terça-feira, 31 de dezembro de 2024

Intérpretes do Brasil (X): Astrojildo Pereira, uma compreensão anarco-comunista da cultura brasileira

Intérpretes do Brasil (X): Astrojildo Pereira, uma compreensão anarco-comunista da cultura brasileira  


Alder Júlio Ferreira Calado 


Nas trilhas desta incursão por alguns intérpretes - homens e mulheres -, de nossa terra e de nossas gentes revisitamos, desta vez, a figura de Astrojildo Pereira, cujo nome completo é Astrojildo Pereira Duarte Silva, de cujo legado buscamos recolher elementos e traços complementares de nossa trajetória histórico-cultural voltamos, por tanto, a exercitar a memória histórica de nossa formação social brasileira como um dos passos decisivos para a transformação processual das relações sociais capitalistas, que seguem semeando e espalhando a barbárie em escalas internacional, latino-americana e brasileira. Nestas nossas incursões rememorativas, sem descuidarmos das diferenças de interpretação entre os autores e autoras revisitados, cuidamos sobretudo de captar os pontos comuns de compreensão de nossa realidade, orientados sobremaneira pelos critérios de interpretação alinhados com a perspectiva histórico-dialética da realidade.


Astrojildo Pereira nasceu em Rio Bonito-RJ, em 1890, procedente de família de classe média, proprietária de terra, vivendo do cultivo e do comércio de bananas. Desde criança, Astrojildo mostrou-se tomado de muita curiosidade, a qual a escola não conseguia satisfazer, razão pela qual interrompe cedo sua frequência à escola (ainda no curso ginasial). Ao mudar-se para Niterói, vai encontrar melhores condições de relacionar-se com a imprensa com uma rica diversidade de leituras, a exemplo dos textos da lavra de Machado de Assis. Tão aficionado se tornou dos escritos de Machado de Assis, que aos 17/18 anos de idade, ao tomar conhecimento de que seu autor preferido agonizava, ousou dirigir-se à casa de Machado de Assis. 


Ao bater a sua porta veio alguém - que depois se saberia tratar-se de Euclides da Cunha -, que lhe perguntou o que desejava. Respondeu-lhe ter vindo fazer uma breve visita a Machado de Assis. Tocado por aquela cena, Euclides da Cunha o conduz até ao leito onde agonizava Machado de Assis. O adolescente/jovem Astrojildo, reverente, limita-se a beijar-lhe a mão. Voltando para casa, em seguida. Por muito tempo, Astrojildo guardou em segredo este episódio ocorrido em 1908, no bairro Cosme Velho, onde se situava a residência de Machado de Assis, considerado como o “bruxo do Cosme Velho” por setores da classe dominante de então, em razão das críticas contumazes feitas por Machado ao comportamento e aos costumes hipócritas daquela sociedade. 


Ao mesmo tempo, Astrojildo Pereira graças à combinação de suas leituras com a sua postura crítica de arguto observador, vai descobrindo melhor as condições de vida e de trabalho dos pobres de sua época, em sua maioria negros, desempregados e humilhados pelos setores dominantes. Crescem nele a indignação e o compromisso de solidariedade com os “de baixo”, expressos em seus romances, em seus contos e demais escritos. Sentimentos reforçados ainda mais pela crescente atuação do movimento sindical liderado pelos anarquistas, dos quais ele passaria a ser uma liderança-referência. Daí por diante, Astrojildo Pereira passa a ser um militante combativo da causa operário-camponesa, sobretudo pela organização de greves, das quais a mais importante foi a de 1917 - marco relevante das lutas sociais no brasil -, e, ao mesmo tempo, Astrojildo passaria a militar também como jornalista, escrevendo nos principais jornais da região, especialmente nos jornais anarquistas.


Dando mostras também de sua curiosidade internacionalista, em 1911, o jovem Astrojildo, com apenas 21 anos, comete a aventura de viajar a Paris, não obstante os imensos obstáculos que teve que enfrentar. A despeito de sua brevíssima estada, conseguiu contactar e ler relevantes obras das principais figuras anarquistas de então. De volta ao Brasil, prossegue sua militância, seja em busca da organização da resistência, inclusive por meio de sucessivas greves, seja por meio de seus costumeiros artigos publicados na imprensa da região, principalmente nos diversos órgãos da imprensa anarquista. Graças ao seu talento de escritor, seus textos eram muito apreciados, tanto em razão de seu conteúdo, quanto sobretudo pela clareza de seu estilo, bastante acessível aos próprios trabalhadores e trabalhadoras.


Outra marca da personalidade de Astrojildo, por muitos reconhecida e testemunhada, tinha a ver com sua postura afável de lidar tanto com os parceiros quanto com os diferentes, motivo pelo qual Martin Cézar Feijó o trata como “O revolucionário cordial”. Outro traço marcante em sua vida tem a ver com sua sobriedade, com sua postura humilde, com sua fidelidade à Classe Trabalhadora, mesmo quando, por razões questionáveis, foi expulso do PCB em 1930, tendo que passar por uma sorte de ostracismo das fileiras do Partido, sem que nunca tenha desistido da causa comunista. Importa assinalar a gravidade da sua expulsão, uma vez que se tratava não apenas de um membro qualquer do Partido, mais um dos seus principais fundadores, e o seu Secretário Geral por quase oito anos. Durante este período que se estende por cerca de 15 anos, empenhou-se em registrar em livros, e outros textos, sua rica experiência de militante, de jornalista e de crítico literário. De suas obras, devemos destacar : 


URSS, Itália, Brasil. Rio de Janeiro, Editora Alba, 1935.

Interpretações. Editora CEB, 1944;

Machado de Assis: ensaios e apontamentos avulsos, Livraria São José, 1959. 

Formação do PCB, 1922/1928: notas e documentos, Editora Prelo, 1962. 

Crítica impura, autores e problemas, Editora Civilização Brasileira, 1963

Ensaios históricos e políticos, Editora Alfa Omega, 1979. 



