quarta-feira, 15 de maio de 2024

Breves notas em busca de um novo Eco-Humanismo

 Breves notas em busca de um novo Eco-Humanismo 


Alder Júlio Ferreira Calado 


Os rumos tenebrosos e ameaçadores do planeta e dos viventes, para os quais segue acenando a decadente civilização ocidental ainda hegemônica - vide o total de gastos militares com guerras, em torno de US 2.3 trilhões, bem como o holocauto do povo palestino -  requer uma profunda avaliação de uma retomada da concepção de Humanismo, em busca, de passos de superação da barbárie atual. Com o propósito de alimentar, ainda que embrionariamente, este debate, ousamos propor algumas considerações a este respeito. Ainda que recentes, já dispomos de valiosas contribuições neste sentido. A título de mera sugestão permitimo-nos mencionar apenas uma meia dúzia dessas diversas contribuições:

  • LÖWY, Michael. O que é o Ecossocialismo? São Paulo: Cortez, 2014.

  • KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu. Palavras de um xamã Yanomami. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Companhia das Letras, 2015;

  • ACOSTA, Alberto. O bem viver: uma oportunidade para imaginar outros mundos. Editora Autonomia Literária, 2016;

  • GEBARA, Ivone. Teologia Ecofeminista: Editora D'água, 1997; 

  • BASHIGE, Charles e BUHENDWA, Zacharie Nshokano. Para um humanismo ecológico repensado: um olhar filosófico; Edições Nosso Conhecimento, 2023;

  • GUIMARÃES, Dom Joaquim Giovani Mol; ALVES, Claudemir Francisco; SOUZA, Robson Savio Reis; PENZIM, Adriana Maria Brandão (org). O Novo Humanismo: Paradigmas Civilizatórios Para o Século XXI, a partir do Papa Francisco. São Paulo: Editora Paulus, 2022.



Como tantos outros conceitos, também o de “Humanismo” se mostra polissêmico. Há, com efeito, uma multiplicidade de acepções acerca do que vem a ser Humanismo. Na verdade, estamos diante de um conceito que remonta ao aparecimento do ser humano. Na Grécia Antiga - e mesmo séculos antes, no Oriente e alhures -, já se exercitava a busca de entendimento sobre o ser humano. Nas breves linhas que seguem, tratamos, primeiramente, de nos ater ao Humanismo, buscando destacar as principais marcas presentes no processo de Humanização. Em seguida, rememoramos, de passagem, de que modo o Humanismo foi percebido, na Idade Média e na Idade Moderna, pelo Movimento Renascentista, bem como no Iluminismo e na contemporaneidade. Cuidamos, por fim, de ressaltar alguns aspectos desafiadores ao cultivo de condições favoráveis, capazes de acelerar a construção processual de um Eco-Humanismo.


Marcas axiais do processo de humanização


Quem lida com a condição humana, sente-se instado a ter sempre presentes os traços principais do que se apresenta como o processo de humanização. Eis alguns  requerimentos para enfrentarmos um tal desafio. Uma primeira marca presente no processo de humanização nos remete ao nosso pertencimento cósmico. Com efeito, ainda que como uma “poeira cósmica”, cada ser humano - e os humanos em seu conjunto - faz parte desta vasta cadeia de relações intergalácticas, cujas energias, quer percebamos ou não, atuam em nós. Em consequência, estando nosso belo “Planeta Azul” a formar parte deste imenso cosmo, desta complexa rede de relações interplanetárias, nossa condição humana também reflete sua dinâmica ação sobre nós e os demais viventes. 


Outro traço fundamental pertinente ao processo de humanização tem a ver com a necessidade dos seres humanos de assegurarem sua existência material, razão pela qual o conjunto dos humanos se sente instado a prover economicamente sua existência, graças ao seu trabalho nos mais diversos setores de produção - desde a coleta de frutas e raízes, passando pela caça, pela pesca (setor primário), pelas múltiplas formas de artesanato, pela produção industrial (setor secundário), pelas numerosas atividades de comércio e de serviços (setor terciário). 


Importa sublinhar que, em todas essas atividades da produção da existência mostra-se fundamental assegurar um modo de produção, de consumo e gestão-societal compatível com a dignidade do Planeta, dos humanos e de todos os viventes, de modo a obtermos respostas igualmente compatíveis a perguntas do tipo: o que produzir? Para quê/para quem produzir? Como produzir? Entre outras. Já sabemos, pela trágica experiência secular, que o modo de produção capitalista (e de qualquer sociedade de classes) é definitivamente incapaz de respeitar a dignidade do Planeta, dos humanos e demais viventes. Somos, por isto mesmo, instados a buscar construir um modo de produção, de consumo e de gestão societal que respeite a dignidade da Mãe-Terra, dos humanos e de todos os viventes.


