quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

Tributo à ação pioneira e de parceria dos Teólogos Protestantes da Libertação: apontamentos sobre a Conferência do Nordeste, Recife, 1962.

 Tributo à ação pioneira e de parceria dos Teólogos Protestantes da Libertação: apontamentos sobre a Conferência do Nordeste, Recife, 1962.* 


Alder Júlio Ferreira Calado


“Vocês estão fazendo um piquenique em cima de um vulcão” (Observação feita a um dos participantes por alguém presente no evento)


Mesmo a quem se empenha em acompanhar a trajetória e o engajamento social dos cristãos, na América Latina e no Brasil, resulta deveras impactante rememorar o acontecimento conhecido como “Conferência do Nordeste”, que teve lugar em Recife, de 22 a 29 de julho de 1962. Trata-se de um evento promovido por um conjunto de denominações protestantes históricas (mais de uma dúzia: Igreja Presbiteriana, Igreja Metodista, Igreja Luterana, Igreja Anglicana, Igreja Batista, entre outras), que já vinham ensaiando uma compreensão crítico-transformadora do que se passava no Brasil, em meados dos anos 50. Graças ao empenho profético de lideranças protestantes, a exemplo de figuras tais como Richard Shaull, João Dias de Araújo, Joaquim Beato, Waldo César, Almir dos Santos, entre outros, o movimento Evangélico vinha se mostrando, desde os anos 50, como grande protagonista das lutas populares por Justiça social, no Brasil e na América Latina.


Em virtude desse protagonismo, diversas denominações protestantes, especialmente por meio do seu “Setor de responsabilidade social”, decidiu organizar grandes reuniões periódicas, com objetivo de compreender melhor o que se passava na sociedade brasileira, em busca das transformações necessárias. Em consequência houveram por bem, já em 1955, organizar, em São Paulo, uma primeira reunião de estudos, com a participação de cerca de uma dezena de denominações protestantes. Em 1957, nova reunião de estudos foi convocada, em busca de aprofundar sua compreensão e seu engajamento social. A terceira reunião de estudos ocorreu em 1960, prosseguindo seu esforço de compreensão dos dramas nacionais. A culminância, porém, se deu em 1962, com a realização, em Recife, da “conferência do Nordeste”, da qual participaram mais de 160 pessoas, não apenas lideranças do Protestantismo brasileiro, mas também diversas figuras de intelectuais brasileiros de reconhecida contribuição teórica ao pensamento nacional.

As linhas que seguem, tem o propósito de rememorar traços relevantes deste acontecimento, com o intuito de ressaltar sua densidade histórica, não apenas em relação ao Cristianismo no Brasil, mas também como um relevante marco das ações coletivas da segunda metade do século passado. Começamos por uma breve contextualização sócio-histórica da época, seguida de considerações em torno do Protestantismo no Brasil, naquela oportunidade. Tratamos, em seguida, de sublinhar aspectos temáticos inovadores, destacados em diversas conferências então pronunciadas por autores de destaque, tanto na área do protestantismo quanto na área da intelectualidade brasileira. Fazemos questão de ressaltar sensíveis diferenças, no seio do Protestantismo entre as ações daquela época e as que hoje são protagonizadas pela quase totalidade destas mesmas igrejas, fortemente atraídas pela onda neopentecostal de direita que assola o mundo, o continente e o Brasil.


Que cenário encontramos entre os anos 50 e 60?


Vivíamos os primeiros anos do pós-Guerra, do qual resultaram duas forças hegemônicas e em conflito: por um lado, o bloco capitalista liderado pelos Estados Unidos, ao qual se ligam os países do Ocidente, e, por outro lado, a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, em defesa do Socialismo. Instalou-se o tempo mais conhecido como “Guerra Fria”. Na América Latina e no Caribe, contra as profundas e crescentes desigualdades sociais, das quais resultam condições sub-humanas, irrompem numerosos conflitos sociais como expressão das lutas populares por libertação. É assim que, ao longo dos anos 50, teve lugar em Cuba um processo revolucionário, culminando com a derrota de Fulgêncio Batista, ditador apoiado pelos Estados Unidos. Em consequência das medidas tomadas pelo governo revolucionário de Cuba (entre elas, a Reforma Agrária), o Governo dos Estados Unidos não tarda em perseguir a Revolução Cubana cujo Governo se socorre da União Soviética, episódio presente na instalação em Cuba de mísseis soviéticos, em defesa e como prevenção às ameaças dos Estados Unidos, esquentando assim a “Guerra Fria”. 


