terça-feira, 27 de agosto de 2024

Revista Peleja (1979-1992), AESA (Arcoverde-PE): Registros Mnemônicos

 Revista Peleja (1979-1992), AESA (Arcoverde-PE): Registros Mnemônicos 


Alder Júlio Ferreira Calado


“Peleja” foi o título da Revista, mantida pela Autarquia do Ensino Superior de Arcoverde (AESA), de 1979 a 1992, período durante o qual foram publicados 10 números. Nas linhas que seguem, tratarei de destacar alguns aspectos acerca de vários pontos concernentes à Peleja.


Em que cenário histórico surgiu a Revista?


A faculdade de formação de professores de Arcoverde surge em 1969, como uma iniciativa assumida por três instituições: a Diocese de Pesqueira, a prefeitura municipal de Arcoverde e a secretaria de educação do estado de Pernambuco. Por força desta parceria, coube à Diocese de Pesqueira, por meio do Bispo Dom Severino Mariano de Aguiar, participar com a cedência do espaço inicial - salas do Colégio Diocesano Cardeal Arcoverde - para a instalação de salas destinadas ao funcionamento da faculdade; à prefeitura municipal de Arcoverde, por meio do Prof. Giovanni Pôrto, então prefeito do Município, assegurar um certo número de funcionários municipais, para os serviços gerais da instituição, ao mesmo tempo, assegurar condições progressivas de investimento na construção do futuro prédio da faculdade; ao governo do Estado, por meio da secretaria estadual da educação, coube ceder parte do seu quadro docente.


Para tanto, foi fundamental a formação de um grupo que coordenasse as atividades fundantes desta parceria, razão pela qual foi formada uma direção provisória da qual fizeram parte o Pe. Antônio Inocêncio Lima, o Prof. José Rabelo de Vasconcelos, contando ainda com a participação, em seus inícios, de outros integrantes, a exemplo do Pe. Delson Cursino, então Diretor do Colégio Cardeal Arcoverde.


Nos inícios dos anos 70, começaram a funcionar as atividades da faculdade, com os cursos de Licenciatura de Curta Duração em Letras, em História, Biologia, Matemática, e em Geografia, frequentados por alunos e alunas de Arcoverde e da região.


Considerando as condições de extrema concentração na capital do estado das Universidades Públicas, a iniciativa se revela de grande impacto sobre o processo de interiorização do Ensino Superior em Pernambuco. 


Da faculdade de formação de professores à autarquia do ensino superior de Arcoverde 


Diversos desafios tiveram que ser enfrentados e transpostos: a construção de novas instalações, o atendimento às exigências progressivas emanadas da legislação então vigente; a organização de vestibulares para as diversas áreas; a necessidade de transformar as licenciaturas de curta duração em licenciaturas plenas, entre outros.


O sentido de uma revista naquele contexto.


No final dos anos 1970, em Pernambuco, o Ensino Superior restringia-se principalmente a Capital do Estado e a Caruaru, que abrigava duas faculdades: a Faculdade de Direito e a Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Caruaru (FAFICA) a Garanhuns, a Nazaré da Mata… As famílias interioranas do sertão dispunham rarissimamente de uma IES, ao alcance de seus filhos. Em Arcoverde e Região, chegou a vez de se instalar uma Escola de Ensino Superior, contando com sucessivos desafios a enfrentar. Um deles tinha a ver com a exigência do MEC de assegurar a oferta de licenciaturas de Plena Duração, que substituíssem as licenciaturas de curta duração. Para tanto, várias urgências eram apontadas. Àquela época, com exceção das Universidades Públicas e de algumas da rede particular de ensino (especialmente, as Pontifícias Universidades Católicas), não se exigia a tríplice dimensão (ensino - pesquisa - extensão). Mesmo assim, os que faziam a AESA, entenderam a necessidade de fomentar também atividades de pesquisa, de modo que seus professores e professoras dispusessem de um veículo para fazer circular suas produções, estimulando-os a assumirem atividades de pesquisa como forma de qualificação de sua docência. 


A despeito de a AESA corresponder a uma IES interiorana recém-instalada, sem as características próprias de uma Universidade, a comunidade acadêmica de Arcoverde entendia necessário comprometer-se progressivamente com a oferta de um ensino de qualidade, alimentado pela pesquisa, ainda que esta apenas embrionária. 


Foi assim que nasceu a revista Peleja, com uma periodicidade semestral (nem sempre cumprida à risca). Dadas as condições de trabalho então vigentes, não se podia contar com uma equipe liberada para tanto. A coordenação dos trabalhos da revista coube a Alder Júlio Calado, sempre contando com o apoio do Pe. Antônio Inocêncio Lima e do professor José Rabelo de Vasconcelos, com a colaboração dos colegas professores, em especial dos Chefes de Departamento: Prof.  Paulo Galindo (Dep. de Ciências); Prof. Osvaldo Oliveira (Dep. De Letras); Profa. Lucia Vieira (Dep. Est. Sociais); Prof. Luiz Oliveira (Dep. Ass. Ped.);  Letras, Biologia, Matemática, História e Geografia. Daí foram apontados os representantes do Conselho Editorial da Revista, cabendo-lhes a tarefa de fazerem circular, em seu respectivo Departamento, as notícias sobre a Peleja, bem como o convite aos docentes de participarem com textos seus, em cada número da Revista.


Recebidos os textos, na data-limite, cabia ao coordenador da revista solicitar apreciação de colegas, conforme a pertinência temática. Recebidos os textos devidamente apreciados, o coordenador da revista levava os originais para serem impressos pela Editora Vanguarda, em Caruaru, cabendo ainda ao coordenador da Revista proceder a revisão textual, a partir das provas impressas pela editora. 


Houve o número da revista que implicou um trabalho mais árduo. Trata-se do número 09 da Revista Peleja, inteiramente consagrado ao festival de Cantadores e Repentistas, realizado em Arcoverde, com promoção da própria faculdade de formação de Arcoverde, então dirigida pelo professor José Rabelo de Vasconcelos, ele próprio um apaixonado pela arte do Repente. O número 09 da Revista Peleja implicou, por conseguinte, em um longo e árduo trabalho. Primeiro, o trabalho de transcrição ou de degravação de todos os números apresentados no Festival - narrações, cantorias, declamações, além dos versos de cada dupla de repentistas. Trabalho realizado pelo coordenador, com a ajuda da Sra. Tânia Magalhães, então Secretária da Diretoria da AESA. Após a extensa transcrição de tantas fitas de gravador, veio o trabalho de revisão textual, antes da entrega à Editora Vanguarda dos originais. 


Ponderações acerca do repertório temático de Peleja 


Como acima mencionado, o objetivo central da revista Peleja é o de proporcionar condições mínimas aos docentes da AESA, de produzirem textos sobre temas de suas respectivas áreas de conhecimento  em vista de qualificarem seu exercício de docência. Este era o sentido fundamental da existência do CUNEPRA (Centro Universitário de Estudo e Pesquisa Regionais de Arcoverde), ao qual estava ligada a Revista Peleja, sobre cujo temário faremos algumas considerações.


O número 01 de Peleja, que data de Março de 1979, foi inaugurado, rememorando aspectos da estrutura e do quadro funcional desta IES. Ainda neste número, já no início, constam os dados relativos ao corpo redacional da Revista Peleja incluindo os nomes dos representantes dos Departamentos que compunham o Concelho de Redação da Revista, quadro que se alterava,  alguns anos depois, conforme o período de gestão dos chefes de Departamento, de modo que em outros números figuram outros nomes: 


No que toca aos conteúdos do primeiro número de Peleja, constam,  além da apresentação, registros referentes a criação da AESA e da Faculdade de Formação de Professores; uma referência ao CUNEPRA e seus objetivos, em especial a criação da Revista Peleja. Quanto aos artigos que aí figuram, comparecem os seguintes:

  • De autoria do Prof. José Rabelo de Vasconcelos, uma reflexão sobre o Professor e a Metodologia Científica;

  • O Prof. Osvaldo Bezerra de Oliveira nos brindou com o texto intitulado “Literatura Fantástica” ;

  • Por sua vez o Professor Paulo Galindo reflete acerca dos avanços e dos descaminho da Física, em nosso tempo; 

  • “A Física na vida moderna” foi o tema de que tratou o Prof. Nilson Magalhães;

  • Por seu turno coube ao Escritor Luís Wilson nos fornecer dados biográficos de Napoleão Arcoverde, figura da história regional;

  • O Prof. José Áureo R. Bradley tratou de examinar, em seu artigo, de que modo o novo Código Penal recepciona os desafios da Revolução Sexual;

  • “Nordeste:Acumulação e Empobrecimento” foi a contribuição trazida pelo Prof. Alder Júlio Ferreira Calado.


Ao final deste número 1 de Peleja, vêm publicados dois relatórios de prestação das atividades relativas à gestão do professor José Rabelo de Vasconcelos, correspondentes aos anos de 1977 e 1978. 


Também de 1979 (novembro) data o segundo número da Revista. Sua apresentação já indica os autores dos textos nela contidos, começando pelo de autoria do Prof. José Rabelo de Vasconcelos, ao expor, em linhas gerais, os pontos principais de uma palestra sua, intitulada “O Reino dos Cantadores de São José do Egito”, rememorando e enaltecendo a genialidade dos poetas e repentistas de São José do Egito.