Após sua experiência em Paris, em 1911, de retorno ao Brasil, Astrojildo intensifica suas atividades de militância, seja como jornalista, seja na organização do movimento anarquista. Acompanha, com interesse relevantes encontros-assembleias e congressos dos trabalhadores, inclusive o famoso Bloco Operário Camponês (BOC), fortalecendo a organização também por meio de sucessivas greves, cominando com a grande greve de 1917 e a insurreição operária de 1918, tendo até experimentado tempos de prisão.


A Revolução Russa de 1917 foi acompanhada ativamente por militantes de todo o mundo, inclusive na América Latina e no Brasil. A despeito das divergências entre anarquistas e marxista-leninistas, Astrojildo seguiu sendo uma liderança de referência de todo o movimento operário de então. A fundação do PCB, antes cogitada para 1918, por conta da repressão que se seguiu contra o levante operário de 1918, só veio a acontecer em março de 1922, de cuja fundação, além de Astrojildo, participaram mais oito pessoas (entre elas, estava também o Pernambucano Cristiano Cordeiro), tendo sido eleito como seu primeiro secretário geral a figura de Abílio de Nequete, que ficaria no cargo apenas poucos meses, tendo sido substituído por Astrojildo Pereira.

 

A respeito da dissidência dos dirigentes da III Internacional com relação às posições do PCB, em defesa dos maçons comunistas, Astrojildo também faz sua criteriosa avaliação.

A expulsão de Astrojildo tanto da Secretaria geral como das fileiras do partido, constituiu um duro golpe para ele, ao mesmo tempo em que ele consegue superar os efeitos desta amarga experiência, graças principalmente à elaboração e ao exercício da crítica literária, sempre em uma perspectiva anarco-comunista.

Vale a pena destacar a atitude de dignidade de Astrogildo mantendo-se comunista e fiel à classe trabalhadora, passando a escrever seus principais livros neste período de 30-45.

Há de se sublinhar sua dedicação à análise e interpretação da obra de Machado de Assis, justamente durante este período.


 


Na primeira metade dos anos 60 por iniciativa pŕopria, mas também instigado por amigos, a exemplo de Graciliano Ramos, ele houve por bem, com base em seus arquivos escrever sobre a trajetória histórica do PCB, em livro intitulado “Formação do PCB” em (1962). Outro escrito precioso de sua lavra é sua obra intitulada “Crítica Impura “ (1963) na qual contesta com argumentos convincentes, escritores de referência de postura conservadora, que negavam mérito literário a romances e contos que tematizam os dramas do cotidiano de pobreza, secas e miséria, vivenciadas por seus personagens, que expressavam as agruras e os tormentos, as alegrias e esperanças da população negra, pobre e sertaneja.   


Ainda que Astrojildo Ppereira nesta época já não tivesse uma militância de rua, mas atuando firmemente como um organizador cultural, especialmente na Revista “Estudos Sociais”, acabou preso, em 1964, em consequência do Golpe Militar, tendo sido preso até Janeiro de 1965. Acometido de uma doença cardíaca, veio a óbito em 1965 deixando um vasto e denso legado ético, político, e cultural.     


O que aprendemos com Astrojildo Pereira ?




Um primeiro ensinamento que podemos recolher do percurso existencial de Astrojildo Pereira é sua contínua aposta/investimento no processo formativo contínuo, que ele exerceu com muita paixão, certo da força libertária do conhecimento. Isto não passa necessariamente pela Escola nem pela Academia. Neste sentido, Astrojildo não foi o único. Sua sede de liberdade o inspirou durante toda a sua vida, ajudando-o a tomar difíceis decisões, sem que jamais tivesse cedido a seus princípios. Mesmo quando expulso da direção do PCB e de suas fileiras, em razão de suas posições conflitantes com as tendências stalinistas que começavam a predominar, fora e dentro do Brasil, Astrojildo soube manter-se como um comunista exemplar, apreciado por um conjunto de intelectuais de grande expressão nacional, a exemplo de Jorge Amado, Carlos Drummond de Andrade, Graciliano Ramos, Nelson Werneck Sodré, entre tantos. Não figurando apenas no plano político, ele também gozava de grande apreço da parte de figuras do mundo literário, a exemplo de Otto Maria Carpeaux.


Expressando nosso agradecimento a diversos intelectuais brasileiros, especialmente aos que se dedicaram a sua biografia, dentre os quais, Martim César Feijó, podemos descobrir preciosos predicados de Astrojildo: Sua Afabilidade no trato com os diferentes (“revolucionário cordial”) sua paixão pela luta contínua em defesa e promoção dos interesses “dos baixo”, sua postura humilde, seu autodidatismo, sua paciência histórica, entre tantos outros. Lembramos, ainda, sua criatividade revolucionária, desde a iniciativa que teve, nos tempos em que Luiz Carlos Prestes vivia exilado na Bolívia, a quem Astrojildo foi visitar, levando-lhe uma mala cheia de livros de relevantes obras de Max, Engels e de outros comunistas, como a estimular o “ Cavaleiro da Esperança” a se introduzir melhor no conhecimento do processo revolucionário, atitude que foi determinate para a entrada de Prestes nas fileiras do PCB.

Por meio destas brevíssimas linhas, buscamos incentivar os militantes de nossas organizações de base a aprofundarem o exercício da memória histórica, em vista de recolherem fecundos elementos de compreensão de nossa realidade, como meio de enfrentamento exitoso de nossos atuais desafios.


                              

     João Pessoa, 31 de Dezembro de 2024




segunda-feira, 30 de dezembro de 2024

"Notas para o debate Brasil antes das eleições”, organizado pelo centro Mariátegui e pelo comitê Lula Presidente

 “NOTAS PARA O DEBATE BRASIL ANTES DAS ELEIÇÕES”, ORGANIZADO PELO CENTRO MARIÁTEGUI E PELO COMITÊ LULA PRESIDENTE (Paris, no dia 6/11/89).*


Alder Júlio Ferreira Calado.



Uma das singularidades do último período vivido pelos movimentos populares concerne a uma situação aparentemente paradoxal, pelo menos do ponto de vista eleitoral:

- Por um lado, é certo, o avanço extraordinário feito pelos movimento populares, durante os anos ‘80; 

- Por outro lado, temos por vezes dificuldade de traduzir estas conquistas em linguagem eleitoral, apenas para evocar este aspecto  da realidade atual. 

