das últimas décadas, seria suficiente para constatarmos o alcance pernicioso de nossa atitude de espera passiva. Inclusive no plano estritamente eleitoral, as forças que ainda apostam apenas nesta via acenam por comportamento de omissão, tanto mais em relação a ações de efetiva mobilização. Eis por que tanto nos inquietamos com a manutenção desta atitude que claramente nos arrasta a uma espécie de suicídio coletivo, à medida que teimamos em apostar que basta confiar na dinâmica institucional de poderes profundamente corroídos e comprometidos com as forças letais do Capital. Parece até que estamos perdendo o senso dos graves riscos que corre a humanidade, na atual conjuntura.       

          Por outro lado, nem tudo está perdido. Ao buscarmos navegar pelas correntezas subterrâneas, percebemos experiências alternativas, ainda que moleculares, que se acham em marcha, tento em escala planetária, quanto em âmbito latino-americano e brasileiro. Todas essas experiências, no entanto, não se dão submetidas a apostas institucionais, mas se acham fermentadas com um levedo alternativo à lógica do Mercado Capitalista e suas instituições caducas, mas ainda capazes de enorme poder de destruição sócio - ambiental, dos humanos e demais viventes.


 João Pessoa, 3 de junho de 2025