Aparecendo pela primeira vez, o Prof. Aleixo Leite Filho nos brinda com uma bela poesia, tematizando um desafio já então enfrentado: o da poluição. Poeta e folclorista, o Prof. Aleixo passa a ser um dos colaboradores mais assíduos da Revista. 


Seguindo em sua área de conhecimento - o campo do Direito, o Prof. Aurélio Bradley enfoca, desta vez, o universo jusnaturalista, discorrendo acerca de posições teórico-conceituais entre o Direito Natural e o Direito Positivo. A questão do controle familiar constituiu o tema trabalhado pelo Prof. Alder Júlio F. Calado, em que discute brevemente políticas de planejamento familiar que não passem pela discussão das camadas populares, uma vez que não raramente 


Escolhido como Paraninfo do ano o Prof. Osvaldo Bezerra de Oliveira compartilha seu belo discurso de paraninfo  destacando que, como dizia Cênica, “Aprendemos para a Vida, não para a Escola”. 


O número 03 da Revista Peleja se apresenta um pouco mais espesso que os números precedentes: alcança 100 páginas. Aparece em julho de 1980. Após a apresentação, o primeiro texto, de autoria do Sr. Joel de Holanda, então Secretário de Educação do Estado de Pernambuco, correspondendo ao seu discurso de Paraninfo das turmas concluintes de 1979. Em sua Oração de paraninfo, ele cuida de expressar seus agradecimentos pela distinção recebida, ao tempo em que conclama os formandos e formandas a assumirem, com entusiasmo e dedicação, sua missão de Educadores e Educadoras.


Em “Penúltimo Canto” o Prof. José Áureo Bradley, exercitando sua imaginação literária, a partir dos desafios existenciais de nossa região empenha-se em denunciar as contradições e condições desumanizantes do nosso mundo, sugerindo, porém, sinais de esperança e de resistência de nossa gente, em face da situação vivenciada. 


Noam Chomsky constitui uma das principais referências entre os estudiosos da Linguística. Tocado pelas ideias seminais de Chomsky, o Prof. Osvaldo Bezerra de Oliveira nos oferece, em seu texto uma contribuição, no sentido de destacar as ideias centrais daquele intelectual, ressaltando a relevância da linguagem como uma das marcas centrais do ser humano.


O Prof. Paulo Galindo desta vez, nos propõe uma reflexão oportuna acerca do “Pensamento Social Antes de Marx”, assim contribuindo para alargarmos nossa percepção do caráter social da mensagem cristã de justiça, que precedeu as formulações do Marxismo. Mangação do Pajeú e o título de autoria do Prof. Aleixo Leite Filho, livro do qual ele extraiu esta amostra instigante de sua marca de humorista, aliada a outras, de poeta, romancista  e de folclorista.


A Revista Peleja também recebia contribuições de discentes (internos e externos à ESA). Desta vez, foi o caso da universitária Lidia de Sousa Queirós que tratou de rememorar a relevância da Declaração Universal dos Direitos Humanos, sublinhando as contradições ainda hoje existentes. Os dois últimos textos deste número de Peleja - “Chico Rei: Do Cativeiro\Libertou-se com os Irmãos” e “Relações de Dependência Social no Agreste Centro Ocidental de Pernambuco” - são de autoria do Prof. Alder Júlio Calado. Quanto ao primeiro texto, trata-se de um relato feito em versos, inspirados no romance “Chico Rei”, leitura que lhe fora recomendada  pelo Prof. Eduardo Hoornaert, então membro da Coordenação da CEHILA-popular, empenhada em fazer circular temas de nossa história brasileira e latina-americana, em forma de cordel. Quanto ao segundo texto, trata-se de um estudo histórico, referente ao Agreste Centro-Ocidental de Pernambuco, na perspectiva da teoria da Dependência.


O número 04 de Peleja - o segundo do ano de 1980 - contém, na primeira parte, instigantes matérias, no âmbito da Literatura Sertaneja, trazendo a lume, de início, “Os Mandamentos do Cantador”, escritos pelo Prof. José Rabelo de Vasconcelos. A seguir, comparecem autores e poetas sertanejos, a compartilharem relatos e versos de rara beleza. Eis o que nos oferecem seus autores: José Marcolino, Dedé Monteiro, Zé de Cazuza, Aleixo leito e Filho, Genival Vicente de lima. A Segunda parte deste número vem consagrada a temas específico as áreas de conhecimento de seus respectivos autores: Vandenir casado Lima (“Trabalho de Auto-Instrução em Matemática”); Antonia Lima (“Colorindo o Pensamento”); Paulo Galindo Cavalcante (dando continuidade ao tema “O Pensamento Social Cristão antes de Marx - Uma Abordagem Crítica (II); Mário Marangon (“A Revolução de 30”); e Alder Júlio F. Calado (“Questionamento da Postura de Intelectual nas Classes Populares”).


Em 1981, a Revista Peleja circulou apenas uma vez: Agosto\1981 após a apresentação (“Peleja\5”), o Pe. Antonio Inocencio Lima comparece com um relato dando conta da organização das obras sociais das Paróquias do Livramento e do Santíssimo Redentor, (ambas em Arcoverde), pertencentes à Diocese de Pesqueira, em convênio com instituições públicas.


Retomando sua temática preferida - a do Direito -, e embasado em renomados especialistas na área, o Prof. Áureo Bradley problematiza potencialidades e limites do Estado Social, balizado nos valores democráticos e sua evolução histórica, no contexto da Modernidade.  Estudioso apaixonado pela história da Matemática o Prof. José Marcelo Lourenço da Silva visando a estimular seus estudantes a experimentarem semelhante encanto pela matemática, traz à tona postulados euclidianos e de outros teóricos da Matemática, assim agindo didaticamente em seus argumentos.   


Sempre empenhado em recolher e divulgar a cultura popular, especialmente a poesia Sertaneja, o Prof. Aleixo Leito e Filho apresenta páginas antológicas da lavra do Poeta José Lopes Neto, mais conhecido como “Zé Catota”. A seguir, o Prof. Aleixo, sob o título “O Telurismo de Aleixo Leito e Filho", compartilha trechos significativos de sua correspondência com figuras nacionais de nossa Literatura e de nosso Folclore, a exemplo de Carlos Drummond de Andrade e Luís Câmara Cascudo. 


A estudante Rita Maria de Lima traz, como sua contribuição, uma breve reflexão sobre episódios fantásticos presentes em nosso mundo. Colaborador assíduo de Peleja o Prof. Genival Vicente e Lima, mostra-se engajado na defesa e propagação de nossa Literatura Sertaneja, sempre comprometido com a fidelidade aos valores do cordel e de toda a produção cultural de nossa gente. 

 

Neste número, o Prof. Paulo Galindo, concluiu sua série de textos acerca do Pensamento Social que precedeu a produção de Karl Marx. por sua vez, o Prof. Mário Marangon nos brinda com sua incursão pela América Espanhola, refletindo historicamente sobre os laços de dependência que acompanham sua trajetória histórica. O Prof. Alder Júlio F. Calado, tomado por uma motivação didática, esposa um roteiro de pequeno Roteiro de Metodologia Científica. 


Uma novidade em Peleja\06: a presença de novos colaboradores, jovens professores. Um número 6 da revista aparece em Dezembro de 82. “O Estado e a Justiça no Código de Hammurabi”  corresponde ao título da reflexão tecida pelo Prof. Áureo Bradley, ao examinar as noções de “Estado” e de justiça, no famoso código de Hammurabi, tomando como paradigma conceitual juristas da Modernidade. 


No texto “Mostração do Ofício”, o Prof. Aleixo Leito e Filho em homenagem ao Poeta Manuel Betanzos Santos, publica seu poema intitulado “Canto/Chão, que descreve, de forma estética, as aventuras de um combatente no  enfrentamento dos desafios.  Disposto a recolher diferentes versões sobre saudade, o Prof. Genival Vicente de Lima cuida de garimpar estrofes ontológicas acerca da saudade fruto do rastreamento que faz de exímios poetas sertanejos, a exemplo de Patativa do Assaré, Dedé Monteiro, Aleixo Leite Filho e Maria do Carmo Cristóvão.


O Prof. Paulo Galindo, ao escrever seu artigo intitulado “Evolucionismo, Criacionismo e Filosofias Políticas”, empenha-se em  destacar elementos que caracterizam as concepções do  criacionismo e do evolucionismo, apontando suas potencialidades (Evolucionismo), fundamentado-se uma perspectiva político-filosófica. A contribuição de Rita Maria de Lima consistiu, desta vez, em publicar uma brevíssima reflexão sobre o altruísmo, escrita por Gordon Powell.


Evandro Valério Lira e Jorge Ventura de Moraes, jovens professores, inauguram sua participação em Peleja, propondo o artigo “Capitalismo: O que é, de Onde veio e para onde vai” contribuindo assim para uma melhor compreensão didática dos desafios de nossa realidade. Eraldo Galindo da Silva também surge como um jovem estreante, colaborando com Peleja, com sua pertinente análise econômica, relativa à introdução da célebre peça “Gota D'água”, de autoria de Paulo Pontes e Chico Buarque. Discutir aspectos relevantes da conjuntura econômica brasileira, durante a Ditadura  Militar.


“A ausência de Revoluções no Nordeste” é o título do artigo escrito pelo Prof. Mário Marangon. Aficionado pela temática histórico-filosófica, o autor se mostra tocado pela constatação da ausência de movimentos revolucionários  em nossa região. Em diálogo fraterno com o autor, o Prof. Alder Júlio F calado empenha-se em fazer um contraponto, ao comentar uma série de movimentos revoltosos, no nordeste. 


