Entrevista com Alder Júlio,
sociólogo, professor, educador popular e, como ele gosta de dizer, um xucuru
desaldeado que no fim da década de 1970 ajudou a construir importantes
instrumentos de organização da classe trabalhadora e que ainda hoje continua lutando
ao lado do povo por uma sociedade sem exploração.
A Margem: Como o senhor
iniciou a sua trajetória política? O que o motivou?
Alder Júlio: Eu sou
natural de Pesqueira- PE, e como sabem, lá é um território indígena, de um povo
originário e com quem tenho muita afinidade. Me sinto de fato um xucuru
desaldeado e ao mesmo tempo com uma identidade negra, afrodescendente. São duas
referências que eu trago em mim e que tem uma grande importância nessa
trajetória, inclusive política. Passei 8 anos da minha vida no seminário.
Estudei em Pesqueira, Aracaju e Santa Maria no Rio Grande do Sul. Minha vida de
seminarista me distanciou, no começo, dessas lutas, mas em 1963, quando tinha
em torno de 15 anos, participei de uma ocupação que houve na serra Ororubá em terras
indevidamente apropriadas por fazendeiros da região. Era o governo Arraes e aí
havia as Ligas Camponesas, que tiveram a iniciativa de ocupar aquelas terras.
Fui chamado a participar por um padre lá em Pesqueira, que era assistente da
Juventude Agrária Católica (JAC). Outro ponto importante na militância ocorreu
em Santa Maria (RS). Era 1968. Na reunião que fizemos, a Juventude Operária
Católica (JOC) estava cumprindo uma tarefa organizada pela Ação Popular. Havia
um cuidado grande de atualizar seus militantes. A nossa tarefa consistia em
levar ao cemitério, durante a noite antes do dia de Finados, panfletos contra a
ditadura. Estávamos há poucos dias da edição do AI-5. Isso me marcou. Voltei
para o Nordeste. Continuei meus estudos em Ciências Sociais. Comecei no batente
muito cedo, 22 anos, no sertão de Pernambuco, Arcoverde, dando formação para os
professores de lá. No final dos anos 1970 havia uma efervescência daqueles
movimentos recém-insurgidos para a criação do PT. A gente tratava de granjear parceiros,
principalmente do mundo rural, na Paraíba, na parte do Cariri, São Sebastião do Umbuzeiro, Camaraú e outros
lugares. Eu ia para animar, para assessorar encontros de trabalhadores do
sindicato rural. Esse é um ponto da minha trajetória que me marca bastante. Aí
vieram os tempos de ocupação, que se intensificaram. A partir do surgimento da
CUT, do PT. Coube a mim acompanhar a formação do PT na região de Arcoverde, em
meia dúzia de municípios como Sertânia, Pesqueira, Venturosa, Pedra, Belo
Jardim e outros da redondeza.
A Margem: Como foi essa
organização?
Alder Júlio: A ênfase era
a parte da nucleação, que era uma experiência fundamental. Não importa o nome
que a gente empreste a essa experiência. Uns chamavam de conselhos populares,
outros de células, outros círculos, pequenas comunidades etc. O nome não
importa muito. Qual era o teor da experiência? Era a convicção de que as coisas
tinham que se desenrolar desde a base. E a base a quem competia decidir eram
esses núcleos organizados de maneira autônoma, não isolada mas interconectada
com outras instâncias. Eram esses núcleos as células vivas do movimento,
entendendo o partido, o sindicato como um movimento e não depois como uma
institucionalidade terrível em que a gente hoje mergulhou.
A Margem: Gostaria que o
senhor falasse um pouco mais da importância dos núcleos para a formação de
militantes com uma perspectiva ativa, crítica, formuladora e não simplesmente
“tarefeira”. Como era o dia a dia dos núcleos?
