segunda-feira, 21 de agosto de 2017

Entrevista ao "Jornal A Margem", 14a. Edição.

Entrevista com Alder Júlio, sociólogo, professor, educador popular e, como ele gosta de dizer, um xucuru desaldeado que no fim da década de 1970 ajudou a construir importantes instrumentos de organização da classe trabalhadora e que ainda hoje continua lutando ao lado do povo por uma sociedade sem exploração.


A Margem: Como o senhor iniciou a sua trajetória política? O que o motivou?

Alder Júlio: Eu sou natural de Pesqueira- PE, e como sabem, lá é um território indígena, de um povo originário e com quem tenho muita afinidade. Me sinto de fato um xucuru desaldeado e ao mesmo tempo com uma identidade negra, afrodescendente. São duas referências que eu trago em mim e que tem uma grande importância nessa trajetória, inclusive política. Passei 8 anos da minha vida no seminário. Estudei em Pesqueira, Aracaju e Santa Maria no Rio Grande do Sul. Minha vida de seminarista me distanciou, no começo, dessas lutas, mas em 1963, quando tinha em torno de 15 anos, participei de uma ocupação que houve na serra Ororubá em terras indevidamente apropriadas por fazendeiros da região. Era o governo Arraes e aí havia as Ligas Camponesas, que tiveram a iniciativa de ocupar aquelas terras. Fui chamado a participar por um padre lá em Pesqueira, que era assistente da Juventude Agrária Católica (JAC). Outro ponto importante na militância ocorreu em Santa Maria (RS). Era 1968. Na reunião que fizemos, a Juventude Operária Católica (JOC) estava cumprindo uma tarefa organizada pela Ação Popular. Havia um cuidado grande de atualizar seus militantes. A nossa tarefa consistia em levar ao cemitério, durante a noite antes do dia de Finados, panfletos contra a ditadura. Estávamos há poucos dias da edição do AI-5. Isso me marcou. Voltei para o Nordeste. Continuei meus estudos em Ciências Sociais. Comecei no batente muito cedo, 22 anos, no sertão de Pernambuco, Arcoverde, dando formação para os professores de lá. No final dos anos 1970 havia uma efervescência daqueles movimentos recém-insurgidos para a criação do PT. A gente tratava de granjear parceiros, principalmente do mundo rural, na Paraíba, na parte do Cariri, São Sebastião do Umbuzeiro, Camaraú e outros lugares. Eu ia para animar, para assessorar encontros de trabalhadores do sindicato rural. Esse é um ponto da minha trajetória que me marca bastante. Aí vieram os tempos de ocupação, que se intensificaram. A partir do surgimento da CUT, do PT. Coube a mim acompanhar a formação do PT na região de Arcoverde, em meia dúzia de municípios como Sertânia, Pesqueira, Venturosa, Pedra, Belo Jardim e outros da redondeza.

A Margem: Como foi essa organização?

Alder Júlio: A ênfase era a parte da nucleação, que era uma experiência fundamental. Não importa o nome que a gente empreste a essa experiência. Uns chamavam de conselhos populares, outros de células, outros círculos, pequenas comunidades etc. O nome não importa muito. Qual era o teor da experiência? Era a convicção de que as coisas tinham que se desenrolar desde a base. E a base a quem competia decidir eram esses núcleos organizados de maneira autônoma, não isolada mas interconectada com outras instâncias. Eram esses núcleos as células vivas do movimento, entendendo o partido, o sindicato como um movimento e não depois como uma institucionalidade terrível em que a gente hoje mergulhou.

A Margem: Gostaria que o senhor falasse um pouco mais da importância dos núcleos para a formação de militantes com uma perspectiva ativa, crítica, formuladora e não simplesmente “tarefeira”. Como era o dia a dia dos núcleos?

