quarta-feira, 30 de março de 2022

UM BIÓGRAFO À ALTURA DO BIOGRAFADO: breves considerações acerca do livro de Eduardo Hoornaert: “Helder Câmara, uma vida que se fez Dom”

                                        UM BIÓGRAFO À ALTURA DO BIOGRAFADO:

breves considerações acerca do livro de Eduardo Hoornaert:

“Helder Câmara, uma vida que se fez Dom” *


Alder Júlio Ferreira Calado


A editora Paulus acaba de publicar uma biografia sobre Dom Helder Câmara, elaborada pelo historiador Eduardo Hoornaert.


Acabo de ler, ou melhor, de ouvir a leitura completa de uma biografia atípica acerca da veneranda figura de Helder Câmara. Com efeito, o biógrafo Eduardo Hoornaert se mostra muito atento, ao escrever uma biografia de Dom Helder, que, por várias razões, não se apresenta como “mais uma biografia”. Hoornaert surpreende na elaboração desta biografia, por várias razões.


A atipicidade de sua biografia resulta, primeiramente, do método utilizado. “Paralaxis” é um termo grego, muito apreciado pelo autor, que diz respeito a um determinado objeto que, ao se mover, apresenta alterações; e dependendo da posição em que se coloque o observador daquele objeto, este vai apresentando alterações. Como exímio historiador, Hoornaert, expressando ou não esta metodologia, a põe em prática em seus escritos e em seus pronunciamentos. Neste sentido, ele nos faz evocar Antoine de Saint Exupéry, para quem "todo ponto de vista é a vista de um ponto”. A condição de historiador constitui, também neste caso, um fator decisivo para a excelência do desempenho do autor, ao nos apresentar a figura de Helder Câmara, ao longo de sua trajetória existencial, como alguém atípico, no sentido de desbordar constantemente do comum dos humanos, ao revelar-se “avis rara”, seja no tocante às suas relações eclesiais, seja sobretudo no tocante à sua paixão pela humanidade. Outras biografias de Dom Helder tiveram reconhecida relevância, mas o livro do historiador Hoornaert aparece como um escrito diferenciado, a começar pela metodologia aplicada para a elaboração desta biografia.


Outro aspecto a ser observado, na excelência desta biografia, tem a ver com a capacidade do biógrafo de aplicar profusamente uma abordagem literária, profundamente complementar, do labor histórico. A utilização de técnicas da linguística e da literatura constitui uma marca fortemente criativa e que bem se mostra adequada à narração e à interpretação de uma figura incomum como a de Helder Câmara. Além disto, ou por conta disto, Hoornaert não se limita a descrever uma cronologia de fatos e acontecimentos protagonizados por Dom Helder. Isto também ele faz, com maestria. Mas, vai muito além deste aspecto, é capaz de ler as entrelinhas, de ir além das palavras, de dar-se conta do que vem por trás das palavras. Isto parece tanto mais relevante, quando a gente se reporta aos predicados do biografado, alguém que se apresenta excepcional, em sua trajetória existencial. Daí o sentido do título destas notas.


Graças a esta metodologia, aliada a uma acuidade de análise, baseada, além de preciosas fontes secundárias, também em fontes primárias, como a que recolhe das “cartas conciliares”, escritas às centenas por Dom Helder, e compartilhadas a uma equipe que ele mantinha como interlocutora privilegiada. Além das 275 cartas conciliares, escritas e compartilhadas por Dom Helder, com a sua equipe, de 1962 até inícios dos anos 80, Hoornaert também trata de recolher elementos de outras biografias, em especial as que foram elaboradas por pessoas mais próximas de Dom Helder, dentre as quais as de Marcelo Barros (Dom Helder Camara, profeta para os nossos dias); Zildo Rocha (Irmão dos pobres e meu irmão. Presença de dom Helder em minha vida); Joseph de Broucker (La violence d´un pacifique) e Marcos de Castro (Dom Helder, misticismo e santidade).


Outro aspecto ainda merece realce: a perspicácia do autor, no sentido de, partindo dos relatos do próprio Dom Helder, tratar de contextualizar, de modo criativo, acentuando possíveis fontes de inspiração de Dom Helder em autores de diferentes séculos. Neste particular, a biografia elaborada por Hoornaert apresenta-se relativamente singular, à medida que consegue apresentar diversos diálogos implícitos de Dom Helder com outros tantos autores, em diferentes séculos do cristianismo.