Alder Júlio: Esses núcleos
eram formados por local de trabalho, estudo e moradia. Funcionavam com reuniões
semanais em que se discutia a conjuntura de maneira aberta, não havia a figura
que apontasse o que era certo e o errado. Havia uma cobrança dos protagonistas
de participação, de ouvir fraternalmente as divergências e tomar uma
deliberação. A deliberação tomada ia para outras instâncias, porque o núcleo
não era isolado. O núcleo tomava as decisões a partir dos desafios da
conjuntura, locais também, dos encaminhamentos que eram feitos, a partir das
consultas de outras instâncias indicavam que os núcleos tomassem e havia a
eleição de delegados e delegadas. Eu friso muito essa concepção de delegação. É
um princípio basilar que a gente abandonou em grande parte. Não é a mesma coisa
a delegação de um mero representante. A delegação respeita a decisão do
coletivo. Mesmo divergindo do coletivo, o delegado tinha que contar o que de
fato tinha sido deliberado pelo conjunto. Outra marca desses núcleos era o
princípio da coordenação colegiada. Tínhamos uma certa ojeriza à figura do
salvador da pátria, do que manda, do que aponta. A gente preferia errar em
conjunto a acertar a partir da cabeça de uma pessoa. Havia esse sentimento da
corresponsabilidade na tomada de decisão. A coordenação era mero instrumento de
cumprimento das decisões, não era a dona, era um instrumento de cumprimento por
um período. Findo esse período, o coordenador tinha que voltar para as bases. E
quem era a base vinha a ocupar cargo de coordenação. Esse é um princípio
revolucionário.
A Margem: O que o senhor
fala faz lembrar da Comuna de Paris. Parece que é uma forma da classe
trabalhadora se organizar, porque é do coletivo, não é na da centralização, que
os trabalhadores tiram a sua força. Essa forma existia no início do PT?
Alder Júlio: Sim, no PT e
na CUT na região de Arcoverde. Vocês tem que dar o devido desconto. A minha
empolgação sugere que as coisas funcionassem de maneira perfeita. Estou talvez
caricaturando pela emoção, havia muitas deficiências também. Mas certamente o
ponto é a referência, a consciência disso, ainda que não se atingisse de
maneira satisfatória, mas a referência ajudava a caminhar, saber para onde a
gente estava indo. Um filme muito importante na época, “Queimada” tem uma frase
de Zé Dolores que expressa bem o que estou falando: “É melhor saber para onde
ir sem saber como, do que saber como e não saber para onde ir”. Essa frase tem
uma força crítica e autocrítica bastante interessante. A autocrítica é uma
palavra hoje muito esquecida e ainda menos colocada em prática. Voltando àquela
época, além do princípio da delegação havia o princípio da alternância de
cargos e funções. Trata-se de um mecanismo revolucionário que consiste em não
permitir que as mesmas pessoas permaneçam o tempo todo à frente daquela
coordenação. Mas permitir que haja uma alternância constante. A gente perdeu
isso. Outro ponto era a autonomia que se concretizava a partir de atos
concretos. Um deles era da aposta no autofinanciamento, uma autonomia em
relação ao mercado, é claro, mas uma autonomia também em relação ao Estado. Eu
me lembro muito bem dessa força de se dizer que a gente vive a partir do
tostões que a gente arrecada entre os
militantes. Havia inclusive a orientação, sabendo que se tratava de militantes
pobres, muitas vezes desempregados, de contribuir de acordo com as suas
possibilidades. Viver, organizar suas atividades a partir do valor da
arrecadação autônoma dos seus militantes (mulheres e homens). Faço um parêntese
aqui para avançar um pouco mais e dizer que em 1994, no processo eleitoral (eu
ainda estava ligado ao PT), escutei com indignação a informação veiculada pela
televisão de que o PT tinha sido agraciado com uma contribuição da Odebretch.
Evidentemente a gente é tomado de revolta, de indignação, aguardando que logo
logo surja um desmentido e vem uma nota assim: “o PT não fez nada de ilegal”.
Saí, porque pensei: não estou lutando necessariamente pela legalidade ou
qualquer legalidade, estou lutando por legitimidade!
A Margem: O senhor
identifica que já a partir daí as coisas começaram a desandar? Como o senhor
viu essa passagem?
Alder Júlio: Com muita
indignação e também com muita solidão. Porque eram poucos os que acreditavam
que a gente estava se afastando daquilo que era basilar. A autonomia estava
sendo ferida de morte. De maneira progressiva, a prática foi de apostar no
“entrismo”, de entrar nos espaços estatais e pretender mudar a sociedade porque
somos bons e eles maus. Isso é uma traição terrível ao que a gente tanto
estudava, discutia, debatia, lia dos clássicos, de que é preciso entender a
natureza do Estado moderno, que veio para cumprir uma função, mas que a maior
parte das vezes é uma função subordinada a determinações da classe dominante.
