sábado, 22 de junho de 2024

A questão teórica metodológica da educação popular: desafios e perspectivas

 A questão teórico-metodológica da educação popular: desafios e perspectivas

Alder Júlio Ferreira Calado ¹

Eraldo Leme Batista ²



Um dos desafios, dentre tantos que se tem colocado na trajetória das organizações de base – principalmente os movimentos populares, sindicais, partidários, eclesiais - vem tendo como impasse a compreensão do lugar da reflexão crítica (portanto, também teórica), acerca dos embates que se colocam em sua trajetória de organização, resistência e de enfrentamento. Não raramente, a questão teórica passa ao largo das prioridades de nossas organizações de base, sob o pretexto de que se trataria de questões puramente abstratas, que pouco ou nada tem a ver com nossas prioridades de luta e de enfrentamento dos dilemas concretos do dia a dia. Ledo engano! Tendo em vista que para gerações de lutadoras e lutadores, do passado recente, tais equívocos já tinham sido relativamente superados. Entre os anos 50 e 80, na américa latina e no Brasil, os movimentos de base já haviam compreendido a importância também da dimensão formativa presente nas lutas acompanhadas de uma contínua reflexão crítica e autocritica de suas práticas sociais, uma avaliação constante pelas forças protagonistas das mudanças desejadas. Com relação a importância de se exercitar a relação teoria e pratica, sem o que nossas atividades de base, se tornariam infecundas, uma vez que se prestariam, inclusive a repetir, erros crassos do nosso passado recente. 

De fato, entre as décadas de 1950 e 1980, nossas principais organizações de esquerda e progressistas deram exemplos concretos da importância de trabalharmos, ao mesmo tempo, com base em nossas ações sempre acompanhadas da reflexão crítica (portanto também teórica). Durante, por exemplo, os anos 50 e 60, no brasil, tivemos exemplos luminosos dessas práticas, correspondentes a diversos coletivos de base, dentre os quais o movimento estudantil (secundarista e sobretudo universitário), o Movimento de Cultura Popular (MCP), Centros de Cultura Popular (CCP), protagonizados pela União Nacional dos Estudantes (UNE), outros centros ou institutos de formação de base, protagonizados por grupos de esquerda na preparação de suas bases e de seus quadros, inclusive, nas trajetórias de algumas igrejas protestantes e católica. Durante este período, tivemos a oportunidade de observar uma conjuntura extremamente efervescente de organizações, mobilizações e lutas, lastreadas na reflexão crítica, o que se pode demonstrar, por exemplo, em diversas iniciativas de formação e de comunicação então presentes. No plano, por exemplo, da educação popular, os escritos do educador popular brasileiro, Paulo Freire, tiveram uma reconhecida influencia no Terceiro Mundo. Na época, Paulo Freire se achava exilado no Chile, depois migrando para a Europa (ele foi convidado, a partir dos anos 70, a coordenar o Departamento de Educação do Conselho Mundial de Igrejas, em Genebra, na Suíça). Sua produção teórica fora amplamente divulgada, principalmente por meio da ação educativa de Julius Barreiros (referência latino-americana e educador popular uruguaio), por meio dos quais, as ideias freirianas exerciam uma considerável influência sobretudo em nossas organizações de base cristãs, em especial da nascente Teologia da Libertação. Não por acaso, no campo especificamente protestante, já em 1953, graças a presença no Brasil de Richard Shaull (Teólogo com sólida formação histórico-sociológica), impulsionando uma ousada iniciativa de diversas igrejas protestantes (Presbiterianas, Batista, Luterana, Metodista, entre outras), que semearam e cultivaram um processo formativo de reconhecida efetividade, dando grande atenção a uma análise crítica de nossa realidade, sobretudo, considerando como se deu a formação histórica do nosso país, momento em que lideranças de grande relevância teórica, a exemplo de nossos  intelectuais orgânicos (filósofos, historiadores, teólogos, antropólogos, sociólogos, entre outros), passaram a ser alvo de intensos e continuados estudos. Por outro lado, no plano extra eclesial, também se dava uma experiencia inspiradora, inclusive na história comunicativa. 

Vários seguimentos de esquerda produziam, desde livros, revistas, panfletos, materiais didáticos, de grande alcance pedagógico, que circulavam em tiragens de centenas de milhares, alcançando um número impressionante, de educandos e educandas em todo o Brasil. Em consequência, tivemos um dos momentos mais fecundos, mais fermentado de nossa história recente, de grande mobilização estudantil, camponesa, operária e integrantes de diferentes igrejas. Disso pode ser exemplo “a Conferência do Nordeste” (realizadas em Recife – PE, de 22 a 29/07/1962), promovida por diversas lideranças progressistas de várias igrejas protestantes, dando seguimento as suas iniciativas precedentes, iniciadas, desde 1957, por meio de encontros preparativos de aprofundamento sociológico, histórico, cultural e bíblico, das condições de nossa formação histórica brasileira. 


Educação Popular: O Método Como Reflexo Crítica e Ferramenta de Luta

Na educação popular, somos chamados cotidianamente a fazer conexão entre o nosso sentir, pensar, querer, agir e o nosso comunicar. Isso pressupõe o assumir um caminho teórico metodológico específico: O do Materialismo histórico dialético. Trata-se, portanto, de pôr em prática um caminho que nos leve a uma interação constante entre o nosso agir e a reflexão crítica, possa ser, por sua vez, inspiradora de novas práticas. Neste sentido, o materialismo histórico dialético tem correspondido a essa perspectiva, à medida que: 

Parte da realidade, da experiência cotidiana, sem a ela se limitar. A experiencia entendida como ponto de partida, como a compreensão inicial do que anda acontecendo, dado que a experiencia, no mais das vezes, não nos permite apreender de imediato, muitas aparências e escondem dos nossos olhos, raízes mais profundas, desta mesma realidade. Por exemplo, uma participação em uma luta popular, por meio de uma manifestação de rua, proporciona um olhar imediato de confronto com a realidade dominante, ao mesmo tempo em que acaba omitindo muitos fatores históricos, econômicos, políticos e culturais que não transparecem a um olhar desprovidos de lentes especiais, somente alcançável, por meio de um mergulho mais fundo, nessa realidade aparente, por meio de uma reflexão crítica, mais detida acerca destes mesmos fenômenos. Trata-se de exercitarmos um movimento contínuo, que parte da realidade aparente, em busca de identificarmos origens e fatores não perceptíveis a olho nu. Aí estamos exercitando o princípio dialético da totalidade, graças ao qual não nos limitamos as aparências ditadas pela realidade imediata, da qual partimos, mas trata-se de buscar decompor ou despertar essa realidade aparente em tantos outros aspectos que podem ser apreendidos por uma reflexão crítica mais detida. Por exemplo, em dada manifestação de rua, até podemos perceber alguns elementos que afloram desta realidade. Mas somente por meio de esforço reflexivo mais detido, é que vamos percebendo diversos componentes que não se fazem presentes à olho nu. Vamos, a partir daí, observando que, para além do movimento da conjuntura, problemas como o racismo estrutural, por exemplo, requer uma análise mais profunda do modo de produção colonial escravista, que nos permita apreender diversos fatores enraizados em nossa formação histórica, apresentando os principais protagonistas em luta: 

De um lado, as forças escravistas coloniais, e sua estrutura teórico metodológica hegemônica, de um lado, e por outro lado, diversas formas de resistência e de luta, contidas, nas classes populares submetidas ao regime de escravidão. 