Especificamente com relação ao Brasil, vivíamos igualmente um período de grande ebulição social e política. Graças à secular opressão que o sistema colonialista/capitalista havia implantado no Brasil, milhares de trabalhadores e trabalhadoras, do campo e da cidade, com importante apoio e participação de estudantes e intelectuais de esquerda, mostravam-se mobilizados e em luta pelas chamadas ‘’Reformas de Base” (Reforma Agrária, Reforma Urbana, Reforma bancária, Reforma da Educação, entre outras), contando também com o apoio do Governo João Goulart. Estas forças sociais pela sua pauta de reivindicações suscitaram crescentes reações das forças então dominantes (latifundiários, banqueiros, grandes empresas, todas contando com o apoio da Igreja Católica e dos Estados Unidos). As forças dominantes, lideradas pelo Governo dos Estados Unidos, temiam que o Brasil viesse a transformar-se em uma nova Cuba, razão por que o Governo dos Estados Unidos tratou de propor ações e medidas assistencialistas, com o objetivo de deter o avanço das forças populares. 


As Ligas Camponesas surgidas no engenho Galiléia, em Vitória de Santo Antão-PE, sob a liderança de figuras como  Francisco Julião, Zezé da Galileia, João Targino em meados dos anos 50, com reivindicações trabalhistas, conseguiram espalhar-se rapidamente pelo Nordeste, inclusive na Paraíba, em que se tornaram célebres lideranças da Liga de Sapé, figuras como a de João Pedro Teixeira, Elizabeth Teixeira (a quem homenageamos pelos seus 99 anos, completados ontem, 13 de fevereiro: “Mulher marcada para viver”) e outras. Eis por que fora escolhida a cidade de Recife, para sediar a quarta Conferência do Nordeste.


Antecedentes internos da Conferência do Nordeste


Em 2023, sob a organização de Edward Guimarães, Emerson Sbardelotti e Marcelo Barros, foi publicado pela Editora Recriar o livro (em 2 volumes)  “50 anos de Teologias da Libertação”, cujo segundo capítulo (volume.1, pp. 89-111) de autoria de Cláudio Oliveira Ribeiro e Paulo Agostinho N. Baptista, rememora e analisa as raízes ecumênicas da Teologia da Libertação, trazendo-nos preciosas informações sobre figuras do Protestantismo. Talvez por conta de sua ênfase na dimensão ecumênica, os autores se mostram bastante generosos em relação aos Teólogos e Teólogas católicos, ao se absterem de explicitar a precedência protestante dessas raízes.


Com efeito, enquanto a vertente católica dava os seus primeiros passos, em meados dos anos 60 (Comblin e Beozzo, por exemplo, fazem menção dos primeiros e sucessivos encontros realizados por Teólogos como Ivan Illich, Comblin, Gustavo Gutierrez, Segundo Galilea, Juan Luis Segundo, Ana Flora Anderson, Gilberto Gorgulho, entre outros, em Petrópolis, em Cuernavaca, Santiago, Montevidéu…), diversos Teólogos protestantes (Richard Shaull, Rubem Alves, Joaquim Beato, João Dias de Araújo, entre outros), alguns deles desde anos 50, já militam nesta seara, seja por iniciativa institucional em perspectiva ecumênica (Graças aos esforços envidados por diversas Igrejas Reformadas, integrantes, desde 1934, da Confederação Evangélica Brasileira, que também animou a União Cristã de estudantes do Brasil, estudantes que animaram, de modo progressista e de esquerda, lutas sociais da época).