Nesta exposição, eu propõe como observações concernentes à evolução recente dos movimentos populares, no Brasil, tentando enfatizar suas conquistas e seus limites no plano político-eleitoral e o papel da Igreja, neste processo.


1. ALGUNS ELEMENTOS SOBRE A HISTÓRIA RECENTE E AS CONQUISTAS DOS MOVIMENTOS POPULARES NO BRASIL.


No começo dos anos 60, as classes populares, no Brasil e alhures, viviam um período de efervescência, graças a fatores internos e externos (A Revolução cubana, por exemplo). No Brasil, lutávamos pelas reformas de base das quais a reforma agrária vinha em primeiro lugar. A extraordinária mobilização dos camponeses lhes permitia, pela primeira vez, organizar-se em sindicatos. 

Uma parte da Igreja Católica apoiava as reivindicações da base, seja por meio do Movimento de Educação de Base (O MEB) seja notadamente através da Ação Católica e suas diversas ramificações, das quais a JUC (Juventude Universitária Católica), a JOC (Juventude Operária Católica) e a ACO (Ação Católica Operária, para adultos).

Os estudantes, organizados na UNE (União Nacional dos Estudantes) , desempenhavam um papel muito ativo. Animados por um traço explosivo dessa conjuntura, a JUC  ia mesmo além, à medida que radicaliza suas relações com as classes populares, rompendo com a hierarquia e comprometendo-se com a fundação de uma organização revolucionária- Ação Popular (AP) , de inspiração Maoista.

A direita não fica indiferente de modo algum. Ao estabelecer uma longa ditadura, o golpe de Estado expressa muito bem a conspiração da grande burguesia em conluio com militares, tanto no plano nacional, quanto na escala internacional. Institucionalizando a repressão, a ditadura militar conseguiu desmantelar, quase todas as organizações populares, os sindicatos combativos e os partidos.

Apesar de tudo, durante certo período, a Igreja Católica, ou antes alguns de seus membros comprometidos com a base, representava para uma parcela significativa das classes populares o único espaço de organização possível. É sobretudo a partir daí, que observamos estender-se pelo país, as Comunidades Eclesiais de Base (as CEBs), formadas tanto por grupos de cerca de 30 membros, chegando até uma centena de pessoas pertencentes, ao mesmo tempo, tanto à base da Igreja Católica quanto à base da sociedade que, em nome de sua fé, se reúnem para orar, para ler a Bíblia, a partir de suas experiências concretas, e dos problemas sócio-económicos do quais é repleto seu quotidiano, tanto nas cidades quanto na zona rural.

Por volta do final dos anos 70 ou no início da década atual, estimava-se haver cerca de 70.000 Comunidades Eclesiais de Base, estimando-se em cerca de 4 milhões de pessoas, cuja maioria morando no campo. A essa época, já se experimentava um certo esgotamento do regime militar : já se escutava falar então de uma “abertura” e semelhantes expressões, ainda que a repressão ainda estivesse presente de diversas formas.

Todavia, observa-se desde então o crescimento de toda uma vasta rede de organizações populares. Limitando-nos apenas a uma simples referência, 1978 representa a retomada, em novo estilo de lutas sociais.

Ao redor das greves no ABC, em São Paulo e outros lugares, pela primeira vez desde a institucionalização do terror, as classes populares retomavam suas organizações de base, dentre as quais : 

  • O movimento contra a carestia

  • Os movimentos de organização das mulheres ;

  • As associações de bairros de favelas ;

  • A organização dos negros e dos povos originarios ;

  • O movimento pela reforma agrária ;

  • E nela, o papel de animação das Comunidades Eclesiais de Base ;

  • O processo de formação do PT e da CUT ;

  • O movimento pelo restabelecimento das eleições presidenciais pelo voto direto - as Diretas-já-, etc.


Todavia, a analisar esses movimentos, limito-me apenas a alguns traços concernentes às Comunidades Eclesiais de Base, sua contribuição a esses movimentos, em particular ao movimento pela reforma agrária.

A luta pela terra e pela reforma agrária, inscreve-se entre aquelas mais antigas e as mais destacadas, cheias de um grande sentido simbólico. Remonta ao inicio da colonização, à qual se opuseram os indígenas e os africanos reduzidos ao regime de escravidão. Nessas lutas de resistência, tornaram-se célebres os “Quilombos”, notadamente o de Palmares, encabeçado por “Zumbi”, que conseguiu travar todo um século de lutas de resistência, assim como a resistência oposta pelos indígenas, por exemplo quando da República dos Guaranis.

Durante os séculos seguintes, haveria outros movimentos outros movimentos camponeses, portadores  de certa inspiração milenarista ou religiosa entre os quais figura o movimento de Canudos, Caldeirão, Contestados, em que a terra e a forma de organização comunitária constituíam os elementos essenciais.

As ligas camponesas, fundadas na metade dos anos 50, são testemunhas de como os camponeses sem terra se dedicavam à luta pela reforma agrária, “na lei ou na marra”.

Desde a institucionalização do terror, temos dificuldades de precisar o número de vítimas caídas pela reforma agrária. E no entanto, a ditadura militar, só conseguiu retardar, mas não impedir esse processo. Com efeito, assim como outros movimentos, tiveram que renascer das cinzas, o sangue de centenas de camponeses - des hommes et des femmes- e seus aliados assassinados ao longo desses anos, não cessam de irrigar a terra e a disposição, de milhões de camponeses e seus aliados, de honrar o sangue derramado, pela realização da reforma agrária.

A retomada do movimento pela reforma agrária se intensifica a partir do terceiro congresso nacional dos trabalhadores na agricultura, convocado pela CONTAG - a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura - realizado em Brasília em 1979. Desde então, e sobretudo a partir da fundação da CUT, em 1983, e do Movimento dos Trabalhadores sem Terra - o MST, vai se registrar um número crescente de ocupação de latifúndios.