O número 07 de Peleja aparece em  Setembro de 1983, com várias novidades. De início, os estudantes universitários Jorge Ventura, Paulo R. Vieira e Valdênia Brito, em homenagem a Dom Severino Mariano de Aguiar, Bispo emérito da Diocese de Pesqueira, e um dos protagonistas da criação da Faculdade de Formação de Professores de Arcoverde houveram por bem selecionar e publicar uma série de pronunciamentos radiofônicos, intitulados “Pingos de Conversa”, programa apresentado na Rádio Difusora de Pesqueira.


Encantado com os versos do Poeta Helvécio Afonso de Melo, o Prof. Aleixo Leite Filho homenageia, oferecendo-nos além de uma notícia biográfica do Poeta,  uma amostra antológicas de seus versos. O tema da saudade volta às nossas páginas  desta feita  por meio do texto intitulado “Cancioneiro da Saudade”, de autoria do  Prof. Genival Vicente de Lima. Estreando em Peleja, o colaborador Adércio Simões Franco apresenta uma pertinente reflexão didática sobre o famoso “Sermão da Sexagessima de Vieira”. 


Mais um estudante comparece às páginas de Peleja. Trata-se de Américo José de Freitas, cujo texto passeia por relevantes achados, no campo da Matemática, fornecendo dados biográficos e invenções feitas por Matemáticos antigos, a exemplo de Eratóstenes de Cirene (atual Líbia, África). Sob o título “O Desejo e Objeto”, o artigo do Prof. Airton Freire de Lima, mergulha no enigma da relação entre o Desejo e Objeto, apresentando potencialidades e limites da condição humana, em seu existir. João Estevão, por sua vez empenha-se em nos alertar quanto aos riscos de uma Educação ideologizada, a serviço da manutenção do sistema dominante, enquanto o também  Estudante Enildo Galindo, nos propõe uma entrevista imaginária com a fome, por meio da qual denuncia as raízes sociais da miséria: O sistema capitalista.


Ácido colaborador de Peleja o Prof. Paulo Galindo nos faz um relato de suas observações panorâmicas da terra e da gente da Espanha, País em que estagiou, a trabalho, como engenheiro a serviço do Dnocs. Já demonstrando talento analítico, como estudante, Evandro Valério reflete, desta vez, sobre a relevância da contribuição de Karl Marx, para o que oferece, de forma didática, uma breve notícia biográfica daquele autor, justamente no ano de seu centésimo aniversário de morte.


Literatura Popular e Memória Histórica dos Oprimidos, corresponde ao texto escrito da conferência apresentada por Alder Júlio F. Calado por ocasião do Encontro, em Arcoverde, do Grupo de Estudos Linguística e Sociedade, da UFPE. O Prof . José Áureo Bradley, em seu artigo intitulado “Educação a triste realidade Brasileira”, aponta dilemas e desafios enfrentados pela sociedade Brasileira, ainda sob o regime militar.


De Setembro de 1984 data o número 08 de Peleja. Desta vez, o Prof. José Aurélio Bradley, em seu artigo “Estrutura de Poder e Exigências Cristãs de uma Ordem Política”, nos oferece uma oportuna reflexão acerca de um documento profético publicado pela CNBB, como denúncia das estruturas de poder mantidas pela Ditadura Militar, ao mesmo tempo em que anuncia as exigências éticas da Ordem Democrática. Laborioso pesquisador da Literatura Sertaneja, o Prof. Aleixo Leite e Filho dá sequência ao tema tratado, no número anterior de Peleja a compartilhar versos antológicos de nossos poetas populares. 


Como era de se esperar  a fundação da AESA contribuiu notavelmente para a dinamização das atividades culturais de Arcoverde e região. Disto da prova o relato escrito por Alder Júlio F. Calado, ao relatar a três experiência artístico-culturais, inscritas no calendário institucional da AESA: o festival o Festival de Violeiros e Repentistas, o Festival de Teatro de Arcoverde e o Festival de Músicas e Inspirações Cristã, este último sob do Pe. Adilson Simões. Altamente diversificada a literatura de cordel comporta um universo temático bastante amplo razão por que houve bem o Prof. Genival Vicente de Lima brindar-nos com sua proposta didática de classificação do Cordel.


Em seu texto, mantendo-se  em seu campo de conhecimento, o Prof. Airton Freire de Lima explora os labirintos do inconsciente focando desta vez  os significados do silêncio, na psicanálise. Mostrando sua sensibilidade e seu senso crítico, o Prof. Paulo Galindo Cavalcante, numa época em que o famigerado agronegócio já mostrava fome de lucro, levanta fundados questionamentos acerca dos verdadeiros interesses da agricultura de exportação.


As páginas que seguem vêm protagonizadas por nossos talentosos estudantes - Eraldo da Silva, Valdeblan Siqueira, Maria Elena de Almeida, Antônio Carlos Amaral Pinheiro, Aleska Paula Freitas, Paulo Melo, Luís Carlos Júnior,  Teresinha Pereira -, trazendo suas contribuições cada qual em sua área específica.


Um filme longa metragem sacudiu a consciência social trazendo toda uma geração de militantes trata-se de Queimadas, o objetivo da reflexão crítica por Alder Júlio Ferreira Calado. Ao final de sua gestão à frente da AESA, o Prof . José Áureo Bradley cuida de destacar, a título de prestação de contas, pontos relevantes de seu legado.


Inclusive pelo número de páginas -221-, o número 09 da Revista Peleja só apareceu em Abril de 1987, em razão de obstáculos enfrentados. No entanto, sentimo-nos recompensados pelo protagonismo estético-literário que nele vem estampado. Eis o que vem anotado em sua apresentação: “Com mais de um ano de atraso, vem a público o número 09 de Peleja, da Faculdade de Formação de Professores de Arcoverde. É lamentável! Não conto as vezes que fui delicadamente cobrado ora por colegas professores, ora pela Direção da Escola, ora por alunos e colaboradores. Havia -e com razão- uma impaciência coletiva. A todos respondia que se tratava, em parte, da mudança de donos da gráfica (Vanguarda), que também alegava a sobrecarga de demanda do ano eleitoral (1986).”


Nem com tamanho atraso, porém, a gráfica atendeu a nossa demanda. O número 09 de Peleja sai apenas com os anais do II Festival de Poetas e Repentistas de Arcoverde, realizado em 1985. A série de artigos concernentes às mais diversas áreas do conhecimento vamos ter que encaminhar a outra gráfica, possivelmente ainda neste primeiro semestre.


De todo modo, a publicação integral dos anais do II Festival de Poetas e Repentistas de Arcoverde compensa a longa espera. O alto nível do trabalho das duplas de repentistas e de poetas que apresentaram, é qualquer coisa incomum neste Nordeste e nesse Brasil. Vimos assim desfilarem repetentiss de nomeada, como: Ivanildo Vila Nova, Geraldo amâncio, Oliveira de Panelas, Severino Feitosa - só para citar alguns; bem como poetas e declamadores da melhor estirpe, como: Patativa do Assaré, Lourival Batista, Zé de Cazuza, Dedé Monteiro, Zé Marcolino.


Entre as novidades alegres, inclui-se o nível de politização do repente que, longe de subtrair ao poeta seu potencial artístico, antes lhe confere e propicia o exercício do senso crítico e da dimensão social do repente. O II Festival foi realizado no ano que iniciava a “Nova República”, tempo marcado pelas ocorrências que resultaram no desaparecimento trágico de Tancredo Neves. Isso também faz parte do temário dos montes.  


De parabéns, a equipe coordenadora do Festival, à frente o Prof. José Rabelo de Vasconcelos, Diretor da Faculdade e principal responsável pelo evento que vai encantando, cada vez mais, um público crescente de aficionados de repente. Que o diga a lotação expressiva da “Quadra do Cordel”. A circulação de Peleja sofreu uma interrupção, durante o período em que seu Redator - Coordenador esteve ausente do Brasil, para o seu doutoramento. Em dezembro de 1992, voltou a circular, em seu décimo e último número.


Peleja/10 inicia com o instigante  artigo do Prof. Eraldo Galindo, sob o título “A Universidade que Queremos”, a refletir, de modo crítico-propositivo, o que fazer da Universidade Brasileira, em busca de sua contribuição mais efetiva para a superação de nossos desafios. 


O Prof. Lemuel Guerra em seu artigo “Arte e Comunicação” - texto decorrente da aula inaugural do primeiro semestre de 1992, por ele proferida, na Faculdade de Formação de Professores de Arcoverde - , navega no universo das Artes, mostrando suas relações com a comunicação, bem como suas interfaces com a Educação, inspirando-se em uma bibliografia de qualidade. 


Tema de sua tese de Doutorado, na Universidade Paris-8, em “Igreja e Sociedade no Brasil: O Papel Político das CEBS, na década de 80”, Alder Júlio F. Calado compartilha, inclusive a título de prestação de contas, seus principais achados, resultantes da pesquisa desenvolvida. 


Tomada por um compromisso com a causa ecológica e, ao mesmo tempo, pelo sentimento de indignação contra atitudes discriminatórias do chamado Primeiro Mundo contra os Países Periféricos, a Prof. Eloisa Cosmo de Lima compartilha passos de uma investigação sobre a fauna do Nordeste, indicando o grau de responsabilidade ecológica, também em âmbito institucional. 


