quinta-feira, 30 de janeiro de 2025

O Caráter processual da Educação Popular e outros requerimentos do processo de humanização

O Caráter processual da Educação Popular e outros requerimentos do processo de humanização

Alder Júlio Ferreira Calado


À semelhança de tantos e tantas, vimo-nos ocupando da Educação Popular, seja como aprendiz, seja como militante, seja como pesquisador. Mas, de que Educação Popular se trata? Não é segredo que há entendimento de Educação Popular para todos os gostos: Educação Popular pelo Povo, com, para, sem e até contra o Povo. Neste último caso, basta constatamos no dia-a-dia, o que se passa na mídia hegemônica. Percebemos, de saída, seu amplo espectro polissêmico e compósito. De nossa parte, como em diversas outras oportunidades, temos trabalhado Educação Popular como expressão do próprio processo de humanização e de anti-desumanização, a requerer a incidência de diversos componentes ou condicionamentos, dos quais aqui nos permitimos destacar os que consideramos de maior relevância, em especial sua intencionalidade, o exercício da memória histórica, seu caráter processual e o protagonismos de seus participantes.

 

Impacta-nos profundamente o cenário distópico de que vimos sendo vítimas - o Planeta Terra, os humanos e os demais seres -, sobretudo em âmbito internacional, graças às crescentes manifestações de barbárie protagonizadas pelo modo de produção, de circulação, de consumo e de gestão planetária e societal que o Trumpismo tem elevado a uma escala exponencial. Já no discurso inaugural do seu segundo mandato, ele explicita, com todos os rompantes de “homo demens”, seu programa necrófilo, que a Bispa Mariann Edgar Budde, da Igreja Episcopal de Washington teve a coragem profética de criticar, em sua homilia, que Trump teve que escutar e repelir. A propósito deste episódio, recomendo a leitura da análise feita por Eduardo Hoornaert (vide Textos de Eduardo Hoornaert - https://eduardohoornaert.blogspot.com/).

 

Ao mesmo tempo, sempre buscando analisar esta realidade, em perspectiva histórica, não nos cansamos de navegar nas correntezas subterrâneas, onde temos encontrado boas razões para seguir resistindo e enfrentando, seja do ponto de vista coletivo, seja do ponto de vista pessoal, antigos e novos desafios. Neste sentido a Educação Popular tem sido uma fonte de inspiração preciosa a medida que

- nos rememora que situações semelhantes a humanidade já atravessou e, pelo menos em parte, conseguiu superar, ao seu modo;

- ao nos ajudar a analisar a realidade social, em perspectiva histórica, nos fornece elementos teórico-metodológicos como uma relevante alavanca transformadora de nossas relações;

- nos anima a manter sempre vivo o nosso esperançar, a partir do reavivamento do nosso horizonte, do nosso rumo;

- nos evidencia valores e práticas de compromisso transformador, na perspectiva da “práxis” revolucionária;

- nos vai ensinando a sermos, no presente, construtores e construtoras de pontes que nos permitam ir transformando sábios ensinamentos e lições do passado em matéria-prima do futuro que desejamos ir alcançando.

 

Nas linhas que seguem, cuidamos de rememorar traços da Educação Popular que consideramos mais fortes e mais urgentes, diante dos desafios - velhos e novos - que se colocam diante de nós, enquanto organizações e coletivos de base de nossas sociedades. Começamos pela urgência cotidiana de manter-nos bem vivo o horizonte de sociedade que buscamos ir construindo. Por meio da História, aprendemos que, quando não mantemos claro o horizonte para onde desejamos seguir - a construção ininterrupta de relações sociais, econômicas, políticas, culturais que assegurem as condições materiais e imateriais do processo de humanização em harmonia com a dignidade da Mãe-Terra -, sucumbimos a tentação de fazermos coisas mil, que acabam conduzindo-nos a lugar nenhum. Neste sentido seguimos entendendo como útil a afirmação da personagem José Dolores, do celebrado filme Queimadas: “É melhor saber para onde ir, sem saber como, do que saber como, e não saber para onde ir.”

 

A Educação Popular que buscamos seguir, também nos ensina, pela força da mística revolucionária, a necessidade de revisitarmos nosso passado com o objetivo de extrair lições dos Movimentos Populares e revolucionários (a exemplo da Comuna de Paris, de 1871 - para citar apenas um exemplo), bem como dos ensinamentos que podemos recolher da biografia de tantos homens e mulheres, que se entregaram a defesa e a promoção das causas libertárias de ontem e de hoje.

 

Neste sentido, no plano coletivo, vale a pena revisitarmos passagens eloquentes de nossa história internacional, nacional e local. Muito temos a aprender, por exemplo, com os movimentos pauperísticos da Idade Média, com o protagonismo de figuras como Jan Hus, Thomas Müntzer, com a Comuna de Paris, com os inícios da Revolução Russa, com a Revolução Chinesa, com a Revolução Cubana, as lutas sociais de tantos movimentos populares na América Latina, no Brasil, no Nordeste (as lutas indígenas, o Quilombo dos Palmares, a Cabanágem, a Balaida, Canudos, Ligas Camponesas, entre outros). No âmbito biográfico, vale a pena igualmente aprendermos com tantas figuras luminosas – homens e mulheres – de nossa história, tais como: Karl Marx, Rosa Luxemburgo, Antonio Gramsci, José Carlos Mariátegui, Martin Luther King, Zumbi dos Palmares, Antônio Conselheiro, Gregório Bezerra, Helder Câmara, Paulo Evaristo Arns, Antônio Batista Fragoso, Paulo Freire, Pedro Casaldáliga, João Pedro Teixeira, Elizabeth Teixeira, Margarida Maria Alves, para citar apenas algumas dessas figuras que nos vêm espontaneamente ao espírito.

 

Ao fazermos tal revisitação de tantos ensinamentos coletivos e pessoais do passado, não pretendemos reeditar ou replicar mimeticamente seus feitos - vivemos outros tempos, que acumulam velhos e novos desafios -, mas recolher lições de sabedoria e de coragem que nos ajudem a compreender e enfrentar os desafios presentes. Isto, por sua vez, implica assumir relevantes tarefas, dentre as quais destacamos apenas algumas. Iniciamos por uma adequada leitura de mundo, olhos fitos na realidade concreta, do que decorre a necessidade, não apenas de uma objetiva análise de conjuntura (local, nacional, regional, internacional), mas também de uma análise das raízes estruturais (por tanto, seculares) da atual conjuntura.

 

Para tanto, urge nossa disposição efetiva de nos dedicar a um incessante processo de formação junto às nossas organizações de base. Aqui nos permitimos, mais uma vez, enfatizar a relevância da continuidade de tal processo formativo, devidamente articulado ao nosso inarredável compromisso de lutas. Com efeito, constatamos com pesar a presença profundamente nociva da descontinuidade do nosso processo formativo, seja no âmbito coletivo, seja na dimensão pessoal. Acerca dessa descontinuidade tão nociva ao processo de formação, o teólogo José Comblin costumava lamentar certa preguiça intelectual de nossos militantes, que interrompem, com frequência, as atividades formativas, mesmo aquelas que avaliam como muito relevantes.


Um rápido exame de nossa realidade, nas últimas décadas, é suficiente para constatarmos o quanto deixamos de agir, enquanto militantes, contra a produção e os avanços desta ordem tenebrosa, seja por conta de haverem cruzado os braços diante das lutas históricas, ingenuamente confiantes em que apenas o processo eleitoral ou os espaços estatais seriam bastantes para responder aos desafios presentes, seja também por conta de nossas frequentes interrupções do nosso processo formativo, organizativo e de lutas.