Bem no coração dessas lutas, travadas pelo MST, com o apoio de outras organizações da sociedade civil, aí encontramos milhares de cristãos e de agentes de pastoral, inclusive numerosas religiosas, pertencentes seja às Comunidades Eclesiais de Base, seja à Comissão Pastoral da Terra - a CPT - seja ainda à ACR - Ação dos Cristões no Meio Rural…

Não é por acaso que entre as centenas de vítimas assassinadas nos conflitos da terra, aqueles constituíam uma parte considerável, também não é por acaso, que não poucos documentos e de estudos do MST sejam co-editados por organizações cristãs, tais como o CEPIS - Centro de Educação Popular do Instituto Sedes Sapientiae, em São Paulo, cujo trabalho consiste também em publicar textos didáticos de subsídios à reflexão e à formação dos animadores e dos militantes do movimento. Dentre os textos já publicados, encontramos “Socialismo e Cristianismo” - escrito por Frei Betto ; “Concepção Dialética de Educação Popular” - Oscar Jara ; “Educação popular na formação das lideranças” - Pedro Pontual ; “Reflexão sobre a violência no campo”, e outros.

A editora Vozes em Petrópolis, pertencente aos franciscanos, ligados à teologia da libertação acaba de publicar um livro - O Massacre da Fazenda Santa Elmira, escrito por Frei Sérgio Görgen, sobre as violências cometidas contra mais de duas mil pessoas que haviam ocupado a fazenda Santa Elmira, no Rio Grande do Sul em março passado.

Mas afinal de contas todos esses cristãos organizados, seja nas Comunidades Eclesiais de Base, seja na CPT e em outros movimentos eclesiais, articulados a outras tantas organizações populares, sindicais e políticas, o que buscam ? Qual é seu objetivo, no que diz respeito ao projeto histórico ? 

Apesar das contradições ainda presentes, poderíamos resumir, afirmando que se trata de um movimento que articula suas motivações religiosas às lutas populares, à medida que tais cristãos se mostram interessados em conhecer criticamente a sociedade circundante para transformar-la, não de acordo com a este ou aquele modelo de sociedade de caráter religioso, mas de acordo com um projeto comum de sociedade, a ser construído democraticamente, por e em função dos interesses das classes subalternas, compostas por cristãos e não cristãos, crentes e não crentes.

Com relação às conquistas, que tratarei de resumir em seguida, não poderiam ser asseguradas, senão graças à interação dialética e pela participação dos cristãos nos movimentos das classes populares. E sobretudo graças ao seu engajamento nas lutas junto com as organizações populares leigas, que se deve atribuir as conquistas seguintes 

  • A desconfiança e, até em alguns casos, a ruptura com os velhos métodos de ação e de tomada de decisão a partir da determinação de um grupo de iluminados que seja;

  • O despertar de uma nova concepção e de uma nova prática democrática;

  • A desmistificação do papel individual do líder, em favor de uma gestão coletiva, eleita e controlada pelas bases do movimento;

  • O zelo por manter a autonomia relativa das organizações populares, no sentido da rejeição a tornar-se correia de transmissão de partidos, dos sindicatos, do Estado, da Igreja, etc;

  • A tomada de consciência eminentemente política das lutas, a serem travadas de maneira democrática com o sindicato e o partido comprometidos com essas lutas, de sorte que todos esses agentes de transformação participem deste processo com a mesma intensidade, na construção de um projeto comum de sociedade ;

  • O despertar da consciência no que diz respeito às suas dinâmicas interações da natureza dos fatos políticos, econômicos e culturais (de sexo, de raça e de nação…)


No entanto, é preciso relativizar o alcance de todos esses movimentos, inclusive naturalmente as organizações cristãs simpáticas à teologia da libertação. É preciso, portanto, tomar em consideração seus limites para não sucumbir à tentação de idealisá-las. Agora, vou passar para minha última consideração.


2. LIMITES DAS ORGANIZAÇÕES POPULARES


Não é preciso dizer que os movimentos populares se acham também cercados dos mais diversos limites. Apenas para evocar apenas o aspecto eleitoral, constatamos que, no decorrer dos últimos 12 meses, um fenômeno curioso. Ei-lo : justamente após as eleições de novembro de 1988, em que o PT conseguiu eleger centenas de vereadores e 36 prefeitos nas cidades mais importantes do País, a imprensa brasileira enfatizava o ascenso da esquerda e a preferência pelo PT, tornando-se o preferido entre os partidos de esquerda.

Uma vez lançados, Brizola (PDT) e Lula (PT) restaram os primeiros colocados nas pesquisas eleitorais. No entanto, alguns meses depois, à medida que os candidatos da direita eram lançados, vai mudar o cenário eleitoral : Lula cai nas pesquisas eleitorais, passando de 15% ou 18% a 6%.

Pior : é o candidato Fernando Collor de Mello, o garoto mimado da ditadura militar e da Rede Globo, que dispara nas pesquisas eleitorais. Mesmo sem estar ligado a nenhum partido político, no sentido sociológico do termo, ele passa de 5% das intenções de voto, no começo do ano, a quase metade das intenções de voto, enquanto ele não parava de se apresentar como campeão da moralidade, o “caçador de marajás”...

E por último, há apenas uma semana, isto é a cerca de quinze dias antes do primeiro turno das eleições presidenciais, tomamos conhecimento de que um dos mais de vinte candidatos - o do PMB, ligaod ao Presidente Sarney, havia renunciado à sua condição de candidato, em favor de um famoso empresário, proprietário e apresentador de um canal de televisão (SBT), chamado Silvio Santos, que tinha forte influência sobre milhões de espectadores do seu famoso “Baú da felicidade”, pertencentes em geral às camadas mais pobres da população. É assim que muito se ouve falar do seu extraordinário desempenho nas pesquisas eleitorais.

Vou parar por aqui, colocando duas questões : 

  • Como é que podemos assistir a toda uma tomada de consciência e de mobilização dos movimentos populares e, ao mesmo tempo, constatar que uma vasta multidão acabe ficando de fora deste processo ?

  • Que condições tornam possível neste quadro de contradições, mesmo que nesta exposição eu só me tenha restringido ao aspecto eleitoral ?



