quinta-feira, 26 de setembro de 2024

Por uma Universidade Indígena: condições e fundamentos político-pedagógicos

 Por uma Universidade Indígena: condições e fundamentos político-pedagógicos


Alder Júlio Ferreira Calado


Ontem como hoje, na Antiguidade ou principalmente na Idade Moderna, sob

quaisquer de suas formas – militar, econômica, política, cultural, religiosa,

que sempre operam dinamicamente entrelaçadas -, o Colonialismo se tem

manifestado como uma pandemia desumanizante, em relação às terras e às

gentes dos vários continentes. No caso do Brasil, desde inícios do século

XVI, nossos povos originários que aqui viviam desde milênios, se viram

invadidos bruscamente pelos europeus (no caso, pelo Reino de Portugal, em

aliança com o Papado). O que já vinha acontecendo no Caribe e em outras

partes do continente americano, a exemplo da Ilha caribenha de Hispaniola,

a atual República Dominicana, foi se expandindo por todo o continente,

inclusive no Brasil.

Dotados de grande poderio militar, os colonizadores europeus passaram não

apenas a se apropriar pela força das riquezas dos povos originários, como a

escravizá-los, cometendo toda sorte de violência, inclusive sob a bandeira

da fé cristã... O mesmo fizeram, algumas décadas depois – e de modo ainda

mais grave e duradouro – com os africanos escravizados.

Não bastasse a violência cruel da invasão – a que deram o nome de

“descobrimento” -, empenharam-se em cumprir seu projeto colonialista,

apropriando-se das terras, do subsolo, das florestas e demais riquezas

desses povos. Pelos séculos adiante, trataram de pilhar nossa

biodiversidade, nossa madeira, nossos minerais, os recursos privilegiados de

nossas terras sobretudo as férteis, transferindo-as para seu poder e de

seus aliados europeus. Eis que, há cinco séculos, nossas gentes originárias e

afro-brasileiras seguem amargando tão abominável pilhagem.

Do ponto de vista político, a despeito da heroica resistência testemunhada

secularmente pelos povos indígenas e afrodescendentes, a pandemia

colonialista implicou a desorganização social e política desses povos, à

medida que os colonizadores subjugaram ao seu poder político-institucional,

ignorando e negando seus direitos mais elementares de cidadania. Situação

que vem perdurando ou mesmo se agravando até ao presente. O atual

Congresso constitui uma prova evidente deste processo, inclusive por meio

da negativa do direito à demarcação de suas terras e territórios. Importa


sublinhar que igual ou pior tratamento tem sido dispensado pelos

colonizadores de ontem e de hoje ao povo negro.

Tanto os povos originários quanto as comunidades quilombolas e tradicionais

também constituem um alvo permanente do processo de desfiguração e de

apagamento de sua cultura, de seus valores, de suas crenças. Também hoje,

graças à sofisticação dos diversos aparelhos de Estado – principalmente a

mídia hegemônica e as redes digitais da extrema Direita -, nossos povos

originários e afrodescendentes seguem submetidos duramente à ditadura

do Mercado (suas transnacionais, que atuam nas mais diversas áreas da

realidade social: na Economia, na Política, na Cultura, na Comunicação, na

Educação, na Religião...), consolidada pelas políticas do Estado,

eventualmente aliviadas por governos progressistas.

Neste sentido, o exercício da memória histórica constitui um passo decisivo

a ser ininterruptamente mantido pelas classes populares, recorrendo a

grandes referências de historiadores, sociólogos, economistas, educadores

e outros relevantes campos de saberes, por meio dos quais somos

convidados a fazer uma constante leitura de mundo, na perspectiva de

reescrevê-lo. Para este horizonte apontam reconhecidas figuras, tais como

Paulo Freire, Florestan Fernandes, Clóvis Moura, Ruy Mauro Marini, Darcy

Ribeiro, entre outras.

Cumpre ainda ressaltar como um dos fatores relevantes para a manutenção

e agravamento deste estado de coisas o papel altamente nocivo da

ideologização da religião e das crenças, especialmente na atual conjuntura,

em particular no caso das igrejas pós-pentecostais e da extrema direita

católica. Figuras como Edir Macedo, Silas Malafaia, Pe. Paulo Ricardo, entre

outros, com seus aparatos de comunicação de rádio, televisão e rede

digitais, têm produzido estragos ao devido respeito à diversidade,

interferindo, inclusive na esfera política do país, haja vista o que sucede na

atual campanha eleitoral de São Paulo. Cenário tanto mais lamentável quando

se compara a conjuntura nas décadas entre 1950 e 1980, de enorme

ebulição social dos movimentos populares e de expressivos setores das

igrejas cristãs, ao impulsionarem movimentos de mudança de sociedade.

Importa doravante cuidar mais diretamente do campo educacional,

sobretudo pela viabilidade ou não da criação de uma Universidade Indígena.

No atual contexto da sociedade brasileira, faz sentido empenhar-nos na

criação de Universidade Indígena? Os jovens indígenas já não se acham

contemplados com as atuais políticas educacionais voltadas para os povos


indígenas? Em caso de viabilidade, em que condições e sobre que alicerces

se justifica abraçar a causa da criação de uma Universidade Indígena?

