Por uma Universidade Indígena: condições e fundamentos político-pedagógicos
Alder Júlio Ferreira Calado
Ontem como hoje, na Antiguidade ou principalmente na Idade Moderna, sob
quaisquer de suas formas – militar, econômica, política, cultural, religiosa,
que sempre operam dinamicamente entrelaçadas -, o Colonialismo se tem
manifestado como uma pandemia desumanizante, em relação às terras e às
gentes dos vários continentes. No caso do Brasil, desde inícios do século
XVI, nossos povos originários que aqui viviam desde milênios, se viram
invadidos bruscamente pelos europeus (no caso, pelo Reino de Portugal, em
aliança com o Papado). O que já vinha acontecendo no Caribe e em outras
partes do continente americano, a exemplo da Ilha caribenha de Hispaniola,
a atual República Dominicana, foi se expandindo por todo o continente,
inclusive no Brasil.
Dotados de grande poderio militar, os colonizadores europeus passaram não
apenas a se apropriar pela força das riquezas dos povos originários, como a
escravizá-los, cometendo toda sorte de violência, inclusive sob a bandeira
da fé cristã... O mesmo fizeram, algumas décadas depois – e de modo ainda
mais grave e duradouro – com os africanos escravizados.
Não bastasse a violência cruel da invasão – a que deram o nome de
“descobrimento” -, empenharam-se em cumprir seu projeto colonialista,
apropriando-se das terras, do subsolo, das florestas e demais riquezas
desses povos. Pelos séculos adiante, trataram de pilhar nossa
biodiversidade, nossa madeira, nossos minerais, os recursos privilegiados de
nossas terras sobretudo as férteis, transferindo-as para seu poder e de
seus aliados europeus. Eis que, há cinco séculos, nossas gentes originárias e
afro-brasileiras seguem amargando tão abominável pilhagem.
Do ponto de vista político, a despeito da heroica resistência testemunhada
secularmente pelos povos indígenas e afrodescendentes, a pandemia
colonialista implicou a desorganização social e política desses povos, à
medida que os colonizadores subjugaram ao seu poder político-institucional,
ignorando e negando seus direitos mais elementares de cidadania. Situação
que vem perdurando ou mesmo se agravando até ao presente. O atual
Congresso constitui uma prova evidente deste processo, inclusive por meio
da negativa do direito à demarcação de suas terras e territórios. Importa
sublinhar que igual ou pior tratamento tem sido dispensado pelos
colonizadores de ontem e de hoje ao povo negro.
Tanto os povos originários quanto as comunidades quilombolas e tradicionais
também constituem um alvo permanente do processo de desfiguração e de
apagamento de sua cultura, de seus valores, de suas crenças. Também hoje,
graças à sofisticação dos diversos aparelhos de Estado – principalmente a
mídia hegemônica e as redes digitais da extrema Direita -, nossos povos
originários e afrodescendentes seguem submetidos duramente à ditadura
do Mercado (suas transnacionais, que atuam nas mais diversas áreas da
realidade social: na Economia, na Política, na Cultura, na Comunicação, na
Educação, na Religião...), consolidada pelas políticas do Estado,
eventualmente aliviadas por governos progressistas.
Neste sentido, o exercício da memória histórica constitui um passo decisivo
a ser ininterruptamente mantido pelas classes populares, recorrendo a
grandes referências de historiadores, sociólogos, economistas, educadores
e outros relevantes campos de saberes, por meio dos quais somos
convidados a fazer uma constante leitura de mundo, na perspectiva de
reescrevê-lo. Para este horizonte apontam reconhecidas figuras, tais como
Paulo Freire, Florestan Fernandes, Clóvis Moura, Ruy Mauro Marini, Darcy
Ribeiro, entre outras.
Cumpre ainda ressaltar como um dos fatores relevantes para a manutenção
e agravamento deste estado de coisas o papel altamente nocivo da
ideologização da religião e das crenças, especialmente na atual conjuntura,
em particular no caso das igrejas pós-pentecostais e da extrema direita
católica. Figuras como Edir Macedo, Silas Malafaia, Pe. Paulo Ricardo, entre
outros, com seus aparatos de comunicação de rádio, televisão e rede
digitais, têm produzido estragos ao devido respeito à diversidade,
interferindo, inclusive na esfera política do país, haja vista o que sucede na
atual campanha eleitoral de São Paulo. Cenário tanto mais lamentável quando
se compara a conjuntura nas décadas entre 1950 e 1980, de enorme
ebulição social dos movimentos populares e de expressivos setores das
igrejas cristãs, ao impulsionarem movimentos de mudança de sociedade.
Importa doravante cuidar mais diretamente do campo educacional,
sobretudo pela viabilidade ou não da criação de uma Universidade Indígena.
No atual contexto da sociedade brasileira, faz sentido empenhar-nos na
criação de Universidade Indígena? Os jovens indígenas já não se acham
contemplados com as atuais políticas educacionais voltadas para os povos
indígenas? Em caso de viabilidade, em que condições e sobre que alicerces
se justifica abraçar a causa da criação de uma Universidade Indígena?