Importa, porém, assinalar que tal protagonismo dos Protestantes na elaboração de uma Teologia da Libertação (expressão presente na tese de Rubem Alves, “Rumo a uma Teologia da Libertação”, tendo como Orientador a Richard Shaull em 1969), bem como no empenho hercúleo em exercitar o ecumenismo entre as diversas denominações (somente depois, também com os católicos), não se deu sem conflitos e oposição de algumas lideranças. Cumpre ainda lembrar que a ação pioneira e de parceria ecumênica de teólogos protestantes, iniciada desde os anos 50, prosseguiu e se acentuou com o trabalho conjunto com teólogos e teólogas católicos, parceria da qual a fundação do CEBI (Centro de Estudos Bíblicos) em 1979, constitui um exemplo emblemático, como o é também, em meados dos anos 80, a participação de teólogos protestantes na conhecida Coleção “Teologia e Libertação”, iniciativa desafiadora, de cujo Conselho de Assessoria era integrante o teólogo Júlio de Santa Ana. 


Retomando a rememoração de conflitos internos existentes entre a ala progressista e a ala conservadora dos componentes Coordenação da Confederação Evangélica Brasileira, o impasse foi contornado, por meio da decisão colegiada de distribuir diferentes tarefas entre seus membros, uma das quais - Setor de Responsabilidade Social - foi assumida por lideranças fortemente comprometidas com a causa libertadora dos empobrecidos. 


Foi graças ao Setor de Responsabilidade Social, que se tomou a decisão de promover reuniões de estudos, com o objetivo de se conhecer melhor a formação histórica e social do Brasil, razão pela qual, já em 1955, em São Paulo, se realizou a primeira de 4 reuniões de estudos (a segunda aconteceu em 1957, enquanto a terceira em 1960), culminando com a quarta dessas reuniões de estudos, desta vez de forma bastante ampliada, da qual participaram 167 delegados.


Um dos traços relevantes desses pioneiros da Teologia da Libertação - inclusive em âmbito latino-americano - foi o lugar privilegiado do recurso às Ciências Sociais como instrumento analítico-crítico da realidade social, inclusive, de inspiração marxista, condicionante das ações desenvolvidas pelas igrejas e seus membros. Tratava-se de uma iniciativa protagonizada por teólogos, quase todos protestantes de reconhecida competência teológica e social, tais como Richard Shaull, Julio de Santa Ana, Julio Barreiro, Hugo Assmann, Rubem Alves, entre outros. 


A este propósito, convém reportar-nos não apenas à contribuição específica de Richard, como também de vários outros teólogos, principalmente ligados à Igreja Presbiteriana, como também a diversas outras denominações. Quanto ao primeiro, nunca é demais destacar sua ação profética, desde a Colômbia nos anos 40, e no Brasil, desde a primeira metade dos anos 50, tendo ele se tornado mais conhecido com a publicação de seu livro “Cristianismo e Revolução". Em parceria com outros Teólogos latinos americanos (Luís Odell, Julio Barreiro, Júlio de Santa Ana, entre outros) e brasileiros (Rubens Alves e outros), algumas iniciativas formativas e editoriais mostraram-se preciosas. Uma delas, a fundação de um órgão - ISAL (Iglesia y Sociedad ) - uma delas teve um grande impacto organizativo, tanto do ponto de vista organizativo, quanto do ponto de vista da educação popular, à medida que estimulava a produção e circulação de estudos críticos sobre a realidade social latino-americana, como restou comprovado pelas revistas “Cristianismo y Sociedad”, “Tierra no Eva”, a que deve ser agregado o ingente empenho de Julio Barreiro na especial divulgação em língua Espanhola, dos livros de Paulo Freire.


Enquanto isto, sempre de forma articulada, importa registrar a fecundidade  dos esforços de teólogos brasileiros, como Rubem Alves, Joaquim Beato, João Dias de Araújo, entre outros, apoiados por diversas denominações, de fundarem um Seminário para acolher formandos das mais diversas denominações, demonstrando um zelo especial pela qualidade crítica da formação de suas futuras lideranças. A esta iniciativa, vão se somando outras, inclusive no plano da comunicação social, a exemplo do conhecido CEI (Centro de Evangelização e Informação), depois transformado CEDI (Centro Ecumênico de Documentação e Informações), dentre cujos protagonistas se achavam Jether Ramalho Pereira, Ruben Alves, Waldo Cézar, entre outros.       


