quinta-feira, 16 de novembro de 2023

Nas veredas do movimento de Jesus: desde o chão da história

 Nas veredas do movimento de Jesus: desde o chão da história.


Gloria Maria Carneiro, Eraldo Leme Batista e Alder Júlio Calado


Introdução


Não é segredo a complexidade dos tempos em que vivemos. Se é verdade que toda época comporta alterações, certo é também que nem todo tempo corresponde a uma mudança de época, o que sucede raramente na história, após séculos. Os dias atuais (de algumas décadas para cá), sinalizam traços de profundas mudanças (planetária, social, econômica, política, cultural). Estes sinais, nem sempre vem sendo percebidos, por vezes, passam ao largo da compreensão do senso comum. Parte expressiva da população, de tão acostumada aos ritmos do cotidiano, nem sempre tem condições de perceber esses traços de uma mudança de época.


No caso das igrejas cristãs, isto parece ser ainda mais imperceptível, para a grande maioria. O Tipo de formação doutrinal, assegurada pela catequese, pelos sacramentos e por outros ritos eclesiásticos (católicos, ortodoxos, protestantes), têm se dado através de séculos, ocasionando extrema dificuldade de se ver além do costumeiro, do tradicional, de modo que corremos o risco de manter os olhos fechados ao que é novo, ao que é diferente, aos que não pensam e não agem como nós. E com a agravante de nos julgarmos melhores do que os demais. Sem querermos, tentamos nos apropriar das próprias fontes em que bebemos, tentando assim, tornar-nos proprietários exclusivos da “verdade”, não raro reduzindo-as ao nosso pensar, ao nosso sentir, ao nosso agir, teimando em vão, ser impermeáveis a valores que não sejam os nossos, indispondo-nos  ao diálogo intercultural.


Não obstante, a predominância dessa tendência homogeneizante, somos surpreendidos com diferentes modos de compreensão da realidade histórica e também do caminhar dos cristãos e das cristãs. É o que verificamos, por exemplo, nestas duas reflexões que passamos a considerar. A primeira, proposta pelo teólogo espanhol José Maria Vigil, que atuou durante décadas na Nicarágua e no Panamá, na qual nos convida, em sua recente exposição intitulada: “Hacia una espiritualidad integral (José Maria Vigil prefere o adjetivo “profunda”) desde la cosmovisión latinoamericana y originaria” e por outro lado, o texto escrito por Eduardo Hoornaert, sob o título de “O Jesus do mito e o Jesus da História: à procura do equilíbrio perdido” (http://eduardohoornaert.blogspot.com/).


“Por uma espiritualidade integral desde a cosmovisão latinoamericana e originária”


Após o período paleolítico, mudanças significativas se deram no modo de viver dos humanos. A passagem do nomadismo para um modo de vida sedentário, graças ao surgimento de práticas agrícolas e da pecuária, propiciou alterações referentes às relações de propriedade. Se, antes, os humanos, condicionados pelo nomadismo, se sentiam satisfeitos com o que conseguiam recolher da mãe natureza (caça, pesca, extrativismo), ao se fixarem em um território, passaram a experimentar a necessidade de armazenamento de produtos, como medida de providência, o que não tardaria a instigar uma tendência ao acúmulo de bens. Esta experiência se mostrou propícia à aquisição de bens privados, a serviço de alguns e em detrimento de outros. Não só os humanos sofreram com esta tendência: antes deles a própria mãe Terra que, séculos mais tarde, se transformaria em negócio lucrativo, em prejuízo de seus próprios ritmos. Em razão do processo de acumulação de bens, ela foi sendo objeto de uma exploração abusiva. Isto também implica um traço de espiritualidade, no caso de caráter negativo: se, antes, os humanos se sentiam satisfeitos com o que dela recolhiam, fruindo a gratuidade da mãe Terra e suas belezas, com a passagem para o regime de propriedade privada, os humanos passaram a explorá-la como alvo de lucro, ao que correspondeu uma mudança de espiritualidade, orientada pelo utilitarismo (os primeiros textos sagrados apontam nessa direção, a exemplo do mito da criação em Gênesis). Passamos então, a nos considerar mais importantes do que os demais seres (antropocentrismo).


A partir destas primeiras experiências de dominação (sobre outros humanos e os demais seres), vai tomando lugar uma espiritualidade de dominação, desta vez, sob o pretexto da pretensa dicotomia cidadãos da terra e cidadãos do céu, estes considerados superiores.


Espiritualidade que vai avançando, especialmente nas sociedades de classes, notadamente no modo de produção capitalista, no qual uma pequena minoria se alça à condição de guia dos pobres mortais. A expressão desta realidade está também na evolução da Cristandade, ao longo de séculos, notadamente a partir da era constantiniana (séc. IV).