Na esteira dos argumentos precedentes e a título de uma ilustração didática, vale perguntarmos se vamos continuar subestimando a continuidade do processo formativo, limitando-nos a um ritmo lento e descontínuo de aprendizado pessoal e coletivo, não raramente contentando-nos apenas com trechos de artigos ou de livros lidos às pressas e de modo fragmentado, sob o pretexto de que “aprendemos com a prática”, enquanto fazemos vistas grossas ao alerta de que “Sem teoria revolucionária não pode haver movimento revolucionário”. 

 

João Pessoa, 30 de Janeiro de 2025.


terça-feira, 21 de janeiro de 2025

A MEMÓRIA HISTÓRICA COMO UMA FONTE DE INSPIRAÇÃO PARA AS COMUNIDADES CRISTÃS DE BASE (CEBS) ANTE OS NOVOS MOVIMENTOS RELIGIOSOS*

A MEMÓRIA HISTÓRICA COMO UMA FONTE DE INSPIRAÇÃO PARA AS COMUNIDADES CRISTÃS DE BASE (CEBS) ANTE OS NOVOS MOVIMENTOS RELIGIOSOS*


Alder Júlio Ferreira Calado


Introdução


As últimas décadas desse milênio têm sido vistas como um estuário de um período histórico extremamente caracterizado por um processo de crise generalizada em escala internacional. Nós nos deparamos com uma crise profunda, de longa duração multifacetada, que alcançam diferentes (sociais, econômicas, políticas, culturais) esferas da realidade, dinamicamente inter relacionadas nas condições do quotidiano dos grupos e das pessoas.

No campo econômico, por exemplo, o período atual tem sido caracterizado cada vez mais por um processo de homogeneização no contexto do projeto neoliberal, tanto em escala macrosocial (com diversas implicações para o papel sócio-econômico dos estados nacionais, como entidades reguladoras das relações entre Capital e Trabalho) quanto em escala microssocial do processo econômico, com relação às quais lidamos com uma terceira revolução tecnológica, em que o processo de rearranjo produtivo neoliberal permanece bastante vigoroso, de modo a explorar as descobertas científicas e tecnológicas, especificamente no âmbito da computação, os robôs e no campo dos novos materiais, resultando, no entanto, em uma concentração paradoxal das riquezas do Planeta em algumas poucas mãos de grandes e poderosos conglomerados transnacionais, à custa da exclusão de centenas de bilhões de pessoas, mundo afora, destituídas das mínimas condições de sobrevivência enquanto seres humanos. Com relação a tal situação, o Informe do Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas (1992) apresenta dados convincentes : 20% das pessoas mais ricas do planeta concentram 80% da renda mundial, em que 20% dos mais pobres só tem 1,4% dessa renda. (Cf. Garaudy, 1995:11). Parece, por conseguinte, haver mais razões para que tomemos esses dados como demonstrativos do “colapso da modernização”. (Kurz, 1993 ; Sader, 1995).

Por outro lado, a decadência dos regimes da Europa Occidental e do socialismo nominal, assim como a queda do muro de Berlin e desmantelamento da União Soviética, que têm sido seguidos por uma onda fratricida de nacionalismo e por uma impetuosa ofensiva neoliberal ; a crescente deterioração da qualidade de vida da maioria da população, inclusive o considerável aumento da pobreza nos países centrais do capitalismo ; o crescente agravamento das condições ambientais ; o advento de um no ethos em face das relações de gênero e étnicas, bem como diante potencial extremamente mobilizador do Sagrado - talvez constituam a face mais visível desse processo, dos quais também a chamada crise de paradigmas (a começar pelo questionamento dos conceitos de “crise” e “paradigma”) podem ser vistas como uma expressão sintetizadora.

Ao mesmo tempo, um notável esforço de alguns grupos, movimentos e pessoas pode ser visto por toda parte, com objetivo de compreender o que acontece na busca de elementos de resposta a esses desafios multifacetados e complicados que postos diante deles. É nesse processo de busca que este artigo busca inserir-se, buscando entender, ainda que parcialmente, o papel do Sagrado neste complexo contexto, de modo a tomar em especial consideração, e como ponto de referência, as práticas das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) diante da irrupção dos Novos Movimentos Religiosos (NMR), bem como examinar a validez da categoria epistemológica da memória histórica como instrumento conceitual adequado para um melhor entendimento de tal fenómeno (Cf. Benjamin, 1994 ; Bloch [Sobre o Espírito da Utopia] ; Meslin, 1992).


O fenômeno religioso : ainda é o calcanhar de Aquiles ?

Primeiro vale recordar que o esforço exercido pelos grupos humanos e pelos indivíduos para aprender que as polisémicas manifestações do Sagrado tem uma longa história. No presente trabalho, aqui enfatizamos alguns traços da contribuição oferecida pelo legado iluminista, dentre os quais os principais teóricos da Sociologia são bastante representativos. Seu esforço por atribuir o nível teórico-metodológico daquela ciência social emergente, embora reconhecendo amplamente seu mérito, também - talvez principalmente - marcado pelo desafio de apreender/entender a base sociológica do fenômeno religioso,

De fato, sob diferentes perspectivas e linhas de interpretação, homens de seu tempo, Comte, Marx, Durkheim e mais notadamente Max Weber, entre outros exemplos significativos, sentiram-se historicamente questionados a tomarem partido, como cientistas sociais, em relação ao desafio levantado por esse fenômeno. No cenário da febre positivista Comteana, não se negava sequer a possibilidade de se estabelecer “uma nova religião, uma religião para a humanidade”, cujos sacerdotes seriam os sociólogos. (Cf. Gouldner, 1971).

Diante de uma nova interpretação dos fatos, segundo os quais a religião representaria um peso considerável de funcionalidade. Durkheim consagra à reflexão sociológica sobre o fenômeno religioso, um de seus últimos escritos : Les formes élémentaires de la vie religieuse (1912), o resultado dos seus estudos relações totêmicas observadas na Austrália. Refletindo do ponto de vista sociológico, sobre o enigma religioso, Durkheim se mostrou interessado em situar os assuntos religiosos, no âmbito da Sociologia do Conhecimento, em relação ao que, ele defendia, uma correspondência entre as estruturas sociais e as mentais, que se deva através da religião e outros sistemas simbólicos. (Cf. Bourdieu, 1992:33).

De tal modo crítico Marx se mostrou acerca dos valores dominantes do seu período histórico, que ele próprio não pôde escapar isento de algumas marcas do legado iluminista : a aposta sobre a imperiosa necessidade da superação da experiência religiosa pelo ser humano, percebida como uma alienação. No entanto, tal como ele apreende a experiência religiosa, não apenas como uma expressão, mas também como um protesto da criatura oprimida, ele teve que, até certo ponto, superar a linha dominante de interpretação sobre a interpretação apenas conservadora do caráter religioso. Eis porque, não surpreende que o próprio Marx, e Engels, também tenham sido interpretados como “sociólogos da religião”. (Löwy, 1995).