“Linguística - Forma de Interação”, corresponde a contribuição oferecida pela Prof. Palmira Brito Cavalcante, na qual discorre e problematiza a metodologia de ensino, recorrente em nossas salas-de-aula, propondo atitudes pedagógicas mais críticas e comprometidas com nossa realidade social no âmbito da linguagem.


Preocupado com o “déficit” de atenção observável nas relações ensino-aprendizagem, inclusive em Matemática, o Prof. José Francisco de Oliveira, empenha-se em propor pistas didáticas de superação. O Prof. Paulo Marcondes Ferreira Soares, em seu artigo “O Moderno e seu Pos (A Cultura na Contemporaneidade), tenta compreender e situar as diferenças básicas entre os pensadores modernos e pós-modernos, apoiado em suas figuras representativas.


“O Mito do Éden” constitui o objeto da análise proposta, pelo Prof. Ailton Freire, com arte e poesia e com instigante jogo de palavras, interpretando a biunivocidade de olhar  o relato bíblico. O Prof. Paulo Galindo nos traz sua apreciação dos desafios conjunturais enfrentados por grupos e comunidades populares, inclusive as pastorais sociais, em face dos desafios históricos hoje presentes.


Em “Sintomatologia e Elemento Emocional”  o Prof. Otávio Júnior, ao problematizar a incidência médica  exclusiva, considera a necessidade de se compreender a interferência de outros fatores, na ocorrência de doenças, a exemplo de fatores psicológicos. Na ocasião das comemorações dos 500 anos do impropriamente chamado “Descobrimento da América”, o estudante e militante da causa negra Luiz Eloy de Andrade, cuida de denúncia esta invasão da qual resultaram tantos danos para nossa terra e nossa gente. 


Professor comprometido com a causa ecológica do sertão, o Prof. José Ivan de Lima nos propõe uma incursão crítica sobre o drama da poluição urbana sobre os nossos rios temporários. A Prof. Elsa Galindo compartilhar suas inquietações acerca dos descaminhos observáveis no dia-a-dia do nosso ensino básico. Por fim o Prof. Aleixo Leite Filho nos traz, em conclusão, páginas antologias da Poesia Sertaneja.


Eis algumas linhas sobre a Revista Peleja, da qual muito nos orgulhamos, pelas reflexões, pelos diversos textos oferecidos em suas páginas. Trabalho de uma geração que vem sendo sucedido, ao seu modo, por novos protagonistas, aos quais nos associamos neste processo em que uns semeiam, outros cultivam e outros vão colhendo.


João Pessoa, 13 de Agosto de 2024









sábado, 24 de agosto de 2024

Compartilhando reflexões sobre a XIV Semana Teológica Pe. José Comblin

 Compartilhando reflexões sobre a XIV Semana Teológica Pe. José Comblin


Alder Júlio Ferreira Calado 


No Sábado do dia 17 de agosto de 2024, teve lugar na Casa dos Sonhos em Várzea Nova (Santa Rita-PB) a Sessão de encerramento da XIV STPJC. Três semanas antes, havíamos realizado, no Centro de Direitos Humanos Dom Oscar Romero (CEDHOR), em Tibiri II (Santa Rita-PB) outra Jornada Comunitária, dentro do calendário da mesma XIV STPJC. Em ambas, foi comunitariamente trabalhado o tema central desta semana teológica - “Os clamores dos pobres, os clamores de Jesus, hoje: por uma Espiritualidade Reinocêntrica”.


Nas duas experiências comunitárias, optamos pela mesma dinâmica: Priorizar o protagonismo de todas as pessoas presentes. Após os primeiros cumprimentos e apresentações, coube ao CEBI animar um momento de espiritualidade, em que Edna e Glória utilizaram trechos do livro “A Profecia na Igreja”, de autoria de José Comblin (livro que ele havia lançado, no próprio CEDHOR, em 2008), alternando com canto e oração final. 


Tomando a palavra Pe. Hermínio Canova, do Grupo José Comblin, após a haver rememorado a programação a ser vivenciada, convidou o Prof. Elenilson Delmiro dos Santos a fazer uma introdução sobre o tema central a ser trabalhado. Em seguida, Pe. Hermínio, tendo em mãos um texto, contendo, ao final, duas questões provocativas convida as pessoas presentes a refletirem sobre o material distribuído, em três grupos. Feita a leitura do texto e discutidas as questões, os grupos trataram de compartilhar suas respostas. Reunidos em plenária, abriu-se um fecundo debate em torno das questões propostas, acerca do texto elaborado por Alder Júlio, a quem coube fazer um breve comentário de problematização sobre o que foi comunitariamente compartilhado.


Pe. Herminio volta a convidar o CEBI a animar uma Oração final, seguida pela saborosa merenda compartilhada por todos, com a ajuda das pessoas da casa. Importa destacar a sororal acolhida testemunhada por Gabriela, da Equipe de Coordenação do CEDHOR, bem como do presidente do CEDHOR, Irmão Chico. Do encontro participaram: O Grupo José Comblin (Pe. Hermínio, Elenilson, Pe. Wancelei), do grupo Kairós (Glória, Lúcia, Aparecida, Emanuel, Inês, Alder), do CEBI (Edna, Glória, Lúcia, Márcio), da CPT (Tânia, Jessica, João Batista), e ainda, Pe. Eliezer Souza, Pe. Waldemir Santana, e o casal Socorro-Diácono José Duran.


Com relação aos trabalhos vivenciados na Sessão de Encerramento (17/08), destacamos igualmente aspectos mais tocantes. Todos se sentiram, mais uma vez, bem acolhidos por Irmã Judith (Religiosa Dominicana, Coordenadora da Casa dos Sonhos), além da qual se Fizeram presentes: Grupo Kairós (Glória, Lúcia, Inês, Emanuel, Eraldo, Alder), Grupo Pe. José Comblin (Pe. Hermínio, Elenilson, Pe. Wancelei), CPT (Tânia, Pe. Hermínio), CEBI (Edna, Glória, Lúcia), Grupo “Laudato si” (Elizangela, Pe. Eliezer), religiosas dominicanas atuando em São José da Mata (Ir.ª Cleide Pires, Ir.ª Silvana Oliveira, Ir.ª Jessica Alvarez), Pe. José Fernandes, Missionário Dominicano (da Ordem dos Pregadores), atuando na Comissão Dominicana de Justiça e Paz e integrante da Coordenação para a edição brasileira da Agenda Latino-Americana, juntamente com Maria de Nazaré Carvalho Mendonça, a Secretária executiva da Comissão Dominicana de Justiça e Paz e da equipe de Coordenação da mesma Agenda Latino-Americana, além de Glaudemir Silva, nosso convidado a refletir sobre o tema central da XIV semana teológica.


Como de hábito, integrantes do CEBI foram convidados a animar o momento inicial de Espiritualidade. Glória e Edna, após nos convidarem a entoarem um mantra, nos fizeram saborear um belíssimo poema escrito pela saudosa Irmã Agostinha Vieira de Melo, em homenagem ao Pe. José Comblin, intitulado “Apressador de Urgências”, por ocasião das comemorações dos 80 anos de Comblin. Em seguida, Edna leu passagens mais tocantes do livro “A Profecia na Igreja”.


Após apresentar as boas-vindas às pessoas, Pe. Hermínio relembra o roteiro da programação daquela manhã. Acolhida, oração inicial, apresentação das pessoas dos grupos participantes, exposição por Elenilson Delmiro dos Santos. Exposição por Glaudemir Silva (convidado para refletir sobre o tema central: “os clamores dos pobres, os clamores de Jesus, hoje”:

  • Por uma Espiritualidade Reinocêntrica); rodas de conversa sobre as exposições feitas;

  • Ao ler uma breve nota biográfica de Elenilson Delmiro dos Santos, convida-o a fazer uma reflexão inicial sobre a construção comunitária da XIV, atendo-se à sua temática central;

  • Lançamento dos livros de Glaudemir Silva e do Livro do Grupo de Pesquisa José Comblin, da PUC/SP em coautoria com o grupo de Pesquisa José Comblin, da UNICAP/PE;

  • Oração final;

  • Merenda Comunitária



Agradecendo a Elenilson pela sua contribuição, em seguida, Pe. Hermínio, passa a ler alguns dados biográficos de Glaudemir Silva, nosso convidado a refletir mais detidamente, e a partir de sua experiência de Missionário itinerante, sobre o tema central da semana teológica.


De forma profunda e didática, Glaudemir, partindo de sua longa e fecunda experiência de Missionário Itinerante, nos traz frutuosos exemplos ilustrativos de uma Espiritualidade Reinocêntrica que ele vem colhendo de suas experiências com os pobres (encarcerados, enfermos, moradores de rua, etc). Também, fez questão de nos convidar a fortalecer o nosso compromisso com a causa libertadora dos empobrecidos, buscando testemunhar a pedagogia do Pe. Comblin, “Uma vida guiada pelo Espírito”.


Seguiu-se uma instigante roda de conversas, em que, sob a coordenação do Pe. Hermínio e em blocos de 3 ou 4 pessoas, participamos de uma rica reflexão com Glaudemir, acerca de questão de desafios da atualidade macro-social e ao interno das Igrejas Cristãs.


Seguiu-se o lançamento dos livros e da Agenda Latino-americana, por Elenilson, por Glaudemir e pelo Pe. José Fernandes.


Com uma oração final animada por Edna e Glória, todos foram convidados a compartilhar uma saborosa merenda.


