Alder Júlio Ferreira Calado
A prolongada letargia que acomete a enorme maioria de nossas organizações de base pode dar a impressão de que isto sempre foi assim, no Brasil. Grave engano! Quando nos damos ao trabalho de cavoucar, por exemplo, as décadas de 50 e 60 do século passado, fomos positivamente surpreendidos com o caráter e a extensão das lutas sociais daquele período. Na mesma esteira dessas lutas sociais encontravam-se também segmentos cristãos progressistas (católicos e protestante), em especial os jovens, cuja contribuição se afirmava em forma de aliança a movimentos populares, sindicais e da esquerda partidária.
Com o objetivo de desafiar, sobretudo, os jovens militantes comprometidos com as lutas libertárias das classes populares, tomamos a liberdade de ousar refrescar nossa memória coletiva de resistências e lutas populares no Brasil, durante o período mencionado, de moda a instigar nossas organizações de base na atualidade, a se inspirarem positivamente no exercício da memória histórica dos oprimidos.
O Brasil, no contexto do pós-Guerra
A Vitória sobre o projeto nazi-fascista, que custou milhões de vítimas, ensejou um novo período histórico, em escala internacional, caracterizado, de um lado, por uma perspectiva de esperança e, por outro, de crescentes disputas de poder por parte das grandes potências vitoriosas: o bloco capitalista, liderado pelos Estados Unidos, e o bloco socialista, representado pela União das Repúblicas socialistas Soviéticas (URSS), dando início ao que se convencionou chamar de “guerra fria”.
Em âmbito internacional, tratou-se de um período especialmente marcado pelo processo de descolonização de diversos países africanos, em luta aguerrida contra suas respectivas metrópoles (Reino Unido, França, Bélgica, Portugal, entre outras). Ao mesmo tempo, dados os profundos estragos causados pela Segunda Guerra Mundial, os Países Europeus, em busca de se recomporem, contaram com a decisiva ajuda dos Estados Unidos, por meio de diversos planos de socorro, que se revelariam uma poderosa estratégia do Governo dos Estados Unidos visando a impor sua hegemonia e seu controle sobre todos os países do bloco capitalista.
No caso específico do Brasil, os esforços de retomada democrática, após a queda do Estado Novo (1937-1945), representaram um passo relevante, sobretudo, com as eleições da Constituinte de 1946, trazendo, como resultado, grandes esperanças para as classes populares, inclusive com a eleição de uma forte bancada de deputados comunistas (14 deputados, dentre os quais: Carlos Marighella, Gregório Bezerra, João Amazonas, Jorge Amado… e 1 senador, Luiz Carlos Prestes).
A eleição de uma bancada tão expressiva não foi certamente obra do acaso. Resultou de um persistente trabalho de base dos militantes comunistas, fortemente enraizados nas lutas populares. Nesta época, fervilhavam no Brasil intensas iniciativas artístico-literárias e culturais de grande potencial político-pedagógico. Com efeito, no plano dos trabalhos de base, circulavam, em grande tiragem, revistas, materiais de formação política, peças de teatro, filmes, forte mobilização de massa, com a animação protagonizada pelos CPC, mantidos pela UNE. Materiais de informação com tiragem até de 2 milhões, a circulação de revistas de grande impacto nacional, a exemplo da revista Civilização Brasileira, que teve na figura de Ênio Silveira sua maior referência de intelectual de esquerda.
A contribuição de aguerridos movimentos populares: O caso das “Ligas Camponesas” e do Movimento de Cultura Popular
Os significativos esforços em envidados por grupos de esquerda e progressista não foram em vão. Desaguam em rios caudalosos, como o Movimento das Ligas Camponesas (1954-1964) e o Movimento de Cultura Popular, este animado por combativas figuras de intelectuais Pernambucanos, tendo em Paulo Freire um dos seus principais animadores. Quanto às Ligas Camponesas, uma vez iniciadas no Engenho Galileia, em Vitória de Santo Antão em Pernambuco, tendo a frente Zezé da Galileia, João Virgínio, Francisco Julião, entre outros, elas foram rapidamente se estendendo pela Paraíba (sobretudo, em Sapé graças às lideranças de João Pedro Teixeira, João Alfredo dias, Pedro Fazendeiro Elizabete Teixeira, entre outros), pelo Nordeste e outras regiões, sempre em luta pela Reforma Agrária.
Os segmento estudantis, tanto secundarista quanto universitário, constituíram outro protagonista de referência, ao engrossarem as lutas Camponesas e Operárias, reivindicando as Reformas de base (Reforma Agrária, Reforma Educacional, Reforma Urbana, Reforma Bancária, entre outras), em crescente apoio ao Governo de João Goulart. Tratava-se, então, mais do que setores populares em ação fragmentada, de grande parte da sociedade brasileira em movimento clamando por urgentes reformas.