*texto digitado por Alexandre Soares, Guilherme Bleu e Heloíse Bandeira Calado, aos quais o autor expressa seus agradecimentos

terça-feira, 17 de dezembro de 2024

Intérpretes do Brasil (IX): A literatura militante de Lima Barreto

 Intérpretes do Brasil (IX): A literatura militante de Lima Barreto


Alder Júlio Ferreira Calado


A nona figura que escolhemos para dar prosseguimento à série “intérpretes do Brasil”, nos remete à Afonso Henriques de Lima Barreto, cujo nascimento se dá 7 anos antes do 13 de Maio de 1888 (dia celebrado como o da “Abolição da Escravatura”). A vida e a obra de Lima Barreto constituem uma fonte emblemática de interpretação da sociedade brasileira, ao longo de nossa trajetória histórica, ainda que sua obra se inscreva no primeiro período republicano. 


Todo um conjunto de elementos de sua vida e de sua obra ressoa como uma preciosa fonte literária de nossa história. Cada vez mais, vem se firmando a tendência, de historiadores e historiadoras, bem como de pesquisadores de outras áreas, que recorrem a escritos literários como fonte de pesquisa. Também no caso específico de Lima Barreto, o fenômeno se reproduz, a exemplo dos seus principais biógrafos, Francisco de Assis Barbosa (cf. A Vida de Lima Barreto, 1952), Lilia Schwarcz (Triste Visionário, Companhia das Letras, 2017), Beatriz Resende (cf. Lima Barreto e o Rio de Janeiro em fragmentos, autêntica, 2016.), Gabriel Chagas (cf. Pérolas Negras na periferia, editora pontes, 2023)”, entre outros.


Na literatura militante protagonizada por Lima Barreto, grita forte e altissonante seu lugar de fala, principalmente pelo modo apaixonado e apaixonante com que encarava os preconceitos e estigmas de todo tipo, observáveis em sua época - e ainda hoje! Com efeito, não obstante seu relativamente breve percurso existencial - ele faleceu aos 41 anos -, Lima Barreto se entrega, de corpo e alma, ao enfrentamento rigoroso da ideologia, dos valores, dos costumes dominantes em sua época: o racismo estrutural, os preconceitos de classe, de raça, patriarcais, explícita e implicitamente voltados, como ainda hoje, contra os pobres, os pretos, os periféricos, dos quais, Lima Barreto se fez um intérprete exemplar. Em todos os seus escritos - artigos, contos, crônicas, romances, etc, Lima Barreto dá provas abundantes de um grande combatente contra a hipocrisia então reinante.


Ao consultarmos - ontem como hoje - as páginas de jornais da mídia hegemônica constatamos as formas mais sutis e as mais gritantes de que se revestem as relações cotidianas entre ricos e pobres, brancos e não-brancos, os ditos cristãos e os crentes de outras religiões especialmente as de matriz afro. Contra todos os estigmas então dominantes, Lima Barreto se faz crítico contumaz.


Afonso Henriques de Lima Barreto (13 de Maio de 1881-1922) era filho de Amália Augusta, escravizada alforriada, professora do Ensino Primário, e de João Henriques de Lima Barreto, tipógrafo da imprensa do Império, filho e neto de escravizados, gozando de simpatia por parte do Visconde de Ouro que patrocinou os estudos de Lima Barreto em escolas de referência do Rio de Janeiro. Muito cedo, aos sete anos, Lima Barreto perdeu sua mãe, Amália Augusta, em consequência de sequelas do parto de Lima Barreto. Ao terminar o Ensino Médio tenta ingressar, diversas vezes, em um curso universitário (À época somente dois eram oferecidos: o de e medicina e o de engenharia), tendo finalmente conseguido ingressar no curso de engenharia, ao qual pouco depois se sente obrigado a renunciar, por razões econômicas, tendo que trabalhar, em razão das dificuldades econômicas enfrentadas, pois seu pai passa a viver internado no manicômio. Submetido a concurso público, passa a trabalhar na então Secretaria da Guerra (hoje seria Ministério da Defesa), assumindo como função o cargo de amanuense (redigindo e copiando avisos e portarias ministeriais). Seu pai, quando Lima Barreto tinha 21 anos e frequentava o curso de engenharia, não tardaria em manifestar sinais de “neurastenia”, apresentando sintomas que o levaram a ser internado em um “hospital para alienados”, sendo poucos anos depois o próprio Lima Barreto a ser aí internado, por duas vezes, duras experiências sobre as quais reflete em seu último livro “Cemitério dos Vivos”, que restou inacabado, pois, Lima Barreto veio a falecer em 1922. 


Lima Barreto ao longo de sua vida sempre se mostrou um iconoclasta, um intrépido crítico dos costumes então dominantes, a algum dos quais,  ser humano inacabado ele próprio não escaparia: também Lima Barreto conviveu com atitudes preconceituosas, a exemplo de suas críticas contundentes dirigidas a João do Rio, personalidade que apresentava “comportamento homossexual”.


  • Lima Barreto, em razão de condições favoráveis gozadas pela sua família, desde cedo foi desenvolvendo suas potencialidade literárias, de percepção crítica, de análises percuciente, de observador detalhista e de escritor perspicaz, registrando, seja em crônicas, seja em contos, seja em romances (“Roman à clé”), seja em folhetins, seja em livros e artigos, entrevistas, etc, um amplo repertório dos modos de sentir, de pensar, de agir e de comunicar da sociedade do seu tempo, de maneira a identificar e denunciar todo um cenário de práticas, classistas e racistas patriarcais, recheadas de hipocrisia, de mentiras, de insensibilidade contra a população negra da época, que constituía a enorme maioria do País, fazendo-o amiúde com pretextos religiosos (ambiência de grande influência “cristã”  e científicos predominância das teses positivista e do Darwinismo social/Determinismo racial ).

