quarta-feira, 4 de setembro de 2024

Aporte teórico metodológico dos escritos do jovem Engels: Considerações em torno do seu livro “A situação da classe trabalhadora, na Inglaterra”

Aporte teórico metodológico dos escritos do jovem Engels: Considerações em torno do seu livro “A situação da classe trabalhadora, na Inglaterra”


Alder Júlio Ferreira Calado




Sem abrirmos mão dos espaços presenciais de formação contínua, vimos também recorrer a encontros virtuais como complementares ao mesmo processo formativo, vivenciado na perspectiva da Educação Popular. Neste sentido, já há algum tempo, vimos fazendo uso, semanalmente, de um espaço virtual, intitulado “Filosofia da Práxis”, todas as quartas-feiras, das 19 às 21 horas. Durante este período, tivemos oportunidade de ler comunitariamente alguns escritos juvenis, de autoria (conjunta ou individual) de Karl Marx (1818-1883) e de Friedrich Engels (1820-1895), a exemplo de “O Manifesto do Partido Comunista” (texto escrito, em parceria, em 1848), “Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844” (Karl Marx), “A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra” (F. Engels). 


Nas linhas que seguem, cuidamos de compartilhar nossas impressões mais fortes, resultantes da leitura comunitária e sequenciada do livro acima mencionado buscando nele destacar sua abordagem teórico-metodológica, produzida por um jovem de apenas 25 anos. Para tanto, trazemos de início uma breve notícia biobibliográfica do autor, para em seguida sumariar aspectos temáticos desenvolvidos no livro. Por fim, tratamos de realçar aspectos teóricos-metodológicos presentes no livro. Como Engels contribuiu e qual nosso aprendizado desta leitura. 


Breve notícia da trajetória existencial de Engels 


Até para compreendermos melhor o alcance do aporte trazido por Engels, em sua juventude cumpre-nos situar brevemente traços de seu itinerário existencial. Friedrich Engels nasceu em Barmen (na Prússia, Alemanha), em 1820, de rica família de empresários industriais, com negócios em Manchester, na Inglaterra. Engels é o filho mais velho de uma família numerosa (9 filhos). Levando uma vida de jovem privilegiado, após o Ensino Médio e após haver passado por bancos universitários, sem concluir o curso, participou ativamente de grupos de esquerda do seu tempo, especialmente do que se convencionou chamar de “Esquerda Hegeliana”.

Aos 22 anos, seu pai o envia para a Inglaterra, para acompanhar os negócios da família e seus sócios. Não tardaria a deparar-se e a chocar-se com as condições precárias daqueles operários. Profundamente indignado com o que via, passou a conhecer mais de perto as condições de vida e de trabalho das famílias operárias na Inglaterra. Não tardaria a conhecer e a enamorar-se de Mary Burns, uma trabalhadora imigrante, proveniente da Irlanda. Graças à sua companheira, Engels conseguiu penetrar os porões e as condições desumanas em que viviam as famílias operárias. Daí resulta seu compromisso crescente de conhecer mais a fundo - e pelas causas - aquele estado de coisas, o que o leva a dedicar parte expressiva do seu tempo a investigar as raízes mais fundas daquela situação. Passa, então, a observar sistematicamente aquela situação, recorrendo também à leitura e coleta de numerosos dados estatísticos, demográficos, econômicos, políticos, educacionais e outros, do que resultou a publicação, em 1845, do seu famoso livro “A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra”.


Antes desta publicação, Engels, em visita a Marx, em Paris, em 1844, já havia compartilhado com o fiel amigo e parceiro um texto, versando sobre ”Economia Política”, categoria-chave para uma interpretação comunista da realidade social. Categoria que Marx levaria a sério, em seus estudos e pesquisas posteriores.


Em parceria com Marx, Engels, redigi “A Sagrada Família” (1845); “Ideologia Alemã” (1845-1846); “Manifesto do Partido Comunista”, entre final de 1847 e início de 1848, e outros escritos.


Da lavra individual de Engels, vale destacar: “A Guerra Camponesa Alemã” (1850); “Anti-Duhring” (1878) (cujos capítulos versam sobre o “Socialismo Utopico e cientifico”; “Dialética da Natureza” (1883): “A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado” (1884), entre outros.


Em uma longa e fiel parceria com Marx, Engels não foi um mero coadjutor, mas como lembra Florestan Fernandes, Engels tem luz própria, o que lhe permitiu, após a morte do amigo (em 1883), dedicar-se cuidadosamente a localizar, decifrar (Marx tinha uma grafia quase ilegível), classificar, interpretar e publicar uma série de manuscritos acumulados por Marx, inclusive responsabilizando-se pela publicação do Livro II e do Livro III de “O Capital”. A passagem de Engels se deu em Londres, em 5 de agosto de 1895.  