O aporte de cristãos progressistas
A conjuntura de efervescência social e política, não apenas no Brasil, mas em toda a América Latina (graças, inclusive, ao despertar explosivo ensejado pela revolução cubana - 1959) constituiu um forte condicionamento para a irrupção dessas lutas, inclusive as protagonizadas por cristãos progressistas. Ainda nos inícios dos anos 50, lideranças de várias Igrejas protestantes, integrantes da Confederação Evangélica do Brasil (presbiteriana, batista, metodista, luterana, entre outras) despertaram e se reuniram, com objetivo ecumênico, para assumirem atitudes concretas de compromisso de solidariedade com a causa libertadora dos pobres. Cumpre, porém, observar que tais lideranças constituíam apenas uma parte das lideranças dessas Igrejas, tendo, aliás, que contornar posições conservadoras de suas respectivas Igrejas.
Cumpre observar o papel especial aí desempenhado pelo Pastor Richard Shaull que, já tendo atuado na Colômbia, nos anos 40, e daí expulso por conta de sua ação profética, chega ao Brasil, em inícios dos anos 50, tendo sua ação missionária sido marcada também pela publicação de seu livro, em 1953, intitulado “O Cristianismo e a Revolução Social” (cf.https://doceru.com/doc/n551nce). A publicação desta obra constituia um sinal convincente de seu papel de um Educador Popular ou mesmo de um “intelectual orgânico”, disposto a liderar outras figuras uma fecunda iniciativa de formação e de mobilização, especialmente junto aos estudantes cristãos universitários.
Sempre em associação com outras lideranças cristãs, animados pelo trabalho ecumênico, tais figuras passaram a liderar “O Setor de Responsabilidade Social” de um grupo representativo de Igrejas Cristãs. Graças a este grupo foram realizadas relevantes reuniões de estudos da realidade social brasileira, tendo acontecido sucessivamente em 1957, em 1959, 1960 e, a mais importante de todas em 1962, esta denominada de “Conferência do Nordeste”, realizada em Recife, de 22 a 29 de Julho de 1962, da qual participaram 167 pessoas, não apenas integrantes de mais de uma dúzia de Igrejas Protestantes, como também de autoridades civis e intelectuais de referência nacional, a exemplo de Celso Furtado, Francisco de Oliveira, Paulo Sieng, Gilberto Freire.
“A Conferência do Nordeste” representou o principal sinal de como machava a sociedade brasileira, naquela conjuntura de extrema fermentação das principais forças sociais em luta pelas então chamadas “Reformas de Base”. Profundamente sintomático, a este respeito, foi o tema central debatido, na ocasião: “Cristo e o Processo Revolucionário Brasileiro”. Durante toda uma semana, este tema foi debatido, contando com conferencistas protestantes e com intelectuais brasileiros de renome. Recomendamos, com insistência, que se confira os principais registros cuidadosamente feitos pelo secretário executivo desta Conferência do Nordeste, Waldo César, além de textos de conferencistas tais como o revdo Joaquim Beato e o revdo João Dias de Araújo, entre outros.
Importo ter presente que, tal era o clima de tensão da época (de um lado, o avanço da mobilização de nossas organizações de base, e, de outro, a onda de ameaças de golpe de Estado), que em abril de 62, os latifundiários da Paraíba mandaram assassinar a João Pedro Teixeira, presidente da liga camponesa de Sapé, e ainda neste mesmo ano, foi publicado o livro “O Evangelho e a Revolução Social”, de autoria do dominicano frei Carlos Josaphat. Neste ambiente de crescentes conflitos, é que se deu, dois anos depois, o golpe empresarial-militar de primeiro de abril de 1964, inaugurando tenebrosos 21 anos de ditadura, de prisões, de torturas, de assassinatos e de banimentos de tantos brasileiros e brasileiras, inclusive importantes figuras que protagonizaram a “Conferência do Nordeste”, fatos destacados, inclusive, no livro “Inquisição sem fogueira” de autoria de João Dias de Araújo.
Ainda, no correr dos anos 60, pontificaram iniciativas proféticas, a exemplo da publicação, em Francês, do livro “Evangile et Révolution Sociale” de autoria de Dom Antônio Batista Fragoso, publicação seguida, em 1970, pela do livro “Théologie de la Révolution”, de autoria do teólogo José Comblin.
Memória histórica como fonte de inspiração e de renovação de compromissos.
Como acima mencionado, o objetivo destas linhas é ajudar a despertar da letargia parte expressiva de nossas organizações de base, cuja dormitação põe em risco importantes conquistas de nossa gente, à medida que deixam o campo livre para o avanço da ultra-Direita. Que este brevíssimo exercício de nossa memória histórica nos anime à renovação de nossos compromissos organizativos, formativos e de mobilização, para o necessário e urgente enfrentamento dos atuais desafios.
João Pessoa, 27 de maio de 2024.
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