Desde então, a teologia da Cristandade não tem cessado em recorrer a sucessivos mecanismos de dominação pelo alto clero, em conluio com os imperadores: ora com a Inquisição, ora com o Código de Direito Canônico, ora com o “Syllabus” (Pio IX), ora com o “Index” Librorum Prohibitorum, ora com as sanções de tipo obediência obsequiosa... É com base nesses pretextos, que se despreza o exercício crítico que o povo de Deus é chamado a exercer, de modo a  engessar a consciência e os próprios critérios do Evangelho, estendendo-se por todo o Segundo Testamento, no qual, Paulo recomenda que examinemos tudo, para retermos o que é bom (cf.1Ts 5,21). Entre tantos efeitos deste engessamento/reducionismo, podemos incluir o de uma compreensão segundo a qual só a bíblia é a palavra de Deus, de modo a ocultar o fato de que, antes e para além da bíblia, a Criação constitui o livro por excelência da Divina Ruah.


Mais do que a bíblia, a Criação é o primeiro livro do Criador. A bíblia é um comentário desta Criação, feito dentro de um contexto histórico-geográfico específico, que deve ser lido e entendido criticamente (a fé não extingue a razão: “scientia ac fides”). A espiritualidade da Cristandade têm fôlego curto, à medida que os seres humanos vão acumulando novos achados, e avançam na aquisição de novos conhecimentos, a exemplo da teoria da evolução, ainda que não a devamos absolutizá-la. Nesse sentido, ao nos recolocarmos no contexto do espírito de Medellín (“opção pelos pobres”), vamos nos dar conta de que, para além dos pobres, enquanto gente oprimida, nos deparamos com a Mãe-Terra, a grande oprimida pela ganância e impiedade dos humanos.


É assim que vamos progressivamente sendo inspirados pela divina Ruah, colocando-nos como Filhos e Filhas da Mãe-Terra e do Cosmos, passando a ser um com eles e neles. Desta forma, vamos passando a uma compreensão da utopia do reino, a partir de nossa comunhão com os valores ecológicos aos quais o movimento de Jesus também vai se integrando.


É, por conseguinte, que vamos também assumindo que a distinção entre evangelho e religião, sendo esta um dado cultural que, por vezes, mais atrapalha do que ajuda o caminhar no seguimento de Jesus.


“O Jesus da história e o Jesus do mito: à procura do equilíbrio perdido” (Eduardo Hoornaert)


O mais recente texto da lavra de Eduardo Hoornaert (1930- ), tem por título O Jesus da história e o Jesus do mito: à procura do equilíbrio perdido. Nele, dando sequência a instigantes e contínuas pesquisas históricas sobre o Cristianismo, ele nos traz um fecundo convite: o de distinguirmos um Jesus percebido como uma figura mitológica, em torno da qual, como brasa coberta de cinza, se acumulam dezenas de narrativas que pouco ou nada tem a ver com a figura de Jesus de Nazaré e, por outro lado, “o Jesus da história”, isto é, uma percepção de Jesus inspirada nas permanentes buscas de fontes e documentos históricos, utilizados como único critério de busca da verdade, sem qualquer abertura ao sentido do mito, como expressão da sabedoria popular. Convém, desde logo, prevenir os leitores e leitoras de que o intento investigativo do autor não propõe uma tomada acrítica de posição a favor de um lado ou de outro, mas de nos trazer elementos investigativos e bom senso, que nos ajudem a uma escolha própria, sempre provisória e em construção. 


Quanto ao Jesus do mito, o autor começa ponderando sobre os riscos de uma interpretação fundamentalista e equivocada acerca do significado do mito, ora identificando-o como mentira, narrativa alienada, ora como diretamente identificado com a verdade. A seguir, ele trata de enveredar didaticamente, em busca de distinguir e esclarecer cada uma destas versões. Com relação ao mito, o autor adverte contra um duplo risco. O primeiro tem a ver com a tendência a absolutizar como verdadeiras as narrativas (inclusive bíblicas), sem qualquer preocupação com sua contextualização sócio histórica. Aqui, a tendência é de uma aceitação acrítica da letra do texto sagrado, sem se preocupar com os sentidos que a letra pode comportar. Assume-se mecanicamente o que está escrito como pura verdade, independentemente do tempo em que apareceram esses escritos e as condições históricas em que aquele povo estava envolvido. A criação tal como vem narrada no Gênesis, por exemplo, é assumida como verdade absoluta e válida para todos os tempos, ou seja, as descobertas que os humanos, dotados de inteligência, vem fazendo através dos séculos de nada valem. Nega-se a ciência. Outro extremo criticado pelo autor, diz respeito a um desprezo pelo saber popular, tomado como não científico e portanto contrário à verdade, sem perceber que a própria ciência parte do bom senso de que a sabedoria popular é também portadora. Trata-se de dois equívocos a serem evitados. Para tanto, o autor recomenda três critérios alternativos para se fazer uma leitura razoável de todo o texto, inclusive dos textos sagrados.