Graças ao materialismo histórico e dialético, aplicados no campo da educação popular, vamos percebendo, sempre por meio de um continuo trabalho de base, comunitariamente vivenciado, cujos protagonistas se fazem ao mesmo tempo educando e educadores. Além do princípio da Totalidade, outros mais vem à tona. Vamos percebendo, por exemplo, que os fatos da realidade não se acham isolados, mas em estreita conexão, de tal modo que resultaria inútil pretendermos uma análise objetiva da realidade, tem a percepção dos liames observáveis entre esses mesmos fatos. Não é à toa que, percebendo o potencial de conscientização que esse método proporciona aos setores dominados, os meios de comunicação da burguesia empenham-se em esconder essas conexões entre os fatos da realidade, razão por que cuida de fazer circular nos diversos espaços da mídia hegemônica, de modo seletivo, acontecimentos de seu interesse de classe ou apresentando sua versão própria de cada acontecimento, cuidando sobretudo de passar uma percepção fragmentada desses fatos. 

No próprio cotidiano escolar, especialmente no sistema privado de ensino, é assim que se dão os estudos da realidade social. É principalmente no seio de nossas organizações de base, que encontramos as condições mais propícias de tornar uma consciência crítica, com base nos princípios do materialismo histórico e dialético, sobretudo porque militamos em espaço apropriado, com os próprios protagonistas das mudanças estruturais pelas quais lutamos, de modo que todo o processo formativo – da concepção, do planejamento, dos conteúdos, da metodologia, da avaliação – é protagonizado pelo conjunto dos participantes, educandos e educadores, cada qual cumprindo organicamente sua tarefa. Condição impensável, salvo exceções, no domínio da escola, cuja organização, da educação infantil a pós graduação, se passa sob o controle do Estado. 

Nessa seara formativa, prosperam os princípios do materialismo histórico dialético. Não apenas o da totalidade e o da interação universal, como também o do movimento e o dá unidade dos contrários. O dá transformação da quantidade em qualidade. Quanto ao princípio do Movimento, os protagonistas da educação popular – educandos e educadores – vão percebendo que a realidade social precisa ser entendida em sua complexidade: ela se observa em movimento contínuo, como em um filme (não como em uma foto), e para nos aproximar dela, temos também que entrar em movimento contínuo, sabendo que ela está em incessante transformação. Como se diz a respeito de Heráclito, ao mergulharmos nas águas de um rio pela segunda vez, já não são as mesmas as águas do primeiro mergulho: Elas já fluíram. 

Quanto ao princípio da unidade dos contrários, aprendemos, na educação popular, que a realidade social não evolui linearmente, mas aos trancos e barrancos, nos entrechoques da história, nos avanços e recuos das lutas sociais, cabendo-nos em todos os casos, colher lições nas conquistas e nas derrotas. O princípio da unidade dos contrários também nos permite enxergar a ligação existente, por exemplo entre, ricos e pobres, de tal modo que somente pela relação entre uns e outros, é que podemos compreender, de forma objetiva, porque a uns e porque a outros. Neste sentido, parece-nos didática a afirmação constante dos Documento final da Conferência de Puebla, segundo a qual “há ricos cada vez mais ricos as custas de pobres cada vez mais pobres”.  

No que diz respeito ao princípio dialético da transformação da quantidade em qualidade parece útil, também no trabalho de base da educação popular, o entendimento de que as tarefas que somos historicamente chamados a realizar, não podem ser protagonizadas apenas por um punhado de militantes, mas requer o número suficiente de militantes para enfrentar as forças adversárias. 


Na perspectiva da aplicação do método na educação popular. Que prioridade somos chamados a assumir?


Aqui tratamos de refletir sobre como aplicar o materialismo histórico dialético no cotidiano da educação popular. Como acima dito, não se trata de pretender eruditismo/ academicismo, quando lidamos com educação popular, o que importa aos protagonistas da educação popular – educandos, educadores, organizações de base, movimentos populares etc. – é manter vivo e atuante o compromisso de busca incessante de uma nova sociedade, de um novo modo de produção, de consumo e de gestão societal, alternativo a barbárie capitalista, de tal modo a assegurar as condições básicas do processo de humanização. 

Neste sentido, podemos partir do compromisso revolucionário de manter sempre aceso o horizonte que desejamos alcançar ou ir alcançando, como condição prévia de evitar que ensaiemos mil passos em sentido contrário, contradizendo o horizonte que almejamos alcançar. Para tanto, vale relembrar o dito pedagógico da personagem José Dolores, do filme “Queimada”, que costumava repetir: “é melhor saber para onde ir, sem saber como, do que saber como e não saber para onde ir”. Muitas vezes, nossas organizações de base empreendem iniciativas tantas que contradizem frontalmente o horizonte que dizem ser o seu. É, por exemplo, o caso das tendencias ao aliancismo, unindo-se a partidos ou correntes ou frente ampla, tentando unir Deus e o Diabo, por mero capricho eleitoreiro que contradiz frontalmente a estratégia, ou pior ainda: tornando tática em estratégia, embora mantendo o discurso de compromisso revolucionário. 

Graças ao materialismo histórico dialético, somos chamados a manter vigilância crítica sobre nossas práticas cotidianas (autocrítica), tem ou não a ver com nosso compromisso revolucionário. Trata-se de exercitar continuamente mística revolucionária, que nos ajude a manter coerência entre o que fazemos e o que dizemos fazer. 

Outra tarefa a exercitar tem a ver com nossas iniciativas de caráter organizacional, sempre partindo de núcleo, de células, de pequenos grupos ou comunidades com encontros periódicos e contínuos, espaços de aprendizado, de camaradagem, de diálogo e de renovação de compromisso. Núcleo que não dependem da vontade de uma pessoa ou de um pequeno grupo, a indicar o que os outros devem fazer, mas em que todos se sintam chamados a contribuir, cada qual a seu modo, inclusive e sobretudo na tomada de decisões. Núcleos por outro lado, que não se sintam isolados de outros, mas em contato permanente com o que se passa com outros núcleos municipais, regionais, nacionais, internacionais, em uma rede orgânica de relações. Núcleo ou célula movidos por uma coordenação colegiada e com alternância periódica, garantindo os que já tenham exercido funções de coordenação, voltem para a base e da base venham pessoas para exercer a coordenação colegiada. A isso chamamos de “mecanismos de alternâncias de cargos e funções”. Núcleo que zelem pela sua autonomia política e financeira, isto é: que realizem suas atividades financiadas pelos seus próprios membros, recusando financiamento do mercado ou de outras instancias e estruturas políticas representantes de outra classe. 