Alder Júlio: Esses núcleos eram formados por local de trabalho, estudo e moradia. Funcionavam com reuniões semanais em que se discutia a conjuntura de maneira aberta, não havia a figura que apontasse o que era certo e o errado. Havia uma cobrança dos protagonistas de participação, de ouvir fraternalmente as divergências e tomar uma deliberação. A deliberação tomada ia para outras instâncias, porque o núcleo não era isolado. O núcleo tomava as decisões a partir dos desafios da conjuntura, locais também, dos encaminhamentos que eram feitos, a partir das consultas de outras instâncias indicavam que os núcleos tomassem e havia a eleição de delegados e delegadas. Eu friso muito essa concepção de delegação. É um princípio basilar que a gente abandonou em grande parte. Não é a mesma coisa a delegação de um mero representante. A delegação respeita a decisão do coletivo. Mesmo divergindo do coletivo, o delegado tinha que contar o que de fato tinha sido deliberado pelo conjunto. Outra marca desses núcleos era o princípio da coordenação colegiada. Tínhamos uma certa ojeriza à figura do salvador da pátria, do que manda, do que aponta. A gente preferia errar em conjunto a acertar a partir da cabeça de uma pessoa. Havia esse sentimento da corresponsabilidade na tomada de decisão. A coordenação era mero instrumento de cumprimento das decisões, não era a dona, era um instrumento de cumprimento por um período. Findo esse período, o coordenador tinha que voltar para as bases. E quem era a base vinha a ocupar cargo de coordenação. Esse é um princípio revolucionário.

A Margem: O que o senhor fala faz lembrar da Comuna de Paris. Parece que é uma forma da classe trabalhadora se organizar, porque é do coletivo, não é na da centralização, que os trabalhadores tiram a sua força. Essa forma existia no início do PT?

Alder Júlio: Sim, no PT e na CUT na região de Arcoverde. Vocês tem que dar o devido desconto. A minha empolgação sugere que as coisas funcionassem de maneira perfeita. Estou talvez caricaturando pela emoção, havia muitas deficiências também. Mas certamente o ponto é a referência, a consciência disso, ainda que não se atingisse de maneira satisfatória, mas a referência ajudava a caminhar, saber para onde a gente estava indo. Um filme muito importante na época, “Queimada” tem uma frase de Zé Dolores que expressa bem o que estou falando: “É melhor saber para onde ir sem saber como, do que saber como e não saber para onde ir”. Essa frase tem uma força crítica e autocrítica bastante interessante. A autocrítica é uma palavra hoje muito esquecida e ainda menos colocada em prática. Voltando àquela época, além do princípio da delegação havia o princípio da alternância de cargos e funções. Trata-se de um mecanismo revolucionário que consiste em não permitir que as mesmas pessoas permaneçam o tempo todo à frente daquela coordenação. Mas permitir que haja uma alternância constante. A gente perdeu isso. Outro ponto era a autonomia que se concretizava a partir de atos concretos. Um deles era da aposta no autofinanciamento, uma autonomia em relação ao mercado, é claro, mas uma autonomia também em relação ao Estado. Eu me lembro muito bem dessa força de se dizer que a gente vive a partir do tostões que a gente  arrecada entre os militantes. Havia inclusive a orientação, sabendo que se tratava de militantes pobres, muitas vezes desempregados, de contribuir de acordo com as suas possibilidades. Viver, organizar suas atividades a partir do valor da arrecadação autônoma dos seus militantes (mulheres e homens). Faço um parêntese aqui para avançar um pouco mais e dizer que em 1994, no processo eleitoral (eu ainda estava ligado ao PT), escutei com indignação a informação veiculada pela televisão de que o PT tinha sido agraciado com uma contribuição da Odebretch. Evidentemente a gente é tomado de revolta, de indignação, aguardando que logo logo surja um desmentido e vem uma nota assim: “o PT não fez nada de ilegal”. Saí, porque pensei: não estou lutando necessariamente pela legalidade ou qualquer legalidade, estou lutando por legitimidade!

A Margem: O senhor identifica que já a partir daí as coisas começaram a desandar? Como o senhor viu essa passagem?

