Intérpretes do Brasil (XI): Conceição Evaristo e sua escrevivência
Alder Júlio Ferreira Calado
Seguimos apostando no exercício contínuo da memória histórica dos oprimidos. Nós o temos feito buscando exercitá-la como uma força transformadora de nossa realidade, de nossas relações cósmicas, planetárias, econômicas, políticas e sócio-culturais, seja no âmbito coletivo seja no plano pessoal, quer em escala brasileira, quer em escalas latino-americana e mundial.
Neste sentido, o exercício continuado da memória histórica também nos remete a figuras de intelectuais - homens e mulheres - que dedicaram um tempo precioso de suas vidas a compreenderem e a compartilharem sua interpretação da sociedade brasileira, em seus respectivos tempos. Há alguns anos, em nosso blogger https://textosdealdercalado.blogspot.com/, já tivemos uma primeira oportunidade de apenas enunciar elementos dispersos acerca de mais de quatro dezenas dos que consideramos principais intérpretes da sociedade brasileira, tendo inclusive sobre algumas dessas figuras (Paulo Freire, Florestan Fernandes, Carolina Maria de Jesus, entre outras) ensaiado nossa análise. Há cerca de três meses, houvemos por bem dar prosseguimento a esta iniciativa, propondo desta vez, uma breve incursão pelo universo da “escrevivência” de Conceição Evaristo.
Temos insistido em que o constante ensaio de nossa memória histórica constitui um primeiro passo - decisivo - em busca de um enfrentamento exitoso (coletivo e pessoal) de velhos e novos desafios, sempre lembrando ainda tratar-se de uma tarefa histórica inescapável de nossas organizações de base. Tratamos, assim, de trazer ou de rememorar traços bibliográficos de Conceição Evaristo.
Maria da Conceição Evaristo de Brito nasceu em Belo Horizonte, em 1946, em uma favela perto do centro da capital mineira. É filha de pai trabalhador e de mãe trabalhadora doméstica, que tiveram 9 filhos (5 filhos e 4 filhas, quatro Marias, das quais ela é a segunda). Desde cedo, a exemplo de sua mãe, de suas tias e de suas irmãs, Conceição Evaristo experimentou uma vida familiar muito movimentada de trabalhos como domésticas, ao mesmo tempo em que, também muito cedo, se sente tomada pelo encanto das palavras. Como ela costuma lembrar, o fato de não haver nascido rodeada de livros, não a impediu de sentir-se sempre cercada de palavras, isto é, de muitas histórias, de muitos “causos” como costumam expressar-se às gentes das Minas Gerais.
Em entrevistas, Conceição Evaristo, quando interrogada sobre sua educação infantil, sempre lembra com ternura, não apenas a figura de Joana, sua mãe, como também de sua tia Maria Filomena e seu tio Antônio, pedreiro, casal com quem ela passou a viver desde os 7 anos, sempre agradecida pelo incentivo e cuidado de sua tia pela boa educação da sobrinha. Prova disto foi a escolha da Escola onde Conceição estudou o curso primário, ao fim do qual recebeu o prêmio pela melhor redação da turma, versando sobre o orgulho de ser brasileira. Outro aspecto lembrado por Conceição tem a ver com sua aguda percepção das desigualdades sociais e dos preconceitos contra os negros, seja no plano abtacional, seja no ambito da escola.
A favela em que sua família morava, situava-se próxima do centro de Belo Horizonte, mas havia um muro de apartação entre a favela e os bairros de classes média, enquanto na própria Escola de dois andares as crianças mais pobres e negras estudavam no “porão”, enquanto os andares de cima eram reservados às crianças de classe média, sob o pretexto da meritocracia - eram mais estudiosas mais aplicadas, mais premiadas, o que justificaria sua escolha de protagonistas até nas festas religiosas (a exemplo da coroação de Nossa Senhora).
Ainda criança, Conceição começou a encantar-se pelas tantas narrativas sobre o povo negro, sobre escravidão, sobre seus sofrimentos, suas lutas e esperanças. Morando na favela, sua família conseguiu matricular-se em uma escola prestigiada chamada “Colégio Rio Branco”. Desde os 12 anos, lembra com entusiasmo suas idas à biblioteca municipal, onde trabalhava sua tia à tarde (pois, pela manhã trabalhava como doméstica na casa da bibliotecária). Conceição conta, entusiasmada, de seu gosto pela leitura de vários livros dessa biblioteca. Ela tomava emprestado, seguindo de imediato para uma praça próxima da biblioteca, até terminar a leitura e devolver o livro e tomar outro emprestado.