Feito este breve introito de contextualização, passaremos, a seguir, a

esboçar algumas condicionantes e fundamentos em busca da construção de

uma Universidade Indígena, que já se acha em discussão, desde seus

protagonistas, a exemplo do que vem sucedendo junto aos/às participantes

do XI Encontro Nacional de Estudantes Indígenas (XI ENEE), que no último

18 de setembro, participaram também de uma audiência pública, no Senado

(cf. fala do Senador Bene Camacho – PSD/MA – no link: Debate no Senado

aborda a criação da primeira universidade indígena no Brasil (youtube.com)).

Condições e fundamentos da criação de uma Universidade Indígena

Mesmo sabendo dos riscos, para os povos originários, de se aventurarem por

caminhos que lhes são pouco familiares ou até hostis, constatamos sinais

crescentes em diversos de seus segmentos de certa aposta ou investimento

em disporem de uma Universidade Indígena. Qualquer que seja sua escolha,

consideramos legítimo o seu intento de disporem de um Centro de produção

de saberes, de sabores e de sabedoria de seus ancestrais, de suas riquezas,

da extraordinária biodiversidade em que se acham mergulhados. Tendo ou

não o perfil de Universidade – algo a merecer maior debate, pelo menos

quanto ao sentido convencional atribuído a esta instituição -, não há dúvida

de que, a exemplo de outros povos tradicionais, os povos originários têm o

direito de dispor de um organismo próprio destinado a produzir sua própria

memória histórica, bem como os saberes de seus ancestrais, da imensa

variedade de riquezas e bens naturais, atinentes a uma enorme

multiplicidade de dimensões – relações com o Sagrado, econômicas,

políticas, culturais, educacionais, nas áreas científicas da saúde e de um

amplo e profundo espectro da natureza, de educação, de comunicação, entre

outras.

Por outro lado, um tal Projeto não deve ignorar uma multiplicidade de óbices

ao seu cumprimento, quando trazemos a lume diversos aspectos históricos

que vêm acompanhando secularmente a experiência político-pedagógica

apresentada pela Universidade, desde o século XII. Como se sabe, as

Universidades têm raízes ocidentais, tendo sido criadas para atenderem os

setores privilegiados dessas sociedades. Ontem como hoje, a Universidade

segue sendo, ainda que em uma correlação de forças desfavorável um campo

de disputa, a ser enfrentado pelas classes populares. Não se trata,


portanto, de algo a ser necessariamente evitado ou desconsiderado, desde

que se tenham claros os seus limites.

Criar uma Universidade Indígena, em uma perspectiva fiel aos valores

destes povos, requer ter sempre claros os limites, as condições e os

fundamentos sobre os quais tal edifício deve ser erigido. Um eventual

projeto de Universidade Indígena, caso seja realizado nas mesmas

condições que regem as atuais Universidades estatais (Federais, Estaduais,

Municipais...) implica seguir as mesmas regras que as definem. Em que condições,

então, erigir uma Universidade Indígena? Tratemos, a seguir, de esboçar

algumas dessas condições.

Uma primeira diz respeito à autonomia financeira, de gestão, de definição

de protagonistas, de planejamento, de execução (desde os componentes

curriculares às formas de organização e gestão, avaliação, participação da

comunidade envolvente). Já aqui, há de se perguntar, primeiro, diante das

exigências e requisitos gerais, cobrados em toda Universidade, prosperará

um projeto desse tipo, quanto aos fundamentos e princípios que inspiram os

povos originários e tradicionais, ou se se trataria apenas de uma mera

adaptação ao projeto já existente? Neste último caso, não seria mais

recomendável investir, em vez de em uma Universidade, em um Centro de

produção e de compartilhamento de saberes dos povos originários?

Dentro do item “autonomia”, acha-se listada uma série de outras dimensões.

Cada uma delas comporta igualmente a mesma pergunta. Por exemplo,

como pretender-se autonomia financeira diferente da que gozam outras

Universidades? Mais: como assegurar o cumprimento das dimensões:

- Como assegurar a aspiração à definição dos componentes curriculares

aplicáveis apenas à Universidade Indígena, sem tomar em consideração

normas curriculares do sistema de ensino superior?

- Como garantir uma gestão ampla e geral de todos os itens relativos à

Universidade Indígena, descumprindo-se as normas vigentes para as demais

Universidades?

- Talvez de todas essas dimensões, a mais improvável de se cumprir, seja a

relativa à dimensão financeira. Como garantir autonomia financeira relativa

apenas à Universidade Indígena, de modo a distinguir-se claramente do que

Sucesso às demais Universidades?


Como se percebe, estamos de um dilema: de um lado, resta nítido o direito

dos povos originários e tradicionais à reparação de uma imensa dívida

acumulada, ao longo dos séculos; por outro lado, dadas inclusive as atuais

condições e correlação de forças em vigência, como tornar factível tal

Projeto? Mesmo assim, vale a pena seguirmos tentando, de um modo ou de

outro.


João Pessoa, 26/09/2024


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