Alder Júlio: Com muita indignação e também com muita solidão. Porque eram poucos os que acreditavam que a gente estava se afastando daquilo que era basilar. A autonomia estava sendo ferida de morte. De maneira progressiva, a prática foi de apostar no “entrismo”, de entrar nos espaços estatais e pretender mudar a sociedade porque somos bons e eles maus. Isso é uma traição terrível ao que a gente tanto estudava, discutia, debatia, lia dos clássicos, de que é preciso entender a natureza do Estado moderno, que veio para cumprir uma função, mas que a maior parte das vezes é uma função subordinada a determinações da classe dominante. No Manifesto Comunista o Estado é mencionado como um comitê da burguesia, como não levar a sério isso? A gente não se negava a participar do processo eleitoral, mas não como um dogma, uma cláusula pétrea. Dependendo da conjuntura, decidia se entraria ou não. E entrando tinha que ter normas, critérios. Se houver necessidade, aliança com força dos parceiros, com forças parecidas a nós, ou até mesmo diferentes, mas nunca antagônicas. O pessoal foi tomando gosto exagerado pela eleição enquanto eleição. Então aumenta o número de vereadores, prefeitos, deputados etc. Em um primeiro momento as alianças eram com os parceiros clássicos: o PSB, o PCdoB, depois esse espectro foi se alargando, até o momento que vocês já conhecem de entrar todo mundo! Entra qualquer coisa, por que qualquer coisa valia para chegar lá. A gente lutava fundamentalmente para a construção processual de uma nova sociedade, não de um novo Estado. A moçada de hoje não entende o escândalo que é um deputado ter seu comitê próprio, ter seu jornal próprio. Isso é impensável! Ninguém é candidato de si mesmo! A ultima coisa que se discutia na época era a questão da candidatura. E mesmo assim não se discutia candidatura de forma direta. Se discutia a conjuntura, nessa conjuntura quais eram as prioridades para quem quer buscar uma nova sociedade? Qual era o jeito de atuar nessa conjuntura? Se fosse partidariamente, tudo bem, mas como construir? Que perfil de candidatura se defendia? Por ultimo, quem dentre nós seria mais aconselhável a cumprir essa tarefa? Repare, por último.

A Margem: A que o senhor atribui essa mudança organizativa?

Alder Júlio: Atribuo a nós dos movimentos sociais. Entendo que os indivíduos também têm um papel importante na história, mas para quem almeja uma nova sociedade tem que partir do coletivo. Se esses movimentos sociais tivessem permanecido fiéis às características de suas origens, de estar enraizado nas lutas sociais do campo e da cidade… a presença, a participação efetiva desses militantes nessas lutas populares, então, dá confiança ao povo, o povo se sente irmanado, o povo sente que não está só. Tem gente de fato sofrendo com ele, alegrando-se com ele, cobrando com eles, conquistando aqui e acolá...Também chorando derrotas, dividindo aquele momento. Na época, a gente tinha um esforço muito grande no processo formativo. E hoje?  Em parte tem. Tem a Escola Florestan Fernandes, mas não atende os milhares de militantes.  É interessante ver que por lá passam lideranças... Agora, imagine, se bases tivessem essa formação que as lideranças têm iriam permitir manipulação? Nunca!

A Margem: Há posições que atribuem essa transformação à conjuntura econômica e política, ao neoliberalismo, à piora das condições de vida...

Alder Júlio: E eu não contesto! Mas ficar nisso é perigoso porque a gente está elegendo o elemento externo como o responsável e tirando a cota direta de responsabilidade que a gente tem neste processo.
A Margem: Daí a importância do processo formativo…