João Pessoa, 24 de Agosto de 2024.





sexta-feira, 16 de agosto de 2024

A Profecia como traço comum entre crentes e ateus: o caso de Ezequiel (622-570 a.C.) e Friederich Engels (1820-1895)

 A Profecia como traço comum entre crentes e ateus: o caso de Ezequiel (622-570 a.C.) e Friederich Engels (1820-1895)


Alder Júlio Ferreira Calado 


Pode haver algo em comum entre crentes e ateus? De que decorre a percepção corrente de uma incompatibilidade insolúvel entre fé e ateísmo? Que avanços têm sido feitos, inclusive no âmbito das pesquisas teológicas, quanto à posições ateístas e agnósticas? Que avanços, ainda, têm sido feitos no campo dos estudos bíblicos, com o emprego da chamada hermenêutica reversa? É com base em tais questionamentos, que cuidamos de buscar alguns elementos de resposta às nossas indagações. Iniciamos por uma breve notícia biográfica sobre cada um dos personagens acima mencionados; em seguida, buscamos encontrar traços comuns entre os mesmos; ao final, tratamos de destacar consequências políticas e pastorais para os nossos dias.


Ezequiel, em seu contexto histórico 


Ezequiel viveu em uma terra e em um tempo bastante longínquos e, por isso mesmo, de difícil precisão histórica. Com efeito, por mais avanços que as ciências sobre a Antiguidade venham tendo, prevalecem muitas lacunas, principalmente em se tratando do conhecimento relativo a um longo período que alcança até seis séculos antes de Cristo. Tendo vivido na Palestina, circundada por povos de antigos impérios - em especial, o Império da Babilônia - , sua terra e sua gente eram alvo constantes de cobiça, ameaças e invasões. 


Ezequiel nascera de família privilegiada, de estirpe sacerdotal, educado e instruído para tornar-se também um sacerdote. Daí seus argumentos rebuscados, seu preparo intelectual. Ainda jovem, sentiu-se impactado pela Palavra de Javé, convocando-o ao exercício da Profecia, em terra estrangeira, vocação à qual, por razões compreensíveis, resiste por certo tempo, após o que, acaba acolhendo. A exemplo de outras figuras da elite política e religiosa de sua terra, Ezequiel sente-se compelido a deixar sua terra e sua gente e parte, como exilado, para a Babilônia, enquanto sua terra e sua gente viam-se invadidas e governadas por chefes do Império da Babilônia.


É, por tanto, no amargo exílio, que Ezequiel é chamado a profetizar. Disto dá testemunho o longo relato do livro a ele atribuído - o livro da Profecia de Ezequiel -, composto por 48 capítulos, ao longo dos quais, Ezequiel, recorrendo a uma linguagem apocalíptica, hermética - por vezes, parecendo delirar -, vai alternando visões ameaçadoras e punitivas contra as elites de sua terra, cobrando-lhes responsabilidade pela invasão dos inimigos: “veio a mim a palavra do SENHOR, dizendo: Filho do homem, profetiza contra os pastores de Israel; profetiza, e diz aos pastores: Assim diz o Senhor DEUS: Ai dos pastores de Israel que se apascentam a si mesmos! Não devem os pastores apascentar as ovelhas? Comeis a gordura, e vos vestis da lã; matais o cevado; mas não apascentam as ovelhas. As fracas não fortalecestes, e a doente não curastes, e a quebrada não ligastes, e a desgarrada não tornastes a trazer, e a perdida não buscastes; mas dominais sobre elas com rigor e dureza” (Ez 34, 1-4).


Ao mesmo tempo, já ao final do seu livro, empenha-se em alimentar a esperança libertadora para o seu povo. A título de  ilustração, vale a pena destacar um pequeno trecho do capítulo 37 deste livro: “Dize-lhes pois: Assim diz o Senhor DEUS: Eis que eu tomarei os filhos de Israel dentre os gentios, para onde eles foram, e os congregarei de todas as partes, e os levarei à sua terra” (...) “E nunca mais se contaminaram com os seus ídolos, nem com as suas abominações” (Ez 37, 21).

Recorrendo à hermenêutica reversa, historicamente contextualizada, somos instados a não tomar as palavras, ao pé da letra, considerando a necessidade de uma interpretação adequada dos textos sagrados. Por exemplo, os crentes de hoje interpretam “Israel”, não como o atual Estado de Israel, mas como o “Novo Israel”, isto é, todo o conjunto de pessoas e povos oprimidos, em todo o mundo. Neste sentido, as palavras proféticas de Ezequiel constituem um bálsamo de esperança de libertação para todos os oprimidos da Terra, em luta pela libertação de todos os grilhões que afligem os pobres em sua enorme diversidade (A Mãe Terra, as mulheres vítimas de feminicídio e de toda sorte de violência, os povos originários, os afro-americanos e brasileiros, os camponeses, os operários, as vítimas de homofobia, os migrantes e refugiados, as pessoas com deficiência, as crianças, os jovens, os anciãos…).


Breve notícia biográfica de Friedrich Engels 


Friedrich Engels nasceu em Barmen, na Renânia, na Prússia, em 1820. Filho de uma rica família de industriais, com prósperos negócios na Inglaterra (Manchester), para onde foi enviado pelo pai, com a tarefa de supervisionar os negócios da família. Engels tinha, então, 22 anos. Ao perceber as precárias condições de vida e de trabalho dos operários ingleses, sentiu-se tomado de grande indignação, passando a buscar as raízes mais profundas daquela miséria. 

Sem deixar de cumprir as tarefas que a família lhe confiara, Engels, sobretudo com a ajuda de sua companheira Mary Burns, uma operária imigrante irlandesa, passa a visitar e a observa as condições subumanas de vida e de trabalho a que os operários ingleses estavam subjugados. Episódio que teve profunda consequência na vida de Engels, de modo a se consagrar à militância revolucionária, tanto prática quanto teórica, a partir de inúmeras leituras, registros e anotações sobre o modo de vida e de trabalho dos operários ingleses, o que resultou na publicação em 1845, do seu famoso livro “A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra”, no qual Engels, com base em uma pesquisa multidisciplinar/interdisciplinar. Expõe, inicialmente, as condições históricas que determinaram a formação do proletariado, na Inglaterra, passando, em seguida, a descrever minuciosamente as condições sub-humanas dos operários ingleses e dos trabalhadores imigrantes irlandeses, ao mesmo em que descrevia e denunciava a raiz estrutural desta situação - a burguesia e seu respectivo modo de produção. 

Engels também se destaca por ter descoberto, antes mesmo de Marx, o potencial analítico da categoria “economia política”, sempre empregando o método do materialismo histórico-dialético, em que a dimensão da “Totalidade”, entre outras, se apresenta fecunda em suas análises, inclusive exercitando a multi/interdisciplinaridade, de modo a trabalhar heuristicamente diversos campos de saberes - da História à Antropologia; da Economia à Política; das Ciências Naturais à Educação; entre outras.

Em uma viagem à Alemanha, sua terra natal, Engels passa pela França, onde conheceu Karl Marx. Tornam-se amigos íntimos desde então, e, da parceria, brotam vários livros em coautoria. Ao mesmo tempo, tanto Marx quanto Engels escreveram diversos livros isoladamente. Mais do que Marx, Engels se dedicou a compreender a dimensão também contestatária da religião, razão pela qual passou a pesquisar e a perceber notáveis semelhanças entre o Cristianismo primitivo e o projeto socialista. Não foi por acaso que Engels também se empenhou na percuciente análise da “Guerra Camponesa da Alemanha”, cujo principal protagonista, o teólogo Thomas Muntzer, a quem Engels considera um modelo de revolucionário, líder de um movimento comunista que precede as lutas proletárias do século XIX. 


Na parceria com Marx, Engels não foi um mero coadjutor, mas também teve um reconhecido protagonismo - Florestan Fernandes, o reconhece como portador de luz própria. Engels sobrevive ao passamento de Marx (1883), vindo a partir quase aos 75 anos, em 1895, tendo conseguido pesquisar e publicar diversos escritos de Marx, inclusive o Livro II e o Livro III de “O Capital”.


O que há em comum entre eles?


Sem ignorar enormes diferenças entre ambos - históricas, geográficas, ideológicas, entre outras -, atenhamo-nos a alguns traços comuns de suas trajetórias. Um primeiro traço em comum tem a ver com sua origem de classe: ambos vêm da classe dominante. Por razões distintas, cada qual rompe com sua classe original, passando a denunciar as opressões cometidas sobre as classes populares, em seu tempo. Ambos, por alguma razão, tornaram-se migrantes, condição que os ajuda a compreender melhor o sofrimento dos “De Baixo”, e com eles solidarizar-se.  


Ao mesmo tempo em que se mantiveram firmes nas denúncias, cuidaram de alimentar a esperança libertadora de sua gente. Denunciar e anunciar constituem as principais marcas dos profetas, de ontem e de hoje. Cada qual a seu modo, ambos se revestem de uma força especial, de uma energia transformadora, de uma fidelidade à causa libertadora  de sua gente. Eram alimentados por uma espiritualidade reinocêntrica , uma mística revolucionária.


Que ensinamentos podemos colher do seu legado?