No entanto, foi Max Weber - que recuperou mais que todos, com seu perfil “caleidoscópico” (Lazarte, 1996) - que mais acuradamente examina o caráter polimórfico das manifestações religiosas, à medida que fertiliza a sua condição e performance como cientista social com a sua atitude “profundamente respeitosa em relação aos fenômenos sobrenaturais”. Este interesse impregnava, de algum modo, o conjunto dos seus escritos de caráter axiológico, ainda que a temática da religião apareça mais profundamente desenvolvida em seu livro Economia e Sociedade bem como no seu A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo.

De todos os modos, e embora havendo algumas exceções, uma avaliação do desempenho das ciências sociais, especificamente da Sociologia, sobre os desafios de uma leitura sociológica adequada das manifestações religiosas ainda parece estar longe de corresponder inclusive às suas previsões. Ontem como hoje, o fenômeno religioso continua sendo um desafio que provoca estranhamento aos padrões científicos de interpretação, especialmente em duas situações diferentes : a) as experiências do fenômeno religioso como um potencial de transformação social (por exemplo, no caso das CEBs, notadamente nos anos 70 e 80), b) a irrupção do sagrado, manifestado por meio da pluralidade dos NMR.

O potencial transformador das CEBs ante da estratégia das forças conservadoras

As CEBs constituem um exemplo relativamente recente de um movimento Cristão que inspira uma profunda renovação social e eclesial. Em um contexto que parece definitivamente consolidado, como no caso da sedimentação da Cristandade, em diversas partes do mundo, inclusive graças ao rápido processo de secularização, especialmente em algumas das sociedades industrializadas, tais como o Canadá, algo de novo tem sido visto, notadamente durante as últimas décadas, (Cf. Chaussé, 1996).

Ai tem predominado uma leitura/interpretação dos fenômenos religiosos como mantenedoras de uma função conservadora, emergem na América Latina, especialmente no Brasil, durante os anos 60 como a expressar uma busca de resposta aos desafios postos por tal contexto, um número considerável de grupos de pessoas situados tanto na base da sociedade quanto na base das comunidades Cristãs, movidas por sua fé religiosa, bem como por sua indignação ética, que as levam a se reunirem em pequenas comunidades, tanto para exercitar uma leitura orante da Bíblia, por inspiração são instadas a compartilharem as suas experiências, ou para realizarem sua militância eclesial, bem como para superarem sua condição de vítimas da opressão. Elas são chamadas, com frequência ora de Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), ora como Movimentos Cristãs de Base ; por vezes apenas como “as comunidades”.

Pouco importa como elas sejam chamadas, o que é certo é que a categoria “comunidade” traduz adequadamente o que realizam seus membros. De fato, suas práticas correspondem, em larga medida, aos aspectos fundamentais associados aos conceitos por alguns clássicos da sociologia em relação a qualquer comunidade, como no caso de F. Tönnies’ Gemeinschaft, uma categoria que também NIsbet (1966:47) entende como relativa às formas de relações marcadas por “um grau elevado de intimidade pessoal, profundidade emocional, compromissos morais, coesão social, e continuidade no tempo.”

Formadas por pequenos grupos de entre 30 a 100 pessoas - em sua grande maioria mulheres (80%) - as CEBs tiveram um rápido período de crescimento e expansão, especialmente durante os anos 70, na América Latina e principalmente no Brasil, onde alcançaram, de acordo com alguns autores em torno de 100 mil pessoas, espalhando-se principalmente nas zonas rurais, mais também nas periferias dos centros urbanos. Não obstante a diversidade de suas origens sociais, seus membros procedem normalmente das camadas pobres da população, ao mesmo tempo pertencentes, à base de algumas das igrejas cristãs (tanto leigos, Religiosas, Religiosos, Padres, alguns Bispos, Pastores), bem como à base da sociedade (eles pequenos agricultores, professores do ensino primário, sindicalistas, pedreiros, estudantes, donas de casa, trabalhadores biscateiros, trabalhadores desempregados…).

Os membros das CEBs (Comunidades Eclesiais de Base) apresentam, entre outras, as seguintes características fundamentais:

Eles compõem as CEBs e participam de suas atividades, fundamentalmente movidos por sua fé cristã, a fim de assumir posições diante de problemas rotineiros, inspirados por uma leitura orante e contextualizada da Bíblia;

Eles se juntam às CEBs como resultado de uma decisão consciente de participar de um processo voluntário de associação. Seus membros comprometem-se a conhecer, encorajar e ajudar uns aos outros. No entanto, essa atitude não implica uma concessão a uma "ideologia de auto anulação" (Drewermann, ap. Remele, 1994:4);

Eles apresentam um considerável sentimento de pertencimento à Igreja Católica (ou outra igreja cristã), sem prejudicar sua inserção nos movimentos sociais populares;

Uma notável participação das mulheres, dos afrodescendentes, bem como dos pequenos agricultores;

Eles demonstram afinidade com valores e atitudes como solidariedade, partilha, justiça social, tomada coletiva de decisões e participação de base. Ao mesmo tempo, mostram desconfiança em relação a valores como a prevalência da propriedade privada, competição, individualismo e vanguardismo;

Consequentemente, no nível macrossocial, muitos deles praticam a oposição ao modelo de organização capitalista, enquanto parecem mais inclinados, embora de forma indefinida, a uma proposta socialista de organização social;

No nível intraeclesial, seu esforço está predominantemente voltado para o estabelecimento de relações similares aos valores e processos correspondentes ao nível macrossocial (Cf., por exemplo, Lesbaupin, 1986; Calado, 1991).

Como referências próximas à proposta das CEBs, temos, entre outras: a Teologia da Libertação (TL), o chamado Movimento de Ação Católica Operária (CAM), principalmente a Ação Católica dos Trabalhadores (WCA), e o Movimento Cristão no Meio Rural; alguns setores pastorais (o Conselho Indígena - PCI, a Pastoral Operária - WPC, a Pastoral da Juventude do Meio Popular - PMYP, a Pastoral Negra - NP, a Pastoral da Mulher Marginalizada - PMW, a Pastoral Universitária - PUS, entre outros), todos constituindo, em certa medida, uma rede de grupos empáticos e movimentos, às vezes conhecidos como a Igreja dos Pobres, a Igreja Popular ou a Igreja de Base, para a qual a TL aparece como a melhor expressão teórica.

Esse foi, efetivamente, o potencial transformador das CEBs, que não é surpreendente o fato de que, no final dos anos 70 e início dos 80, surgiram experiências revolucionárias na América Latina, inspiradas por valores religiosos notáveis, especialmente pela linha interpretativa da TL. Em relação a esse potencial transformador, cuja principal fonte reside na força da utopia cristã, tornou-se bastante notável o lema dos chefes revolucionários cristãos nicaraguenses: "Entre Fé e Revolução, não há contradição insolúvel." Isso pode remeter à tese weberiana sobre a ética religiosa, na proporção em que "ela toma seu caráter de fontes religiosas, e, acima de tudo, do conteúdo de seu anúncio e de sua promessa" (Ap. Lazarte, 1996:63-64).

Apesar da baixa porcentagem de membros das CEBs e de outros setores pastorais pertencentes à Igreja de Base em relação ao número de outros membros católicos e cristãos, sua proposta e práticas tornaram-se, desde cedo, motivo de

Uma preocupação progressiva para as forças conservadoras, aliadas em escala nacional e internacional, se concentrou no espaço eclesiástico. Isso pode ser visto, por exemplo, nos termos do conhecido Relatório Rockefeller, publicado em 1969, logo após a Segunda Conferência dos Bispos Latino-Americanos, realizada em Medellín (Colômbia, 1968), quando foi proclamada a "opção pelos pobres". Foi amplamente observado como um sinal inesperado apresentado pela Igreja Católica, ao mudar sua condição tradicional de aliada histórica, para que ela se tornasse "revolucionária, se necessário". (cf. Bruneau, 1974; Ugalde, apud Maduro, 1981).