E em relação ao biografado, o que dizer? Exercitando a memória da leitura que me foi feita, trato de pôr em relevo os aspectos da trajetória existencial de Helder Câmara que mais fortemente me impactaram, no transcurso da leitura dos seus 12 capítulos. Cuido, por conseguinte, de, ao rememorar os principais capítulos do livro, expressar aspectos e traços mais impressionantes que colho da leitura desta biografia.


É tocante observar a precocidade vocacional do biografado, ainda que não fosse uma exceção - era comum a entrada até de adolescentes para o Seminário - não deixa de nos surpreender este fato. Influenciado pela sua mãe, D. Adelaide, mais do que pelo seu pai, em função da vida religiosa que ele respira desde muito cedo, sente-se tocado a uma escolha pelo sacerdócio. Ainda adolescente vai ser matriculado no famoso seminário da Prainha, em Fortaleza. Desde então, vai ter que conviver com um regime de muita disciplina, de uma formação conservadora, apesar de contar com alguns formadores que ele aprecia. É, portanto, condicionado a uma vida de fechamento para o mundo, para as realidades terrestres, em razão de uma rígida obediência às leis eclesiásticas. Dada, por outro lado, a formação que teve em sua família, conseguia lidar relativamente bem com a disciplina seminarística então reinante. Além dos laços familiares, sua veia poética muito o ajuda, nesta direção. Desde cedo, revela-se um leitor voraz, o que lhe permite um exercício bastante salutar, dentro daquele regime dominante.


Uma marca pouco conhecida da trajetória de Dom Helder é a sua estreita ligação com as ideias integralistas então reinantes no Brasil, sob a inspiração de intelectuais tais como Gustavo Barroso, Plínio Salgado, Alceu de Amoroso Lima, entre outros. Sobretudo de 1931 a 1936/37, Helder se revela um exímio militante da causa integralista. Para tanto, sua capacidade extraordinária de comunicação, além de certa tendência ao estrelismo, Padre Helder vai assumir um papel relevante na divulgação das ideias integralistas, baseadas em valores tais como Deus, Pátria, Família, entre outros. Vale notar que, acerca deste período, o biógrafo se vale de preciosas fontes, para indicar o relevante papel intelectual e religioso cumprido por Padre Helder, sobretudo neste período.


Em uma de tantas palestras feitas pelo teólogo José Comblin, desta feita por ocasião do centenário de Dom Helder Câmara, homenagem prestada por grupos e pessoas amigas de Dom Helder, em João Pessoa, o palestrante aludia a cinco surpreendentes conversões vividas por Dom Helder. Também nesta biografia, Hoornaert, de forma criativa e com palavras próprias, narra momentos fortes de conversão vivenciados por Dom Helder, no que o biógrafo enxergava seu processo evolutivo, desde um reacionário - período que dura em torno de 12 anos - a uma posição revolucionária que ele vai vivenciando, sobretudo a partir de meados dos anos 40.


Dentre esses momentos fortes de conversão, cumpre ressaltar alguns, como ilustração. Um desses momentos fortes ocorre quando da árdua preparação à organização do congresso eucarístico mundial, no Rio de Janeiro, arquidioceses da qual Dom Helder era bispo auxiliar. Ele se destacou como o principal organizador deste congresso, juntamente com a contribuição valiosa de um grupo de mulheres. Este trabalho o levou a uma quase exaustão, dado o modo como se empenhou, visando a apresentação de um congresso que considerava de enorme importância para a vida da Igreja Católica.


Quando da realização deste Congresso Eucarístico Mundial, em que todos os esforços envidados por Dom Helder e sua seleta equipe pareciam alcançar o auge de satisfação, eis que, ao final daquele Congresso, dele se aproxima o Cardeal Gerlier para confidenciar-lhe algo inesperado. Após enaltecer as qualidades de organizador reveladas por Dom Helder, o Cardeal lhe pergunta como silenciar uma cena intrigante: enquanto aquele Congresso Eucarístico se realizava, era visível uma cena deprimente, nos morros e favelas expostas a quem quisesse enxergar. De modo didático, o Cardeal provocava Dom Helder, como se lhe perguntasse: é este o fruto desejável pela Igreja Católica, ao louvar e adorar a Jesus na hóstia, e silenciar toda aquela miséria sofrida justamente por aqueles que representavam o próprio Jesus crucificado? Dom Helder, ao ouvir essas palavras, sente-se profundamente tocado, como se estivesse diante do próprio Jesus. Esta iniciativa do Cardeal Gerlier proporcionou uma das grandes conversões de Dom Helder, que a partir de então, passa a mudar profundamente suas atitudes perante os pobres, perante os deveres mais profundos do seu ministério.


