sábado, 19 de outubro de 2024

Intérpretes do Brasil (II): Traços heurísticos do aporte de Lélia Gonzalez

Intérpretes do Brasil (II): Traços heurísticos do aporte de Lélia Gonzalez


Alder Júlio Ferreira Calado


Damos aqui prosseguimento a uma série de textos destinados a uma revisitação da biografia e da produção de homens e mulheres que se

mostram reconhecidamente como uma referência emblemática na

interpretação histórico-crítica da sociedade brasileira, com o propósito de

estimular, especialmente em jovens militantes, o exercício revolucionário da

memória histórica dos oprimidos e explorados.

Como já assinalado desde o primeiro texto, consagrado a Ruy Mauro Marini,

não estamos seguindo uma ordem cronológica, mas, antes, priorizando

aquelas figuras, cujas contribuições nos parecem marcadas de alto teor

crítico-propositivo, ainda que gozando de uma atenção que consideramos

muito a quem do seu merecido lugar de intérpretes qualificados das

relações sociais características do modo de produção dominante da

sociedade brasileira.


Nas linhas que seguem, iniciamos por uma breve notícia biobibliográfica de

Lélia Gonzalez, seguida de uma rememoração das ideias axiais por ela

expressas, seja em seus ensaios, em seus artigos, em suas intervenções e

entrevistas. Em um outro tópico, trataremos de destacar traços relevantes

de sua contribuição teórica à interpretação do Feminismo Negro, no Brasil.

Por último, trataremos de ressaltar, a relevância teórica que sua

contribuição, como intérprete da sociedade brasileira, especialmente no que

concerne ao feminismo e à Negritude, tendo tido sempre o cuidado de

articular dialeticamente os conceitos de “Gênero”, “Raça” e “Classe”.

Lélia Gonzalez: Elementos de um percurso biobibliográfico.


Lélia Gonzalez (1935-1994), nascida Lélia de Almeida, em uma periferia de

Belo Horizonte, de um pai operário ferroviário e de uma mãe indígena,

trabalhando como doméstica constituindo uma família numerosa de 18 filhos

e filhas, das quais Lélia é a penúltima nascida. Em função da natureza do

trabalho do pai, muda-se para uma periferia do Rio, graças inclusive à

condição favorável conquistada pelo seu irmão Jaime, jogador de futebol do

Atlético Mineiro que fora contratado pelo Flamengo, afirmando-se, também

aí, como um craque (integrou a seleção brasileira no período e ajudou o

Flamengo a conquistar o tricampeonato carioca de 1942, 1943, 1944).


Com a ascensão de Jaime pela via do futebol - marca frequente em figuras

das classes populares, principalmente dos negros -, toda a família passa a

ser beneficiada, também Lélia. Após cursar o ensino primário, consegue ter

acesso no centro da cidade a uma Escola Pública de reconhecida qualidade,

no centro do Rio, enquanto o seu Ensino Médio cursou no famoso Colégio

Pedro II. Para os filhos e as filhas do Povo Negro, isto constituía quase uma

exceção que Lélia aproveitou, de modo exponencial, tornando-se uma

estudante aplicadíssima e reconhecida por seus professores e colegas. Mais

tarde, Lélia faria questão de destacar a relevância da via dos estudos que,

no caso de sua família negra, se somaria à outra via - a do esporte - seguida

pelo seu irmão. Teve, porém, que pagar para tanto um preço alto: o do

“branqueamento”, isto é, o de ter que tolerar acomodar-se às condições

dominantes, comportando-se inclusive no vestir e no plano estético, como

próxima dos colegas brancos. Mais tarde, ela vai ressaltar esse detalhe.

Aos 19 anos, Lélia ingressa para o Curso de História e Geografia da então

Universidade Estadual da Guanabara, atual Universidade Estadual do Rio de

Janeiro (UERJ), após o qual vai cursar Filosofia, na mesma Universidade.