Diversas organizações internacionais, incluindo o Departamento de Estado dos EUA, tomaram medidas reativas desde então. Não bastava para as forças reacionárias apenas denunciar, como haviam feito anteriormente – "post factum" – as ideias inspiradas pela Teologia da Libertação. Era urgente para eles combater abertamente suas concepções e práticas subversivas. Isso foi observado, por exemplo, por meio do amplamente conhecido Documento Militar Secreto de Santa Fé I e II (1982 e 1988), elaborado durante a Conferência Secreta dos Exércitos Americanos, realizada em Buenos Aires, em 1987. Todos os temas surgiram juntos contra o que chamaram de "desvios ideológicos", uma "manipulação", um "estabelecimento de um magistério paralelo" ou uma "subversão interna". (cf. Dial, 1982; Dial, 1988).

É apropriado, portanto, assinalar que tais medidas punitivas e desmanteladoras não se restringiram ao campo eclesiástico. De fato, personalidades representativas e grupos pertencentes à direita eclesiástica se juntaram a essas forças conservadoras atuando em diferentes organizações internacionais, especialmente desde o início do pontificado de João Paulo II, durante o qual muitas medidas punitivas foram tomadas. (cf. Calado, 1993:21-42).


b) A irrupção dos novos movimentos religiosos: uma tentativa de resposta ao mundo do desencantamento

Quando se alcança uma generalizada satisfação das necessidades básicas, as manifestações religiosas frequentes têm ocorrido, mesmo nos países mais ricos, tendo como protagonistas uma elite (recentes manifestações fundamentalistas na Europa) ou uma variedade de novos movimentos religiosos ou expressões. No Brasil, como em todo lugar, muitas experiências semelhantes têm sido observadas. Por exemplo, no caso de Campina Grande, uma cidade no estado da Paraíba, onde têm ocorrido, desde 1992, reuniões sucessivas para a "nova consciência", caracterizadas por uma experiência macroecumênica e um ambiente de comunhão entre seus participantes. (cf. Silva, 1995).

Alguns dos eventos sócio-históricos ocorridos nas últimas duas décadas confirmaram uma certa atmosfera de efervescência, especialmente no nível religioso, assim como com a efusiva (re)emergência de (novas) expressões religiosas em todo o mundo, algumas amplamente difundidas, como a experiência da "Sahaja Yoga", "espalhada por 65 países no mundo". Segundo seus seguidores, “Para alcançar esses objetivos elevados da humanidade [de reunir as pessoas e integrá-las em uma sociedade organizada], a ‘Sahaja Yoga’ é o único meio disponível para o homem moderno.” (Reddy, 1996).

Um conjunto de experiências místicas alternativas foi consideravelmente ampliado para além das fronteiras das religiões tradicionais. Tal multiplicidade irruptiva de hierofanias (Eliade) inclui uma longa lista de grupos religiosos, como o Seicho-no-ie, Fé Bahá’í, Hare Krishna, diferentes expressões teosóficas, teológicas e filosóficas, passando por um certo número de denominações mágico-esotéricas, experiências orientais, além de uma ampla variedade de novas igrejas pentecostais (cf. Maluf, 1996) e outras expressões religiosas dificilmente classificáveis tal como "os aspectos transculturais existentes nas representações dos movimentos da ayahuasca", estudados por Groisman (1996), bem como a dimensão mágica do carnaval brasileiro que Luz (1996) relaciona a uma "nova cosmologia da nova era". Todos esses elementos incluídos, de qualquer maneira, ou relacionados ao que é conhecido como "Nova Era", "Nova Consciência", "Novos Movimentos Religiosos"...

Levando em consideração que, embora as experiências tenham sobrevivido, parecem estar submersas em um oceano de desencantamento (Weber). Isso explica por que entender tal fenômeno implica enfrentar um desafio extremamente complicado, fundamentalmente devido a algumas razões, a começar pela complexidade reconhecida da experiência humana, na qual qualquer experiência em refletir o sagrado nos envia para algo como: "Estou mais e mais convencido" — afirma um conhecido antropólogo, após muitos anos trocando experiências com outros antropólogos que investigam no mesmo âmbito — "que não podemos captar o sagrado, exceto como ele nos encontra, isto é, nunca em seu estado puro, mas na existência humana que o molda em proporção a como o recebemos" (Meslin, 1992:7).

Consequentemente, o que dizer sobre o contexto atual, no final de um século, no final de um milênio? Os debates teóricos contemporâneos, incluindo aqueles na esfera dos paradigmas, constituem uma expressão das contradições sócio-históricas ainda longe de uma resposta satisfatória. Os dilemas específicos sobre o sagrado refletem, em certa medida, a complexidade e a extensão dos desafios, no contexto social atual. Mas, apenas até certo ponto, devido ao fato de ser uma esfera relativamente autônoma. Isso significa que o fenômeno religioso interage com outros campos da realidade humana, sem perder suas próprias características, em função das quais seus desafios demandam muitas formas de enfrentá-los. A pluralidade de formas, consequentemente, resulta na principal estratégia a ser usada, nesta busca tão complicada de reencontro com o encantamento do mundo.

II. Como as CEBs se posicionam em relação aos NRM?

Um primeiro ponto a ser destacado vem da necessidade de relativizar a importância do contexto histórico na periodização. Quando adequadamente usado, tal procedimento metodológico constitui um instrumento didático disponível, na proporção em que nos ajuda a entender que, sem prejudicar suas características específicas, muitos elementos apresentados por um período histórico também podem ser observados em outro, seja relacionado ao passado ou ao futuro. Isso implica, entre outras consequências, a necessidade de analisar o contexto conjuntural sem negligenciar as raízes estruturais; implica a leitura do momento histórico presente, levando em consideração, ao mesmo tempo, o significado da "longa duração" (F. Braudel). Portanto, voltando ao tópico específico da atualidade — a análise das questões levantadas pelos NRM nos leva a investigar a atitude dos membros das CEBs diante da recente irrupção dos NRM.

A questão agora consiste em entender como as CEBs se comportam diante do aumento dos NRM. Como são vistas por essas comunidades: como um mero produto da estratégia conservadora de desmantelamento das organizações populares? Como partes de um processo competitivo, que visa minar o esforço transformador e coletivo, seja dentro ou fora do espaço eclesial? Ou como um fenômeno novo, complicado e multifacetado, cuja compreensão requer uma leitura alternativa que supere as linhas convencionais de interpretação, bem como os marcos das controvérsias conjunturais?

Os contatos dos membros das CEBs com os NRM muitas vezes ocorreram de forma indireta, por meio da mídia de massa. No entanto, algumas vezes, eles interagem com algumas de suas expressões, como no caso do Movimento Católico de Renovação Carismática, um ramo católico do pentecostalismo, que tem organização internacional, assim como alguns movimentos eclesiais conservadores, como Opus Dei, Comunhão e Liberação, entre outros.

Uma primeira reação apresentada pelos membros das CEBs diante da irrupção dos NRM foi marcada por um sentimento de perplexidade, principalmente relacionado a um impacto duplo: o desmantelamento da Igreja de Base, realizado pelo Vaticano e suas forças aliadas; e pelas recentes, profundas e rápidas mudanças na esfera sócio-histórica, em escala mundial, que os NRM têm sido vistos, por diferentes membros das CEBs, com um sentimento de decepção e desaprovação.