  • Considerando sua vida agitada e conturbada, resulta impactante observar a contundência da militância literária exercida por Lima Barreto, cujo período de intensa produção se dá entre 1909 e 1921. Tendo em vista que teve que enfrentar alguns períodos de interrupção, seja por conta de sua dependência alcóolica, seja pelas duas internações que teve que amargar, importa estimar uma produção literária de 10 anos, o que representa pouco tempo em relação a diversas figuras de referência, a exemplo de Machado de Assis que viveu 69 anos. Eis um apanhado de suas obras:


Romance
Recordações do Escrivão Isaías Caminha - 1909
Triste Fim de Policarpo Quaresma - 1915
Numa e a Ninfa - 1915
Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá - 1919
Clara dos Anjos - 1948
O Cemitério dos Vivos - 1953
O Subterrâneo do Morro do Castelo - 1997

Sátira
As Aventuras do Dr. Bogoloff - 1912
Os Bruzundangas - 1923
Coisas do Reino do Jambom - 1953

Conto
Histórias e Sonhos - 1920

Artigo e crônica
Bagatelas - 1923
Feiras e Mafuás  - 1953
Marginália - 1953
Vida Urbana - 1953
Toda Crônica - 2004 - 2 volumes

Memórias
Diário Íntimo - 1953

Crítica literária
Impressões de Leitura - 1956

Correspondência
Correspondência - 1956

Nas últimas décadas, temos a alegria de constatar novos estudos e pesquisas,tematizando os mais variados aspectos do legado de Lima Barreto. Dentre os autores e autoras que se tem revelado mais empenhados nesta empreitada, ressaltamos, além de diversas teses e dissertações, iniciativas relevantes de figuras tais como Lilia Schwarcz, Gabriel Chagas, Beatriz Rezende, para mencionar apenas três exemplos, sempre em colaboração com diversos grupos de estudos e pesquisas sobre Lima Barreto.

O que aprendemos com Lima Barreto?

Considerando os destinatários alvo desta série de intérpretes do Brasil - nossas organizações de base -, nosso propósito maior segue sendo o de estimular o exercício contínuo da memória histórica dos explorados e oprimidos de nossa e de outras sociedades, como um incessante instrumento de combate e superação do atual modo de produção, de consumo e de gestão societal, em busca de irmos construindo as condições necessárias a este processo. Daí a relevância de também aprendermos com Lima Barreto e sua militância literária, reconhecendo sua força transformadora, presente em diversos pontos do seu legado, tais como: 

  • Sua refinada sensibilidade perceptiva, a partir do chão do cotidiano, das enormes contradições vividas pela sociedade do seu tempo, que ele ousa denunciar, em seus variados escritos;

  • Para tanto, não teme desagradar “aos grandes do seu tempo”, buscando ser fiel aos fatos e acontecimentos descritos em seus contos, em suas crônicas, romances e outros escritos; 

  • Lima Barreto empenhou-se corajosamente em desnudar as mazelas, a hipocrisia, os vícios revestidos de virtudes, o silenciamento em face dos horrores de sua época: as graves injustiças sociais, as formas de exploração e opressão a que os negros viviam submetidos, os privilégios dos ricos e da classe média, protegidos pelas instâncias do Estado toda sorte de preconceitos contra a população negra e, por outro lado, também ensejando sonhos alternativos de um visionário;

  • Em seu “Triste fim de policarpo Quaresma”, encontramos uma feliz síntese desses contrastes que teve que enfrentar, a duras penas; 

  • Em “Recordações do escrivão Isaías Caminha”, igualmente, nos deparamos com importantes registros dos desafios enfrentados, cotidianamente, pelos negros para se afirmarem numa sociedade de profunda raízes escravocratas; 

  • Em “Os Bugigangas” Lima Barreto segue compartilhando desventuras e sonhos de uma terra habitável;

  • Em breve, é no conjunto de seus escritos, que Lima Barreto deixa perene marca de sua crítica social, que, para além de sua época, hoje continua bastante atual. 


João Pessoa  17 de Dezembro de 2024.


sábado, 14 de dezembro de 2024

Um tributo a Hugo Echegaray: revisitando seu livro “A Prática de Jesus”

 Um tributo a Hugo Echegaray: revisitando seu livro “A Prática de Jesus”


Alder Júlio Ferreira Calado


Temos consciência da enorme complexidade de que são tecidos a malha e os próprios fios de nossa atual quadra sócio-histórica, seja no campo macro-social, seja no âmbito específico das relações do Sagrado. Bem mais do que uma época de mudança, vivemos uma mudança de época, algo raro na trajetória histórica da humanidade. Sobram dilemas e desafios. Um deles se faz presente na infeliz coincidência de irrupção de forças retrógradas que se mostram hegemônicas tanto fora quanto dentro do campo religioso, a manterem sob sua crescente influência segmentos majoritários de nossas sociedades. Daí resulta enormemente desafiante para as forças de resistência - especialmente as que ousamos chamar de “minorias abraâmicas”, no caso das forças sociais atuando no campo das relações do Sagrado. Cientes, contudo, de que também esta quadra se acha submetida à dinâmica histórica sendo portanto mutável, somos instados enquanto “minorias abraâmicas”, a seguir buscando engravidar a História de sementes libertárias. É a isto que nos move e nos inspira o Movimento de Jesus. Não somos os primeiros e nem os últimos a enfrentar tal desafio.


Tomando em consideração apenas um fio desta complexa malha de relações e de forças sociais - o fio relativo à Igreja Católica Romana -, não obstante o empenho de Francisco, Bispo de Roma, em inspirar atitudes de autocrítica e de passos de renovação, no entanto, no âmbito institucional, prevalecem amplamente atitudes de retrocessos, fazendo prevalecer relações patriarcais, hierarquizantes e clericalistas, distanciando-se assim das marcas fundantes da Tradição de Jesus. Tendência que, a despeito de um breve período conciliar (Concílio Vaticano II, Pacto das Catacumbas, Conferências Episcopais de Medellín e Puebla, períodos durante os quais a ação profética foi marcante ao interno da “Igreja na Base”), lamentamos constatar a crescente prevalência de retrocessos tornando/retardando o caminho em direção a uma Igreja alimentada por uma espiritualidade Reinocêntrica inaugurada, anunciada e testemunhada por Jesus de Nazaré. 