O processo de humanização implica, igualmente, a dimensão política, isto é, a necessidade de estabelecermos relações de poder macro e micro-sociais, em que seja o conjunto dos humanos, em harmonia com a dignidade do Planeta, o tomador de decisões - e não uma pequena minoria de privilegiados - capazes de assegurar um protagonismo, senão de todos, da imensa maioria dos humanos, no que diz respeito à organização da sociedade e das relações grupais e inter-subjetivas, respeitosas do direito de decidir de todos. Condição já sobejamente comprovada como impossível, no modo de produção capitalista, donde a necessidade e urgência de usarmos seguir dando passos em busca de um modo de produção, de consumo e de gestão societal.


Os seres humanos, sendo parte da Natureza, são também marcados por profundos laços culturais. Somos também seres da Cultura, isto é historicamente chamados a satisfazermos não apenas às necessidades materiais (alimentação, habitação, vestuário…), mas também as necessidades imateriais: a contemplação, o emaravilhamento estético (não apenas de fruir a beleza, as artes, mas também de exercitá-las, cada qual ao seu modo), o lazer, o tempo livre de imaginação, de criatividade…


Nesta complexa e vasta malha de relações culturais, fazem-se igualmente presentes diversas outras: as relações sociais de gênero, da diversidade de orientações sexuais, de etnia, de caráter geracional, de espacialidade, de relações com o Sagrado, entre outras. Cada uma dessas dimensões comporta dimensões complexas atinentes ao mesmo processo de humanização. Não bastassem a complexidade e a extensão de cada uma delas, ainda importa destacar a profunda conectividade de uma com as outras.


Aspectos sumários do Humanismo, em perspectiva histórica

A noção de humanismo remonta às próprias origens do ser humano há milhares de anos, desde a Mãe África. O mundo oriental guarda também um precioso baú de memórias, a esse respeito. No continente europeu, principalmente a partir da Grécia e de Roma antigas, sistematizam-se noções fundamentais acerca da condição humana, desde os pré-socráticos, seguidos do período protagonizado principalmente por Sócrates, Aristóteles e Platão. Na Roma antiga, pontificaram notáveis pensadores, a exemplo de Virgílio (70 a.C-19 a.C), Horácio (65 a.C - 8 a.C), Sêneca (4a.C. - 65), Marco Aurélio (121-180 d.C.). 


A Idade Média também apresenta significativas contribuições, por meio de pensadores tais como Agostinho de Hipona, Tomás de Aquino, e, já no final da Idade Média, contando com os precursores do renascimento tais como Dante Alighieri e Giovanni Boccaccio, enquanto a Idade Moderna vai sendo fundamentalmente marcada por este movimento, graças a figuras tais como Nicolau Maquiavel, Miguel de Cervantes, e William Shakespeare. É, no entanto, sobretudo, com o Iluminismo, que o Humanismo conhecerá seu período de maior propulsão. Desde o século XVII, e, principalmente, durante os séculos XVII e XVIII, que, graças às contribuições de Filósofos como René Descartes (1596-1650), Montesquieu (1689-1755), Voltaire (1694-1778), Diderot (1713-1784), entre outros, a noção de Humanismo vai alcançando novos contornos, à medida que tais pensadores agregam e reforçam ideias e valores renascentistas, tais como o humanismo, o antropocentrismo, o individualismo, o universalismo, o racionalismo, o cientificismo e a valorização da Antiguidade Clássica.


Ideias que passam a ser ainda mais aprimoradas graças às contribuições de autores como Immanuel Kant (1724-1804), Friedrich Hegel (1770-1831), Ludwig Feuerbach (1804-1872), entre outros. Ainda que tributários das ideias iluministas, Marx e Engels inauguram relevantes contrapontos a esses valores, à medida que elaboram elementos críticos radicais à concepção burguesa de mundo, ser humano e sociedade. Ao fazerem um exame crítico sistemático dos valores da sociedade burguesa, trazem à tona novos conhecimentos que, não apenas, desnudam as bases pretensamente humanistas do individualismo, diversos autores marxistas cuidaram de contrapor àqueles valores burgueses, fundamentos do processo de humanização então negados ou subestimados, de modo a sustentarem o caráter social da condição humana.


Do final do século XIX ao período do século XX, a ideia de humanismo se apresenta com novas formulações, a exemplo da proposta pelo filósofo Jacques de Maritain, que se apresentará bastante influente, especialmente no mundo católico, ao propor um “humanismo integral”, cuja influência se pode notar em documentos do Concílio Vaticano II (a exemplo da Gaudium et Spes), bem como na Encíclica Social “Populorum Progressio”, de autoria do Papa Paulo VI.