Cada vez mais descobrindo seu potencial crítico e desbravador, parte para

fazer sua Pós-Graduação, tendo cursado o Mestrado em Comunicação Social

e o Doutorado em Antropologia Política, pela PUC do Rio. Vivíamos um

período impregnado de muitas figuras formuladoras do pensamento

brasileiro, a exemplo de Guerreiro Ramos.

Profundamente tocada por uma experiência conjugal, da qual resultam

graves consequências para ela e para o futuro marido. Já com certa idade

(em torno dos 30 anos), enamorou-se de Luiz Carlos Gonzalez, de família

espanhola. Relacionamento que, de início, não sofreria represálias da família

branca: em quanto esta avaliava tratar-se de uma “concubinagem”. A partir,

contudo, do momento em que a família Gonzalez tomou conhecimento da

formalização daquele relacionamento, mediante o casamento, a vida de Luís

Carlos e Lélia se tornaria um inferno de rejeição e crescentes hostilidades.

Pelo menos em parte, uma consequência deste episódio implicaria no suicídio

de Luís Carlos. Em vista de prestar homenagem ao marido, que, tanto havia

amado e estimulado seu compromisso com sua identidade de mulher negra,

Lélia Gonzalez decidiu manter seu nome, mesmo quando de um segundo

relacionamento (desta vez, com um negro que não se reconhecia como tal).

Lélia tratou de enfrentar e superar este trauma, recorrendo também aos

conhecimentos da psicanálise. Passou, então, a estudar sistematicamente


clássicos da área, especialmente Freud e Lacan, sempre associando-os aos

seus achados “Ladino-Amefricanos”, inspirando-se em figuras como a de

Franz Fanon.

Dotando-se de tão precioso “Curriculum”, empenha-se em fazer um uso

frutuosos dos seus achados, à medida que se disponha crescentemente a

compartilhar seus conhecimentos com o Povo Negro, passando a exercitar

uma contínua militância política, seja na resistência à Ditadura Empresarial-

Militar (de que resultam contra ela registros nos órgãos de repressão, já em

1972), seja na efetiva contribuição à organização do Movimento Negro

Unificado (MNU), seja na animação de festas da cultura negra (escolas de

samba, blocos carnavalescos, e participante do Candomblé) seja na sua

militância no PT e depois no PDT, tendo contribuído ativamente no processo

constituinte de 1987/1988, ao tempo em que cuidava de aprofundar sua

achega teórica, de forma interseccional, acerca das raízes históricas do

povo negro, no Brasil, na América Latina, no Caribe, nos Estados Unidos e na

África.

Nesta toada, impacta-nos observar a quantidade e a qualidade de sua

produção teórica, durante algumas décadas, combinando a elaboração de

ensaios, de artigos, de entrevistas e de outras intervenções. Deste

relevante legado bibliográfico, destacamos:

“Festas Populares no Brasil”. Rio de Janeiro, Índex, 1987;

“Lugar de Negro” (com Carlos Hasenbalg). Rio de Janeiro, Marco

Zero, 1982 (Coleção Dois Pontos)”;

“Por um Feminismo Afro-Latino-Americano”, Revista Isis

Internacional, n.8, Rio de Janeiro, 1983, p.12-20;

"Mulher Negra, essa Quilombola". Folha de S. Paulo, Folhetim.

Domingo, 22 de novembro de 1981;

“A mulher negra na sociedade brasileira (uma abordagem político-

econômica)” In: Luz Madel (org.), O lugar da mulher, estudos sobre a

condição feminina na sociedade atual, Rio de Janeiro, Graal, v.1, 1982

(Coleção Tendências 1);

“Racismo e sexismo na cultura brasileira” In: Luiz Antônio Silva,

Movimentos sociais, urbanos, minorias étnicas e outros estudos,

Brasília, ANPOCS, Capítulo 3, 1983 [Ciências Sociais Hoje 2];

& quot;O Terror nosso de Cada Dia & quot;. In. Raça e Classe. (2): 8, ago./set.

1987.