No Manifesto Comunista o Estado é mencionado como um comitê da burguesia, como
não levar a sério isso? A gente não se negava a participar do processo
eleitoral, mas não como um dogma, uma cláusula pétrea. Dependendo da
conjuntura, decidia se entraria ou não. E entrando tinha que ter normas,
critérios. Se houver necessidade, aliança com força dos parceiros, com forças
parecidas a nós, ou até mesmo diferentes, mas nunca antagônicas. O pessoal foi
tomando gosto exagerado pela eleição enquanto eleição. Então aumenta o número
de vereadores, prefeitos, deputados etc. Em um primeiro momento as alianças
eram com os parceiros clássicos: o PSB, o PCdoB, depois esse espectro foi se
alargando, até o momento que vocês já conhecem de entrar todo mundo! Entra
qualquer coisa, por que qualquer coisa valia para chegar lá. A gente lutava
fundamentalmente para a construção processual de uma nova sociedade, não de um
novo Estado. A moçada de hoje não entende o escândalo que é um deputado ter
seu comitê próprio, ter seu jornal próprio. Isso é impensável! Ninguém é
candidato de si mesmo! A ultima coisa que se discutia na época era a questão da
candidatura. E mesmo assim não se discutia candidatura de forma direta. Se
discutia a conjuntura, nessa conjuntura quais eram as prioridades para quem
quer buscar uma nova sociedade? Qual era o jeito de atuar nessa conjuntura? Se
fosse partidariamente, tudo bem, mas como construir? Que perfil de candidatura
se defendia? Por ultimo, quem dentre nós seria mais aconselhável a cumprir essa
tarefa? Repare, por último.
A Margem: A que o senhor
atribui essa mudança organizativa?
Alder Júlio: Atribuo a nós
dos movimentos sociais. Entendo que os indivíduos também têm um papel
importante na história, mas para quem almeja uma nova sociedade tem que partir
do coletivo. Se esses movimentos sociais tivessem permanecido fiéis às características
de suas origens, de estar enraizado nas lutas sociais do campo e da cidade… a
presença, a participação efetiva desses militantes nessas lutas populares,
então, dá confiança ao povo, o povo se sente irmanado, o povo sente que não
está só. Tem gente de fato sofrendo com ele, alegrando-se com ele, cobrando com
eles, conquistando aqui e acolá...Também chorando derrotas, dividindo aquele
momento. Na época, a gente tinha um esforço muito grande no processo formativo.
E hoje? Em parte tem. Tem a Escola
Florestan Fernandes, mas não atende os milhares de militantes. É interessante ver que por lá passam
lideranças... Agora, imagine, se bases tivessem essa formação que as lideranças
têm iriam permitir manipulação? Nunca!
A Margem: Há posições que
atribuem essa transformação à conjuntura econômica e política, ao
neoliberalismo, à piora das condições de vida...
Alder Júlio: E eu não contesto! Mas
ficar nisso é perigoso porque a gente está elegendo o elemento externo como o
responsável e tirando a cota direta de responsabilidade que a gente tem neste
processo.
A Margem: Daí a
importância do processo formativo…
Alder Júlio: O processo
formativo continua sendo de capital importância. Não estou falando em
escolaridade, mas de uma formação contínua que só pode ser protagonizada pelas
forças portadoras de alternatividade. Por exemplo, cultivo a memória histórica,
não com saudosismo, mas para saber na humanidade como foram as conquistas, como
foram as lutas, o que a gente deve aprender com elas, das vitórias e das
derrotas também, da experiência da humanidade.