2 - Rememorando passagens mais fortes do livro              


Desde sua imensa introdução, Engels empenha-se em compartilhar os fatos históricos do seu livro, aí sintetizando os aspectos temáticos por ele desenvolvido. A primeira inquietação que ele nos traz, corresponde à formação histórica do proletariado, tal como se deu na Inglaterra, mas também em países vizinhos como a Irlanda, Escócia e País de Gales. Nesta perspectiva, o autor vai fornecendo preciosos elementos que dão conta do período de transição do modo de produção feudal – cujos traços ainda sobrevivem, por vezes de modo acentuado – para o modo de produção capitalista. Engels, passa, então, a relatar, de forma bem documentada, como os trabalhadores e trabalhadoras, vindos do mundo rural ou de pequenos vilarejos, relativamente livres do jugo dos senhores feudais, e onde já gozavam de relativa autonomia, quanto às condições de trabalho – detinham sob o seu controle os instrumentos de trabalho, a matéria prima e a distribuição do tempo de trabalho – iam sendo absorvidos pelo poder da burguesia, especialmente, da burguesia industrial, de suas condições relativa e autônoma de vida e de trabalho, à medida que tudo agora – matéria prima, instrumentos de trabalho, controle de tempo e sua própria força de trabalho – tudo passava a ser apropriado pela burguesia, em escala crescente, de modo a se transformarem, inclusive a força de trabalho, em mera mercadoria.


Eis por que afirma Engels, no capítulo I: “Os primeiros proletários surgiram com a indústria, foram seu produto imediato – assim, pois, os operários industriais, que se ocupam do trabalho com as matérias-primas, serão aqueles a quem inicialmente dirigiremos nossa atenção. A produção ou extração de materiais para a indústria – matérias-primas e combustíveis – só se tornou de fato importante na sequência da revolução industrial, originando, assim, um novo proletariado”


Dando sequência à sua percuciente análise, Engels envereda agora pelos principais ramos industriais, em curso na Inglaterra, começando pelo ramo fabril, depois situando outros ramos da produção tais como a mineração e a agricultura, analisando, em cada um deles e em outros, as penosas condições de vida e de trabalho mantidas pela burguesia. Análise que impacta pela acuidade e pela sensibilidade refinada do autor, sempre pronto a mostrar as estratégias de dominação e de exploração, empregadas pela burguesia, em detrimento do proletariado. A certa altura do livro, lemos:”– só então começamos a notar que esses londrinos tiveram de sacrificar a melhor parte de sua condição de homens para realizar todos esses milagres da civilização”, logo adiante, Engels, indignado, se pergunta: ”Até mesmo a multidão que se movimenta pelas ruas tem qualquer coisa de repugnante, que revolta a natureza humana. Esses milhares de indivíduos, de todos os lugares e de todas as classes, que se apressam e se empurram, não serão todos eles seres humanos com as mesmas qualidades e capacidades e com o mesmo desejo de serem felizes? E não deverão todos eles, enfim, procurar a felicidade pelos mesmos caminhos e com os mesmos meios? Entretanto, essas pessoas se cruzam como se nada tivessem em comum”


No último capítulo do livro, Engels se dedica a ressaltar a postura da burguesia, no trato das relações com o proletariado. Ao descrever situações e episódios pungentes, Engels escancara a hipocrisia da classe burguesa, com profunda iracundia: ”Desconheço uma classe tão profundamente imoral, tão incuravelmente corrupta, tão incapaz de avançar para além do seu medular egoísmo como a burguesia inglesa – e penso aqui na burguesia propriamente dita, em particular a liberal, empenhada na revogação das leis sobre os cereais. Para ela, o mundo (inclusive ela mesma) só existe em função do dinheiro; ”sua insensibilidade radical ante o sofrimento cruel imposto aos trabalhadores e trabalhadoras. Ao mesmo tempo, em cada capítulo, Engels se mostra atento, não apenas às estratégias de dominação e de exploração praticadas pela burguesia, mas também às múltiplas formas de resistência e de enfrentamento testemunhadas pelos trabalhadores, graças às suas múltiplas organizações 

de base.





3 – Construção Teórico-Metodológica utilizada pelo Jovem Engels


Uma das curiosidades manifestadas pelo estilo de Engels tem a ver com a aplicação sistemática do método histórico-dialético, ainda que, ao longo do livro, o autor não o menciona explicitamente. Chama a atenção, das leitoras e leitores, o fato de um jovem de 24/25 anos demonstrar um domínio exemplar na aplicação do materialismo histórico-dialético. Eis por que cuidamos de explicitar, por meio de exemplos extraídos do próprio livro, diversos princípios do método histórico-dialético a que Engels recorre, sem mencioná-lo. 

Um primeiro aspecto a sublinhar, nos remete ao princípio do Movimento, graças ao qual a realidade social se acha permeada de mutações históricas, constituindo uma realidade em contínuo movimento. Daí uma análise dialética necessita uma dinâmica especial: A de observar a realidade social em constante mutação, razão pela qual, quem pretenda dela se aproximar, com o objetivo de conhecê-la, precisa também de colocar-se em movimento. Embora tal seja a complexidade da realidade social, que o sujeito cognoscente, dela logra apenas aproximar-se, sem jamais detê-la, por outro lado, é este movimento que permite uma observação mais próxima do que se entende por realidade, para o que seus observadores se põem e se dispõem a colocar-se em movimento contínuo, enquanto observadores, nunca se contentando com uma simples tomada de foto da realidade, mas empenhando-se em compreendê la antes como um filme, do que como uma fotografia. 