Desde então, redireciona suas leituras e sua agenda pastoral. Passa a ter um olhar mais atento àquela realidade, de flagrantes desigualdades, me que ⅔ da humanidade padecendo fome e miséria enquanto uma pequena minoria tinha um tratamento privilegiado.


Outro aspecto relevante, em sua trajetória, tem a ver com sua participação como bispo auxiliar do Rio de Janeiro, durante todas as sessões do Concílio Vaticano II (1962 a 1965).


Dois fatos merecem especial destaque, durante este período: seu papel de instigador, de articulador de vários bispos provenientes das mais distintas regiões do mundo, no sentido de angariar convicções e votos para a aprovação dos documentos conciliares, especialmente voltados à defesa e a promoção dos direitos dos pobres. Embora não atuasse propriamente nas famosas aulas conciliares, empenhava-se profundamente em reunir diferentes grupos de Bispos para refletirem, sob a inspiração dos principais teólogos conciliares comprometidos com a causa da justiça, no sentido de fortalecer uma corrente ainda minoritária, no universo dos cerca de 2500 bispos participantes, de um grupo minoritário que sustentasse a causa dos pobres. Este esforço se culmina na realização, nos arredores de Roma, mais precisamente na catacumba de Domitila, de uma reunião de 40 Bispos que, há poucos dias do encerramento do Concílio Vaticano II, ou seja, mais precisamente no dia 16 de novembro de 1965, estes Bispos, após a celebração da Ceia do Senhor, firmam o famoso “Pacto das Catacumbas”, expresso em um texto composto com 13 itens, assumindo o compromisso de, ao retornarem às suas respectivas dioceses, não mais morarem em palácios, levarem uma vida cotidiana mais próxima do povo, dos pobres, seja quanto ao morar, seja quanto ao vestir, seja quanto ao uso de transporte, seja quanto à sua fidelidade a causa do Evangelho.


Outro aspecto que o período conciliar também aparece como relevante tem a ver com o início de suas célebres cartas conciliares, circulares que ele redigia, dirigindo-as a um seleto grupo de mulheres, no Rio de Janeiro, às quais ele escreverá, de 1962 a cerca de 1980, em torno de 275 cartas circulares, não por acaso, o biógrafo Eduardo Hoornaert explora, em seu trabalho, múltiplos relatos de capital importância, colhidos destas cartas circulares.


Outro ponto relevante a destacar: sua coragem profética de denunciar os crimes da ditadura empresarial-militar brasileira. Denúncias contra assassinatos de adversários e vítimas da ditadura, inclusive religiosos e padres, a exemplo do Pe. Antônio Henrique Pereira Neto, em 1969, de Frei Tito Alencar, denunciando ainda prisões e torturas nos subterrâneos da ditadura empresarial-militar. Esta sua atitude profética rendeu-lhe além de duras perseguições no brasil, também numerosos convites feitos por diferentes figuras do episcopado internacional, especialmente da Europa, principalmente para proferir conferências sempre muito concorridas. Em certas ocasiões, tal era o número de frequentadores, que os organizadores se viam obrigados a mudar o lugar da conferência, como aconteceu em Paris, em 1970.


Acerca desta movimentada agenda de viagens pelo mundo, importa registrar que o enorme apreço internacional dirigido ao então Arcebispo de Olinda e Recife, que figuras da Cúria Romana com possível anuência do própria Papa Paulo VI, não exitou em dirigir a Dom Helder correspondência questionando a legitimidade destas viagens internacionais, alegando estar usurpando a função petrina. Situação tanto mais embaraçosa, quando por várias vezes, Dom Helder foi recebido pelo Papa Paulo VI, velho amigo ainda do tempo em que não havia assumido o papado.


No tocante a estes laços de amizade, vale a pena, com base nas Cartas Circulares, rememorar um fato curioso. Dada sua vocação profética, nas conversas com o Papa Paulo VI, ele por mais de uma vez, questionou o Papa sobre as estranhas funções de Estado exercidas pela Igreja Católica, diferentemente do espírito do Evangelho (Mc 10, 42-45: Jesus chamou-os e disse: “Vocês sabem: aqueles que se dizem governadores das nações têm poder sobre elas, e os seus dirigentes têm autoridade sobre elas. Mas entre vocês não deverá ser assim: quem de vocês quiser ser grande, deve tornar-se o servidor de vocês, e quem de vocês quiser ser o primeiro, deverá tornar-se o servo de todos. Porque o Filho do Homem não veio para ser servido. Ele veio para servir e para dar a sua vida como resgate em favor de muitos.”). A certa altura, o Papa chegou a pedir a Dom Helder que lhe mandasse por escrito seu questionamento acompanhado de sugestões tais como a de entregar o prédio do Vaticano aos cuidados da ONU, indo o Papa residir em uma casa mais simples. Dom Helder não se fez de rogado, e enviou por escrito o que lhe havia dito por palavra. O Papa terá mudado de posição? Isto fica muito evidenciado em um dos poemas escritos por Dom Helder, no qual se lê:


“O SONHO DE DOM HÉLDER


Sonhei que o Papa enlouquecia 

E ele mesmo ateava fogo 

Ao Vaticano 

E à Basílica de S. Pedro... 

