Uma Educadora Popular Paraíbana: Breves Notas Sobre Aspectos Da Trajetória De Vida De Maria Salete Van Der Poel
Alder Júlio Ferreira Calado
Nosso amigo comum Luiz Gonzaga Gonçalves e eu temos sido, reiteradas vezes, convidados pela Educadora Popular Maria Salete Van der Poel, a exercitarmos uma interlocução sobre seus recentes escritos - livros e outros textos. Desta feita, propôs-nos tecer considerações a propósito da sua autobiografia, ainda em construção. Também de minha parte, acolhi, com alegria, seu instigante convite.
Desde meu ingresso, por concurso público, para a UFPB, em João Pessoa, mais precisamente para o Departamento de Metodologia da Educação, no Centro de Educação, em 1992, travei conhecimento com Salete e com Cornelis, seu marido, tendo eu tido a oportunidade de substituí-la na disciplina Prática de Ensino de Sociologia da Educação. Ainda na primeira metade dos anos 90, tive a honra de prefaciar um de seus livros (escrito em co-autoria com Cornelis). Seguiram-se os contatos ainda que já não mais em função de atividades profissionais. Acompanhei a crescente inserção do casal recém aposentado (Cornelis havia trabalhado no Departamento de Ciências Sociais, no CCHLA/UFPB, tendo exercido inclusive a Coordenação do PPGSCS, do qual foi fundador, com relevante contribuição, conforme atestam as Atas daquele Programa de Pós-Graduação.
A essa altura, Salete havia feito um longo percurso como educadora popular, pelo menos desde sua iniciativa de fundar, em Campina Grande, um Instituto de Educação voltado para o Ensino Fundamental, quando ainda não havia concluído o Curso de Magistério. Daí por diante, prosperou no campo da Educação, especialmente voltada para as séries iniciais do Ensino Fundamental. Desde então, não tem cessado de militar, seja como alfabetizadora, seja como cidadã, vivenciando sua condição como uma militante a serviço da emancipação dos oprimidos de ontem e de hoje. Ao cabo de décadas de militância teórico-prática como educadora popular, e frequentemente solicitada a registrar sua história de vida, houve por bem acolher a recomendação de amigos, conhecidos, leitores e leitoras, a registrar sua história de vida.
Já às vésperas de completar seus 89 anos, e já não gozando de condições ideais de saúde, Salete encontrou força, coragem e criatividade para registrar significativos momentos de sua vida de educadora, para o que recorreu a duas ferramentas primorosas: a via dos fragmentos e o modo de exposição do seu vivido. Quanto a este último, inspirando-se na linguagem musical, decidiu distribuir seus relatos em três momentos dinamicamente interconectados: o do prelúdio, o do interlúdio e o do pós-lúdio. Quanto à segunda ferramenta - a dos fragmentos -, buscou sólida inspiração teórica em clássicos de reconhecida contribuição, seja no âmbito de clássicos internacionais da Teoria Literária (Mikhail Bakhtin, Walter Benjamin, Fernando Pessoa, entre outros), seja no âmbito nacional (Graciliano Ramos, Augusto dos Anjos, entre outros).
Considerações acerca de seu “Prelúdio”
Resulta deveras impactante ler ou ouvir, a viva voz, os relatos de infância trazidos à tona pela própria autora soam como estivesse mergulhada nesse universo de encantos, envolvida pelo idílico ambiente rústico da fazenda de seu avô, próxima a Campina Grande. Tem prazer em compartilhar os mínimos detalhes daquele ambiente, a começar do casarão - a “Casa Grande” -, sua estrutura arquitetônica, dos diversos compartimentos, a mobília, os objetos da casa, o relógio, bem como os afazeres cotidianos de seus moradores, em especial de duas domésticas de quem aquela criança de 6/7 anos vivia tão próxima, e com quem tantas coisas aprenderá. Ao ouvir tais relatos, vinha-me à mente a letra da canção de Jessie Quirino, “Da cumeeira de Aroeira lá da Casa Grande”.
Outra marca, inclusive em sua infância, vêm da forte temporal de sua mãe, sempre a imprimir forte traço na convivência com as pessoas da casa ou da vizinhança. Sobre seu pai fala menos, restando relatos mais profundos de admiração pela mãe e pelas irmãs, em especial sua irmã Enilda, parceira de trabalho e de ideais, especialmente no campo Educação, da Cultura e das Artes. Quanto ao rico aprendizado com as pessoas que trabalhavam na casa, destaca com ênfase seu espírito espontâneo e livre como lhe contavam suas histórias. Graças a essas companhias, a criança aprende um conjunto de experiências do cotidiano das relações empregado-patrão, dos afazeres da casa, das virtudes e vícios dos adultos, a contemplação da natureza e dos animais.