Isso era muito levado em conta nos estudos. Também dos clássicos. Falo não
só de Marx, mas também de Rosa Luxemburgo, Gramsci, por exemplo. Falo também
dos contemporâneos de grande referência, como István Meszáros, Michael Lowy. A
gente tem que entender que teoria e prática são faces da mesma moeda, são
experiências indissociáveis a tal ponto que eu costumo dizer: diga qual a
sua prática do cotidiano que eu vou dizer qual a sua teoria e no que ela se
baseia. A gente buscava aprofundar
os processos formativos nos núcleos, mas também em outras experiências maiores,
com jornais, com boletins, com revistas. A gente abandonou isso ou pelo menos
reduziu mais do que devia. É claro que houve todas essas sucessões de desvios,
mas há certamente um lastro político nessas opções éticas. Por exemplo, o
aliancismo, que é uma opção ao mesmo tempo ética e política. A ideia que está
por trás é de chegar ao poder “de qualquer jeito” então “tudo vale”. Se a gente não respeita esse
processo formativo continuado, a gente não vai muito longe, como de fato não
foi. É importante dizer também que o processo formativo não procura apenas, por
exemplo, estudar a trajetória da humanidade, dos movimentos sociais, das
revoluções, a biografia dos clássicos como um Marx, uma Rosa Luxemburgo, com a
finalidade de reeditá-los. Isso não tem sentido! A gente colhe o espírito da
coisa para poder ficar mais forte e enfrentar de maneira adequada os desafios
de hoje. Não querer fazer deles um receituário, que seria inclusive
contradizê-los! Muita coisa continua válida, certamente, mas outras coisas não.
Os desafios são de outra ordem. Isso é tarefa nossa, dos revolucionários de
hoje.
A Margem: Como o senhor vem percebendo o
momento atual?
Alder
Júlio: Não estou
surpreso. Muito tristemente impactado, mas não surpreso. Eu lamento ter que
dizer isso, mas há de se reconhecer que tivemos muitas ocasiões de evitar esse
estrago, que me parece mais profundo do que podemos imaginar. Vai demandar
décadas para superarmos. Claro que, para superar em décadas, nós devemos
começar desde já. Então, retardaríamos infinitamente se só começarmos depois.
Quando eu digo isso penso, por exemplo, no último congresso do PT. Com tristeza
constato que não há sinais que apontem a possibilidade de autocrítica. Muito
pelo contrário. As mesmas figuras, os mesmos barões, as mesmas baronesas,
intervindo e dizendo no que não dá mais para acreditar. Eu volto a dizer que
hoje a palavra de ordem para mim é autocrítica! Não como uma palavra
abstrata, mas como manifestação de sinais concretos. Por exemplo: como é que a
gente vai refazer esse caminho, em novo estilo, com essas figuras que não
reconhecem os erros?
A Margem: Como o senhor vislumbra esse
processo de autocrítica?
Alder
Júlio: É uma iniciativa que depende muito menos de
quem está no controle atual e muito mais das forças populares, os movimentos
sociais! Quando atuávamos prezando pela autonomia, não tendo essa estreiteza de
liames com o Estado e muito menos com os governos correspondentes, fossem eles
quais fossem, tínhamos muito mais capacidade de deliberação, de atuação. Quanto
mais nos encostamos nos espaços palacianos, mais perdemos força para dizer a
verdade, para dizer o que temos que dizer. E é esse dizer que faz a diferença.
Então lamento também constatar que os movimentos sociais, em grande parte,
principalmente as lideranças, se deixaram cooptar. Muita gente foi se
acomodando em espaços governamentais. Assim que força temos de denunciar o que
anda errado? Nenhuma! As bases ficam também muito bloqueadas. Se as bases
tivessem aquela formação que estamos cobrando, seriam capazes de romper também
com os dirigentes. Mas não é assim. Notamos dirigentes hoje que vêm de décadas
à frente do movimento. Isso é bom? Não é! Para ninguém, nem para eles nem para
o movimento. Não houve a rotatividade dos movimentos sociais nessa direção. E
nas forças partidárias menos ainda. Há quanto tempo os dirigentes de hoje estão
mandando nas “cartas”? E isso é culpa apenas deles? Não! É também culpa de quem
deve deliberar. É culpa também de quem permitiu que isso acontecesse.
A Margem: Em um dos seus textos, o senhor
fala sobre a crise de referências e valores e afirma que um dos caminhos para
reassumir essas referências, de acordo com as urgências atuais, é o exercício
da mística revolucionária. O que seria isso?