Por outro lado, na proporção em que, por meio de seminários regulares, reuniões e alguns cursos (in)formativos, eles começaram a perceber tal fenômeno como algo mais profundo, também começaram a exercer uma leitura "desarmada" desse processo. Em certos casos, tal foi o interesse manifestado por alguns deles, em conhecer as principais características dos NRM, que se manteve também algo como um ecletismo espiritual: "Levando em consideração que todas as religiões são uma expressão da Verdade, então cabe a nós elaborar e experimentar uma síntese de todas elas".

Devido à necessidade de organizar um bestiário social e teológico (in)formativo, como um instrumento para enfrentar os desafios apresentados pelo novo cenário sócio-histórico, bem como levar em consideração um acompanhamento sistemático das expressões do sagrado, um número crescente de membros das CEBs têm mostrado uma atitude de discernimento e uma postura propositiva em seu esforço de construir a identidade das CEBs, como ponto de partida em empreender um diálogo de experiências religiosas e conhecimentos com outros grupos religiosos. Como sinais desse novo atributo, vale destacar dois exemplos: a participação de um determinado número de membros das CEBs em eventos organizados por diferentes grupos religiosos (Cf. Silva, 1995); e a inclusão na agenda de muitas CEBs de reuniões e cursos que abordam diferentes aspectos dos NRM, a partir de algumas experiências pentecostais.

III. A "memória histórica" como fonte de inspiração para as CEBs em relação aos NRM

Ontem, assim como nos dias atuais, o imaginário tem sido — seja em uma direção ou em outra — um fator extremamente impulsivo e eficaz atuando na esfera das relações humanas e sociais. Isso também acontece nesse âmbito, em que as classes dominantes acumularam uma longa e bem-sucedida experiência, de acordo — claro — com seus interesses. Atualmente, empreenderam um grande esforço para convencer as pessoas sobre o suposto "fim da História" (Fukuyama), pretendendo legitimar sua tese como a única maneira de uma organização social: o projeto neoliberal.

Apesar de tal desafio, vale a pena mencionar a ação revolucionária de mulheres, homens e jovens, um grande número de movimentos e grupos sociais, em todo o mundo, que continuam sonhando com uma alternativa, justa, solidária e humana... Para esses, a utopia tem sido uma fonte inesgotável de inspiração transformadora, na proposição de novas relações sociais e humanas, que são, ao mesmo tempo, subversivas e inovadoras, ou seja: contestadoras do estabelecido, bem como portadoras de um potencial transformador.

Isso não significa que, em outros períodos históricos, membros e setores das classes populares, em sua vigorosa luta contra diferentes desafios, não tenham recorrido à força de seu imaginário coletivo. Significa antes que apenas recentemente, podemos observar uma consideração maior por parte de um certo número de organizações populares em reconhecer e exercer o potencial transformador resultante de categorias como: sonho, utopia, desejo, imaginário, subjetividade, relações de gênero/étnicas...

Em relação a tal despertar, é importante recuperar alguns aspectos do longo legado de resistência oriundos das classes populares. Não é surpreendente que as classes dominantes tenham sempre insistido em omitir ou deturpar isso da historiografia oficial, de acordo com sua Weltanschauung. Muitas vezes acontece que o que é celebrado pelas classes populares é tomado pelas classes dominantes como exemplos a serem evitados, a fim de que não possam inspirar o potencial transformador das novas gerações.

Por outro lado, se um conjunto de símbolos tem sido extremamente útil para as classes dominantes, por que as classes populares não podem recorrer a um conjunto de mitos, fábulas, canções, histórias sobre seus ancestrais, sob uma perspectiva transformadora?

Contra uma multiplicidade de formas de exclusão social, exploração econômica, dominação política, discriminação cultural largamente exercida pelas classes dominantes, vale a pena lembrar alguns eventos históricos, como a longa opressão vivida pelos hebreus no Egito; a revolta dos escravos romanos liderada por Spartacus, em 71 d.C.; a resistência heróica na fortaleza de Massada, contra a dominação romana, mostrada pelos zelotes e essênios, em cerca de 70 d.C.; milhares de revoltas camponesas, durante a Idade Média, contra o Feudalismo e a Inquisição eclesiástica; a multiplicidade de formas contemporâneas de resistência, em todo o mundo...

Por outro lado, sem qualquer dano a um potencial considerável de resistência inspirado pelo uso da categoria "memória histórica", as CEBs têm sentido, ao mesmo tempo, provocadas pelas novas expressões religiosas a exercer uma vigilância crítica diante dos riscos de cair novamente em um erro racionalista: de negligenciar ou subestimar a parcela imponderável presente na rotina dos seres humanos. Haveria um elemento agravante: o fato de que as CEBs têm no sagrado, seja no ponto de origem ou em seu horizonte decisivo, um campo de relevância. É, acima de tudo, uma dimensão que as CEBs devem aprender com o diálogo com os NRM.

João Pessoa, 31/05/1996

Alder Júlio Ferreira Calado Universidade Federal da Paraíba - Centro de Educação



Referências:


BENJAMIN,Walter. “Sobre o Conceito da História”. In: Magia e Técnica, Arte e Política. Ensaios sobre Literatura e História da Cultura. Obras Escolhidas, Vol I, 7a. ed; São Paulo: Brasiliense, 1994.

BOURDIEU, Pierre. “Gênese e estrutura do campo religioso”. In: BOURDIEU, P. A Economia das Trocas Simbólicas, 3a. ed., São Paulo: Perspectiva, 1992.

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Traduzido do Inglês, este texto corresponde ao trabalho aprovado pela comissão científica do evento e apresentado pelo autor em UTRECHT The Netherlands - Fifth conference of the International Society of European Ideas (ISSEI): Memory, History and Critique - European Identity at the Millenium, em agosto 19-24, 1996. Segue abaixo o texto em Inglês:





sexta-feira, 17 de janeiro de 2025

Intérpretes do Brasil (XII): Maria Beatriz do Nascimento e a memória crítica da Negritude

 Intérpretes do Brasil (XII): Maria Beatriz do Nascimento e a memória crítica da Negritude


Alder Júlio Ferreira Calado 


A poucos dias do início do Governo Trump-2 - tenebroso pesadelo para o Planeta e para a humanidade -, seguimos exercitando a memória histórica dos oprimidos, como instrumento de resistência e de enfrentamento aos graves desafios (velhos e novos) dos nossos dias. A figura “Trump” encarna, em sua trajetória, um amálgama da situação distópica do atual panorama internacional, latino-americano e brasileiro. Para tanto, buscamos inspiração no legado coletivo e individual de movimentos de resistência e de lutas, bem como em figuras especiais de intérpretes de nossas história, desta vez, recorrendo a figura de Maria Beatriz do Nascimento, de quem recolhemos preciosas pistas para uma compreensão mais objetiva de nossa realidade que nos permita avançar no enfrentamento exitoso dos desafios atuais.