Uma outra tarefa tem a ver com a formação contínua de seus membros. Aqui não se trata de mera formação escolar (que é passageira e controlada pelo Estado), mas um permanente processo formativo protagonizado por nossas próprias organizações de base, exercitando-se com uma série de tarefas e compromissos. Um deles é de fazer continuamente uma leitura crítica do mundo, uma apreensão objetiva da realidade social, do âmbito local ao âmbito internacional, buscando identificar quais são os projetos de sociedade em jogo, quais as forças sociais que representam cada um desses projetos, quais são suas respectivas estratégias de ação. Trata-se, concretamente, de um exercício contínuo de leitura conjunta do contexto econômico, político, cultural, vigente em escala mundial, latino-americana, brasileira e local.  

Tendo em vista que a análise de conjuntura, sozinha, não dá conta de um enfrentamento exitoso dos desafios colocados pela realidade social. Sentimo-nos igualmente instados a localizar, no tempo e no espaço, raízes mais profundas da atual conjuntura, o que nos remete a um estudo contínuo de nossa formação histórica, o que nos obriga a um conhecimento mais detido dos nossos bons clássicos (filósofos, historiadores, sociólogos, economistas, antropólogos, educadores, orientados por uma perspectiva marxista). A este respeito, lembramos a afirmação feita pelo pensador brasileiro, Álvaro Vieira Pinto, ao criticar estudos de intelectuais ou acadêmicos que não tivessem como prioridade a busca de um novo projeto para o país. Essa tarefa nos leva, por conseguinte, a revisitar nossos bons clássicos, tanto em escala mundial, no âmbito latino americano, quanto na esfera nacional, sempre priorizando o paradigma marxista. 

Ao realizar tal tarefa, estamos comprometidos com o contínuo exercício da memória histórica dos oprimidos de todo mundo, inclusive da américa latina e do Brasil. Ai cuidamos de elencar numerosas lutas sociais e políticas, protagonizadas por nossas organizações de base, tais como, em escala mundial (a Revolução Francesa, a Comuna de Paris, a Revolução Russa, a Revolução Chinesa, a Revolução Cubana), bem como as grandes lutas sociais travadas na América Latina e no Brasil, por movimentos populares como: as resistências indígenas, a guerra dos palmares, cabanagem, a balaiada, movimento de canudos, as ligas camponesas, entre outros. Ao exercício contínuo da memória coletiva devemos acrescentar também o da memória e de figuras revolucionárias luminosas, tais como a de Carlos Marighela, Gregório Bezerra, Mario Alves, João Pedro Teixeira, Irmã Dorothy, entre outros.

Até aqui, enfatizamos como tarefa prioritária, a manutenção do horizonte revolucionário com o qual nos comprometemos (dimensão futura), e exercício da memória histórica dos oprimidos (dimensão do passado). Tratamos, agora, de ir em busca de uma ponte que nos permita transitar do passado para o futuro, ou seja: que trate de enfocar nossas tarefas históricas de hoje, nossa práxis. Neste sentido, recorremos a alguns exemplos concretos, recolhidos da atual conjuntura. Tomemos, como exemplo, a questão do Banco Central. A quem interessa a “autonomia” do Banco Central? Como não enxergar nessa escandalosa manobra, a tentativa de garrotear o governo Lula, impedindo-o de cumprir minimamente o programa de governo vitorioso nas eleições de 2022? Como não enxergar nesta mesma manobra a tentativa da grande burguesia financista a transferência escandalosa de renda do tesouro público, para seus cofres, seja por meio da manutenção insuportável da taxa Selic, de 10,5% perante uma inflação abaixo de 4% e perante um cenário mundial, em que as principais economias do Capitalismo se movem com inflação muito mais alta? Para onde vai essa enorme diferença? Sabe-se que a dívida pública consome, por ano, somente em relação ao pagamento de juros, a soma de 790 bilhões de reais, em que cada percentual a mais da Selic, importa uma perda estimada em mais de 40 bilhões de reais. E o que dizer quando se trata de uma diferença de mais de 6% entre a taxa Selic e a inflação atual? E se não bastasse, a classe dominante faz parcerias com a maioria dos integrantes do Congresso brasileiro, em razão da qual, desde 2019, vigora a lei que assegura autonomia do Banco Central em relação ao governo, com a agravante de que à frente do Banco Central, um bolsonarista que desde então, vem dando sinais evidentes de seu compromisso com a burguesia financeira, apoiada pelo bolsonarismo e pela sua mídia venal. Ainda pior: A grande burguesia se acha claramente representada pela maioria do atual congresso, até porque ela consegue manobrar o processo eleitoral, injetando parte de sua fortuna em seus candidatos, que formam maioria em ambas as casas. Resultado: manifestando uma brutal hipocrisia, a maioria congressista, fazendo coro com os ditames da burguesia, critica o atual governo por “gastar” demais (entenda-se, investir em políticas sociais de evidentes prioridades), enquanto defendem, com unhas e dentes, tanto as sangrias dos gastos com serviço da dívida, quanto a isenção de impostos de grandes setores empresariais.  

Diante de tais desafios, por meio do materialismo histórico dialético, a educação popular apresenta-se como o espaço adequado e propício para fazer avançar a consciência de classe e do compromisso revolucionário dos “de baixo”, assumindo tarefas e lutas organizativas, formativas e de resistência e enfrentamento a barbárie capitalista. Essas breves linhas destinam-se especialmente aos jovens militantes de nossas organizações de base, com o propósito de se sentirem estimulados a entrar como protagonistas neste processo de humanização e por isso mesmo, contra os retrocessos desumanizantes que a classe dominante escravocrata não cessa de alimentar, no mundo e no Brasil. 

João Pessoa, 22 de junho de 2024

[1] Sociólogo e Educador Popular. Aprendiz, militante e pesquisador dos Movimentos Populares, desde meados dos anos 60. Blog: https://textosdealdercalado.blogspot.com/

[2] Sociólogo e Pedagogo. Pós-Doutorando em Educação pelo PPGE – UFPB.

 


sexta-feira, 21 de junho de 2024

JÜRGEN MOLTMANN (HAMBURGO, 1926 - TUBINGA, 2024) E AS TEOLOGIAS DA LIBERTAÇÃO: UM DIALOGO HEURÍSTICO*

 

JÜRGEN MOLTMANN (HAMBURGO, 1926 - TUBINGA, 2024) E AS TEOLOGIAS DA LIBERTAÇÃO: UM DIALOGO HEURÍSTICO*

 

Ader Júlio Ferreira Calado

 

No dia 3 de junho deste ano, o teólogo luterano alemão Jürgen Moltmann fez sua passagem, aos seus 98 anos abençoados e bem vividos. Contemplando aspectos diversos do seu profícuo legado, podemos perceber diversos aspectos similares aos tratados pelas teologias latino americanas da libertação. Em homenagem ao denso e profundo legado de Jürgen Moltmann, trataremos de destacar alguns pontos de seu legado teológico, especialmente os que guardam estreito vínculo com os temas tratados pela teologia da libertação. Começamos por uma brevíssima notícia biobibliográfica de Jürgen Moltmann, com o propósito de prestar informações básicas a parte dos leitores e leitores não conhecedores deste teólogo. Em seguida, cuidamos de trazer à tona alguns aspectos tanto da densa obra quanto de Moltmann quanto do legado das teologias latino-americanas da libertação, buscando destacar algumas semelhanças, algumas afinidades, eletivas ou não.