Outro princípio do materialismo histórico-dialético, presente ao longo das páginas do mesmo livro, prende-se ao princípio da Totalidade, segundo o qual, uma apreensão objetiva da realidade objetiva requer, da parte dos sujeitos cognoscentes, uma disposição de decompor esta realidade em suas mais complexas e múltiplas interfaces, indo além de limitar-se a constatar fatos aparentes desta realidade. Tal procedimento, requer dos observadores cuidados especiais, a incursionar pelas veredas desta realidade. No caso de Engels, isso se faz presente, sob vários aspectos. Mesmo quando se atém a uma determinada dimensão da realidade social – por exemplo, a dimensão produtiva - , ele faz sempre de modo a demonstrar suas relações com outras esferas da realidade (a história, a geografia, a política, a cultural, a religiosa), de modo que objetivamente o autor, ao descrever cenas específicas de cada uma dessas esferas da realidade social, se apresenta como alguém que se reveste de “especialista”, de cada uma dessas esferas, mostrando-se assim, ao mesmo tempo, como historiador, geógrafo, urbanista, antropólogo, economista, educador, teólogo, psicólogo, químico, médico, entre outras “disciplinas”, revelando-se por excelência, alguém capaz de exercitar a costura dos mais diversos fios da realidade analisada, alguém dotado da capacidade interdisciplinar, mais do que multidisciplinar.


Tal como sucede aos demais princípios da Dialética marxista, o princípio da Totalidade se conecta organicamente ao princípio da interação universal (tudo está interligado), bem como ao princípio da unidade dos contraditórios (os fatos que aparecem como contrários, se explicam pela sua relação: a exemplo da afirmação de que “Há ricos cada vez mais ricos à custa de pobres cada vez mais pobres.”). 


Eis, portanto, os principais traços  teóricos-metodológicos efetivamente aplicados por Engels, em seu livro, sem que houvesse a necessidade de mencioná-los. 


4  - Considerações sinóticas: Nosso aprendizado


Os participantes _ mulheres e homens, militantes de diversos Estados do Brasil _ desta experiência de leituras comum do livro de Engels sentiam-nos impactados por múltiplos pontos desenvolvidos pelo autor, oque constituiu renovado aprendizado. Um primeiro aspecto que nos impressionou, durante a leitura, vem do próprio itinerário existencial  do autor. Engels nasce no seio de uma família burguesa, de ricos industriais Alemães, com próspero negócio na Inglaterra, para onde envia o jovem Engels, aos 22 anos, com a missão de acompanhar “in loco” os negócios da família. Sem deixar de cumprir esta tarefa, salta aos olhos dos leitores e leitoras a enorme dedicação do jovem Engels, impactado pelas condições desumanas de vida e de trabalho dos operários ingleses, de buscar entender as raízes mais fundas daquele estado de coisas, de modo a empreender um penoso labor investigativo de grande complexidade, ao mesmo tempo em que busca e encontra tempo para dar conta deste desafio.


Outro aspecto que chama nossa atenção, tem a ver com a precocidade daquele jovem, primeiro, pelo fato de ser um. Jovem economicamente privilegiado envereda por esse caminho, quando tudo fazia crer devesse está empenhado em fruir sua condição privilegiada; segundo, pela sua extraordinária capacidade investigativa, tendo que mergulhar em longos e profundos estudos, sem deixar de atender as expectativas de sua família. Nesta toada, convém ressaltar o relevante papel desempenhado por sua companheira Mary Burns, por meio de quem Engels teve acesso aos lugares e habitações extremamente precários, onde viviam as famílias dos trabalhadores ingleses e dos imigrantes.


Rememorar tais aspectos também implica um aprendizado: não é a origem de classe que garante, por se, a defesa e o compromisso de classe, mas é, antes, a real posição assumida de compromisso com determinada classe social. A exemplo de Engels, são diversos os casos de revolucionários e de revolucionárias da Classe Trabalhadora, que vinham do andar de cima, rompendo com sua classe de origem e comprometendo-se com os interesses dos oprimidos.


Da leitura do mesmo livro aprendemos, por meio da categoria “Economia Política”, a desmontar as bases ideológicas em que se assenta o modo de produção capitalista, sempre muito esperto em multiplicar e propagar seus mil artifícios e truques para ludibriar os trabalhadores e trabalhadoras, quanto aos danosos mecanismos de dominação e de exploração aos quais a burguesia submete os trabalhadores. Ao mesmo tempo, também aprendemos a reconhecer que, por mais sofisticados e eficazes que sejam os mecanismos utilizados pelo Capitalismo, eles trazem consigo seu próprio antídoto, à medida que os trabalhadores explorados acabam descobrindo as raízes de sua exploração, e contra elas investindo, na perspectiva de sua superação e na construção processual de uma nova sociedade, alternativa à barbárie capitalista.


João Pessoa, 04 de setembro de 2024. 

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