Tendo consciência da excepcional gravidade que acomete os nossos tempos - crescentes eventos climáticos extremos, ascensão dos valores nazifascista, em escala mundial, agravamento das desigualdades sociais e econômicas extrema concentração de  terras,  de rendas e de poder em mãos de um número cada vez mais reduzido de privilegiados crescente domínio das grandes corporações transnacionais usurpação cada vez maior dos espaços estatais pelo grande Capital (principalmente o financeiro), entre outras calamidades -, importa que tenhamos igualmente e sobretudo compromisso com nossas tarefas históricas libertárias, tanto do ponto de vista de nossas organizações de base, quanto também no âmbito pessoal. Eis por que seguimos insistindo na necessidade e urgência do exercício contínuo da memória histórica dos oprimidos.       


Maria Beatriz do Nascimento nasceu em Aracaju-SE, em 1942, filha de Rubina Pereira Nascimento e de Francisco Xavier do Nascimento que tiveram 10 filhos e filhas. Aos 7 anos, Beatriz Nascimento muda-se, com a família, para o Rio de Janeiro, onde, após concluir o Ensino Médio, prestou Vestibular para o Curso de História na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), entre 1968 e 1971. Durante este Curso, que Beatriz Nascimento segue com muito empenho e entusiasmo, também começa a participar, com vivo interesse e compromisso, em diversas manifestações estudantis bem como de crescentes iniciativas de organizações, especialmente no Movimento Negro Unificado (MNU).   

Beatriz Nascimento, havendo concluído sua Graduação em História mantêm-se cada vez mais comprometida não apenas com o fortalecimento das organizações populares - especialmente dos Negros e das Mulheres Negras -, também se empenha cada vez mais em estudos e pesquisas sobre a história da sociedade brasieira e de outras sociedades, especialmente as de raiz africana, para oque contou, além do Curso de Especialização em história, com bolsa de estudo e estágio no Arquivo Nascional, sob a orientação do históriador Jose Honório Rodrigues. Vale destacar que, em seus estudos de especialização lato sensu,  Beatriz Nascimento optou por pesquisar sobre sistemas alternativos organizados por Negros, desde os Quilombos às favelas. Após haver iniciado, na USP, em São Paulo, o Curso de Mestrado, por diversas razões não o concluiu, o que veio a fazer completamente mais tarde na Universidade Federal Fluminense (UFF).


Beatriz Nascimento, desde então, se tem mostrado como uma pesquisadora da Negritude não apenas ao interno da sociedade brasileiro, como também perscrutando nossas raízes africanas. Vem daí, seu interesse especial pela Atlanticidade, isto é, sua dedicação à compreensão do movimento afro-diaspórico, no qual o Atlântico constitui mais do que um mero oceano, uma via de transmigração dos valores e da diversidade da Mãe-África para o continente americano, para o Brasil. Isto se faz igualmente presente em seu trabalho como roteirista expresso no Documentário Ôrí (1989), produzido em parceria com Raquel Gerber.


Ela se afirma talentosa, não apenas enquanto historiadora, mas também como poeta, como roteirista e militante da causa Negra, especialmente das Mulheres Negras. De sua densa bibliografia, destacamos: "Por uma história do homem negro", Revista de Cultura Vozes. 68(1), pp. 41–45, 1974; "Negro e racismo", Revista de Cultura Vozes. 68 (7), pp. 65–68, Petrópolis, 1974; "A mulher negra no mercado de trabalho", Jornal Última Hora, Rio de Janeiro, domingo, 25 de julho de 1976; "Nossa democracia racial", Revista IstoÉ. 23 de novembro de 1977, pp. 48–49; "Quilombo e memória comunitária: um estudo de caso", Estudos Afro-Asiáticos 6-7. Rio de Janeiro, CEAA/UCAM, pp. 259–265. 1982; "O conceito de quilombo e a resistência cultural negra", Afro Diáspora Nos. 6-7, pp. 41–49. 1985; "Daquilo que se chama cultura", Jornal IDE. No. 12. Sociedade Brasileira de Psicanálise – São Paulo. Dezembro de 1986, p. 8; "O quilombo do Jabaquara". Revista de Cultura, Vozes (maio-junho). "A mulher negra e o amor", Jornal Maioria Falante, Nº 17, Fev – março, 1990, p. 3.


Beatriz Nascimento atuou como uma “intelectual orgânica” dos povos afrodescendentes. Não se limitou à produção acadêmica. Militou concretamente em diversas frentes das organizações afrodescendentes, inclusive como uma das fundadoras do Grupo de Trabalho “André Rebouças” e do próprio Movimento Negro Unificado. No campo acadêmico, por exemplo, teve um papel crítico de enorme destaque, à medida que, passou a lidar como a Negritude com novo olhar, isto é, enquanto a acadêmia continuava analisando o Negro como um mero alvo do processo escravagista, nele enxergando apenas “o escravo”, Beatriz Nascimento, por sua vez ao conferir novos sentidos, ao conceito de Quilombo, passa a indicar a dimensão protagônica e propositiva dos Negros, do Quilombo, vendo este como processo de resistência, de luta, de enorme criatividade presente também nos terreiros, nas favelas, nas danças, nas festas, e em outras lutas protagonizadas pelo Povo Negro. 


Em vista e em busca de entender mais profundamente a questão da Negritude, Beatrix Nascimento fez viagens ao continente africano, tendo visitado diversos países principalmente Angola, em que seu interesse de pesquisadora e de militante se concentrou especialmente na experiência do quilombo, conceito chave em seu olhar historiográfico, que lhe permitiu enxergar várias dimensões criativas/propositivas deste conceito, nele apontando para bem além da mera territorialidade ligada ao espaço dos escravizados em fuga, a medida que se empenha criativamente em dele se servir como precioso instrumento de resistência e de multiformes espaços de protagonismo Negro. 


Em meados dos anos 90, quando seguia forte sua atuação enquanto pesquisadora e enquanto militante a serviço de diversas organizações promotoras de consciência negra, foi vítima de um feminicídio, em 1995, quando contava apenas 52 anos. Deixou sua filha Maria Bethania do Nascimento Gomes, que hoje atua como bailarina.  


A força e a criatividade do pensamento de Maria Beatriz do Nascimento           


Ao percorrermos os traços mais relevantes da produção bibliográfica de Beatriz Nascimento podemos constatar relevantes elementos de contribuição à historiografia da sociedade brasileira, sob múltiplos aspectos inter relacionados. Sua densa obra dá testemunho de seu compromisso de pesquisadora e de militante, não apenas com desnudar a ideologia da chamada “Democracia racial” brasileira, como também, e sobretudo, em apontar diferentes aspectos propositivos do legado negro a formação do Povo brasileiro. Neste sentido, nela encontramos uma interlocutora privilegiada de outros intérpretes da sociedade brasileira, não apenas mulheres negras (Maria Firmina do Reis, Maria Lacerda de Moura, Carolina Maria de Jesus, Lélia Gonzalez, Conceição Evaristo, entre outras), como também intérpretes tais como Lima Barreto, Clóvis Moura, Astrogildo Pereira e outros. Constatamos aí uma fecunda confluência teórico metodológica, à medida que inauguram o exercício de um novo olhar (crítico-propositivo) sobre a trajetória histórica da sociedade brasileira, especialmente no tocante a narrativa sobre o modo de produção escravista, antes visto como quase somente sendo os povos originários e o povo negro, tratados como mão de obra escravisada sem perceber também o lado da registência e do enfrentamento contínuos contras os invasores, bem como sua enorme capacidade criativa de forjarem experiências alternativas a aquele modo de produção, tal como sucedeu e sucede nas múltiplas experiências dos Quilombos.   


Oque  aprendemos com Beatriz Nascimento ?      