Após a segunda metade do século XX, e principalmente nas últimas décadas, vêm surgindo propostas renovadoras e de grande impacto, em relação ao Humanismo. Para o bem ou para o mal. Graças aos rápidos avanços recentes pesquisas e invenções tecnológicas sob a influência dos Valores do mercado capitalista, tal é a aposta que se tem feito no poder inovador da tecnologia, que já há quem defenda um “trans-humanismo”, um paradigma que, inspirado no potencial milagroso das novas tecnologias, inclusive da inteligência artificial, sustenta a possibilidade do surgimento de uma nova expressão de humanismo (combinado com características humanas, isto é, trans-humanismo) ou ainda mais longe: o surgimento de um novo ser (pós-humanismo).


Em outra perspectiva bem mais animadora, neste mesmo período histórico, vimos sendo positivamente impactados com a formulações inovadoras de humanismo, a exemplo do paradigma “buen vivir”, o paradigma do ecossocialismo, e também já se fala do eco-humanismo. Com relação ao paradigma do “buen vivir”, muito devemos aos trabalhos de pesquisa realizados por Alberto Acosta entre outros, já há alguns anos, que consiste, em poucas palavras, na demonstração da insustentabilidade do atual modo de vida dominante, que se tem revelado profundamente predatório para o nosso Planeta, ameaçando mortalmente a vida humana e demais viventes. Para Alberto Acosta e outros, os modelos desenvolvimentistas aplicados no mundo capitalista atual se mostram suicidários, a medida que precipitam o esgotamento dos bens da Mãe-Terra, impossibilitando que a enorme maioria dos habitantes do planeta alcancem um padrão de vida semelhante ao da população dos países centrais do capitalismo.


Trazendo aspectos semelhantes ao paradigma do “buen vivir”, há algumas décadas também segue despertando crescente interesse o ecossocialismo, proposta de um grupo de pesquisadores cuja maior referência é Michael Löwy, para quem “É imprescindível a emergência de uma civilização social e ecológica baseada numa nova estrutura energética e num conjunto de valores e estilos de vida pós-consumistas”, o que, mais uma vez, se tem  mostrado uma tarefa impossível dentro do modo de produção capitalista. 

Dentre as poucas lideranças de novo tipo, o Papa Francisco vem acenando, por meio de seus escritos, de seus pronunciamentos e de seu testemunho, à urgência de um novo Humanismo, a superar o antropocentrismo ainda dominante, sem qualquer consideração à dignidade do Planeta e dos demais viventes. Sobretudo em sua Encíclica Social “Laudato se”. Acerca dos aspectos característicos desta sua proposta  de Humanismo, importa conferir a coletânea de textos escritos por 25 Autores e Autoras, recém-publicada pela Editora Paulus, acima referida.   


E quanto ao eco-humanismo, o que viria a ser?


Trata-se de uma proposta, já em curso, cujos elementos fundantes já se acham presentes tanto no paradigma “Buen Vivir”, quanto no Ecossocialismo, quanto no Ecofeminismo como ainda na proposta apresentada pelo Papa Francisco. Cuidamos, a seguir, de sublinhar o que consideramos marcas especiais do Eco-humanismo.

  • Redefine as relações entre os seres humanos (considerados o centro da Casa Comum) e a Mãe-Natureza, de modo a superar a ideia de Antropocentrismo;

  • Reconhece os humanos como parte inseparável do Planeta e dos demais viventes;

  • Suscita uma relação equânime entre os humanos, e entre estes e os demais viventes;

  • Contrapõe-se visceralmente ao atual modo de produção, de consumo e de gestão societal; 

  • Rejeita os paradigmas desenvolvimentistas hegemônicos;

  • Contesta as relações patriarcais e eurocêntricas de organização societal;

  • Empenha-se em superar toda carga histórica de colonialidade;

  • Empenha-se no combate às relações imperialistas dominantes, ao tempo em que promove e aprimora as relações interculturais entre povos e nações, por meio do reconhecimento do legítimo reconhecimento da diversidade de saberes e da partilha mútua dos aprendizados.


Qual o lugar de nossas organizações de base neste processo?


Em vão, se espera que tal processo prospere a partir dos setores dominantes ou hegemônicos atuais. Trata-se, fundamentalmente, de um processo a ser protagonizado fundamentalmente pelos “de baixo”, isto é, de nossas organizações de base: Movimentos sociais populares (do campo e da cidade; Movimentos sindicais; esquerda partidária; Movimentos eclesiais progressistas, entre outras forças).


Eis uma tarefa histórica desafiadora, a ser cumprida (ou já está sendo, ainda que de forma molecular), a curto, médio e longo prazos, desde que estes mesmo sujeitos históricos se mantenham firmes e persistentes em seus compromissos organizativos, formativos e de lutas. 


João Pessoa, 15 de Maio de 2024  

  


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