Intérpretes do Brasil (XII): Maria Beatriz do Nascimento e a memória crítica da Negritude
Alder Júlio Ferreira Calado
A poucos dias do início do Governo Trump-2 - tenebroso pesadelo para o Planeta e para a humanidade -, seguimos exercitando a memória histórica dos oprimidos, como instrumento de resistência e de enfrentamento aos graves desafios (velhos e novos) dos nossos dias. A figura “Trump” encarna, em sua trajetória, um amálgama da situação distópica do atual panorama internacional, latino-americano e brasileiro. Para tanto, buscamos inspiração no legado coletivo e individual de movimentos de resistência e de lutas, bem como em figuras especiais de intérpretes de nossas história, desta vez, recorrendo a figura de Maria Beatriz do Nascimento, de quem recolhemos preciosas pistas para uma compreensão mais objetiva de nossa realidade que nos permita avançar no enfrentamento exitoso dos desafios atuais.
Tendo consciência da excepcional gravidade que acomete os nossos tempos - crescentes eventos climáticos extremos, ascensão dos valores nazifascista, em escala mundial, agravamento das desigualdades sociais e econômicas extrema concentração de terras, de rendas e de poder em mãos de um número cada vez mais reduzido de privilegiados crescente domínio das grandes corporações transnacionais usurpação cada vez maior dos espaços estatais pelo grande Capital (principalmente o financeiro), entre outras calamidades -, importa que tenhamos igualmente e sobretudo compromisso com nossas tarefas históricas libertárias, tanto do ponto de vista de nossas organizações de base, quanto também no âmbito pessoal. Eis por que seguimos insistindo na necessidade e urgência do exercício contínuo da memória histórica dos oprimidos.
Maria Beatriz do Nascimento nasceu em Aracaju-SE, em 1942, filha de Rubina Pereira Nascimento e de Francisco Xavier do Nascimento que tiveram 10 filhos e filhas. Aos 7 anos, Beatriz Nascimento muda-se, com a família, para o Rio de Janeiro, onde, após concluir o Ensino Médio, prestou Vestibular para o Curso de História na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), entre 1968 e 1971. Durante este Curso, que Beatriz Nascimento segue com muito empenho e entusiasmo, também começa a participar, com vivo interesse e compromisso, em diversas manifestações estudantis bem como de crescentes iniciativas de organizações, especialmente no Movimento Negro Unificado (MNU).
Beatriz Nascimento, havendo concluído sua Graduação em História mantêm-se cada vez mais comprometida não apenas com o fortalecimento das organizações populares - especialmente dos Negros e das Mulheres Negras -, também se empenha cada vez mais em estudos e pesquisas sobre a história da sociedade brasieira e de outras sociedades, especialmente as de raiz africana, para oque contou, além do Curso de Especialização em história, com bolsa de estudo e estágio no Arquivo Nascional, sob a orientação do históriador Jose Honório Rodrigues. Vale destacar que, em seus estudos de especialização lato sensu, Beatriz Nascimento optou por pesquisar sobre sistemas alternativos organizados por Negros, desde os Quilombos às favelas. Após haver iniciado, na USP, em São Paulo, o Curso de Mestrado, por diversas razões não o concluiu, o que veio a fazer completamente mais tarde na Universidade Federal Fluminense (UFF).
Beatriz Nascimento, desde então, se tem mostrado como uma pesquisadora da Negritude não apenas ao interno da sociedade brasileiro, como também perscrutando nossas raízes africanas. Vem daí, seu interesse especial pela Atlanticidade, isto é, sua dedicação à compreensão do movimento afro-diaspórico, no qual o Atlântico constitui mais do que um mero oceano, uma via de transmigração dos valores e da diversidade da Mãe-África para o continente americano, para o Brasil. Isto se faz igualmente presente em seu trabalho como roteirista expresso no Documentário Ôrí (1989), produzido em parceria com Raquel Gerber.
Ela se afirma talentosa, não apenas enquanto historiadora, mas também como poeta, como roteirista e militante da causa Negra, especialmente das Mulheres Negras. De sua densa bibliografia, destacamos: "Por uma história do homem negro", Revista de Cultura Vozes. 68(1), pp. 41–45, 1974; "Negro e racismo", Revista de Cultura Vozes. 68 (7), pp. 65–68, Petrópolis, 1974; "A mulher negra no mercado de trabalho", Jornal Última Hora, Rio de Janeiro, domingo, 25 de julho de 1976; "Nossa democracia racial", Revista IstoÉ. 23 de novembro de 1977, pp. 48–49; "Quilombo e memória comunitária: um estudo de caso", Estudos Afro-Asiáticos 6-7. Rio de Janeiro, CEAA/UCAM, pp. 259–265. 1982; "O conceito de quilombo e a resistência cultural negra", Afro Diáspora Nos. 6-7, pp. 41–49. 1985; "Daquilo que se chama cultura", Jornal IDE. No. 12. Sociedade Brasileira de Psicanálise – São Paulo. Dezembro de 1986, p. 8; "O quilombo do Jabaquara". Revista de Cultura, Vozes (maio-junho). "A mulher negra e o amor", Jornal Maioria Falante, Nº 17, Fev – março, 1990, p. 3.