           


Breve reflexão sobre a “Conferência do Nordeste”


A Conferência do Nordeste realizou-se em Recife, de 22 a 29 de julho de 1962, sediada no Colégio Agnes Erskine. Mais do que o Recife, o Nordeste era palco de crescente efervescência social e política. O Brasil vivia momentos de tensão: de um lado, o ascenso das lutas populares e sindicais, com o clamor dos trabalhadores pelas chamadas “Reformas de Base”; por outro lado, a reação crescente por parte de um conjunto de forças da classe dominante: os grandes proprietários de terra, os grandes empresários, amplos setores da Igreja Católica e das Igrejas Evangélicas, a reação dos militares em conluio com o governo dos Estados Unidos. Verdadeiro desafio a ser enfrentado pelos organizadores e pelos participantes desta Conferência do Nordeste. Não foi por acaso que, três meses antes deste evento, fora assassinado, em Sapé-PB, em 02 de Abril de 1962, João Pedro Texeira, principal líder da Liga Camponesa de Sapé.     


A semana contou com a colaboração de várias de suas lideranças. Ao sociólogo Waldo César coube a Secretaria executiva do evento, ele mesmo tendo registrado por escrito as exposições e os debates da semana, com a contribuição do Bispo Metodista Almir dos Santos. Feita a abertura da Conferência do Nordeste, no dia 22/07, já no dia 23, intervieram outras figuras-chave, a exemplo do reverendo Joaquim Beato e do reverendo João Dias de Araújo, além da Conferência proferida por Celso Furtado, então Superintendente da SUDENE, a quem coube refletir sobre “O Nordeste e o Processo Revolucionário brasileiro”. Do ponto de vista dos conferencistas protestantes coube ao Revdo Joaquim Beato refletir sobre o tema “Os Profetas em Épocas de Grandes Transformações Sociais e Políticas”, enquanto o Revdo João Dias de Araújo recebeu a incumbência de refletir sobre “A Revolução do Reino de Deus: Cristo e o Processo Revolucionário Brasileiro”.


E assim, ao longo dos outros dias, foram ouvidas diferentes figuras tanto do mundo protestante quanto representantes da sociedade civil, entre os quais, Gilberto Freyre, convém lembrar ainda, a participação de outros intelectuais, como Paul Singer, entre outros.

Enquanto isto, intensificava-se um ambiente socialmente explosivo, por todo o Brasil. Sentia-se um cheiro de Golpe no ar. No ano seguinte, os acontecimentos internacionais também contribuíam para aumentar as tensões internas. As Ligas Camponesas prosperavam e se expandiam por outras regiões do país. Os órgãos sindicais, em especial o CGP emitia sinais de mobilização, enquanto os estudantes se manifestavam mobilizados por todo o Brasil. Nos primeiros meses de 1964, as organizações reacionárias também intensificaram sua mobilização, inclusive por meio das igrejas cristãs reacionárias, manifestando-se principalmente na famigerada “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”, culminando com o Golpe de Estado em 1964.


Em consequência, observou-se uma sucessão de prisões, de torturas, de assassinatos, de banimentos e outros atos repressivos que alcançaram as principais lideranças políticas, de movimentos populares, sindicais, partidários e também lideranças de Igrejas, lideranças estudantis. Sobre muitas lideranças das Igrejas promotoras da “Conferência do Nordeste” se abateu forte repressão, alcançando inclusive figuras como Joaquim Beato, João Dias de Araújo, Júlio de Santa Ana, e mais tarde, ainda outros tais como, Zwinglio Mota Dias, Jaime Wright, Waldo César, Jether Pereira Ramalho, entre outros. 


Estes teólogos e outros mais jovens, inclusive teólogas, ainda durante a repressão, juntaram-se a teólogos e teólogas católicos, reforçando os protagonistas católicos da Teologia da Libertação, com os quais participaram de múltiplas iniciativas conjuntas.


Ensinamentos a recolher 

 

Essas breves notas têm o propósito de, ao rememorar fatos ainda pouco conhecidos, seja do lado católico, seja do lado protestante, de incentivar sobretudo jovens do meio popular, especialmente por meio da Educação Popular, a melhor compreenderem nossa realidade, de modo a se sentirem comprometidos com nossos processos de transformação e de construção, desde já, de uma nova sociedade, alternativa, à barbárie capitalista.


* Texto digitado (sendo ditado pelo autor, por conta de sua deficiência visual) por Elizabete Pontes Santos, Heloíse Calado e Gabriel Luar, ao qual coube revisar. Com a expressão de gratidão do autor.  


João Pessoa, 14 de Fevereiro de 2024. 


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