& quot;A Categoria Político-Cultural de Americanidade & quot;. In. Time Brasileiro,

Rio de Janeiro (92/93): 69-82, jan./jun. 1988.


& quot;As Americanas do Brasil e sua Militância & quot;. In. Maioria Falante. (7): 5,

maio/jun. 1988.

& quot;Nanny ". In. Humanidades, Brasília (17): 23-5, 1988.

"A Importância da Organização da Mulher Negra no Processo de

Transformação Social & quot;. In. Raça e Classe. (5): 2, nov./dez. 1988;

& quot;Uma Viagem à Martinica - & quot;. In. MNU Jornal. (20): 5, out./nov;

(N.d.)

“América ladina”, de Lélia Gonzalez. Volume 5 da BBLA, 2022.


Edição: Ateliê Humanidades (Brasil) e Tucán Ediciones (Chile). - Uma

antologia organizada por Melina de Lima (historiadora e neta de Lélia)

Conceitos axiais trabalhados por Lélia Gonzalez

Com base em pesquisas recentes e menos recentes em textos, entrevistas e

documentários em torno da figura emblemática de Lélia Gonzalez e do

feminismo negro, nomeadamente as pesquisadoras Luíza Bairros, Beatriz

Nascimento, Raquel Barreto, Elizabeth Viana, Sueli Carneiro, Grada Kilomba,

Carla Akotirene entre outras, ousamos fazer uma breve incursão pelo

universo vocabular trabalhado por Lélia Gonzalez.


Sempre empenhada em sua trajetória de intelectual engajada, em articular

organicamente seus achados teóricos e sua militância nos Movimentos

Populares (especialmente no Movimento Negro unificado, o Coletivo de

Mulheres Negras N’Zinga, o Instituto de Pesquisas das Culturas Negras,

entre outros), Lélia Gonzalez também se destaca pela sua postura

heurística, de quem busca fundamentar elementos epistemológicos da

Cultura Negra, razão pela qual ousou propor alguns instrumentos teórico-

conceituais que se têm revelado pertinentes e fecundos como ferramenta

de interpretação histórico-cultural da formação social do Brasil. Nas linhas

que seguem, vamos trazer alguns desses conceitos. 

De partida, cumpri atentar para o itinerário teórico metodológico da

interseccionalidade escolhido por Lélia Gonzalez, compatível, aliás, com seu

processo formativo, tendo ela circulado pela História e Geografia, pela

Filosofia, pela Comunicação Social, pela Antropologia-Política e pela

Psicanálise, em uma época em que mal se começava a seguir por esta trilha.

Do campo da história, por exemplo - mas sempre dinamicamente articulada a

outros campos - Lélia Gonzalez trabalha o conceito de “Amefricanidade

Ladina”. Entendia que os povos diaspóricos da Mãe-África, em parte,

sequestrados e escravizados pelos Europeus nas Américas, precisam ser


reconhecidos como protagonistas de uma nova história, que não é

reprodução passiva da cultura eurocêntrica.

Longe das interpretações eurocêntricas, dominantes inclusive no Brasil, o

processo de colonização, malgrado toda sua violência, não logrou reeditar

nos colonizados sua visão de mundo, à medida que:


Do ponto de vista econômico, por exemplo, o processo de colonização, seja no contexto do Escravismo, seja no contexto do Capitalismo, se deu fundamentalmente graças ao trabalho dos Afro Brasileiros, que vão tomando consciência de serem os principais protagonistas das riquezas produzidas, ontem como hoje, no campo e na cidade, ainda que delas continuam marginalizados, quanto à fruição das mesmas;

No âmbito da Cultura, igualmente, os Afro-Brasileiros se dão conta do seu denso protagonismo em sua visão de mundo, seja nos costumes, seja no mundo das artes, das letras, das danças, das festas populares e até nos falares. Não foi por acaso, neste entendi, que Lélia Gonzalez, ao exemplificar a linguagem própria das pessoas negras, ousou cunhar a expressão “Pretuguês”. Com efeito, resta fácil constatar o imenso universo vocabular observável nos falares negros, expressos no cotidiano familiar, no trabalho, nas artes, na música, nos esportes , nas religiões de matriz africana, etc.   