Eduardo Hoornaert empenha-se em revisitar episódios da história do Cristianismo – a exemplo do que faz em torno de Alexandria e Antioquia -, cuidando de analisar as visões antagônicas que caracterizaram a perspectiva eclesiástica de cada um desses “modelos”. Após uma criteriosa análise do que ele chama de “equilíbrio perdido”, ele nos oferece preciosa contribuição para romper e superar tal desequilíbrio:

- exercitar o bom senso, isto é, perceber o fundamental da vida dos seres humanos e da natureza, sem nos fixarmos em extremos, contrariando nossa própria condição de seres humanos, com os nossos acertos e limitações;

- ousar tomar posição: com enorme freqüência, sentimo-nos paralisados ante situações esdrúxulas tendendo a nos acomodar com elas, “naturalizando-as” em vez de tomarmos uma posição corajosa, denuncia/anúncio;

- compreender a necessidade de contextualizar historicamente os fatos e a realidade na qual nos movemos.


Lições a extrair


Assim como tantos e tantas, não saímos intocados da experiência dessas duas reflexões. Cuidamos de recolher delas algumas lições. Uma primeira tem a ver com a percepção de que somos sempre chamados e chamadas a ir passando de uma consciência ingênua a uma consciência crítica. Aprendemos que isto também vale para o entendimento dos valores sagrados. Não podemos compreendê-los de uma só vez. Na infância, foi-nos administrado, no Catecismo, um alimento apropriado àquela idade, mas agora, sendo adultas e adultos, necessitamos de um alimento sólido, como aconselha a Carta aos Hebreus: “Ora, todo aquele que se alimenta de leite é inexperiente na palavra da justiça, porque é criança. Mas o alimento sólido é para os adultos, para aqueles que, pela prática, têm as suas faculdades exercitadas para discernir não somente o bem, mas também o mal.”(Hb 5,13-14).


Neste sentido, muito temos a recolher de Eduardo Hoornaert, em especial das pistas de ação que ele propõe: a do discernimento (“bom senso”), superação do medo e a contextualização histórica. A partir daí, podemos concluir que a universalidade da Boa Nova de Jesus vai bem além daquela pretendida pela Cristandade: o Espírito sopra onde quer (Jo 3,8), ou seja, ninguém tem o monopólio da verdade. Por conseguinte, a Cristandade não deve pretender monopolizar o sopro da divina Ruah. Sem precisarmos renunciar à nossa identidade de discípulos e discípulas de Jesus – ou justamente por isto -, somos chamados a reconhecer como legítimas diversas espiritualidades, para além do Cristianismo, como aprendemos com José Maria Vigil. Trata-se de nos abrir sempre ao diálogo com outras espiritualidades, na escuta atenta e na partilha, inclusive correndo o doce risco de sermos influenciados por elas. Isto soa ainda mais necessário, quando tratamos dos povos originários e dos povos da grande diáspora africana. Do mesmo modo, sentimo-nos interpelados pelo Evangelho a reconhecermos a presença e a ação do Ressuscitado em pessoas e gentes que não só não se afirmam cristãs, como até não professam qualquer credo religioso. Este é o caso, por exemplo, de uma mulher que se reconhece atéia e marxista, Rosa Luxemburgo, cujo livro “O socialismo e as igrejas cristãs” constitui um libelo contra o clericalismo da primeira década do século passado (o livro é datado 1905). Importa conferir esse texto para constatarmos a contundência com que Rosa Luxemburgo, atuando como uma “teóloga da libertação”, e biblicamente bem fundamentada, denuncia o clero de então, cobrando-lhe coerência. 


Nesta perspectiva proposta – cada um a seu modo – por Vigil e Hoornaert, avaliamos positivamente a experiência que vimos vivenciando, tanto no Grupo Kairós (de modo presencial), tanto de forma virtual, às sextas- feiras, das 19 às 21 horas, oportunidades em que, temos refletido sistematicamente sobre as contribuições contidas no livro “50 Anos de Teologias da Libertação” (dois volumes), organizado por Edward Guimarães, Emerson Sbardelloti e Marcelo Barros, leitura que recomendamos.


João Pessoa – PB, 16 de novembro de 2023

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A autora e os autores deste texto, são membros do Grupo Kairós.


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