No universo de autores e autoras das teologias da Libertação encontramos Hugo Echegaray, um jovem teólogo peruano, biblista de reconhecidas potencialidades, que, tendo feito sua Páscoa , aos 39 anos, nos legou uma obra incompleta, mas de tal qualidade, que inspirou ao seu amigo e conterrâneo Gustavo Gutiérrez, que lhe dedicou um extenso prefácio, reconhecendo-lhe, além da qualidade do trabalho, a fidelidade à causa libertadora dos empobrecidos, dos prediletos da Boa Nova do Reino.


Nosso grupo Kairós, que há 26 anos, vêm se dedicando semanalmente aos estudos das Teologias da Libertação, em especial aos estudos do legado do teólogo José Comblin, volta a visitar o livro “A Prática de Jesus”, da lavra de Hugo Echegaray, que já havíamos lido 20 anos atrás. Ao mesmo tempo, temos tido a oportunidade de revisitar o mesmo livro, de modo virtual, com outros dois grupos de reflexão e estudos. Em todos eles, sentimos enorme encantamento pela mesma obra. Eis por que entendemos oportuno compartilhar tais experiências com outros grupos e pessoas, inspirados que nos sentimos pela atitude daquela mulher, tomada de grande alegria por haver encontrado a moeda perdida, pondo-se imediatamente a dividir seu precioso achado com suas amigas (cf. Lc 15, 8-10). 


Quem foi mesmo Hugo Echegaray?


Hugo Echegaray nasce em Lima (Peru), em 1940. Recebe, desde criança, sólido incentivo aos estudos e a um forte relacionamento fraterno. Terminados seus estudos secundários, vai ingressar no curso de Psicologia, na Faculdade de Psicologia da Universidade Nacional de San Marcos e na Faculdade de Educação da Pontifícia Universidade Católica do Peru. Foi membro e dirigente da União Nacional de Estudantes Católicos do Peru. Em seguida, fazendo um itinerário próprio dos vocacionados ao Presbitério, vai cursar Filosofia na Universidade Católica de Louvaina, na Bélgica. Seu curso de Teologia, ele o faz na Faculdade de Teologia de Lyon, na França (mesma cidade na qual Gustavo Gutiérrez faria, em meados dos anos 80, seu Doutoramento em Teologia). Após seus estudos, vem a ordenar-se Presbítero, em 1973, vindo a atuar como Assistente da JEC e como assessor e animador de várias comunidades de Lima, em especial junto à Comunidade de Vitarte. Dirigiu também a Revista Páginas, na qual publicou vários artigos. 


Rememorando aspectos axiais do livro “A prática de Jesus”


Desde o marcante prefácio escrito por Gustavo Gutiérrez, rememorando, com forte emoção, traços da biografia de Hugo Echegaray, bem como de sua qualidade de teólogo biblista de sua impactante entrega ao serviço de sua comunidade paroquial, Gustavo Gutierrez acentua características da espiritualidade reinocêntrica que movia seu amigo Hugo. Em sua introdução, o próprio Hugo Echegaray cuida de historicizar como surgiu a ideia do livro, ao rememorar o pedido que lhe foi feito, em 1975, por sua comunidade paroquial, propondo-lhe refletir e explicar-lhe o modo como Jesus se relacionava com o povo dos pobres, ele mesmo feito pobre entre os pobres. 


Ainda nas páginas introdutórias do seu livro, Hugo Echegaray indica, para além dos objetivos e do caráter de seu texto, a metodologia seguida. Trata de revisitar a pessoa de Jesus, tal como a descrevem os Evangelhos especialmente o Evangelho de Lucas, por vezes também remetendo a outros textos neotestamentários, sublinhando especialmente a dimensão humana de Jesus, como condição necessária para um entendimento mais adequadoada dimensão divina de Jesus. Tendo em vista que esta, ao longo de séculos, segue sendo superestimada – o que desfigura a unidade humano-divina de Jesus de Nazaré -, o autor empenha-se em enfatizar no livro a dimensão humana de Jesus, sem desvinculá-la de sua divindade, atitude que bem caracteriza as abordagens das Teologias da Libertação.


Outra inquietação compartilhada pelo autor - e já adentrando o primeiro capítulo do livro - concerne ao esforço de contextualizar o espaço e o tempo em que Jesus viveu, cuidando de recompor historicamente a terra, o tempo e as gentes da Palestina do primeiro século. Em seguida, tendo descrito as características histórico-geográficas da Galileia e da Judéia e seus arredores Hugo Echegaray, sempre remetendo a fontes bíblicas e de historiadores como Flávio Josephus, cuida de situar as condições sociais, econômicas, políticas, culturais e religiosas sob as quais vivia aquela população e nas quais Jesus atuava.


Ressalta sobretudo as relações de dependência que o Império Romano, por meio de seus representantes em conluio com o Sinédrio, os grandes proprietários e outras autoridades religiosas da Palestina de então, a imporem aos pobres pesados impostos, sacrifícios e sofrimentos, suscitando crescentes revoltas do povo dos pobres contra aquela desordem, que tanto insultava a fé dos que se sentiam traídos pelas principais autoridades políticas, econômicas e religiosas, que passaram a praticar e impor um comportamento idolátrico sobre os palestinos em nome do deus César.


Em outro capítulo, Hugo Echegaray cuida de descrever e analisar as principais forças políticas presentes no cotidiano dos Palestinos. Ele ressalta as principais características daquelas forças sociais, a saber: os Saduceus, os Fariseus, os Essênios e os Zelotas. Quanto ao primeiro grupo, Echegaray o descreve como pertencente à classe dominante. Os Saduceus compunham-se, portanto, de grandes proprietários de terra, de autoridades religiosas, do Sinédrio, de autoridades políticas subordinadas ao Imperador, em breve uma força política que se impunha por leis rigorosas e pela força das armas, sendo por isto mesmo, constantemente hostilizadas pelo povo dos pobres da Galileia. Este grupo constituía frequente alvo de severas críticas por parte de Jesus. 