Alder
Júlio: A mística
atravessa toda a luta, o processo formativo, o processo organizativo, atravessa
tudo! Mas, particularmente no processo formativo, ela deve ter lugar
preponderante. Essa foi uma característica do conjunto dos revolucionários mais
caros à nós. Estou falando da mística como categoria laica, como categoria de
revolucionários e revolucionárias. Também não estou falando da mística como, de
certa maneira, ela foi institucionalizada. A mística não é um ritual, que
começa... aquela coisa toda, ler uma poesia...Ela tem um alcance mais profundo,
pessoal e coletivamente, na medida em que é um exercício diário. É fazer uma
análise crítica dos meus passos, por onde eu andei, que atividades eu ando
desenvolvendo. Dessas atividades, quais os frutos maus ou bons que têm dado? O
revolucionário tem que, a cada dia, colocar-se diante dos desafios que ela/ele
individualmente está vivendo e, é claro, do ponto de vista coletivo também. Fazer
essa avaliação processual. A mística faz com que a gente veja, individual e
coletivamente, o que anda bem na nossa ação e o que anda mal; a cada dia buscar
melhorar, buscar ser um pouquinho mais revolucionário hoje do que ontem e
amanhã mais do que hoje também. O revolucionário que se descuida disso tem dias
contados. É claro que os equívocos fazem parte também. Nós somos seres inacabados, seres
inconclusos, limitados, precisamos exatamente ter consciência disso, para poder
minimizar as chances de reincidir, mesmo que a gente continue com as falhas.
Mas teremos a chance de falhar menos se fizermos a mística revolucionária.
A Margem: O senhor falou anteriormente
sobre teoria e prática, de se estar muito atento às decisões que se toma. A
questão da mística então está relacionada com articular passado, presente e
futuro na ação cotidiana a partir de um projeto político de sociedade?
Alder
Júlio: É perfeitamente isso. Acrescentaria os riscos
que a ausência da mística revolucionária produz. Por exemplo: um equívoco
gravíssimo é o de confundir os grandes atos públicos como sendo a manifestação
de atos revolucionários. Não estou negando a sua importância, Mas estou dizendo
do risco de reduzirmos o sentido revolucionário apenas a esses macro-espaços se
eles não estiverem revestidos também nos micro-espaços, nos espaços do
cotidiano. A semente que você está produzindo naqueles seus atos costumeiros,
naqueles atos quase invisíveis está carreganda de energia revolucionária? Estes
são tão importantes quanto as grandes manifestações. Não se está enxergando que
na história de todos os revolucionários/as, as pequenas coisas eram enfrentadas
como grandes coisas também. Outro equívoco, que é muito comum, acho que ainda
hoje, naquele tempo era mais, é confundir a revolução com o processo militar.
Falta de formação completa, de estudo, falta de intimidade com o próprio
processo revolucionário. Ora, quando você confunde o processo revolucionário
com aquelas questões militares, você está sucumbindo à um equívoco tremendo, porque
se é assim, o sistema estará sempre mais além. A guerra do golfo, por exemplo,
quando você vai ver que depois disso os armamentos se multiplicaram e se
sofisticaram, e achar que vai vencer a partir disso... Não dá! É um
reducionismo e ao mesmo tempo um vício grande. Há grande tentação de a gente
vencer pela força das armas, quando a gente consegue de fato alguma vitória, a
gente vai instaurar a nova sociedade entre aspas, por quê? Porque a gente vai
instaurar essa nova sociedade a partir da voz das armas, a partir da razão da
força. Isso não tem sustentabilidade. Eu posso manter-me ali, no alto, um
tempo, mas logo logo a história me desmente e me desmonta também.
A Margem: O que não significa dizer que
possa haver um processo revolucionário sem uma ruptura, não é?
Alder
Júlio: Com certeza, não houve nenhuma experiência
histórica nessa direção. Todas tiveram, só que as que obtiveram êxito e
continuidade não estavam apostando nisso.
Isso é, digamos assim, um incondicionamento menor em relação ao maior. É
preciso ter forte o rumo de sociedade que a gente quer.
A Margem: Temos vivido um momento carente
de alternativas. Como o senhor vê a bandeira do “Fora Temer”?
Alder
Júlio: Com muita
indignação e ao mesmo tempo sem surpresa. Eu diria que as esquerdas
partidárias, sindicais, populares, eclesiais estavam nesse momento num consenso
muito forte em cima da interpretação do caso: “foi golpe ou não foi golpe”? E
eu não sei se esse lado é mais fecundo que a gente pode testemunhar. Não sou o
dono da verdade, estou falando aqui pela minha experiência. Nos anos 70/80, não
tínhamos a questão jurídica como uma referência forte. Quando entramos nesse
embate de se foi golpe ou não nos submetemos, mesmo que implicitamente,
querendo ou não, à legalidade. Esse é um ponto. Outro ponto é
dizer: “pois bem, vejam onde chegamos? Quem era essa figura horrenda que está
aí? Quem era há oito anos ? Não individualizo apenas a figura do presidente.