 

Brevíssima notícia sobre a vida e a obra de Jürgen Moltmann

 

De tradição Luterana, nascido em família de pouca tradição religiosa, Jürgen Moltmann nasceu em Hamburgo, na Alemanha, em 8 de abril de 1926, tendo feito sua Páscoa, há quase três semanas atrás, na cidade alemã de Tübingen ou Tubinga, Trata-se de uma biografia de certo modo atípica, inclusive pelo fato de, à diferença de muito teólogos e teólogas cristãos, ter ele sido iniciado à vida cristã de forma relativamente tardia. Por conta das conturbações trazidas a Alemanha, como a toda Europa, por conta dos desdobramentos tenebrosos advindos com a onda nazifascista, Moltmann foi obrigado ao serviço militar, aos 16 anos, interrompendo sua carreira de estudos, tendo sido também ele, vítima de prisão, por vários anos. Ele passou alguns anos preso na Bélgica e na Inglaterra, durante a segunda Guerra Mundial. Somente depois, é que consegue iniciar propriamente sua carreira religiosa, para a qual se sentiu chamado por conta mesmo das muitas provações que experimentou, em razão das brutalidades do nazifascismo, que também pesaram sobre ele. Consta de sua trajetória ter sido positivamente tocado pelo presente de um exemplar do Novo Testamente e dos Salmos.

Com a idade de 22 anos, dá início a sua formação teológica, em Göttingen, tendo concluído sua formação original em meados dos anos 50. Conciliando sua densa formação teológica, no campo luterano, cedo começa o seu percurso docente, tendo também exercido o pastoreio, durante vários anos, mas encerrando sua carreira docente em longo período, na Universidade de Tübingen ou Tubinga, na Alemanha.

Aqui destacamos, de maneira especial, pontos de sua vasta e densa produção teológica, ressaltando aspectos que parecem sobressaírem em sua diversificada e vasta obra. Entre seus livros mais conhecidos, destacam-se, por exemplo, a sua “Teologia da Esperança”, que é avaliada como de grande inspiração para vários teólogos e teólogas da Libertação, entre os quais os irmãos Boff (Clodovis e Leonardo), "Teologia Política” constitui uma outra grande contribuição do legado de Moltmann que também inspirou um fecundo diálogo junto a diversos representantes das teologias latino-americanas da libertação,  outro marco do seu legado teológico foi também ou ainda é o seu livro intitulado “Ética da Esperança”, este já produzido em sua maturidade de pensador; convém, ainda, ressaltar sua grande contribuição ao pensamento teológico crítico, citando seu livro sobre o Espírito Santo e outro sobre a Trindade. Não menos importante, é ainda o seu livro abordando aspectos eco teológicos, contribuição com a qual inspira diversas iniciativas cristãs, também no âmbito da reflexão teológica. Também escreveu “O Deus crucificado”, “Deus na Criação”, entre tantos outros.

 

Que pontos de interlocução (direta ou indireta) podemos destacar entre os mais importantes livros escritos por Jürgen Moltmann e diversos teólogos e teólogas latino-americanos da Libertação?

 

Um primeiro ponto a destacar, tem a ver com sua obra intitulada “Teologia da Esperança”, que influenciou e segue inspirando diversos teólogos latino-americanos da Libertação. Uma rápida consulta ao livro “Teologia e Prática: Teologia do Políticos e Suas Medicações", de autoria de Clodovis Boff, editado pela Vozes em 1978, constitui uma de tantas ilustrações que poderíamos trazer à tona. “Teologia e Prática” representa um marco de ampla referência das pesquisas latino americanas, no horizonte da teologia da libertação. Neste livro, resultante de sua tese de doutoramento em Lovaina, Clodovis Boff ao trazer a lume aspectos das raízes latino-americanas da Libertação, também dialoga com Jürgen Moltmann, especialmente em sua conhecida obra "Teologia Política". Além de Clodovis Boff, diversos outros autores poderíamos lembrar, a exemplo do teólogo José Comblin, este, mais conhecido pela sua densa contribuição aos estudos pneumatológicos, no âmbito da teologia da libertação, nos remete, em mais de uma de suas obras a importância da contribuição de Moltmann, também no domínio da pesquisa pneumatológica.

Igualmente, podemos observar o exercício de um fecundo diálogo entre a obra de Moltmann que trata da questão ecológica, no quadro de uma Ecoteologia, e a já vasta e profunda contribuição de Leonardo Boff e outros teólogos e teólogas, inclusive da vertente protestante, em diálogo com o mesmo desafio enfrentado por Moltmann.

Mas um outro aspecto, dentre tantos que poderíamos destacar, refere-se a sua obra intitulada “Ética da Esperança”, esta elaborada na segunda década do nosso século. Podemos aí encontrar referências luminosas expostas por Moltmann, quanto as profundas relações que se encontram entre o agir humano e o horizonte da Esperança. Sob diversos aspectos, neste livro, Jürgen Moltmann trata de enfrentar pontos fulcrais que em que a ética se faz presente, como, por exemplo, no enfrentamento das ameaças do nosso planeta, capítulo em que ele nos faz densos e provocantes questionamentos, acerca da relação entre os destinos que o mundo contemporâneo vem apontando para a degradação cada vez mais rápida e profunda das condições do nosso planeta.

Neste sentido, limitamo-nos, nestas linhas, a prestar uma homenagem a figura luminosa de Jürgen Moltmann, ao mesmo tempo em que buscamos provocar, incentivar, com mais força, em especial os jovens militantes de nosso tempo, a aprofundarem os estudos tanto da obra de Jürgen Moltmann, quanto os provenientes de vários teólogos e teólogas latino-americanos da Libertação. Acerca desta última, temos alegria de compartilhar que, sexta-feira passada, dia 14 deste mês de junho vivenciamos a quadragésima quarta semana consecutiva (isto é, cada sexta-feira), a leitura comunitária, sequenciada, feita, de modo virtual, do livro “50 Anos de Teologias da libertação: Origens, Revisão, Perspectivas e Desafios”, organizado por  Edward Guimarães, Emerson Sbardelotti e Marcelo Barros. Ao percorremos criticamente estas páginas – já estamos lendo o segundo volume -, podemos também perceber diferentes pontos de contato de vários destes autores e autoras, com o legado de Jürgen Moltmann, não obstante a especificidade dos lugares em que são produzidas tais reflexões teológicas.

 

 João Pessoa, 21 de junho de 2024

 

*Texto produzido em áudio pelo autor e digitado por Zélia Cristina, e revisado por Heloíse Calado. A ambas, a expressão de minha gratidão.

quarta-feira, 19 de junho de 2024

A hora e a vez dos Movimentos Populares: não à “elite” escravocrata!