Por certo, sua escolha pelo curso normal não se deu por acaso: seu sonho era formar-se como Professora. Após terminar o Curso Normal, necessitando trabalhar como Professora, e não contando com concurso público em Belo Horizonte, toma conhecimento de um concurso público para professora primária, no município do Rio de Janeiro, para onde se muda, aos 25 anos. Bem sucedida no concurso, passa a trabalhar como professora. Primeiro, na rede municipal do Rio de Janeiro, tendo tido mais tarde ainda experiência docente em Niterói.
Conceição Evaristo prestou vestibular, em 1987, para o curso de licenciatura em letras, iniciando seus estudos no ano seguinte na UFRJ. Sente-se cada vez mais motivada a acompanhar toda a movimentação cultural em torno da Negritude. Somente em 1996, concluiu seu Mestrado em Literatura Brasileira, na PUC do Rio, enquanto seu Doutorado em Literatura Comparada concluiu na UFF, em 2011. Só em 1990, escreve em “cadernos negros”, cujo número 13 publica seus primeiros escritos. “Cadernos Negros”, desde os anos 1970, constituiam um espaço de publicação para a juventude negra, uma das manifestações culturais de grande apreço.
Formada, a princípio, em fecundo ambiente de oralidade, Conceição, também se sente vocacionada a escrever suas vivências. Eis porquê, sobretudo a partir dos anos 1990, ela se empenha cada vez mais, não apenas em registrar sua produção, como também, em buscar torná-la pública, de tal modo que seu primeiro romance “Becos da Memória” teve que esperar 20 anos para ser publicado. Mesmo assim, com recursos próprios, fazendo ela questão de lembrar que, por causa disso, teve que conviver o ano seguinte, “em vermelho”… Além deste, Conceição Evaristo também escreveu, “Ponciá Vicêncio”, que alcançou grande reconhecimento, dentro e fora do Brasil. Conceição Evaristo segue publicando seus escritos premiados - romances, contos, poesias, etc. eis um quadro do conjunto de seus escritos :
Poemas da recordação e outros movimentos (2017)
Insubmissas lágrimas de mulheres (2011)
Olhos d`água (2014)
Histórias de leves enganos e parecenças (2016)
Cadernos Negros (1990)
Contos Afros (2009)
Contos do mar sem fim (2015)
Questão de Pele (2009)
Schwarze prosa (1993)
Moving beyond boundaries: international dimension of black women’s writing (1995)
Women righting – Afro-brazilian Women’s Short Fiction (2005)
Finally Us: contemporary black brazilian women writers (1995)
Callaloo, vols. 18 e 30 (1995, 2008)
Fourteen female voices from Brazil (2002)
Chimurenga People (2007)
Brasil-África
Je suis Rio (2016).
Ponciá Vicêncio.
L'histoire de Ponciá (A história de Ponciá) (2015)
Banzo, mémoires de la favela, (Banzo, memórias da favela) (2016)
Escritora profundamente criativa, Conceição Evaristo, além dos escritos de sua lavra, protagoniza sua arte de contação de histórias, em cada entrevista, em cada conferência, em cada roda de conversas de que participa. A este respeito, vale a pena conferir dezenas de vídeos gravados com Conceição Evaristo.
Em um de seus contos intitulado “Maria”, constante do livro “Olhos d'água”, podemos tomar como ilustração uma série de traços muito bem costurados pela autora, a começar mesmo do título “Maria”. Esta representa, mais do que um indivíduo, toda uma coletividade, amplas parcelas do povo brasileiro, o seguimento das empregadas domésticas em sua labuta do dia-a-dia: a lidar com a cozinha da patroa, a preparar a refeição, em um tempo de festa. Tão empenhada no preparo da carne, acaba cortando a mão por uma faca bem afiada. O tempo todo não se desgarrou dos filhos pequenos que deixou em casa, gripados, para quem levaria remédio, ao voltar para casa. Em um dia atípico - véspera de festa-, rejubila-se por poder levar para os filhos restos daquela refeição, além de uma gorjeta recebida da patroa, com a qual comprariam remédios para os filhos.