Retomando e reagindo quanto às questões inicialmente levantadas, pelo que acima escrevemos, observamos que, para além das evidentes diferenças entre os personagens-alvo de nossa reflexão - Ezequiel, movido pela sua vocação profética; Engels, tocado pela indignação e pela solidariedade com os oprimidos -, são capazes de romper com sua classe de origem, denunciando sua dominação e sua exploração, passando a solidarizar-se com as vítimas do sistema. Com isto aprendemos que não devemos confundir “Origem de Classe” e “Posição de Classe”. Também aprendemos que não há contradição insuperável ou insolúvel entre uma atitude de fé e o compromisso revolucionário. A este propósito, as pesquisas mais recentes desenvolvidas, por exemplo por teólogos e teólogas da Libertação, mostram seu esforço de ressignificar a categoria “Pobre”, nela percebendo para além da dimensão estritamente econômica, diversas outras, tais como a dimensão planetária (a Mãe-Terra sendo tratada não como objeto mas como sujeito de direitos); a dimensão de sujeitos dos povos originários, do Povo Negro, a dimensão feminista, a dimensão das vítimas da homofobia, a dimensão de sujeitos das pessoas com deficiências, entre outras, o que se tem tornado possível pelo exercício de uma espiritualidade reinocêntrica.

Outro aprendizado que podemos extrair desta reflexão nos remete aos Movimentos Populares: não é nada confortável a letargia de que vários deles se acham acometidos, diante de uma conjuntura desafiante, em que, no caso do Brasil, observamos certa omissão de vários Movimentos Populares, que, por vezes, parecem à espera de que as mudanças desejadas, se produzam de cima para baixo, haja vista os atuais conflitos em torno do orçamento da Nação, em que a enorme maioria do Congresso se mostra irredutível quanto a sua ação deliberada de usurpar o poder de gestão do Executivo. Sem a ação dos Movimentos Populares, não há saída à vista.


João Pessoa 16 de Agosto de 2024    

        


     

       



 


domingo, 4 de agosto de 2024

Reflexão sobre uma experiência de Educação Popular: leitura comunitária sequenciada do livro “50 Anos de Teologias da Libertação: memória, revisão, perspectivas e desafios”, organizado por Edward Guimarães, Emerson Sbardelotti e Marcelo Barros, publicado pela Editora Recriar, São Paulo, 2022[i]

 

Reflexão sobre uma experiência de Educação Popular: leitura comunitária sequenciada do livro “50 Anos de Teologias da Libertação: memória, revisão, perspectivas e desafios”, organizado por Edward Guimarães, Emerson Sbardelotti e Marcelo Barros, publicado pela Editora Recriar, São Paulo, 2022[i]

 

Alder Júlio Ferreira Calado

 

A educação popular busca incentivar educandos, educandas, educadores e educadoras a manterem viva sua atenção, a alimentarem seu esforço de atualização sobre todos aqueles aspectos que dizem respeito ao processo de humanização. Quando se fala em educação popular, tem-se em vista, principalmente, dar sequência a este mesmo processo, que vai implicar numa multiplicidade de aspectos e dimensões. Buscar exercitar o processo de humanização, contrapondo-se incessantemente ao processo de desumanização, desafio presente em nossa experiencia existencial. Implica trabalhar diuturnamente de maneira articulada, um conjunto de dimensões que caracterizam o próprio processo de humanização.

Dentre estas dimensões, poderíamos lembrar: a dimensão cósmica que está presente necessariamente em todo processo de sociabilidade humana; a dimensão planetária, que, em conjunto, em ordenação com a própria dimensão cósmica, também diz respeito fundamentalmente ao mesmo processo; a dimensão econômica, isto é, como os seres humanos fazem para assegurar a produção de sua existência material, ou seja, como fazemos para assegurar a nossa existência a partir do trabalho, seja de coleta, caça, pesca, agricultura, pecuária (setor primário); seja retirando da natureza elementos que constituem a transformação dos produtos em artigos culturais, no caso do artesanato, em escala maior, evidentemente, da produção industrial (setor secundário); seja ainda por meio das atividades de comércio e serviços (setor terciário). Então, como os serem humanos dão conta de assegurar a sua existência material a partir dessas decisões que são tomadas, no sentido de: o que produzir? como produzir? com quem produzir? quem faz e quem ganha com isso? Tudo isso diz respeito mais estritamente ao modo de produção, seja ele capitalista, seja socialista, seja em qualquer sociedade de classes. Logo, o modo de produção, de certo modo, determina a maneira como essa produção é feita, ou seja, se é feita no interesse de todos, da maioria ou se ao contrário, do interesse de uma pequena minoria, como acontece no modo de produção capitalista. Prosseguindo à explicitação outras dimensões componentes da sociabilidade humana, além da cósmica, planetária e econômica, assinalamos a dimensão política, isto é, aquela dimensão que nos faz pensar como agimos para lidar com o poder, com as estruturas do poder, seja o macro poder (como exemplo, as relações entre sociedade – Estado), ou as micro relações de poder, as relações do cotidiano no âmbito da família, da escola, do trabalho, das pastorais, como é que o poder é exercitado, ou seja, a serviço de quem, quem decide, como decide, quais são os frutos dessas decisões, como o poder é exercido em todos o processo de humanização. Esse portanto, é o lado político.

Temos ainda a lembrar outras dimensões, que de modo entrelaçado, também fazem parte do processo de humanização e que não podem ser desdenhadas. Tratamos, ainda, da dimensão ética, que está igualmente conectada a todas as outras dimensões do mesmo processo. A dimensão ética nos envolve mais na questão do agir, como se dá o agir humano no processo de humanização, como se dá isso no chão do cotidiano, sendo as relações do dia – a - dia entendidas como um mostruário dessa expressão ética, como agimos, o nosso agir tem a ver com o nosso pensar, o nosso pensar tem a ver com o nosso sentir, o nosso sentir tem a ver com o nosso querer? O nosso sentir, o nosso pensar, o nosso querer, o nosso agir tem a ver com o que a gente expressa, com a nossa comunicação? Então, isto faz parte da dimensão ética. Como organizamos eticamente, essas questões em nossas relações humanas?

A outra dimensão é a estética, é a dimensão do belo, daquilo que nos faz maravilhados, daquilo que nos faz contemplar com tanto prazer a mãe natureza, o canto dos pássaros, o balançar das folhas de uma árvore, sentir o vento, apreciar o mar, a montanha, tantas belezas da natureza. E não apenas isso, também a beleza artística, belezas que são produtos do nosso engenho, a diversidade de artes que somos chamados, não apenas a fruir de maneira passiva, ou seja, ouvindo-a, deliciando uma bela música, apreciando um belo quadro, ou lendo um belo romance, ou uma linda poesia, mas também somos chamados e vocacionados a participar desse universo estético pela produção, pelo exercício das artes. Sobre essa variedade enorme das artes, é preciso que nos demos ao trabalho de tentar tocar, por exemplo, algum instrumento, de termos a ação, dimensão ativa na produção das artes, não só de sua fruição, mas também na produção dessas mesmas artes, inclusive a variedade artesanal, trabalhar com o barro, a madeira, o metal, o tecido, a palha etc. Isso também é um convite sempre forte para trabalhar com o processo de humanização.

Outra dimensão diz respeito à cultura, e no plano da cultura, temos por exemplo, as relações sociais de gênero. Como se dá naquela comunidade, naquele grupo, naquela sociedade, como se dá o atuar de alguém que é homem e de alguém que é mulher? Como é que as relações de gênero são vivenciadas e em proveito de quem, quem ganha e quem perde? É pela dominação? É pela interculturalidade que nos reunimos? Que nos associamos? Como se dão, enfim, as relações de gênero? Ainda nessa dimensão, a gente busca também ver como se dão as relações de quem tem a tendência hetero ou homossexual, como se dá ou não o respeito nessas relações, como se combate toda manifestação homofóbica, nesta direção. Logo, esta é uma dimensão que associamos às demais.

Temos ainda a dimensão relativa à nossa etnia. É muito importante que cada um ou cada uma, numa comunidade, num grupo, ou numa sociedade, se reconhecer originário de um povo, ter uma ligação forte com a negritude ou ainda com outros povos. Então, a dimensão étnica nos faz trabalhar melhor o processo de humanização a partir de nossas especificidades étnicas, de negros e de negras, de descendentes de indígenas, de asiáticos ou de um povo europeu etc. Ou seja, como trabalhamos essa dimensão, é pela dominação de um sobre outros? É pela interculturalidade? É pelo mútuo respeito? É pelo cuidado com a nossa identidade, mas nunca em prejuízo da identidade dos outros? Portanto, essa é a dimensão étnica.

Outra dimensão, refere-se à espacialidade, à nossa procedência geográfica. É muito diferente o comportamento de alguém que nasce na Caatinga com alguém que nasce na área litorânea, que nasce em contato com o mar ou com a mata. Logo, há atitudes, hábitos, costumes e valores diferenciados e que merecem ser desenvolvidos de maneira harmônica, respeitosa, uns completando os outros. Da mesma forma em relação a quem vive na cidade e quem vive no campo, quais são as relações que construímos no processo de humanização? Há diferenças entre quem é nordestino em relação a quem nasce e vive no sul ou no norte do país, ou quem vive em outro país da América Latina ou em outro continente. Todavia, é preciso que tomemos cuidado em saber como lidar de maneira harmoniosa e respeitosa, de forma a prezar essa identidade sem prejuízo à identidade dos outros, a qual merece o nosso respeito.

A dimensão etária ou geracional é o respeito que deve existir nas diversas gerações, lidar com as crianças e adolescentes, saber conviver com os jovens, adultos e idosos. Essa é uma prática importante, pois se acha impregnada pelas relações geracionais, é importante que as gerações se entendam e compreendam suas especificidades, e, a partir delas, que nos relacionemos de modo a ajudar uns aos outros no plano geracional.