 A hora e a vez dos Movimentos Populares: não à “elite” escravocrata!


Alder Julio Ferreira Calado


O despertar esperançoso dos coletivos feministas, que vêm ocupando as ruas, em protesto contra a barbárie do Projeto de Lei 1904, que criminaliza crianças e adolescentes, frequentemente estupradas, a penas de ate 20 anos de prisão, constitui um sinal de resistência ativa, de que nossas organizações de base voltem a fazer o seu papel: o de protagonizar as grandes mudanças pelas quais espera e luta a sociedade brasileira, em especial os empobrecidos e marginalizados (as mulheres, povos originários, comunidades quilombolas, setores periféricos urbanos, trabalhadoras e trabalhadores do campo e da cidade, o seguimento LGBTQIA, alvo constante de homofobia, juventudes condenadas ao trabalho escravo e ao  atual sistema prisional desumano, vigente em nosso país).

Não bastasse o ameaçador cenário internacional de expansão neofacista, na Europa, eis que na atual conjuntura brasileira, a extrema direita, constantemente alimentada pela “elite” escravocrata (o setor financista, o agronegócio, as grandes empresas transnacionais e nacionais, sem excluir o obscurantismo de parcelas significativas das igrejas cristãs), vêm atacando, cada vez mais, os direitos da imensa maioria de nossa gente. Mais recentemente, alem dos ataques da “elite” escravocrata, vergonhosamente apoiada pela mídia venal hegemônica, em sua sanha de poupar os setores empresariais do pagamento de impostos, fazendo recair sobre os mais desvalidos, pesados tributos, vem se somar o atual presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, autêntico representante do Mercado escravista, (haja vista seu constante e crescente comprometimento, com a ultradireita bolsonarista, ver, por exemplo, sua estreita relação com Tarcisio de Freitas, governador de São Paulo e de outras manifestações do gênero), que insiste em manter uma pesadíssima taxa de juros, de mais de 10%, com o claro propósito de inviabilizar e mesmo de boicotar o programa de governo vitorioso, nas ultimas eleições.  Importa, a esse respeito, lembrar sua atitude de apoio escandaloso à candidatura de Bolsonaro, quando ele já era o presidente do Banco Central, sem qualquer escrúpulo de vestir a camiseta verde-amarela em público (e ainda tem o descaramento de se dizer apenas um “técnico” ). 

E neste momento, que nossas organizações de base (em especial, os movimentos sociais do campo e da cidade), têm o dever histórico de, a exemplo do que estão fazendo os coletivos feministas, mostrar sua cara em praça publica, exigindo a renúncia ou a demissão de Roberto Campos Neto e reivindicar um Banco Central afinado com o programa vitorioso das ultimas eleições, e não subordinado ao Mercado escravista, que não se submeteu a qualquer processo eleitoral. 

Fora Roberto Campos Neto! Não à suposta “independência” do Banco Central, completamente subordinado aos interesses da “elite” escravista!


João Pessoa, 19 de junho de 2024







quinta-feira, 13 de junho de 2024

Evidências incômodas, esquecidas Só apontam a omissão dos movimentos

Evidências incômodas, esquecidas

Só apontam a omissão dos movimentos




No Estado Burguês, é indiferente 

Seja o chefe do Estado ou o Congresso


É engano pensar de outro modo:

Quem decide é o mercado, nos dois casos... 


Frente ampla não é frente de esquerda, 

Na primeira quem manda é a burguesia


Mesmo eleito, em nome dos de baixo, 

Decisões favorecem o de cima


Haja vista a partilha do orçamento 

Aos de cima, o filé, ao povo, os ossos


Movimentos são forças que decidem 

Continuam porém a ser omissas


Quanto avanço nos deu a Constituinte!

As “Diretas”, quantas lutas triunfantes 


Tantas lutas de nossos movimentos 

Quilombolas, no campo e na cidade!

A insânia burguesa não tem limite
Por as praias à venda: a mais recente

A tragédia gaúcha é resultado
Da política ecocida dos liberais

Aparelhos do Estado cumprem as ordem
Das políticas amargas do Capital

A imprensa hegemônica é porta voz
Dos mais torpes projeto da burguesia

O ideário do Império dita as regras
Aparelhos do Estado as tornam leis

Só as forças dos “de baixo” desmascaram
O cinismo e as mentiras dos “de cima”

Os embustes pontificam, cada hora
Banco Central sob as rédeas do Mercado

Juros altos, dívida pública impagável
Aparelhos do Estado garroteados

As riquezas do país são saqueadas
Pelo grande Capital insaciável

Perigosa ilusão é frente ampla

Em congresso tomado por direitistas


Liberais são parceiros do fascismo

No Brasil,  na Europa,  em qualquer parte…


Eleições na Europa o confirmam:

Na Alemanha, na França, triste horizonte…


Ocidente patrocina o terrorismo

Que Israel segue impondo aos Palestinos


Pra servir interesses do Império

Governantes sufocam o próprio povo…


Pros de baixo o que é mesmo Frente Ampla?

O diálogo entre o pescoço e a guilhotina


De cedência a cedência, forças de esquerda

Vão minando a essência do programa 


E enquanto o governo retrocede

Movimentos populares se resignam


Se limitam ao protesto das palavras

A Direita se assanha e faz a festa


Parlamento europeu é mostruário

Do recuo da esquerda ante os fascistas


A EMBRA é obra do Estado

Dela o agro se apossa, em seu proveito


Vassalagem humilhante, a que impõem

Os Estados Unidos sobre a Europa

Mantém guerras à custa dos vassalos

O G-7 é palco desta estratégia


Que distância abissal de conteúdos

Ao ouvir-se o G-7 e a OIT!


Pautas - bomba a Direita encadeia

Pra tornar o Governo seu refém


Artur Lira cumpre bem este papel:

Da Direita ele é a referência


João Pessoa 13 de junho 2024






sábado, 8 de junho de 2024

Arca, negritude e militância: exercitando a memória histórica

Arca, negritude e militância: exercitando a memória histórica


Alder Júlio Ferreira Calado


Reconfortante a iniciativa da AESA (Autarquia de Ensino Superior de Arcoverde), por meio do professor Augusto César Acioly Paz Silva, de rememorar a trajetória de Luiz Eloy Andrade, fundador e militante da ARCA, e do Jornal ABIBIMÃ.  


Acerca de Luiz Eloy, já escrevi algumas notas. Estou certo, por outro lado, de que nesta mesma coletânea, outros textos dele se ocuparão. De minha parte, e em homenagem a Luiz Eloy, tratarei de exercitar a memória histórica da condição negra, no Brasil, cuidando, ao mesmo tempo, de contextualizar o protagonismo da Arca, focando páginas memoráveis de seu legado, presente tanto em diferentes iniciativas realizadas pela Arca, quanto destacando a relevância do Jornal Abibimã para nossa cultura regional.


A luta do povo Negro vem de muito longe.