Em continuidade com os nossos tantos achados inovadores em páginas antológicas de nossos intérpretes - homens e mulheres -, também aprendemos muito com Beatriz Nascimento. A começar pela sua teimosia em acentuar a importância de revisitar-mos a questão da Negritude, para além do território brasileiro e mesmo do território americano, de modo a cavoucar raízes mais fundas, fincadas no continente africano em suas relações econômicas, políticas e culturais com a Ásia, e as Américas, além da própria África.


Aí reside a importância do conceito de Atlanticidade, a partir do qual Beatriz Nascimento - ela não foi a primeira -  a analisar  desde a África, as múltiplas e complexas relações presentes no Brasil, a partir deste movimento de migração transatlântico, no qual incide com toda a força, o sentido novo do conceito “Quilombo”, que ela tão bem trabalha em sua obra.


Ainda com ela aprendemos a enfrentar antigos e novos desafios, compreendendo-os em perspectivas históricas, procedimento teórico-metodológico que nos permite, por exemplo, compreender melhor tais desafios, trabalhando dialeticamente a questão da Negritude, de moda a perceber os liames dinâmicos e orgânicos entre as categorias “Classe”, “Gênero” e “Raça”.


João Pessoa 17 de Janeiro de 2025 


quinta-feira, 9 de janeiro de 2025

Intérpretes do Brasil (XI): Conceição Evaristo e sua escrevivência

Intérpretes do Brasil (XI): Conceição Evaristo e sua escrevivência 


Alder Júlio Ferreira Calado


Seguimos apostando no exercício contínuo da memória histórica dos oprimidos. Nós o temos feito buscando exercitá-la como uma força transformadora de nossa realidade, de nossas relações cósmicas, planetárias, econômicas, políticas e sócio-culturais, seja no âmbito coletivo seja no plano pessoal, quer em escala brasileira, quer em escalas latino-americana e mundial. 


Neste sentido, o exercício continuado da memória histórica também nos remete a figuras de intelectuais - homens e mulheres - que dedicaram um tempo precioso de suas vidas a compreenderem e a compartilharem sua interpretação da sociedade brasileira, em seus respectivos tempos. Há alguns anos, em nosso blogger https://textosdealdercalado.blogspot.com/, já tivemos uma primeira oportunidade de apenas enunciar elementos dispersos acerca de mais de quatro dezenas dos que consideramos principais intérpretes da sociedade brasileira, tendo inclusive sobre algumas dessas figuras (Paulo Freire, Florestan Fernandes, Carolina Maria de Jesus, entre outras) ensaiado nossa análise. Há cerca de três meses, houvemos por bem dar prosseguimento a esta iniciativa, propondo desta vez, uma breve incursão pelo universo da “escrevivência” de Conceição Evaristo.


Temos insistido em que o constante ensaio de nossa memória histórica constitui um primeiro passo - decisivo - em busca de um enfrentamento exitoso (coletivo e pessoal) de velhos e novos desafios, sempre lembrando ainda tratar-se de uma tarefa histórica inescapável de nossas organizações de base. Tratamos, assim, de trazer ou de rememorar traços bibliográficos de Conceição Evaristo.


Maria da Conceição Evaristo de Brito nasceu em Belo Horizonte, em 1946, em uma favela perto do centro da capital mineira. É filha de pai trabalhador e de mãe trabalhadora doméstica, que tiveram 9 filhos (5 filhos e 4 filhas, quatro Marias, das quais ela é a segunda). Desde cedo, a exemplo de sua mãe, de suas tias e de suas irmãs, Conceição Evaristo experimentou uma vida familiar muito movimentada de trabalhos como domésticas, ao mesmo tempo em que, também muito cedo, se sente tomada pelo encanto das palavras. Como ela costuma lembrar, o fato de não haver nascido rodeada de livros, não a impediu de sentir-se sempre cercada de palavras, isto é, de muitas histórias, de muitos “causos” como costumam expressar-se  às gentes das Minas Gerais.


Em entrevistas, Conceição Evaristo, quando interrogada sobre sua educação infantil, sempre lembra com ternura, não apenas a figura de Joana, sua mãe, como também de sua tia Maria Filomena e seu tio Antônio, pedreiro, casal com quem ela passou a viver desde os 7 anos, sempre agradecida pelo incentivo e cuidado de sua tia pela boa educação da sobrinha. Prova disto foi a escolha da Escola onde Conceição estudou o curso primário, ao fim do qual recebeu o prêmio pela melhor redação da turma, versando sobre o orgulho de ser brasileira. Outro aspecto lembrado por Conceição tem a ver com sua aguda percepção das desigualdades sociais e dos preconceitos contra os negros, seja no plano abtacional, seja no ambito da escola.


A favela em que sua família morava, situava-se próxima do centro de Belo Horizonte, mas havia um muro de apartação entre a favela e os bairros de classes média, enquanto na própria Escola de dois andares as crianças mais pobres e negras estudavam no  “porão”, enquanto os andares de cima eram reservados às crianças de classe média, sob o pretexto da meritocracia - eram mais estudiosas mais aplicadas, mais premiadas, o que justificaria sua escolha de protagonistas até nas festas religiosas (a exemplo da coroação de Nossa Senhora).          


Ainda criança, Conceição começou a encantar-se pelas tantas narrativas sobre o povo negro, sobre escravidão, sobre seus sofrimentos, suas lutas e esperanças. Morando na favela, sua família conseguiu matricular-se em uma escola prestigiada  chamada “Colégio Rio Branco”. Desde os 12 anos, lembra com entusiasmo suas idas à biblioteca municipal, onde trabalhava sua tia à tarde (pois, pela manhã trabalhava como doméstica na casa da bibliotecária). Conceição conta, entusiasmada, de seu gosto pela leitura de vários livros dessa biblioteca. Ela tomava emprestado, seguindo de imediato para uma praça próxima da biblioteca, até terminar a leitura e devolver o livro e tomar outro emprestado. 


Por certo, sua escolha pelo curso normal não se deu por acaso: seu sonho era formar-se como Professora. Após terminar o Curso Normal, necessitando trabalhar como Professora, e não contando com concurso público em Belo Horizonte, toma conhecimento de um concurso público para professora primária, no município do Rio de Janeiro, para onde se muda, aos 25 anos. Bem sucedida no concurso, passa a trabalhar como professora. Primeiro, na rede municipal do Rio de Janeiro, tendo tido mais tarde ainda experiência docente em Niterói.


Conceição Evaristo prestou vestibular, em 1987, para o curso de licenciatura em letras, iniciando seus estudos no ano seguinte na UFRJ. Sente-se cada vez mais motivada a acompanhar toda a movimentação cultural em torno da Negritude. Somente em 1996, concluiu seu Mestrado em Literatura Brasileira, na PUC do Rio, enquanto seu Doutorado em Literatura Comparada concluiu na UFF, em 2011. Só em 1990, escreve em “cadernos negros”, cujo número 13 publica seus primeiros escritos. “Cadernos Negros”, desde os anos 1970, constituiam um espaço de publicação para a juventude negra, uma das manifestações culturais de grande apreço.