Feito este breve introito de contextualização, passaremos, a seguir, a
esboçar algumas condicionantes e fundamentos em busca da construção de
uma Universidade Indígena, que já se acha em discussão, desde seus
protagonistas, a exemplo do que vem sucedendo junto aos/às participantes
do XI Encontro Nacional de Estudantes Indígenas (XI ENEE), que no último
18 de setembro, participaram também de uma audiência pública, no Senado
(cf. fala do Senador Bene Camacho – PSD/MA – no link: Debate no Senado
aborda a criação da primeira universidade indígena no Brasil (youtube.com)).
Condições e fundamentos da criação de uma Universidade Indígena
Mesmo sabendo dos riscos, para os povos originários, de se aventurarem por
caminhos que lhes são pouco familiares ou até hostis, constatamos sinais
crescentes em diversos de seus segmentos de certa aposta ou investimento
em disporem de uma Universidade Indígena. Qualquer que seja sua escolha,
consideramos legítimo o seu intento de disporem de um Centro de produção
de saberes, de sabores e de sabedoria de seus ancestrais, de suas riquezas,
da extraordinária biodiversidade em que se acham mergulhados. Tendo ou
não o perfil de Universidade – algo a merecer maior debate, pelo menos
quanto ao sentido convencional atribuído a esta instituição -, não há dúvida
de que, a exemplo de outros povos tradicionais, os povos originários têm o
direito de dispor de um organismo próprio destinado a produzir sua própria
memória histórica, bem como os saberes de seus ancestrais, da imensa
variedade de riquezas e bens naturais, atinentes a uma enorme
multiplicidade de dimensões – relações com o Sagrado, econômicas,
políticas, culturais, educacionais, nas áreas científicas da saúde e de um
amplo e profundo espectro da natureza, de educação, de comunicação, entre
outras.
Por outro lado, um tal Projeto não deve ignorar uma multiplicidade de óbices
ao seu cumprimento, quando trazemos a lume diversos aspectos históricos
que vêm acompanhando secularmente a experiência político-pedagógica
apresentada pela Universidade, desde o século XII. Como se sabe, as
Universidades têm raízes ocidentais, tendo sido criadas para atenderem os
setores privilegiados dessas sociedades. Ontem como hoje, a Universidade
segue sendo, ainda que em uma correlação de forças desfavorável um campo
de disputa, a ser enfrentado pelas classes populares. Não se trata,
portanto, de algo a ser necessariamente evitado ou desconsiderado, desde
que se tenham claros os seus limites.
Criar uma Universidade Indígena, em uma perspectiva fiel aos valores
destes povos, requer ter sempre claros os limites, as condições e os
fundamentos sobre os quais tal edifício deve ser erigido. Um eventual
projeto de Universidade Indígena, caso seja realizado nas mesmas
condições que regem as atuais Universidades estatais (Federais, Estaduais,
Municipais...) implica seguir as mesmas regras que as definem. Em que condições,
então, erigir uma Universidade Indígena? Tratemos, a seguir, de esboçar
algumas dessas condições.
Uma primeira diz respeito à autonomia financeira, de gestão, de definição
de protagonistas, de planejamento, de execução (desde os componentes
curriculares às formas de organização e gestão, avaliação, participação da
comunidade envolvente). Já aqui, há de se perguntar, primeiro, diante das
exigências e requisitos gerais, cobrados em toda Universidade, prosperará
um projeto desse tipo, quanto aos fundamentos e princípios que inspiram os
povos originários e tradicionais, ou se se trataria apenas de uma mera
adaptação ao projeto já existente? Neste último caso, não seria mais
recomendável investir, em vez de em uma Universidade, em um Centro de
produção e de compartilhamento de saberes dos povos originários?
Dentro do item “autonomia”, acha-se listada uma série de outras dimensões.
Cada uma delas comporta igualmente a mesma pergunta. Por exemplo,
como pretender-se autonomia financeira diferente da que gozam outras
Universidades? Mais: como assegurar o cumprimento das dimensões:
- Como assegurar a aspiração à definição dos componentes curriculares
aplicáveis apenas à Universidade Indígena, sem tomar em consideração
normas curriculares do sistema de ensino superior?
- Como garantir uma gestão ampla e geral de todos os itens relativos à
Universidade Indígena, descumprindo-se as normas vigentes para as demais
Universidades?
- Talvez de todas essas dimensões, a mais improvável de se cumprir, seja a
relativa à dimensão financeira. Como garantir autonomia financeira relativa
apenas à Universidade Indígena, de modo a distinguir-se claramente do que
Sucesso às demais Universidades?
Como se percebe, estamos de um dilema: de um lado, resta nítido o direito
dos povos originários e tradicionais à reparação de uma imensa dívida
acumulada, ao longo dos séculos; por outro lado, dadas inclusive as atuais
condições e correlação de forças em vigência, como tornar factível tal
Projeto? Mesmo assim, vale a pena seguirmos tentando, de um modo ou de
outro.
João Pessoa, 26/09/2024