Loucura sagrada, 

Porque Deus atiçava o fogo 

Que os bombeiros 

Em vão 

Tentavam extinguir. 

O Papa, louco, 

Saía pelas ruas de Roma, 

Dizendo adeus aos Embaixadores 

Credenciados junto a ele; 

Jogando a tiara no Tibre; 

Espalhando pelos pobres 

O dinheiro todo 

Do Banco do Vaticano... 

Que vergonha para os cristãos! 

Para que um papa 

Viva o Evangelho, 

Temos que imaginá-lo 

Em plena loucura!... “


Acerca ainda destes tempos de chumbo, especialmente após a decretação pela ditadura empresarial-militar do famigerado AI-5, vale ressaltar a coragem profética de Dom Helder, também no que diz respeito aos seus escritos e pronunciamentos. Datam deste conturbado período livros corajosos que apareceram, inicialmente, apenas em francês, já que proibidos no Brasil. Dentre outros: “Révolution dans la paix”; “Spirale de violence”; “Le Désert est fertile”.


Quanto aos seus pronunciamentos, cumpre rememorar não apenas suas conferências, mas especialmente sua fala cotidiana, na rádio Olinda “Um Olhar Sobre a Cidade”. Tratava-se de um momento diário enormemente apreciado também pelas centenas de comunidades espalhadas pela Arquidiocese de Olinda e Recife (e para além desta região), mais conhecidas como “encontro de irmãos”, densa experiência de animação das CEBs da região. Trata-se de um período de intenso crescimento das CEBs, no Brasil e na América Latina. Causa indignação, no entanto, a terminante proibição da Ditadura empresarial militar, de sequer o nome de D. Hélder Câmara pudesse ser publicado pela imprensa. 

A despeito de todas essas adversidades, vale destacar a tenacidade de D. Hélder, o que se pode explicar pela sua mística revolucionária (tinha o hábito de colocar o relógio para despertá-lo às 02h00 da madrugada, para exercitar essa mística, seja pela oração, seja pela composição de poemas (às centenas). Não menos importante é o humor que o caracterizava. São diversas as histórias acerca disto. Apenas uma delas como ilustração: Num período de ascenso da “Revolução feminista”, expressa também no Brasil, conta-se que foi perguntado por um/a jornalista do que achava do topless. De pronto, D. Hélder respondeu algo como: eu não estou preocupado com quem tendo o que vestir, se desnuda, mas com quem não o que vestir… 


Eduardo Hoornaert, em sua biografia, reserva os últimos capítulos a uma interpretação grandiosa do legado de Dom Helder, no qual situa a paixão de Dom Helder pelas minorias, suas “minorias abraâmicas", bem como o espírito revolucionário de Dom Helder, sua mística revolucionária.


A título de arremate 


Ao final desta leitura, pude entender melhor o que de D. Helder dizia Comblin: dele se deve publicar tudo. Rememorando os feitos de Dom Helder, sinto-me impactado, ao compará-lo ao que hoje predomina no perfil geral do episcopado e demais ministros ordenados brasileiros, sempre ressalvando as honrosas exceções. Parece haver também aí, uma preocupante escassez de profecia… Nesse sentido, o quê dizer do apelo feito por Dom Helder, já enfermo, no leito, ao ser visitado por alguns teólogos, entre os quais, Marcelo Barros: "não deixem cair a profecia” (remetendo-nos a 1Ts 5, 19-21)?


Sinto-me agradecido a Eduardo Hoornaert pela arte do seu trabalho, bem como a diversos outros biógrafos de Dom Helder. Que este livro nos desperte cada vez mais o sentimento de compromisso com a causa libertadora do povo dos pobres.


*Este texto é resultado de uma gravação de áudio, feita pelo autor e digitada por Eliana Alda de Freitas Calado, Heloíse Calado Bandeira e Luciana Calado Deplagne, enquanto coube a Elizabete Santos de Pontes a leitura integral do livro para o autor. A elas, também a Eliana pela revisão do trabalho, registro meus agradecimentos.


João Pessoa, 30 de março de 2022.



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