Alder Júlio: O processo formativo continua sendo de capital importância. Não estou falando em escolaridade, mas de uma formação contínua que só pode ser protagonizada pelas forças portadoras de alternatividade. Por exemplo, cultivo a memória histórica, não com saudosismo, mas para saber na humanidade como foram as conquistas, como foram as lutas, o que a gente deve aprender com elas, das vitórias e das derrotas também, da experiência da humanidade.  Isso era muito levado em conta nos estudos. Também dos clássicos. Falo não só de Marx, mas também de Rosa Luxemburgo, Gramsci, por exemplo. Falo também dos contemporâneos de grande referência, como István Meszáros, Michael Lowy. A gente tem que entender que teoria e prática são faces da mesma moeda, são experiências indissociáveis a tal ponto que eu costumo dizer: diga qual a sua prática do cotidiano que eu vou dizer qual a sua teoria e no que ela se baseia.  A gente buscava aprofundar os processos formativos nos núcleos, mas também em outras experiências maiores, com jornais, com boletins, com revistas. A gente abandonou isso ou pelo menos reduziu mais do que devia. É claro que houve todas essas sucessões de desvios, mas há certamente um lastro político nessas opções éticas. Por exemplo, o aliancismo, que é uma opção ao mesmo tempo ética e política. A ideia que está por trás é de chegar ao poder “de qualquer jeito” então “tudo vale”. Se a gente não respeita esse processo formativo continuado, a gente não vai muito longe, como de fato não foi. É importante dizer também que o processo formativo não procura apenas, por exemplo, estudar a trajetória da humanidade, dos movimentos sociais, das revoluções, a biografia dos clássicos como um Marx, uma Rosa Luxemburgo, com a finalidade de reeditá-los. Isso não tem sentido! A gente colhe o espírito da coisa para poder ficar mais forte e enfrentar de maneira adequada os desafios de hoje. Não querer fazer deles um receituário, que seria inclusive contradizê-los! Muita coisa continua válida, certamente, mas outras coisas não. Os desafios são de outra ordem. Isso é tarefa nossa, dos revolucionários de hoje.

A Margem: Como o senhor vem percebendo o momento atual?

Alder Júlio: Não estou surpreso. Muito tristemente impactado, mas não surpreso. Eu lamento ter que dizer isso, mas há de se reconhecer que tivemos muitas ocasiões de evitar esse estrago, que me parece mais profundo do que podemos imaginar. Vai demandar décadas para superarmos. Claro que, para superar em décadas, nós devemos começar desde já. Então, retardaríamos infinitamente se só começarmos depois. Quando eu digo isso penso, por exemplo, no último congresso do PT. Com tristeza constato que não há sinais que apontem a possibilidade de autocrítica. Muito pelo contrário. As mesmas figuras, os mesmos barões, as mesmas baronesas, intervindo e dizendo no que não dá mais para acreditar. Eu volto a dizer que hoje a palavra de ordem para mim é autocrítica! Não como uma palavra abstrata, mas como manifestação de sinais concretos. Por exemplo: como é que a gente vai refazer esse caminho, em novo estilo, com essas figuras que não reconhecem os erros?

A Margem: Como o senhor vislumbra esse processo de autocrítica?

Alder Júlio:  É uma iniciativa que depende muito menos de quem está no controle atual e muito mais das forças populares, os movimentos sociais! Quando atuávamos prezando pela autonomia, não tendo essa estreiteza de liames com o Estado e muito menos com os governos correspondentes, fossem eles quais fossem, tínhamos muito mais capacidade de deliberação, de atuação. Quanto mais nos encostamos nos espaços palacianos, mais perdemos força para dizer a verdade, para dizer o que temos que dizer. E é esse dizer que faz a diferença. Então lamento também constatar que os movimentos sociais, em grande parte, principalmente as lideranças, se deixaram cooptar. Muita gente foi se acomodando em espaços governamentais. Assim que força temos de denunciar o que anda errado? Nenhuma! As bases ficam também muito bloqueadas. Se as bases tivessem aquela formação que estamos cobrando, seriam capazes de romper também com os dirigentes. Mas não é assim. Notamos dirigentes hoje que vêm de décadas à frente do movimento. Isso é bom? Não é! Para ninguém, nem para eles nem para o movimento. Não houve a rotatividade dos movimentos sociais nessa direção. E nas forças partidárias menos ainda. Há quanto tempo os dirigentes de hoje estão mandando nas “cartas”? E isso é culpa apenas deles? Não! É também culpa de quem deve deliberar. É culpa também de quem permitiu que isso acontecesse.


A Margem: Em um dos seus textos, o senhor fala sobre a crise de referências e valores e afirma que um dos caminhos para reassumir essas referências, de acordo com as urgências atuais, é o exercício da mística revolucionária. O que seria isso?