Após longa espera do ônibus, senta-se em uma das primeiras cadeiras, logo surpresa ao perceber a entrada no ônibus de dois homens, um dos quais se sentaria ao seu lado. Na breve conversa reconhece tratar-se do pai do seu filho mais velho por quem aquele passageiro pergunta, constrangido. Há uma breve troca de palavra entre ambos: arrependimento da parte dele, de votos para o filho e para a mãe, coisas do gênero. Balbuciou, inclusive, o pedido a ex companheira para na volta, abraçar e beijar o seu filho. De repente, já antes combinado com o comparsa que entra no ônibus com ele, eis que seu ex companheiro empunhando uma arma, levanta-se bruscamente, dirigindo-se para os passageiros a exigir que entregassem tudo ao comparsa, tendo apenas poupado uma criança e sua ex companheira. Por esta razão, após a descida dos assaltantes, criou-se um ambiente de tumulto entre os passageiros assaltados, que acusavam Conceição, com insultos e palavrões, de ser uma cúmplice dos assaltantes. À exceção de uma criança e do motorista, que estacionou o ônibus e pedia calma aos agressores, dizendo-lhes conhecer aquela mulher que costumava tomar o ônibus naquele horário, todos os demais passageiros passaram das acusações ao linchamento até a morte.
Temos aí uma ilustração da escrevivência de Conceição Evaristo, mulher negra, trabalhadora, desde seu lugar de fala, mostra-se profundamente solidária com as mulheres trabalhadoras, especialmente as mulheres negras a experimentarem toda sorte de exploração e opressão, denunciando vigorosamente este estado de coisas, sempre no esperançar de um novo tempo de justiça, de paz, e de alegria.
O que aprendemos com a “escrevivência” de Conceição Evaristo ?
Ao percorrermos a trajetória literária de Conceição Evaristo, temos a oportunidade de observar, entre tantos outros traços, um fio condutor a costurar sua “escrevivência” : trata-se da coerência. Com efeito, Conceição Evaristo, em seus vários escritos e em cada um deles, logra um feito raro: o de fundir seus escritos com sua vida. Suas palavras contêm algo mais que letras: são portadoras de carne, de sangue. Sua “escrevivência” aparece em cada romance, em cada conto, em cada escrito. Em certo sentido, podemos dizer que, a exemplo de outros autores e autoras - é o caso, inclusive, de Lima Barreto - , também Conceição Evaristo encarna em suas obras uma vida militante, especialmente no campo da Negritude, e mais particularmente no âmbito da Mulher Negra.
Impacta-nos, igualmente, a qualidade de sua observação - minuciosa, detalhista. Sua vida, por outro lado, se acha entranhada do sentir, do pensar, do querer, do agir, e do falar do Povo Negro. Seus escritos neste sentido, demonstram uma profunda identidade pessoal que radica no “ethos” comunitário : em seus escritos, Conceição se faz presente em seus personagens, em especial tomados em coletividade. Sem demonstrar qualquer embaraço na convivẽncia com os brancos, é visível seu compromisso primeiro com a causa libertária dos povos originários e das comunidades quilombolas afro-diaspóricos. Em seus escritos, ressoam com força seus ancestrais, as diversas manifestações da mãe natureza, do cosmos, das agruras, das lutas, das esperanças e das alegrias de suas gentes. Sua palavra faz coincidir, não raramente, denúncia e anúncio. Em seus escritos, faz-se dor com os que sofrem - especialmente as mulheres negras - e alegria, ao compartilhar as conquistas de cada dia do seu povo.
Com Conceição Evaristo também aprendemos a ler melhor a realidade, experienciando suas pistas metodológicas sempre associadas aos fins perseguidos. Ela, ao exercitar a memória, desde criança e ao longo da vida - hoje se prepara para os seus setenta e nove anos - , se sente fascinada pelas palavras, pela contação de histórias, primeiro passo para a lida com a literatura escrita. Tanto na parte, quanto no seu conjunto, sentimos em Conceição Evaristo uma verdadeira militante do processo de humanização que ela persegue, de modo coerente, com traços inconfundíveis :
No plano cósmico-planetário, ela acena, seja de modo explícito ou implícito pontos que evocam sua sinergia com os ancestrais ;
A dimensão do Trabalho ressoa sobremaneira em seus escritos, a partir mesmo do jeito como ela encarna as palavras, escolhendo os melhores termos, as frases mais precisas e a “sonância”, a musicalidade que lhe são próprias, fazendo sempre questão de deixar sua marca no que escreve;
Conceição Evaristo mostra-se também emblemática, no assumir seu lugar de fala: sem absolutizar o conceito, revela-se convencida da relevância do lugar de fala, na produção estético literária como na produção historiográfica;
Seu legado se apresenta profundamente marcado pela fidelidade à causa libertaria das gentes subalternizadas, em especial o Povo Negro e os Povos Originários.
João Pessoa, 09 de janeiro de 2025