Outra dimensão é a dimensão do sagrado, essa energia vital que nos move, essa energia que em algumas religiões é chamada de “Ruah”, a Divina Ruah, é uma energia fontal que alimenta o nosso agir, o nosso querer, o nosso sentir, o nosso pensar e o nosso comunicar. Então, essa energia que diz respeito a como nos relacionamos com o sagrado e que nos ajuda também a nos colocarmos em harmonia com todas as outras dimensões. As relações com o sagrado são como se fossem um cimento que assegura nossa intimidade com as demais dimensões, não há uma separação, não é algo que antes de estar acima de nós, é algo que está dentro de nós e entre nós, e com isso, nos alimentamos nessa direção. Tudo isso diz respeito ao processo de humanização. Essas doze dimensões que fizemos questão de rememorar, entre outras, fazem parte do processo de humanização, embora, às vezes não nos lembremos, pois estamos preocupados e absorvidos pelo trabalho, de tal forma que não temos condições neste momento de pensar na interação fecunda e dinâmica que há do trabalho, do aspecto material da produção com tantos outros aspectos que estão presentes, ainda que inconscientemente, entre nós. Precisamos, na educação popular, colocar e fazer aflorar essas dimensões em suas interrelações dinâmicas.

Nas linhas que seguem, cuidamos inicialmente de resumir as motivações e os objetivos de uma experiência de Educação Popular, tendo como alvo formativo a leitura comunitária e sequenciada do livro acima mencionado. Em seguida, tratamos de destacar tópicos centrais do livro, ressaltando pontos axiais desenvolvidos por algumas dezenas de textos componentes do livro. Por fim, buscamos trazer à tona relevantes ganhos coletivos e pessoais, resultantes do aprendizado desta experiência.

 

Destacando Pontos do livro que julgamos mais relevantes

 

Como já dito, a organização do livro resultou da iniciativa de rememorar várias décadas de elaboração da Teologia e das Teologias da  libertação, do ponto de vista de suas origens, da autocrítica de seu desenvolvimento, bem como de suas perspectivas e desafios. O livro, publicado em dois volumes, tendo o primeiro 361 páginas,  enquanto o segundo volume contém 286, constando de três partes: inicialmente, cuida de trazer a lume suas origens; a segunda parte trata de fazer uma revisão dos escritos desta corrente teológica, enquanto a terceira parte é consagrada a apresentar novas versões decorrentes desta teologia - daí o nome de “teologias da libertação”.

 

Para tanto foram convidados trinta e sete teólogos e teólogas, cientistas da religião e autores e autoras de diferentes campos de saberes, com o propósito de refletirem criticamente o processo de elaboração das teologias latinoamericanas da libertação, processo em que se alternam autores e autoras de diversas gerações, conferindo um sabor inter-geracional especial às diferentes versões e trilhas seguidas pelas teologias da libertação.

 

Não sendo este o espaço adequado para uma resenha mais extensa do livro, de modo a contemplar cada autora/autor, limitamo-nos a mencionar os nomes desses autores e autoras: Edward Guimarães, Emerson Sbardelotti, Marcelo Barros, José Oscar Beozzo, Cláudio de Oliveira Ribeiro, Paulo Agostinho Batista, Carlos Mesters, Francisco Orofino, Matthias Grenzer, Pedro Ribeiro de Oliveira,  Ney de Souza, Silvia Scatena, Solange Maria do Carmo, Francisco Cornélio Freire Rodrigues, Agenor Brighenti, Benedito Ferraro, Élio Gasda, Afonso Murad, Sinivaldo S. Tavares, Francisco Aquino Júnior, Jung Mo Sung, Ivo Lesbaupin (Todas e todos estes figurando no primeiro volume); Ivone Gebara, Tereza Maria Pompéia Cavalcanti, Gildo Aquino Xucuru, João Irineu Potiguara, Cleusa Caldeira, Faustino Teixeira, Roberlei Panasiewicz, Maria Cristina S. Furtado, Cesar Kuzma, Verônica Michelle Gonçalves, Maria Clara Luchetti Bingemer, Leonardo Boff, Rosemary Fernandes da Costa, Eduardo Brasileiro, Étel Teixeira de Jesus, Diego Irarrazaval, Juan José Tamayo, Jon Sobrino, Victor Codina (Todas e todos estes figurando no segundo volume, com exceção dos organizadores).

 

O primeiro volume, após a Introdução tem como primeiro capítulo, um longo e criterioso texto de 72 páginas da lavra do José Oscar Beozzo, historiador e teólogo, com reconhecida experiência no campo especialmente da Igreja Católica, tendo ele inclusive integrado a Equipe de Coordenação da CEHILA (Comisión de la História de la Iglesia Latinoamericana). Pesquisador laborioso, Beozzo empenha-se em  rememorar aspectos fundantes da Teologia da Libertação, cujas raízes se acham fincadas séculos antes, na história da Igreja. De modo mais direto, faz-nos remontar aos tempos do Concílio Vaticano II, convocado (1959), pelo Papa João XXIII, com o propósito de buscar responder pastoralmente aos desafios da modernidade, começando por reconhecer autonomia das “realidades terrestres”, atenta aos “sinais dos tempos” e em postura de diálogo - e não de condenação, como fora o tom dominante do Concílio Vaticano I, realizado no final do século XIX.

 

Beozzo também rememora, de passagem, a força profética com que irrompeu, poucas semanas antes do encerramento do Concílio Vaticano II, o acontecimento mais conhecido como o “Pacto das Catacumbas”, realizado nos arredores de Roma, em 16 de novembro de 1965. Todavia, é sobretudo a partir da II Conferência Episcopal Latinoamericana, realizada em Medellín (Colômbia), em 1968, que ganha especial força profética todo um movimento eclesial de renovação, com rosto latinoamericano, de modo a distinguir-se do pensamento e das doutrinas eurocêntricas acerca do Movimento de Jesus.

 

Seguindo em seu propósito de situar criticamente os difíceis caminhos dos inícios das Teologia da Libertação, José Oscar Beozzo traz à tona diversos embates eclesiais que os Teólogos e Teólogas da Libertação tiveram de enfrentar, a partir do pontificado do Papa João Paulo II e o então Cardeal Josef Ratzinger, à frente da temida Congregação em Defesa da Fé (antigo Santo Ofício), cujo propósito era o de desautorizar a Teologia da Libertação, acusando-a inicialmente de uma tendência ideologizada de se fazer teologia. Dada, porém, a firme resistência dos teólogos da Libertação da época profeticamente apoiados por grande número de bispos latinoamericanos e brasileiros, Roma teve que recuar de sua posição condenatória da TdL chegando mesmo a reconhecê-la como uma teologia “não apenas legítima, mas também útil e necessária”.

 

A despeito desta declaração, restava evidente a má vontade de Roma, de acolher este modo de teologizar, com feição claramente latinoamericana, o que implicou em calorosos embates entre Roma e os principais teólogos da TdL. Outra contribuição rememorada, no artigo de Beozzo, prende-se ao relevante Projeto da CEHILA, de reescrever, a partir do Povo, a História da Igreja Latinoamericana, a partir de sua distribuição em algumas regiões, de modo a comportar as dezenas de países latinoamericanos e do Caribe. De início, chegou-se mesmo a pensar em um Projeto ecumênico de reescrita da História das Igrejas Cristãs, na América Latina e no Caribe, iniciativa que infelizmente não prosperou.

 

Convém, ainda, ressaltar a iniciativa conhecida como “Coleção Teologia e Libertação”, que previa a publicação de mais de 50 livros tematizando os diversos conteúdos trabalhados pela Teologia da Libertação. Desta iniciativa acabaram sendo publicados cerca de 35, por conta da reação de Roma, a pressionar os Bispos latinoamericanos a retirarem seu apoio – eles eram, no começo, em torno de 120, como se pode verificar no início do livro, “Antropologia Cristã”, de José Comblin.  Além desta iniciativa, alguns teólogos ousaram elaborar, em quatro volumes, uma síntese da produção teológica latinoamericana, dentre seus autores constam Jon Sobrino, Ignacio Ellecuria, entre outros. O artigo de Beozzo constitui uma peça preciosa de registros memoriais das origens da teologia da libertação, especialmente de sua versão católica.

 

O segundo capítulo do primeiro volume de “50 Anos de Teologias da Libertação” tem como autores Claudio de Oliveira Ribeiro e Paulo Agostinho Batista. O grande mérito do texto reside nos registros da relevante contribuição de teólogos protestantes à teologia da Libertação, que precedeu a vertente católica, pois surgida ainda nos anos de 1950. De maneira sumária e sóbria, os autores se empenham em trazer à tona apenas os nomes de teólogos protestantes de maior referência, a exemplo de figuras tais como Richard Shaull e Julio de Santa Ana, preferindo destacar a dimensão ecumênica que orientou estes teólogos filiados a diferentes igrejas (Presbiteriana, Batista, Metodista, Luterana, entre outras).

 

Coube a Frei Carlos Mesters e a Francisco Orofino a elaboração do terceiro capítulo, versando sobre a densa contribuição das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), e do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos (CEBI), situando-os como espaços eclesiais e sementeiras da elaboração teológica, na perspectiva da libertação.