Beatriz Nascimento atuou como uma “intelectual orgânica” dos povos afrodescendentes. Não se limitou à produção acadêmica. Militou concretamente em diversas frentes das organizações afrodescendentes, inclusive como uma das fundadoras do Grupo de Trabalho “André Rebouças” e do próprio Movimento Negro Unificado. No campo acadêmico, por exemplo, teve um papel crítico de enorme destaque, à medida que, passou a lidar como a Negritude com novo olhar, isto é, enquanto a acadêmia continuava analisando o Negro como um mero alvo do processo escravagista, nele enxergando apenas “o escravo”, Beatriz Nascimento, por sua vez ao conferir novos sentidos, ao conceito de Quilombo, passa a indicar a dimensão protagônica e propositiva dos Negros, do Quilombo, vendo este como processo de resistência, de luta, de enorme criatividade presente também nos terreiros, nas favelas, nas danças, nas festas, e em outras lutas protagonizadas pelo Povo Negro.
Em vista e em busca de entender mais profundamente a questão da Negritude, Beatrix Nascimento fez viagens ao continente africano, tendo visitado diversos países principalmente Angola, em que seu interesse de pesquisadora e de militante se concentrou especialmente na experiência do quilombo, conceito chave em seu olhar historiográfico, que lhe permitiu enxergar várias dimensões criativas/propositivas deste conceito, nele apontando para bem além da mera territorialidade ligada ao espaço dos escravizados em fuga, a medida que se empenha criativamente em dele se servir como precioso instrumento de resistência e de multiformes espaços de protagonismo Negro.
Em meados dos anos 90, quando seguia forte sua atuação enquanto pesquisadora e enquanto militante a serviço de diversas organizações promotoras de consciência negra, foi vítima de um feminicídio, em 1995, quando contava apenas 52 anos. Deixou sua filha Maria Bethania do Nascimento Gomes, que hoje atua como bailarina.
A força e a criatividade do pensamento de Maria Beatriz do Nascimento
Ao percorrermos os traços mais relevantes da produção bibliográfica de Beatriz Nascimento podemos constatar relevantes elementos de contribuição à historiografia da sociedade brasileira, sob múltiplos aspectos inter relacionados. Sua densa obra dá testemunho de seu compromisso de pesquisadora e de militante, não apenas com desnudar a ideologia da chamada “Democracia racial” brasileira, como também, e sobretudo, em apontar diferentes aspectos propositivos do legado negro a formação do Povo brasileiro. Neste sentido, nela encontramos uma interlocutora privilegiada de outros intérpretes da sociedade brasileira, não apenas mulheres negras (Maria Firmina do Reis, Maria Lacerda de Moura, Carolina Maria de Jesus, Lélia Gonzalez, Conceição Evaristo, entre outras), como também intérpretes tais como Lima Barreto, Clóvis Moura, Astrogildo Pereira e outros. Constatamos aí uma fecunda confluência teórico metodológica, à medida que inauguram o exercício de um novo olhar (crítico-propositivo) sobre a trajetória histórica da sociedade brasileira, especialmente no tocante a narrativa sobre o modo de produção escravista, antes visto como quase somente sendo os povos originários e o povo negro, tratados como mão de obra escravisada sem perceber também o lado da registência e do enfrentamento contínuos contras os invasores, bem como sua enorme capacidade criativa de forjarem experiências alternativas a aquele modo de produção, tal como sucedeu e sucede nas múltiplas experiências dos Quilombos.
Oque aprendemos com Beatriz Nascimento ?
Em continuidade com os nossos tantos achados inovadores em páginas antológicas de nossos intérpretes - homens e mulheres -, também aprendemos muito com Beatriz Nascimento. A começar pela sua teimosia em acentuar a importância de revisitar-mos a questão da Negritude, para além do território brasileiro e mesmo do território americano, de modo a cavoucar raízes mais fundas, fincadas no continente africano em suas relações econômicas, políticas e culturais com a Ásia, e as Américas, além da própria África.
Aí reside a importância do conceito de Atlanticidade, a partir do qual Beatriz Nascimento - ela não foi a primeira - a analisar desde a África, as múltiplas e complexas relações presentes no Brasil, a partir deste movimento de migração transatlântico, no qual incide com toda a força, o sentido novo do conceito “Quilombo”, que ela tão bem trabalha em sua obra.
Ainda com ela aprendemos a enfrentar antigos e novos desafios, compreendendo-os em perspectivas históricas, procedimento teórico-metodológico que nos permite, por exemplo, compreender melhor tais desafios, trabalhando dialeticamente a questão da Negritude, de moda a perceber os liames dinâmicos e orgânicos entre as categorias “Classe”, “Gênero” e “Raça”.
João Pessoa 17 de Janeiro de 2025
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