Alder Júlio: A mística atravessa toda a luta, o processo formativo, o processo organizativo, atravessa tudo! Mas, particularmente no processo formativo, ela deve ter lugar preponderante. Essa foi uma característica do conjunto dos revolucionários mais caros à nós. Estou falando da mística como categoria laica, como categoria de revolucionários e revolucionárias. Também não estou falando da mística como, de certa maneira, ela foi institucionalizada. A mística não é um ritual, que começa... aquela coisa toda, ler uma poesia...Ela tem um alcance mais profundo, pessoal e coletivamente, na medida em que é um exercício diário. É fazer uma análise crítica dos meus passos, por onde eu andei, que atividades eu ando desenvolvendo. Dessas atividades, quais os frutos maus ou bons que têm dado? O revolucionário tem que, a cada dia, colocar-se diante dos desafios que ela/ele individualmente está vivendo e, é claro, do ponto de vista coletivo também. Fazer essa avaliação processual. A mística faz com que a gente veja, individual e coletivamente, o que anda bem na nossa ação e o que anda mal; a cada dia buscar melhorar, buscar ser um pouquinho mais revolucionário hoje do que ontem e amanhã mais do que hoje também. O revolucionário que se descuida disso tem dias contados. É claro que os equívocos fazem parte também.  Nós somos seres inacabados, seres inconclusos, limitados, precisamos exatamente ter consciência disso, para poder minimizar as chances de reincidir, mesmo que a gente continue com as falhas. Mas teremos a chance de falhar menos se fizermos a mística revolucionária.

A Margem: O senhor falou anteriormente sobre teoria e prática, de se estar muito atento às decisões que se toma. A questão da mística então está relacionada com articular passado, presente e futuro na ação cotidiana a partir de um projeto político de sociedade?

Alder Júlio:  É perfeitamente isso. Acrescentaria os riscos que a ausência da mística revolucionária produz. Por exemplo: um equívoco gravíssimo é o de confundir os grandes atos públicos como sendo a manifestação de atos revolucionários. Não estou negando a sua importância, Mas estou dizendo do risco de reduzirmos o sentido revolucionário apenas a esses macro-espaços se eles não estiverem revestidos também nos micro-espaços, nos espaços do cotidiano. A semente que você está produzindo naqueles seus atos costumeiros, naqueles atos quase invisíveis está carreganda de energia revolucionária? Estes são tão importantes quanto as grandes manifestações. Não se está enxergando que na história de todos os revolucionários/as, as pequenas coisas eram enfrentadas como grandes coisas também. Outro equívoco, que é muito comum, acho que ainda hoje, naquele tempo era mais, é confundir a revolução com o processo militar. Falta de formação completa, de estudo, falta de intimidade com o próprio processo revolucionário. Ora, quando você confunde o processo revolucionário com aquelas questões militares, você está sucumbindo à um equívoco tremendo, porque se é assim, o sistema estará sempre mais além. A guerra do golfo, por exemplo, quando você vai ver que depois disso os armamentos se multiplicaram e se sofisticaram, e achar que vai vencer a partir disso... Não dá! É um reducionismo e ao mesmo tempo um vício grande. Há grande tentação de a gente vencer pela força das armas, quando a gente consegue de fato alguma vitória, a gente vai instaurar a nova sociedade entre aspas, por quê? Porque a gente vai instaurar essa nova sociedade a partir da voz das armas, a partir da razão da força. Isso não tem sustentabilidade. Eu posso manter-me ali, no alto, um tempo, mas logo logo a história me desmente e me desmonta também.

A Margem: O que não significa dizer que possa haver um processo revolucionário sem uma ruptura, não é?

Alder Júlio:  Com certeza, não houve nenhuma experiência histórica nessa direção. Todas tiveram, só que as que obtiveram êxito e continuidade não estavam apostando nisso.  Isso é, digamos assim, um incondicionamento menor em relação ao maior. É preciso ter forte o rumo de sociedade que a gente quer.


A Margem: Temos vivido um momento carente de alternativas. Como o senhor vê a bandeira do “Fora Temer”?