Cada iniciativa protagonizada pela Arca, traz presente, de forma direta ou indireta, toda uma longa história do processo colonialista/ escravista/ capitalista que tem marcado profundamente nossa história. Trazer à tona os traços mais marcantes desta trajetória significa reavivar nossa memória histórica como condição de uma compreensão mais objetiva de nossa realidade atual, ao mesmo tempo em que nos interpela e nos concita a uma constante renovação de nossos compromissos com a causa Negra. 


Para esta breve revisitação histórica, nos inspiramos em uma plêiade de pesquisadores e pesquisadoras sobre o modo escravista que caracterizou - inclusive com forte incidência na atualidade - a história de dominação, de exploração, de resistência e de enfrentamento entre forças sociais antagônicas simbolizadas pelas relações Casa Grande x Senzala. Neste sentido, figuras como Capistrano de Abreu, Lima Barreto, Florestan Fernandes, Clóvis Moura, Edson Carneiro, Nelson Werneck Sodré, Jacob Gorender, Ruy Mauro Marini, Carolina Maria de Jesus, Lélia Gonzalez, Conceição Evaristo, Marcelo Bezerra Oliveira e tantas outros, emergem como fontes de inspiração ao nosso Labor Rememorativo. 


Quatro séculos de opressão escravista têm deixado profundas marcas em nossa sociedade, seja do ponto de vista econômico, seja do ponto de vista político, seja do ponto de vista cultural. Nossos povos originários constituíram as primeiras vítimas do processo de colonização, tendo sido os primeiros a serem submetidos a trabalhos forçados, não obstante toda sua heróica resistência. Em razão de condições históricas, os povos originários não se prestaram ao escopo dos dominadores europeus, até porque conheciam profundamente cada palmo do seu chão, de suas marcas, de seus rios… ainda assim, desde o início da colonização até hoje, têm sido perseguidos, dizimados, sob sucessivos segmentos da Classe Dominante. Disto, também dá testemunho o relato feito por Clóvis Lugon em seu livro “A República Comunista Cristã dos Guaranis”, no qual analisa a heróica resistência dos nossos povos originários.


No entanto, por diferentes razões, os colonizadores acabaram fixando sua fúria conquistadora sobre multidões de africanos e africanas transformados em escravos, em terras americanas, durante mais de três séculos. Um exame mais detido do modo de produção escravista que teve lugar no Brasil e em tantos outros países latino-americanos e nos Estados Unidos, nos permite constatar a voracidade dos colonizadores europeus, sob diversos ângulos. Primeiro, do ponto de vista da quantidade de africanos escravizados em todo continente americano, máxime no Brasil, eis que dos cerca de 10 milhões (alguns falam até em 12 milhões) de africanos e africanas escravizados ao longo do continente, em torno de 5 milhões foram trazidos à força para o Brasil, a partir do século XVI. Também, do ponto de vista da extensão territorial, enquanto, no caso dos Estados Unidos, o regime escravista se instalou na parte sul do país, no Brasil, ao contrário, o regime escravista se estendeu por todas as regiões. Não bastassem a quantidade e a extensão territorial, acresce ainda a duração: enquanto, entre 1808 e 1830 os países sul-americanos fizeram coincidir sua “independência” política (de suas metrópoles) com o processo de abolição da escravidão, eis que, no Brasil, a chamada “Abolição” (1888) só se deu 66 anos após a “independência”.


Estes dados se somam a tantos outros. O regime escravista se processou no Brasil com as bênçãos da Igreja Católica, cujos organismos eram proprietários de escravos. Com efeito, registram-se africanos escravizados em diversos conventos. Revoltante é como os colonizadores cristãos ousaram praticar tantos crimes, em nome da fé cristã.


Desta desventura escravista feita à custa do trabalho, do suor e do sangue de milhões de africanos e africanas escravizados, também no Brasil, resultou um imenso acúmulo de riquezas para os senhores da Casa Grande. Inclusive em nossa literatura sertaneja, repentistas e cordelistas rememoram, em seu trabalho aspectos relevantes desta desventura, a exemplo dos versos de autoria conjunta dos Poetas Ivanildo Vilanova e Severino Feitosa, em seu poema intitulado “ So com outro Subir, o quilombola /, Pode o Negro alcançar a liberdade”: 


No início da vida brasileira

Foi o negro uma fonte de tesouro

No desejo incansável pelo ouro

E no labor da lavoura açucareira

Essa raça infeliz foi a primeira

A ser vítima do ódio e da maldade

Para fundar arraial, vila e cidade

Limpar cana, arar terra e cortar sola

Só com outro Zumbi ou Quilombola

pode o negro alcançar a liberdade


As tarefas dos negros brasileiros

Eram pretas com brancas sobre os colos

Botar água nas tinas dos monjolos

Domar boi nos serviços mais grosseiros

Empilhar o café nos estaleiros

O produto de mais necessidade

Em passeio ou qualquer atividade

Carregar o patrão na padiola

Só com outro Zumbi ou Quilombola

Pode o negro alcançar a liberdade


Só o negro Zumbi no seu caminho

Enfrentou quase trinta expedições

Brancos, índios, mulatos com canhões

Perseguindo essa águia no seu ninho

Ferro em brasa, chibata, pelourinho

Já não era cruel realidade

No quilombo existia a irmandade

Sem patrão, capataz e nem argola

Só com outro Zumbi ou Quilombola

Pode o negro alcançar a liberdade


Pela grande coragem do zumbi

Resistiu o quilombo muitos anos

Derrotando holandeses e lusitanos

E senhores de engenho contra si

Jorge Velho chegou do Piauí

Com homens e armas em quantidade

E os negros em tal disparidade

Sucumbiram aos disparos da pistola

Só com outro Zumbi ou Quilombola

Pode o negro alcançar a liberdade


Mesmo após o decreto da princesa

Há algemas, correntes e grilhões

As mucamas, as senzalas, os porões

O racismo ofendendo a natureza

Entre brancos e negros com certeza

Nunca houve e nem há essa igualdade

Preconceito na atualidade

Tem na fábrica, na rua e na escola

Só com outro Zumbi ou Quilombola 

Pode o negro alcançar a liberdade

   

Indigna-nos, igualmente, tomar conhecimento do cotidiano atroz, do tipo e do ritmo de trabalho impostos aos africanos escravizados, aos quais se acrescentavam castigos torturas e assassinatos, em razão de qualquer conduta destoante apresentada pelos negros. No caso das mulheres escravizadas, a situação não era menos atroz.


Situação que ainda hoje continua maculando a dignidade do povo negro. Nesses dias, mais precisamente no dia 17/08/2023, mais uma vítima quilombola teve sua vida ceifada, com requintes de covardia e crueldade, não bastasse o assisinato de seu filho Flávio Gabriel dos Santos, há 6 anos. Eis como a imprensa noticiou: “A liderança quilombola Bernadete Pacífico, de 72 anos, assassinada a tiros na noite de quinta-feira (17), na Região Metropolitana de Salvador, também era ialorixá, líder religiosa, da comunidade Pitanga dos Palmares, e coordenadora da Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq)” (G1 Bahia, 18/08/2023 )


A fim de evitar clima de revolta ou rebeliões, desde os sofrimentos e atrocidades infligidos aos africanos, nos porões dos navios negreiros, os traficantes tratavam de dividir os viajantes de tal modo a separar pessoas da mesma terra, da mesma língua, dos mesmos costumes e até da própria família. Tratamento que era reforçado aos senhores compradores de africanos escravizados. O alto investimento feito nessas “mercadorias” requer a adoção dos mais torpes castigos a essa gente.