Salete também compartilha experiências de seu mundo encantado da escola, especialmente do mundo acadêmico. Antes, porém, nos conta de prazeres e desprazeres acumulados, no Ensino Fundamental e no Ensino Médio, enfatizando relatos de experiências protagonizadas por alguns de seus Professores e Professoras, ilustrando momentos de encantos proporcionados por alguns de seus Mestres e Mestras de reconhecida competência, em suas respectivas áreas de conhecimento.
Salete foi também precoce no campo do trabalho. Ainda não havia concluído o Ensino Médio (Magistério), e em busca de dar passos na direção de sua autonomia econômica com a ajuda de seu avô, de sua mãe e de sua irmã, Salete monta, em uma sala cedida pelo seu avô, uma Escola de alfabetização. Iniciando com poucos alunos, a Escola vai prosperando, inclusive, no aumento do número de alunos e alunas, graças ao entusiasmo e à competência técnica da jovem professora e, por outro lado, ao reconhecimento e a promoção de sua iniciativa, também assumida por várias outras famílias, de modo a alcançar notoriedade na cidade.
Durou cerca de uma década a experiência protagonizada por Salete, à frente do Instituto que levava seu nome. Sentia-se motivada a aprofundar seus conhecimentos, bem como a ampliar sua atuação no campo da Educação Popular, graças também a ebulição social e política dos inícios dos anos 1960 - tempos de intensa mobilização de diversos segmentos da sociedade brasileira, a clamarem pelas reformas de base: a Reforma Agrária a Reforma da Educação, entre outras. Ao mesmo tempo, sentia-se provocada a dar sua contribuição especial, no campo da Educação Popular inclusive graças aos laços por ela tecidos com a JEC (Juventude Estudantil Católica) e com a JUC ( Juventude Universitária Católica), atuação fortalecida pela influência exercida pelo setor progressista da Igreja Católica com o qual travou sólido conhecimento. A este propósito merece especial atenção o relato circunstanciado que faz acerca da força mobilizadora dos secundaristas e dos universitários, em apoio e promoção dos direitos dos trabalhadores e trabalhadoras do campo e da cidade.
Em consequência dessas lutas estudantis, camponesas e operárias pelas reformas de base, e graças à crescente reação das forças da Direita, não tardaria a instalação de uma longa e perversa Ditadura Empresarial-Militar, iniciada com o Golpe Civil-Militar de 1964.
Ainda na segunda metade dos anos 1960, ela houve por bem dar prosseguimento aos seus estudos, desta vez enfrentando o Vestibular para a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Caruaru (FAFICA), onde cursou Pedagogia, graças à qual conseguiu refinar, especialmente no plano teórico, seu trabalho profissional e seu compromisso de militância, tendo antes atuado vivamente como Educadora Popular, como integrante da Equipe de Coordenação, em Campina Grande, da Ceplac (Campanha de Educação Popular da Paraíba, no caso, em Campina Grande), que se desenvolveu entre 1961 e 1964, tendo caído abortada pelo Golpe Civil-Militar de 1964 tratou-se de uma experiência de Letramento de Adultos, sob a coordenação geral de Paulo Freire e sua Equipe, com articulação orgânica com outras experiências Alfabetização de Adultos, em outros Estados, a exemplo do que se passou em Angicos-RN. Tais experiências constituem a marca mais notável do Sistema Paulo Freire, cuja metodologia se baseia no despertar crítico- libertador dos seus participantes, em uma perspectiva emancipadora e de protagonismo por parte dos estudantes - pessoas jovens e adultas do meio popular do campo e das periferias urbanas.
As forças políticas e militares, assustadas com o potencial libertário daquelas experiências de Educação Popular, trataram de abordá-la, perseguindo e prendendo seus promotores. Tempos sombrios também Salete, junto com os demais integrantes daquela experiência formativa teve que enfrentar e amargar seguidas prisões e perseguições, durante vários anos.
A despeito de inúmeras adversidades, Salete logra ser admitida como aluna do Mestrado em Educação Popular, da Universidade Federal da Paraíba, orientando seus estudos e sua pesquisa, na perspectiva pedagógica de Paulo Freire, para a avaliação criteriosa de uma experiência pioneira de alfabetização de adultos, em situação de privação de liberdade, por ela animada junto a apenados na Penitenciária do Roger, bairro de João Pessoa, durante alguns anos. Esta sua experiência de educadora Popular, de notável repercussão na área resultou objeto de sua Dissertação de Mestrado, e na publicação pela Editora Vozes, em 1981 do Livro intitulado “Alfabetização de Adultos: Sistemas Paulo Freire Estudo de caso num presídio”. Sua Dissertação de Mestrado contou com a orientação de uma pesquisadora da UFPE, Astrogilda Cavalcante, profunda conhecedora do sistema Paulo Freire que reconheceu a excelência da pesquisa realizada por Salete, juntamente com os demais membros.