 

Os capítulos seguintes voltam-se a um espectro diversificado de questões-alvo da(s) Teologia(s) da Libertação, a tematizarem ora sua dimensão teórica metodológica (Pedro Ribeiro de Oliveira, Francisco Aquino Junior e outros), ora dimensionando aspectos linguísticos bíblicos, ora atendo-se a influência do Concílio Vaticano II e das Conferências Episcopais Latino Americanas e Medellin (1968) de Puebla (1979) de Santo Domingo (1992) e de Aparecida (2007) sobre o desenrolar da produção teológica latino-americana. A este respeito, sucedem-se diversos autores e autoras, tanto da primeira geração (como é o caso, por exemplo, de Benedito Ferraro, Faustino Teixeira, Agenor Brighenti, e Jung Mo Sung, Ivo lesbaupin, entre outros), enquanto o segundo volume do livro que é inteiramente dedicado a examinar o surgimento e a vivência atual das novas teologias, traz a lavra de teólogos e teólogas e outros especialistas em diversos campos de saberes, examinando os elementos principais constantes dessas novas teologias. No mesmo segundo volume, comparecem autores e autoras tais como Marcelo Barros, Gildo Gomes, João Irineu Potiguar (versando sobre os elementos característicos da Teologia dos povos originários); Cleusa Caldeira (com sua instigante contribuição à compreensão do “teoquilombismo”, com expressão libertadora do povo afro-americano); Ivone Gebara (problematizando o conceito de “libertação” na perspectiva da Teologia Feminista); Tereza Cavalcanti (examinando o esforço de elaboração latino-americana de novas teologias); Maria Cristina S. Furtado, nos oferece, a partir da sua rica experiência de psicóloga e pedagoga, ela é muito relevante para a compreensão de uma Teologia voltada para a causa homo-afetiva; Verônica Michelle Gonçalves (reflete, de forma poética e instigante, como se dá a Teologia da Libertação, tal como experienciada pelas juventudes).

 

E assim, outros autores e autoras vão completando a lista de colaboradores, que nos propõe o desafio de desbravar outras dimensões examinadas pelas Teologias da Libertação: A Eco-teologia (Leonardo Boff), a Teologia da Libertação em diálogo com a educação popular (Edward Guimarães),  a abertura da TdL, ao campo das artes, ai expressando sua mística especial (Emerson Sbardelotti), a instigante reflexão teológica tecida por Rosemary Fernandes da Costa, e Eduardo Brasileiro acerca do paradigma do Bem Viver, além de outras relevantes figuras históricas, como Jon Sobrino e Victor Codina.

 

Achados coletivos e pessoais desta experiência de Educação Popular

 

Em duas semanas, nosso Grupo completa um ano, desde o início da leitura sequenciada do livro acima referido. Não sendo uma experiência presencial, resulta confortante constatarmos os frutos valiosos que vimos colhendo desta experiência semanal de Educação Popular. Conscientes de que são os encontros presenciais o terreno mais fértil para a Educação Popular, nosso grupo virtual tem muito a comemorar desta experiência formativa, comunitária e sequenciada, os motivos são diversos. Dela participam em torno de quarenta pessoas, de cerca de quinze Estados da Federação, compreendendo todas as regiões do Brasil, com predominância do Nordeste. Trata-se, em geral, de pessoas adultas, na maioria mulheres, com relativa experiência de acompanhamento de atividades pastorais da Igreja Católica. Em parte considerável, trata-se de pessoas “des-igrejadas”, apresentando uma trajetória de participação no CEBI, nas CEBs, nas pastorais sociais, na Catequese, na Liturgia, como também na militância sindical, partidária e popular, algumas das quais ainda seguem participando, mas todas manifestando dificuldades crescentes de convívio nos espaços das Paróquias, das Dioceses, especialmente em razão do acentuado clericalismo aí dominante.

 

A maioria das pessoas participantes desta experiência de Educação Popular manifesta grandes afinidades com a Teologia da Libertação, e, principalmente das diferentes dimensões em que se tem desdobrado a Teologia da Libertação, razão por que é tratada em sua pluralidade (“Teologias da Libertação”).

 

No que toca à metodologia de trabalho, em cada sessão (que dura duas horas) tratamos de fazer a leitura de um capítulo (por vezes, há necessidade de ser concluída na semana seguinte). Construiu-se uma coordenação rotativa de trabalho, em que é uma a pessoa que faz a acolhida, outra coordena o trabalho da noite, ainda outra lembra o tempo disponível para intervenção (3 minutos para cada pessoa, sendo quatro pessoas por bloco após cada tópico da leitura). O grupo escolheu contar com um comentarista mais experiente, que dispõe de uns dez minutos, para dialogar com as pessoas que fazem comentários, perguntas e dúvidas. Graças a esta dinâmica, vem à tona frequentes sugestões e recomendações bibliográficas, vídeos, documentários, que são anotados no chat da reunião e também no whatsapp do grupo “Teologia da Libertação”.

 

O propósito destas linhas é, sobretudo, compartilhar nossos achados, ao vivenciarmos, já há 1 ano, esta experiência de Educação Popular. Um primeiro achado tem a ver com o conhecimento de novas pessoas, espalhadas por diversos estados e regiões do Brasil, o que permite a formação de laços afetivos que nos animam a manter ainda mais atrativo nosso estudo semanal. Importa, também, sublinhar a oportunidade de aprofundamento de diferentes temas suscitados por vários autores e autoras dos capítulos do livro, em especial o repertório temático trabalhado pelas diversas vertentes das teologias da libertação: a teologia planetária, o feminismo, as teologias dos povos originários, as diversas teologias da negritude, a teologia queer, a teologia das juventudes, as diversas espiritualidades, inclusive a do “bem-viver”.

 

Dados os perfis das pessoas participantes, um achado relevante, tem sido o do compartilhamento de relatos de experiências vivenciadas, o que nos tem permitido conferir percepções de diferenças complementares, seja no plano teológico-pastoral, seja no agir político, seja ainda no plano intersubjetivo. Um aprendizado que contribui, inclusive, para qualificar nossa atuação de militantes, cada qual em seu campo específico. Trata-se de uma experiência formativa que nos tem ajudado a perceber melhor a relevância da formação de formadores e formadoras, na perspectiva da Educação Popular assumida de modo permanente, tanto na dimensão coletiva, quanto na dimensão pessoal, e em busca de seguimento do Movimento de Jesus.

 

Outro achado relevante tem a ver com o desenvolvimento da qualidade de nossa leitura de mundo colada ao nosso agir militante, no chão do cotidiano.

 

Considerações sinóticas

 

Refletimos, nas linhas precedentes, de que modo uma experiência de leitura comunitária e sequenciada de um livro tem sido capaz de sacudir nossa percepção, graças ao potencial crítico-transformador da Educação Popular, por força de sua carga teórico-metodológica, caracterizada por alguns traços:

-      A percepção dialética, com que lemos o livro, percorrendo capítulo por capítulo, em forma sequenciada, exercitando um olhar crítico, após um ou dois tópicos de cada artigo;

-      Empenhando-nos em um aprendizado contínuo recolhendo relevantes achados em cada um, ao mesmo tempo em que sendo capazes também de enxergar lacunas, omissões e inacabamento, próprias de todo projeto humano;

-      Demo-nos conta, por exemplo, de que parte significativa dos autores e autoras do livro, ao nos proporcionarem preciosos achados, tendem a situar as origens da Teologia da Libertação, a partir especialmente dos anos 1970, especialmente desde a publicação do livro “Teologia da Libertação: perspectivas” de autoria de Gustavo Gutiérrez, teólogo seminal, enquanto pareceram omissos no que tange a contribuição de teólogos protestantes, pelo menos desde os anos 1950 (Richard Shaull, Rubem Alves, Júlio de Santa Ana, Waldo Cesar, Joaquim Beato, João Dias Araújo, para citar apenas alguns);

-      Não é por acaso, que tomamos a decisão de, tão logo terminarmos de ler o primeiro e o segundo volumes do livro, daremos prosseguimento à nossa experiência formativa, revisitando estes teólogos, a começar por Richard Shaull (“Cristianismo e Revolução Social”), passando também pelo estudo dos materiais concernentes à “Conferência do Nordeste”, Recife, 22-29 de julho de 1962, além de escritos de Júlio de Santa Ana e outros.

-      Como já assinalado, de passagem, por Faustino Teixeira, especialmente os autores e autoras da primeira geração da TdL se mostram marcados por uma inspiração eclesiocêntrica donde o especial apego às fontes do Magistério da Igreja;

-      Salvo exceções, os textos se mostram reticentes ou mesmo resistentes ao reconhecimento da contribuição do Marxismo às Teologias da Libertação, donde talvez a ausência de maior apreço à nomes tais como Hugo Assmann, Enrique Dussel, Giuglio Girardi, Franz Himkelammert, Pablo Richard, Frei Betto, e ainda sem uma referência a outros nomes relevantes, no labor teológico da libertação, a exemplo de José Comblin, Ignacio Ellacuria, José Vigil, Eduardo Hoornaert, Manfredo Araújo de Oliveira, Elsa Tamez, Lusmarina Campos Garcia , Nancy Cardoso, Sebastião Armando Gameleira, entre outras referências. Nenhuma ressalva, porém desvanece a excelência das contribuições recolhidas, com imenso apreço e gratidão aos seus autores e autoras, e aos organizadores do livro.

 

 

João Pessoa, 04 de agosto de 2024. 



[i] Texto produzido em áudio, e digitado por Heloise Calado Bandeira, Gabriel Luar Calado Bandeira, Marcio Aurélio e Eraldo Leme Batista, a quem o autor expressa sua gratidão.