Formada, a princípio, em fecundo ambiente de oralidade, Conceição, também se sente vocacionada a escrever suas vivências. Eis porquê, sobretudo a partir dos anos 1990, ela se empenha cada vez mais, não apenas em registrar sua produção, como também, em buscar torná-la pública, de tal modo que seu primeiro romance “Becos da Memória” teve que esperar 20 anos para ser publicado. Mesmo assim, com recursos próprios, fazendo ela questão de lembrar que, por causa disso, teve que conviver o ano seguinte, “em vermelho”… Além deste, Conceição Evaristo também escreveu, “Ponciá Vicêncio”, que alcançou grande reconhecimento, dentro e fora do Brasil. Conceição Evaristo segue publicando seus escritos premiados - romances, contos, poesias, etc. eis um quadro do conjunto de seus escritos : 


Poemas da recordação e outros movimentos (2017)

Insubmissas lágrimas de mulheres (2011)

Olhos d`água (2014) 

Histórias de leves enganos e parecenças (2016)

Cadernos Negros (1990)

Contos Afros (2009)

Contos do mar sem fim (2015)

Questão de Pele (2009)

Schwarze prosa (1993)

Moving beyond boundaries: international dimension of black women’s writing (1995)

Women righting – Afro-brazilian Women’s Short Fiction (2005)

Finally Us: contemporary black brazilian women writers (1995)

Callaloo, vols. 18 e 30 (1995, 2008)

Fourteen female voices from Brazil (2002)

Chimurenga People (2007)

Brasil-África

Je suis Rio (2016).

Ponciá Vicêncio.

L'histoire de Ponciá (A história de Ponciá) (2015)

Banzo, mémoires de la favela, (Banzo, memórias da favela) (2016)

 

Escritora profundamente criativa, Conceição Evaristo, além dos escritos de sua lavra, protagoniza sua arte de contação de histórias, em cada entrevista, em cada conferência, em cada roda de conversas de que participa. A este respeito, vale a pena conferir dezenas de vídeos gravados com Conceição Evaristo.


Em um de seus contos intitulado “Maria”, constante do livro “Olhos d'água”, podemos tomar como ilustração uma série de traços muito bem costurados pela autora, a começar mesmo do título “Maria”. Esta representa, mais do que um indivíduo, toda uma coletividade, amplas parcelas do povo  brasileiro, o seguimento das empregadas domésticas em sua labuta do dia-a-dia: a lidar com a cozinha da patroa, a preparar a refeição, em um tempo de festa. Tão empenhada no preparo da carne, acaba cortando a mão por uma faca bem afiada. O tempo todo não se desgarrou dos filhos pequenos que deixou em casa, gripados, para quem levaria remédio, ao voltar para casa. Em um dia atípico - véspera de festa-, rejubila-se por poder levar para os filhos restos daquela refeição, além de uma gorjeta recebida da patroa, com a qual comprariam remédios para os filhos. 


Após longa espera do ônibus, senta-se em uma das primeiras cadeiras, logo surpresa ao perceber a entrada no ônibus de dois homens, um dos quais se sentaria ao seu lado. Na breve conversa reconhece tratar-se do pai do seu filho mais velho por quem aquele passageiro pergunta, constrangido. Há uma breve troca de palavra entre ambos: arrependimento da parte dele, de votos para o filho e para a mãe, coisas do gênero. Balbuciou, inclusive, o pedido a ex companheira para na volta, abraçar e beijar o seu filho. De repente, já antes combinado com o comparsa que entra no ônibus com ele, eis que  seu ex companheiro empunhando uma arma, levanta-se bruscamente, dirigindo-se para os passageiros a exigir que entregassem tudo ao comparsa, tendo apenas poupado uma criança e sua ex companheira. Por esta razão, após a descida dos assaltantes, criou-se um ambiente de tumulto entre os passageiros assaltados, que acusavam Conceição, com insultos e palavrões, de ser uma cúmplice dos assaltantes. À exceção de uma criança e do motorista, que estacionou o ônibus e pedia calma aos agressores, dizendo-lhes conhecer aquela mulher que costumava tomar o ônibus naquele horário, todos os demais passageiros passaram das acusações ao linchamento até a morte.


Temos aí uma ilustração da escrevivência de Conceição Evaristo, mulher negra, trabalhadora, desde seu lugar de fala, mostra-se profundamente solidária com as mulheres trabalhadoras, especialmente as mulheres negras a experimentarem toda sorte de exploração e opressão, denunciando vigorosamente este estado de coisas, sempre no esperançar de um novo tempo de justiça, de paz, e de alegria.                      


O que aprendemos com a “escrevivência” de Conceição Evaristo ?


Ao percorrermos a trajetória literária de Conceição Evaristo, temos a oportunidade de observar, entre tantos outros traços, um fio condutor a costurar sua “escrevivência” : trata-se da coerência. Com efeito, Conceição Evaristo, em seus vários escritos e em cada um deles, logra um feito raro: o de fundir seus escritos com sua vida. Suas palavras contêm algo mais que letras: são portadoras de carne, de sangue. Sua “escrevivência” aparece em cada romance, em cada conto, em cada escrito. Em certo sentido, podemos dizer que, a exemplo de outros autores e autoras - é o caso, inclusive, de Lima Barreto - , também Conceição Evaristo encarna em suas obras uma vida militante, especialmente no campo da Negritude, e mais particularmente no âmbito da Mulher Negra.



Impacta-nos, igualmente, a qualidade de sua observação - minuciosa, detalhista. Sua vida, por outro lado, se acha entranhada do sentir, do pensar, do querer, do agir, e do falar do Povo Negro. Seus escritos neste sentido, demonstram uma profunda identidade pessoal que radica no “ethos” comunitário : em seus escritos, Conceição se faz presente em seus personagens, em especial tomados em coletividade. Sem demonstrar qualquer embaraço na convivẽncia com os brancos, é visível seu compromisso primeiro com a causa libertária dos povos originários e das comunidades quilombolas afro-diaspóricos. Em seus escritos, ressoam com força seus ancestrais, as diversas manifestações da mãe natureza, do cosmos, das agruras, das lutas, das esperanças e das alegrias de suas gentes. Sua palavra faz coincidir, não raramente, denúncia e anúncio. Em seus escritos, faz-se dor com os que sofrem - especialmente as mulheres negras - e alegria, ao compartilhar as conquistas de cada dia do seu povo.



Com Conceição Evaristo também aprendemos a ler melhor a realidade, experienciando suas pistas metodológicas sempre associadas aos fins perseguidos. Ela, ao exercitar a memória, desde criança e ao longo da vida - hoje se prepara para os seus setenta e nove anos - , se sente fascinada pelas palavras, pela contação de histórias, primeiro passo para a lida com a literatura escrita. Tanto na parte, quanto no seu conjunto, sentimos em Conceição Evaristo uma verdadeira militante do processo de humanização que ela persegue, de modo coerente, com traços inconfundíveis :

No plano cósmico-planetário, ela acena, seja de modo explícito ou implícito pontos que evocam sua sinergia com os ancestrais ;

A dimensão do Trabalho ressoa sobremaneira em seus escritos, a partir mesmo do jeito como ela encarna as palavras, escolhendo os melhores termos, as frases mais precisas e a “sonância”, a musicalidade que lhe são próprias, fazendo sempre questão de deixar sua marca no que escreve;

Conceição Evaristo mostra-se também emblemática, no assumir seu lugar de fala: sem absolutizar o conceito, revela-se convencida da relevância do lugar de fala, na produção estético literária como na produção historiográfica;

Seu legado se apresenta profundamente marcado pela fidelidade à causa libertaria das gentes subalternizadas, em especial o Povo Negro e os Povos Originários.


João Pessoa, 09 de janeiro de 2025