Alder Júlio: Com muita indignação e ao mesmo tempo sem surpresa. Eu diria que as esquerdas partidárias, sindicais, populares, eclesiais estavam nesse momento num consenso muito forte em cima da interpretação do caso: “foi golpe ou não foi golpe”? E eu não sei se esse lado é mais fecundo que a gente pode testemunhar. Não sou o dono da verdade, estou falando aqui pela minha experiência. Nos anos 70/80, não tínhamos a questão jurídica como uma referência forte. Quando entramos nesse embate de se foi golpe ou não nos submetemos, mesmo que implicitamente, querendo ou não, à legalidade. Esse é um ponto. Outro ponto é dizer: “pois bem, vejam onde chegamos? Quem era essa figura horrenda que está aí? Quem era há oito anos ? Não individualizo apenas a figura do presidente. Quem eram aqueles outros também?” Como é que a gente pode chegar a confiar nesse pessoal? Como é que a gente não aceita uma parcela de responsabilidade grave nesse desfecho? É claro que eu estou contra Temer. Acho Temer uma figura desprezível. Não penso que mereça da gente tanta atenção. Merece atenção do ponto de vista da luta de classes, das forças que ele representa, forças das quais fomos aliados até pouco tempo. Não tem nada a ver com PSDB, com Temer, nada a ver com a própria luta parlamentar. Não a acentuo como a principal, nunca acentuei, hoje menos ainda. Só que, evidentemente, eu estou a favor da pauta e, embora respeite muito as pessoas que estão muito fortemente energizadas por essa argumentação do “Fora Temer”, não me alio muito a ela. Primeiro que é todo o conjunto, não apenas Temer. Na verdade a questão é todo aquele conjunto de forças –  no judiciário, no legislativo, no executivo também – é o conjunto da obra que a gente tem que ver.  Agora, eu não quero ficar só nisso viu? Eu quero dizer que eu sou um homem de esperança. Quero dizer em que me apoio para conservar essa esperança.

A Margem: Claro! E é isso que queremos ouvir. Que mensagem o senhor nos deixa?

Alder Júlio:  Para apostar nessa esperança eu me sinto um ser histórico. Eu aposto numa retomada das forças grávidas de alternatividade, das lutas sociais em novo estilo. Essa retomada, essa busca de nos reenraizarmos nas camadas populares, das periferias urbanas, do campo, por toda parte. Um chamamento ao nosso reenraizamento como primeiro passo. Vejo essa perspectiva em alguns movimentos, como o movimento das comunidades populares, quase desconhecido, mas que continua há quase 50 anos na luta. Muita gente não gosta porque não é algo que dê resultado grande e imediato. Mas se quisermos retomar temos que acreditar nessas forças moleculares que andam acontecendo. Por exemplo, há também um vasto leque de experiências agroecológicas espalhadas por esse semiárido. Essa esperança me é garantida por buscar teimosamente lutar a cada dia, a cada ato, a cada momento por um novo modo de produção, por um novo modo de consumo e por um novo modo de gestão societal. São três coisas que estão interligadas, eu não posso falar em uma sem implicar na outra. Repare, eu não estou idealizando. Nessa altura da vida não dá para ir mais em idealizações, não é? Eu estou dizendo que eu aposto nos frutos que eu constato. Quando eu falo dos anos 1980 não o resgato como algo saudosista. Apenas os princípios que, ao meu ver, continuam atualizados. Princípios que apontam para essa direção de uma nova sociedade. Como por exemplo, retomar o processo formativo. Alguém diz: “mas a gente se forma na luta” porque há sempre uma tendência a idealizar aqueles movimentos de rua como sendo suficientes. São necessários, continuam sendo e vão continuar sendo. Mas não são suficientes. Por isso que eu digo que a formação estritamente política é importante mas também não é suficiente, mesmo que a gente alargue o campo da política para além da relação sociedade/Estado. Mesmo que eu pense a relação também da política do cotidiano. Temos que trabalhar outras dimensões do ser humano: a dimensão de gênero, a dimensão de orientação sexual, a dimensão de espacialidade, a dimensão étnica, a condição de pai, de filho, de companheiro, a condição cósmica que me faz entender como ser entre outros também, que eu devo respeitar, que eu devo ter em conta. O processo formativo tem que ter um espectro muito mais amplo, correspondente ao próprio processo de humanização. Trabalhando todos os componentes de maneira articulada. Este é um processo complexo e longo, interminável. Aliás, eu só entendo revolução como um processo interminável. Revolução nunca vai estar pronta. Revolucionários e revolucionárias nunca vão estar acabados.





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