Quem eram aqueles outros também?” Como é que a gente pode chegar a confiar
nesse pessoal? Como é que a gente não aceita uma parcela de responsabilidade
grave nesse desfecho? É claro que eu estou contra Temer. Acho Temer uma figura
desprezível. Não penso que mereça da gente tanta atenção. Merece atenção do
ponto de vista da luta de classes, das forças que ele representa, forças das
quais fomos aliados até pouco tempo. Não tem nada a ver com PSDB, com Temer,
nada a ver com a própria luta parlamentar. Não a acentuo como a principal,
nunca acentuei, hoje menos ainda. Só que, evidentemente, eu estou a favor da
pauta e, embora respeite muito as pessoas que estão muito fortemente
energizadas por essa argumentação do “Fora Temer”, não me alio muito a ela.
Primeiro que é todo o conjunto, não apenas Temer. Na verdade
a questão é todo aquele conjunto de forças –
no judiciário, no legislativo, no executivo também – é o conjunto da
obra que a gente tem que ver. Agora, eu não quero ficar só nisso viu? Eu
quero dizer que eu sou um homem de esperança. Quero dizer em que me
apoio para conservar essa esperança.
A Margem: Claro! E é isso que queremos ouvir.
Que mensagem o senhor nos deixa?
Alder Júlio: Para apostar nessa esperança eu me sinto um
ser histórico. Eu aposto numa retomada das forças grávidas de alternatividade,
das lutas sociais em novo estilo. Essa retomada, essa busca de nos
reenraizarmos nas camadas populares, das periferias urbanas, do campo, por toda
parte. Um chamamento ao nosso reenraizamento como primeiro passo. Vejo essa
perspectiva em alguns movimentos, como o movimento das comunidades populares,
quase desconhecido, mas que continua há quase 50 anos na luta. Muita gente não
gosta porque não é algo que dê resultado grande e imediato. Mas se quisermos
retomar temos que acreditar nessas forças moleculares que andam acontecendo.
Por exemplo, há também um vasto leque de
experiências agroecológicas espalhadas por esse semiárido. Essa esperança me é
garantida por buscar teimosamente lutar a cada dia, a cada ato, a cada momento
por um novo modo de produção, por um novo modo de consumo e por um novo modo de
gestão societal. São três coisas que estão interligadas, eu não posso falar em
uma sem implicar na outra. Repare, eu não estou idealizando. Nessa altura da
vida não dá para ir mais em idealizações, não é? Eu estou dizendo que eu aposto
nos frutos que eu constato. Quando eu falo dos anos 1980 não o resgato como
algo saudosista. Apenas os princípios que, ao meu ver, continuam atualizados.
Princípios que apontam para essa direção de uma nova sociedade. Como por
exemplo, retomar o processo formativo. Alguém diz: “mas a gente se forma na
luta” porque há sempre uma tendência a idealizar aqueles movimentos de rua como
sendo suficientes. São necessários, continuam sendo e vão continuar
sendo. Mas não são suficientes. Por isso que eu digo que a formação
estritamente política é importante mas também não é suficiente, mesmo que a
gente alargue o campo da política para além da relação sociedade/Estado. Mesmo
que eu pense a relação também da política do cotidiano. Temos que trabalhar
outras dimensões do ser humano: a dimensão de gênero, a dimensão de orientação
sexual, a dimensão de espacialidade, a dimensão étnica, a condição de pai, de
filho, de companheiro, a condição cósmica que me faz entender como ser entre
outros também, que eu devo respeitar, que eu devo ter em conta. O processo
formativo tem que ter um espectro muito mais amplo, correspondente ao próprio
processo de humanização. Trabalhando todos os componentes de maneira
articulada. Este é um processo complexo e longo, interminável. Aliás, eu só
entendo revolução como um processo interminável. Revolução nunca vai estar
pronta. Revolucionários e revolucionárias nunca vão estar acabados.
http://amargemjornal.blogspot.com.br/2017/08/jornal-margem-14-edicao-julhosetembro.html
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