No plano econômico, o escravismo implicou um acúmulo exorbitante de terras, de riquezas e de poder para o número baixíssimo de senhores da Casa Grande literalmente à custa do trabalho escravo, das múltiplas formas de exploração e das terríveis punições infligidas ao povo Negro escravizado. Não bastassem diversas fontes e registros históricos do passado, ainda hoje as pesquisas em curso assinalam as atrocidades cometidas contra os negros, também na esfera econômica. Livros, revistas, sites, podcasts, seguem trazendo à tona, essa história sangrenta e de extrema penúria para o povo negro. No Brasil, na América Latina, nos Estados Unidos, e lá onde teve lugar o modo de produção escravista, resta patente o gigantesco e crescente enriquecimento pelos antigos e novos senhores da Casa Grande, hoje reciclados em forma de banqueiros, de latifundiários do agronegócio, de grandes empresários, a exemplo de Jorge Paulo Lemann, Carlos Alberto Sicupira e Marcel Telles, os principais acionistas das Lojas Americanas, sem esquecer seus representantes no Congresso e em outros espaços estatais.


Não são, por certo, casuais, as profundas desigualdades econômicas de que são vítimas pobres, pretos, favelados, ora figurando como as maiores vítimas de desemprego, ora como as parcelas demográficas com salários mais habilitados, ora como principais componentes, dos maiores índices de analfabetismos ou de baixa escolaridade.


Exemplos ilustrativos desta realidade temos às centenas. Recorrendo, por exemplo, ao Podcast História Preta, e em especial à trajetória existencial de Carolina Maria de Jesus, autora de “Quarto de despejo”, podemos rememorar e constatar que tal trajetória não é uma raridade, inclusive em nossos dias. Com efeito, em numerosas favelas e periferias urbanas, bem como em áreas rurais, encontramos casos semelhantes de figuras de pobres, de pretos, periféricos, a sobreviverem nas piores condições de vida e de trabalho, cuja rebeldia é frequentemente respondida com encarceramentos em massa, corpos depositados em putrefatas e superlotadas celas.  


Do ponto de vista das relações sociais de gênero, a situação se apresenta com igual ou ainda maior gravidade. O Escravismo também rima com patriarcado. De fato, se as próprias mulheres brancas e de recursos se apresentam frequentemente vítimas das mais diversas formas de violência - feminicídio, violência doméstica e outras -, as mulheres pobres, pretas e LGBTQIA + são alvo corriqueiro de tais violências, em nossa sociedade.


Na esfera política, persistem marcas escravistas, sob vários aspectos. Os principais postos governamentais, seja em âmbito da União dos Estados federativos ou dos Municípios, segue visível o amplo predomínio da Casa Grande, perpetuando-se o poder nas mãos dos filhos, netos, bisnetos dos senhores da casa grande, enquanto a enorme maioria da população formada por mulheres, pretos e periféricos se veem obrigados a limitar sua cidadania apenas ao exercício do voto, com a agravante de ser fortemente influenciado pelos aparelhos ideológicos em especial pela mídia corporativa e pelas redes sociais controladas pela casa grande. Daí resulta, inclusive, a persistente sub-representatividade dos pobres, das mulheres, dos pretos e periféricos nos diferentes espaços estatais (no Legislativo, no Executivo, no Judiciário e nos altos escalões das Forças Armadas, situação ainda mais grave, quando se trata dos altos escalões empresariais e financeiros).


No plano cultural, prevalece a mesma estrutura de dominação, na qual as crenças, os valores a literatura, as artes do povo negro sao frequentemente depreciadas, ainda que em alguns setores - no futebol, na musica, na culinária… - , mereçam um lugar de destaque. No campo religioso, vigora ainda hoje uma tendência de discriminação, sendo as religiões de matriz afro-americana submetidas a tentativas de desqualificação ou mesmo de criminalização. Convém, no entanto, reconhecer e saudar conquistas significativas, obtidas pelo povo negro, junto ao Estado, nos governos progressistas, a exemplo dos espaços conquistados num sistema educacional. 


A contribuição da Arca


É neste cenário de contradições, de retrocessos e alguns avanços, que o Projeto Arca, graças à militância de seus membros, tendo a figura de Luís Eloy como grande timoneiro, sentindo-se interpelada por velhos e novos desafios, busca interferir neste processo por meio de uma série de iniciativas e atividades, junto com parcelas significativas da população negra de Arcoverde e região neste sentido, passamos a elencar alguns desafios e perspectivas.


Em suas décadas de caminhada, a Arca tem acumulado um valioso legado do qual não devemos abrir mão. As iniciativas passadas e as em curso nos permitem não partir do zero. Desta forma, sem prejuízo do que já está sendo feito - ao contrário, buscando fortalecê-las -, ousamos propor algumas ideias. Uma primeira consiste em perceber, nas experiências de ontem e de hoje, o contínuo esforço de exercitar a memória histórica, com o propósito de ter presentes possibilidades e limites das lutas passadas, sem esquecer as lutas presentes. Neste sentido, vale a pena rememorar a contribuição do Jornal Abibiman, bem como dos livros editados pela Arca. No caso do Jornal Abibiman, do primeiro ao último número, podemos constatar um conjunto temático voltado a rememoração dos feitos e das gentes da Mãe África, tratados com o cuidado de não idealizar, não torná-los ídolos, como se a condição humana não estiver inscrita neles. Acerca disto, trazemos presente o alerta de Lélia Gonzalez, no sentido de cultivarmos o senso crítico quanto ao legado e a presença dos valores africanos entre nós.


Seja nos livros editados pela Arca, seja nas páginas do Abibiman, nas quais podemos ler textos instigantes, a exemplo dos produzidos por Edson Silva e outros, seja ainda por contribuições de outros colaboradores e colaboradoras, a exemplo de Irailda Leandro da Silva, hoje a frente dos trabalhos da arca, - aqui destacamos a coluna “Traços da Mãe África: em busca de nossas raízes” -, cuidamos de exercitar criticamente esse legado, reconhecendo e recuperando suas raízes culturais valiosas, ao mesmo tempo em que nos esforçamos de ter presentes diversas alterações produzidas ao longo de séculos, de modo que estejamos atentos ao risco de considerarmos uma espécie de transferência mecânica desde a África no século XVI aos dias presentes, sem tomar em conta consideráveis alterações sociais, econômicas, políticas e culturais inscritas ao longo deste tempo. 


Durante vários anos de circulação do Abibiman, na coluna acima mencionada ensaiamos uma incursão pelas terras e pelas gentes da mãe África, sempre tendo o cuidado de destacar a complexidade e extensão temáticas, em nossa abordagem, lembrando tratar-se de um continente cuja área é de 30.370.000 km, correspondendo a cerca de quatro vezes a área do Brasil, compreendendo 54 Países, cujas populações acumulam uma longa e complexa história de imensa diversidade cultural, linguística, religiosa, além de se tratar de uma diversidade econômica e política.


