quarta-feira, 6 de dezembro de 2023

A Caravana de Natal da Coca-Cola: a perversão ético-simbólica da religião do Mercado

A Caravana de Natal da Coca-Cola: a perversão ético-simbólica da religião do Mercado


Alder Júlio Ferreira Calado


Sábado próximo findo, teve lugar pelas ruas principais de João Pessoa mais um desfile-show da caravana de natal da coca-cola, evento que arrasta multidões, em época natalina, em diversas cidades e capitais do Brasil. Ao retornarmos de Campina Grande, do Encontro Estadual do Movimento Fé e Política, sábado passado, tivemos que enfrentar um grande engarrafamento por conta daquela caravana da Coca-Cola. Chamava-nos a atenção a quantidade de gente postada ao longo de várias ruas, durante horas, à espera da passagem da caravana. Perguntamo-nos: qual a receita milagrosa para tal encantamento?


Há décadas, tentamos, com extrema dificuldade, reunir aqui e ali, algumas dezenas de pessoas para encontros regulares de formação, enfrentando incessantes obstáculos, conseguimos manter, a duras penas, nossos encontros formativos. Por outro lado, sentimo-nos interpelados por esta eclosão de encantamento suscitada pela coca-cola. Como entender  a força e alcance multitudinário deste espetáculo? Que traços fundamentais o compõem e circundam? De que modo este fenômeno se apresenta como um dos traços do atual modo capitalista, de assegurar sua hegemonia? Como ensaiar passos, ainda que moleculares, em vista de sua superação?.


Em sua atual fase/face, o modo capitalista de produção, de consumo e de gestão societal vem alcançando, em escala mundial, um poder deletério exponencial, manifestado em sua ação crescente nas mais diversas áreas: da sócio-ambiental, econômica, política, cultural, educacional, artística, religiosa…Qual Rei Midas da atualidade, tudo aquilo de que se aproxima, transforma em “Ouro”, isto é, em mercadoria em fonte de lucro, fazendo reduzir ou mesmo fenecer relações e valores tais como solidariedade, partilha, comunhão, ou seja, tudo o que se mostre em linha com o processo de humanização.


Nesta direção, a expansão internacional do movimento fascista resulta como uma expressão necessária deste potencial destrutivo, desumanizante, sempre a mover-se pelo ódio, pela mentira, pela violência, pelo acúmulo de poder e de riquezas à custa da miséria, da fome e da subordinação da enorme maioria da população mundial. A tragédia que se passa em Gaza há mais de 75 anos, constitui a ponta deste abominável “iceberg”.


Sempre lembrando a extrema e crescente diversidade de seus efeitos deletérios, nas rápidas linhas que seguem, limitamo-nos à sua dimensão ético simbólica, ao mesmo tempo em que destacamos a dinâmica conexão presente entre todas as suas dimensões. Como toda dominação de classes, mormente no Capitalismo, a dominação mais forte incide no fator ideológico, à medida que os valores dominantes do sistema imperante logram prescindir do recurso à força: os dominados, de tanto ouvirem as versões circulantes do dominador, acabam por introjetar suas ideias, suas crenças, seus valores, passando a se comportarem de acordo com a vontade do dominador. Aí se instala a consciência alienada, que transforma multidões em marionetes, ainda que isto não se dê de forma mecânica e sem resistência de minorias. Eis o que se passa, por exemplo, no âmbito da maioria das Igrejas Cristãs, inclusive na atualidade. Servindo-se da boa fé das massas populares, suas lideranças, em nome da religião, por meio de uma rica infraestrutura e truques midiáticos, conseguem “vender” um tipo de religião (no caso, a Cristã) como se fosse expressão do próprio Evangelho. Graças ao uso e abuso da desinformação, das mentiras grosseiras ou verdades aparentes diariamente transmitidas por uma poderosa rede de televisão, de rádio e mídia digital, multidões são mantidas alheias ao que dizem as próprias fontes cristãs. Uma ilustração didática dessas estratégias foi criticamente bem trabalhada por Rosa Luxemburgo, em um texto seu que data de 1905, intitulado “O Socialismo e as Igrejas”, que pode ser acessado em PDF (cf. https://periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/46202/751375139030). Nele, uma mulher que se confessa Ateia, é quem, citando os atos dos Apóstolos, João Crisóstomo, Basílio de Cesareia, Gregório, Nazianzeno, se empenha em recriminar os sacerdotes de então - sempre respeitando as exceções - por estarem traindo a Fé Cristã que dizem seguir.  


É assim que, qual brasa recoberta de camadas de cinzas, o Evangelho passa a ser ocultado do seus destinatários - o povo dos pobres - por camadas superposta de cinzas ideológicas, isto é, de cultos, devoções, adornos religiosos, cujos ideólogos transformam em instrumentos de dominação, a serviço de seus próprios interesses, ainda que jurando fazê-lo em nome de Deus ou do Evangelho, razão por que jesus dizia:”Este povo me louva com os lábios, mas seu coração está longe de mim!” (Mt.15,8)


Por outro lado, assim como ao longo de séculos de dominação imperialista-clerical, desde a era constantiniana, nunca cessaram os clamores e a resistência profética do povo dos pobres, haja vista a resistência profética dos movimentos pauperístas da Idade Média, também hoje as “minorias abraâmicas” (como costumava dizer Dom Helder Câmara) seguem denunciando estas distorções, ao mesmo tempo em que se empenham em ensaiar passos moleculares, na perspectiva de um novo amanhecer que faça justiça à dignidade da Mãe Terra, dos humanos e  de toda a comunidade dos viventes.


João Pessoa, 06 de Dezembro de 2023.        


Nenhum comentário:

Postar um comentário