 Alicerçada principalmente no Marxismo, Lélia Gonzalez vai interpretar a realidade econômica do Brasil e da América Latina e do Caribe, como a constituir parte integrante do sistema capitalista mundial, no qual a divisão social do trabalho bem como suas relações axiais se dão de modo desigual e combinado. No modo de produção capitalista aos países periféricos cabe uma inserção desigual e subordinada tanto aos grandes conglomerados transnacionais (normalmente sediados nos países centrais do Capitalismo), como aos Estados nacionais centrais.       


Ao contrário, deste processo secular resultam múltiplos aspectos econômicos, políticos e culturais que pouco ou nada tem a ver com a cultura eurocêntrica. É neste sentido que Lélia Gonzalez, solidamente apoiada nas experiências dos Negros nos Estados Unidos, na América Latina e no Caribe e no Brasil, sempre em diálogo com figuras exponenciais do mundo Negro, a exemplo de Angela Davis, e Franz Fanon sustenta a existência de um novo sujeito histórico resultante desse processo que ela nomeia como “ladino-amefricano”. 


No plano da Psicanálise, Lélia Gonzalez também inova, a partir da combinação do uso psicanalíticos trabalhados por Freud e Jacques Lacan por um lado, e dados concretos de sua própria experiência de Negritude. Foi assim que ela ousou, em sua leitura de mundo afrodiásporico, adotar conceitos tais como “Neurose cultural”, “Racismo por denegação” e outros. Quanto ao primeiro, Lélia Gonzalez entende que tal é a introjeção pelas pessoas Negras dos valores eurocêntricos, durante séculos de colonialismo e escravidão, que elas acabam assimilando e reproduzindo acriticamente ideias valores, crenças e comportamentos, de modo à confirmarem o mito da supremacia branca e o da inferioridade invencível das pessoas negras, passando assim a agirem conforme os ditames da classe dominante. Isto se dá, por exemplo, quando reproduzem a ideologia de que “não há racismo no Brasil”. O conceito de “Racismo por denegação” se faz presente pelo fato de que, se por um lado negam, por outro acabam afirmando-ou na complementação de sua negativa: “No Brasil, não há Racismo, pois eu sou empregada negra em uma família de brancos, e todos me respeitam.” 


Elementos principais do aporte teórico de Lélia Gonzalez


Desta breve paisagem sinótica biobibliográfica do itinerário de Lélia Gonzalez, tratamos, por fim, de sublinhar alguns aspectos, com o propósito de incentivar especialmente jovens militantes dos Movimentos Populares e de outras organizações de base de nossa sociedade, a seguirem aprofundando o legado teórico-prático desta intelectual orgânica, como mais uma ferramenta de leitura crítica de nossa realidade, como meio de transformá-la. Neste sentido, começamos por ressaltar a relevância de sua “práxis”, isto é de seu compromisso de combinar dialeticamente seus achados teóricos e sua múltipla militância social, seja no Movimento Negro Unificado, seja no Coletivo Feminista Mizinga, seja na criação do Patido dos Trabalhadores (e depois no PDT), seja em diversas organizações culturais negras, seja no processo constituinte de 1987/1988, seja ainda na preciosa Articulação dos movimentos e organizações negras, em âmbito nacional latino-americano e do Caribe, nos Estados Unidos e na África. Que esta rápida e incompleta revisitação do denso legado de Lélia Gonzalez nos inspire a todos - notadamente, nossos jovens militantes de base - a vencermos a inquietante letargia que acomete parte expressiva de nossas organizações de base, inclusive, os Movimentos Sociais Populares, em busca de uma retomada perseverante do trabalho de base, no campo e nas periferias urbanas.




João Pessoa, 19 de outubro de 2024



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