Consciente dos limites de nossa abordagem, mas ao mesmo tempo, movido pelo propósito de exercitar nossa memória histórica como caminho de uma compreensão mais objetiva de nossa realidade atual, especialmente no campo da negritude, cuidamos de rastrear facetas econômicas, políticas e culturais das gentes da mãe África. Nesta perspectiva, a coluna “Traços da Mãe África: em busca de nossas raízes“ empenha-se em trazer à tona, começando pelas situações histórico-geográfica de cada País, componentes da cultura, das artes, da literatura, da música dos povos Africanos, dando ênfase inclusive a produção literária de suas escritoras. Também aí se encontram algumas páginas de textos dedicadas a identificar e reconhecer a contribuição específica de alguns revolucionários, entre os quais Agostinho Neto (Angola, 1922-1979), Amílcar Cabral (Guiné-Bissau e Cabo Verde, 1924-1973), Samora Machel (Moçambique, 1933-1986), Thomas Sankara (Burkina Faso, 1949-1987), observando que nos ativermos principalmente a lideranças revolucionárias em luta anti-colonialista do mundo português.


A partir destas considerações/rememorações, ousamos destacar, a título de sugestões, alguns passos que propomos à continuidade dos trabalhos dos/das que integram ou colaboram com a Arca:

Em suas atividades rotineiras, assegurar o exercício da memória dos nossos ancestrais, sempre buscando deles recolher energias renovadoras, de intervenção transformadora de nosso cotidiano;

Buscar, trazer presentes fatos e episódios do nosso passado, que nos ajudem a fortalecer nossos compromissos com a causa negra, seja do ponto de vista econômico, seja do ponto de vista político, seja do ponto de vista cultural;

Buscar cultivar em nossa agenda coletiva e pessoal a pedagogia do exemplo, isto é, testemunhar pela vida os valores que dizemos nossos;

Exercitar continuamente a leitura de mundo, por meio do acompanhamento crítico bio turno da realidade local, nacional, internacional, de modo a exercitarmos continuamente uma análise crítica da realidade objetiva, bem como suas implicações concretas em nosso dia-a-dia;

Fiéis à mística revolucionária de nossos ancestrais, que não nos limitemos a uma leitura crítica de mundo, sem que isto implique nosso compromisso de reescrever o nosso mundo;

Promover encontros frequentes, nas periferias urbanas ou junto às comunidades rurais, incentivando, de forma criativa e lúdica, estudos e pesquisas frequentes sobre nossa realidade (local, estadual, regional, nacional, latinoamericana…);

Buscar ampliar a defesa e a promoção da causa negra junto a outras organizações de base e movimentos populares, de modo a testemunhar que as lutas de libertação do povo negro dizem respeito a toda a sociedade, em especial à Classe Trabalhadora, razão pela qual é indispensável trabalhar a perspectiva de classe, como fio condutor a dialogar com diversas dimensões das lutas sociais (sócio-ambientais, feministas, dos povos originários, dos camponeses, dos operários, da comunidade LGBT, entre outras).


Com relação a esta última recomendação, vale a pena ter presentes as circunstâncias históricas concretas que condicionaram e condicionam as relações do cotidiano dos “de baixo”, é bem o caso, entre outros, de Carolina Maria de Jesus, cuja trajetória merece ser melhor conhecida e trabalhada, tal como é feito, por exemplo, do podcast História Preta. Carolina Maria de Jesus é uma dessas centenas de milhares de trajetórias existenciais improváveis. Enfrentando, desde cedo, de forma contínua e crescente, as adversidades mais atrozes que ela ousou enfrentar, uma a uma e vencer, de modo a conseguir ter finalmente seus livros publicados (“Quarto de Despejo”, “Diário de Bitita” e “Casa de Alvenaria”...) com estrondoso sucesso, principalmente o primeiro em edição que superou em vendas autores consagrados como Jorge Amado.


Essas fraternas recomendações que, tenho certeza, já se encontram em curso, pelo menos em parte, constituem também um tributo à memória de Luis Eloy e demais membros da arca, de ontem e de hoje. Ao fazê-las, recordamos tantos feitos protagonizados pelos integrantes da arca e do Jornal Abibimam, dos quais nus permitimos destacar o empenho persistente de Luis Eloy e outros integrantes da arca, em bater às portas de Escolas públicas, inclusive a AESA, pleiteando a discussão e a inclusão de temas da Negritude nus respectivos componentes curriculares. É, com alegria, que, ao comemorarmos essa saga, constatamos, ao menos em parte, o êxito desta histórica reivindicação.


No caso específico da AESA, e mais particularmente da Faculdade de Formação de Professores de Arcoverde, da qual o próprio Luiz Eloy foi aluno egresso do Curso de Licenciatura em Biologia e também presidente do Diretório acadêmico, vale ainda registrar o empenho mais recente do Grupo de pesquisa em História, coordenado pelo Professor Augusto Cesar Acioly Paz Silva, que vem incorporando em sua agenda investigativa temas da Negritude, bem como feitos marcantes relativos à trajetória da AESA, inclusive dando ênfase à Revista PELEJA, iniciada em 1979, tendo circulado por vários anos, com os seus dez números.   

       

Referências:



ABREU, Capistrano de. Editora: sociedade ano 1934;

BARRETO, Lima. Recordações do escrivão Isaías Caminha, São Paulo: Penguin &

Companhia das Letras, 2010.

CARNEIRO, Edison. O Quilombo dos Palmares. São Paulo: Martins Fontes 2011;

CHIAVENATO, Júlio. O Negro no Brasil.São Paulo: Cortez 2012

FERNANDO, Florestan. A intregração do Negro na sociedade de classes. São

Paulo: contracorrente 2021;

FREITAS, Décio. Palmares: a guerra dos escravos: Editora movimento 1973;

GONZALEZ, Lélia: HASENBALG, Carlos. Lugar de Negro. Rio de Janeiro, Marco Zero, 1982. 115 p. pp. 9-66.

GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. São Paulo: Ática, 1988

MOURA, Clóvis. Rebeliões da senzala. Editora ciências humanas 1981;

OLIVEIRA, Marcelo Bezerra. Filosofia da literatura brasileira. São Paulo: edição do Autor, 2023.

SANTOS, Ynaê Lopes dos. Racismo brasileiro: uma história da formação do país.

São Paulo: Todavia, 2022.

WERNECK SODRÉ, Nelson. Formação Histórica do Brasil. Brasília. Editora

Brasiliense, 1962


Podcasts:


História Petra. Disponível em: https://historiapreta.com.br/ 

Projeto Querino. Disponível em: https://projetoquerino.com.br/podcast/ 

História e Sociedade. Disponível em: https://www.youtube.com/channel/UCHeuIbPI3b3wSWyM46Qafig 


João Pessoa, 25 de agosto de 2023