A este mesmo propósito, mais recentemente, encorajada por amigos, ao saberem que ela conservava intactos diversos cadernos anotações e registros dos materiais utilizados naquela experiência vivenciada há 40 anos, relatada em seu livro acima mencionado, salete houve por bem sistematizar aqueles registros, publicano-os sob o título “Vidas Aprisionadas relatos de uma prática educativa” (Editora Vozes, 2018).
Experiências vividas em seu “interlúdio”
Após enfrentar e vencer diferentes percalços, notadamente por conta de seu trabalho como Educadora Popular, em tempos de ditadura civil-militar, ela consegue finalmente ser admitida para o quadro docente da Universidade Federal da Paraíba, mas precisamente para o Centro de Educação, no Departamento de Metodologia da Educação, assumindo a docência de Prática de ensino da Sociologia da Educação, ofício que desenvolveu até a sua aposentadoria, em 1992.
Uma das marcas mais fortes do interlúdio de Salete teve a ver com a parceria também intelectual firmada com seu marido, Cornelis Van der Poel, especialmente no período de sua aposentadoria. Em pelo menos dois campos - no aprofundamento teórico-metodológico da Educação Popular e na animação da longeva e fecunda experiência de animação, à frente de uma Associação Comunitária voltada para o letramento de adultos, no Agreste Paraibano -, tal parceria prosperou notavelmente. No primeiro caso, Salete e Cornelis decidiram mergulhar fundo no estudo e na pesquisa de teóricos da Educação e da linguística, especialmente de figuras Russas, a exemplo de Mikhail Bakhtin. Deste exercício resultaram vários livros por eles editados, em parceria.
“Letramento de pessoas jovens e adultas na perspectiva sócio-histórica” (Editora A União. 1997);
“Trajetória de uma militância educacional: do sistema freireano ao letramento sócio-histórico”. (ufpb/oikos, 2007);
“Prática de Leiturização com trabalhadores e trabalhadoras” (Oikos editora, 2010)
“Rede municipal de ensino em construção” (Marconi, 2001)
No que toca à segunda experiência em parceria, protagonizada por Salete e Cornelis, cumpre destacar a qualidade de seu trabalho, alguns de cujos frutos vale ressaltar. A parceria se deu, no agreste paraibano, com várias turmas de jovens e adultos, empenhados no letramento, sob a ótica de um referencial teórico metodológico alternativo às experiências convencionais de alfabetização de adultos, por diversas razões. Coerentes com o referencial teórico que buscava ir além do sistema freireano, ao refletir práticas de letramento também iluminadas por autores como Bakhtin, educadores e educandos preferem lidar mais com o letramento do que a mera alfabetização, comumente exercitada. Em consequência, as próprias palavras geradoras eram colhidas das experiências de vida e de trabalho compartilhadas pelos educandos e educandos. Neste sentido, já não fazia sentido recorrer a cartilhas e materiais de alfabetização de adultos, que não fossem produto dos próprios educandos e educandas. Eram elas e eles, mediados por seus educadores, a exercitarem o letramento, a partir de suas próprias vivências. Tal experiência se acha bem relatada, por exemplo, em seus livros acima mencionados. A propósito também, desta experiência, importa lembrar a fecunda conexão que Cornelis e Salete mantinham com o pessoal da Rede latino americana de alfabetização de jovens e adultos a exemplo do que para eles representa CEAAL (Conselho de Educação Popular da América Latina e Caribe), sobre o qual recomendamos acessar https://www.google.com/search?q=cuando+fue+creado+ele+consejo+de+educacion+popular+latinoamericano+y+caribeno+%3F&rlz=1CANTYF_enBR1128&oq=cuando+fue+creado+ele+consejo+de+educacion+popular+latinoamericano+y+caribeno+%3F+&gs_lcrp=EgZjaHJvbWUyBggAEEUYOdIBCTkxNjkxajBqNKgCALACAQ&sourceid=chrome&ie=UTF-8&safe=active&ssui=on
Após a partida de Cornelis, Salete se mantém ativa, seja na participação de eventos ligados à EJA, a exemplo de sua contribuição aos fóruns estaduais de EJA, seja na produção e publicação de seus textos. Mesmo alcançada pelos problemas de saúde, aos seus 89 anos, segue comprometida com a causa militante da educ
ação popular.
João Pessoa, 30 de agosto de 2025