Outro grupo era formado pelos Fariseus, que ocupavam cargos intermediários naquela ordem social. Eram muito influentes sobre significativas parcelas da população, sobretudo por representarem os valores religiosos da Lei da qual se julgavam os principais interpretes. Os Evangelhos apresentam diversas passagens por eles protagonizadas, e nas quais Jesus os denuncia pelo seu comportamento hipócrita, de pregarem pesados sacrifícios para o povo, recusando-se, porém, a abrir mão dos seus privilégios. 


Um terceiro grupo era formado pelos Essênios, cuja característica mais forte era a de se recusarem a conviver com parcelas majoritárias da população, por eles julgadas afastadas do espírito da Aliança de Javé com o seu Povo. Pertenciam a uma espécie de comunidade monástica, preferindo o distanciamento do meio urbano, inclusive como sinal de denúncia dos malfeitos das elites dominantes. Consta que João Batista tenha sido muito próximo ou mesmo pertencido a este grupo.


Os Zelotas constituíam a principal força social de resistência aos ocupantes romanos e seus aliados, componentes da classe dominante. São muito conhecidos por protagonizarem diversas revoltas contra os ocupantes e os dominantes de então. Em muitos casos, diversos zelotas eram flagrados atacando personalidades da classe dominante, munidos de um pequeno punhal (em Latim, “sica”: punhal, de que deriva “sicarius”: portador de uma faca), razão pela qual também eram chamados de sicários. Do grupo de apóstolos e discípulos de Jesus, também faziam parte alguns zelotas, a exemplo do próprio Pedro.


O quarto e último capítulo do livro é consagrado à descrição das marcas axiais do projeto de Jesus, compondo-se dos tópicos: “A classe de onde vinha Jesus”; “O anúncio do Reino aos pobres” e “A prática messiânica de Jesus”. No primeiro tópico, Hugo Echegaray cuida de descrever e analisar os mais diferentes ofícios e ocupações praticados pelo povo dos pobres: agricultores, pastores, carpinteiros, pedreiros, ourives, perfumistas, sapateiros, tecelões, alfaiates, padeiros, açougueiros, entre outros. O próprio Jesus exercia o ofício de carpinteiro. Esta é a ambiência social e econômica compartilhada por Jesus, de modo a representar vivamente os interesses e as aspirações dos mais pobres. O autor também faz questão de registrar algumas ocupações mal vistas e até difamadas pela população, pelo fato de serem interpretadas como ocupações eticamente rebaixadas. Delas, contudo, Jesus também se aproximava, tratando todos como seus amigos, com eles comendo e bebendo, razão pela qual era chamado pelas elites de “comilão” e “beberrão”. 


No tópico seguinte, o autor, sempre embasado nos textos dos sinóticos e neotestamentários, empenha-se em mostrar como Jesus, em vez de propor leis ou doutrinas, em inaugurar, anunciar e testemunhar o Reino de Deus e suas Justiça, junto aos pobres, aos explorados, aos oprimidos e marginalizados (cf. Lc, 15-19). No último tópico, o autor trata de explicitar o sentido da dimensão messiânica de Jesus, de modo a distingui-lo dos messias poderosos, dos chefes de exércitos, mas, antes, de um messias que apostava nos pobres, nos fracos, nos sem prestígio.



Hugo Echegaray finaliza sua obra com uma instigante citação de Jiulio Girardi, 


“Então, se alguém me perguntar o que é que Cristo veio trazer de novo para nossa vida, só teria afinal de contas uma resposta a dar: Cristo! A contribuição mais autêntica e mais transformadora que nos deixou outra não senão Ele mesmo, com o Pai e com o Espírito Santo. Sua novidade não se acha tanto nos dons que oferece, e sim no amor pelo qual se entregou”. (Girardi, Jiulio, Nouveauté chrétiene et nouveauté du monde, In: Lumiére et Vie, 116, janvier-mars 1974, p. 110-111.)


Nosso propósito, ao revisitar as páginas deste livro foi sobretudo o de despertar o apetite do conhecimento do projeto de Jesus, como caminho de seguirmos testemunhando os sinais do Reino de Deus em nosso mundo. 



João Pessoa, 14 de dezembro de 2024



segunda-feira, 9 de dezembro de 2024

Intérpretes do Brasil (VIII): Traços do pioneirismo de Maria Firmina dos Reis

 Intérpretes do Brasil (VIII): Traços do pioneirismo de Maria Firmina dos Reis

 

Alder Júlio Ferreira Calado

 

Não é a primeira vez que nos impacta a tardia tomada de consciência da relevância de figuras históricas da estirpe de Maria Firmina dos Reis (1825-1917). Sobretudo nas últimas décadas temos sido surpreendidos, por meio de recentes pesquisas (dissertações, teses, artigos, livros, documentários…) com descobertas de figuras de nossa história, cujo fecundo legado restou muito pouco conhecido, quando não submetido a um estranho esquecimento ou mesmo apagamento. Este é também o caso de Maria Firmina dos Reis, sobre a qual cuidaremos, nas linhas que seguem, de evocar significativas marcas do seu denso legado. Para tanto, trazemos à tona, inicialmente, alguns dados bibliográficos desta autora, passando, em seguida, a sublinhar relevantes elementos de seu aporte histórico-literário, buscando, ao final, ressaltar alguns ensinamentos a recolher de sua trajetória.

 

Quem foi mesmo Maria Firmina dos Reis?

Ela emerge, ao mesmo tempo, como expressão e resultado das condições históricas e socioeconômicas de que gozava, naquela época, a Província do Maranhão. Oriunda como uma das capitanias, já no século XVI, o Maranhão, somente a partir do século XVII vai ser alvo de colonização, por conta de suas riquezas naturais (madeira, ouro.), passando nos séculos seguintes a constituir um grande centro de atração cultural e econômico, graças principalmente à economia do algodão, a partir de meados do século XIX, prosperidade notavelmente favorecida em consequência da crise algodoeira decorrente da Guerra de Secessão, nos Estados Unidos, o que obrigou os principais centros europeus de produção têxtil a demandarem o algodão Maranhense, ensejando uma época de muita prosperidade econômica e cultural, no Maranhão. Isto pode ser atestado, inclusive, pelo registro de que, a essa época, circulavam seis jornais naquela região.

 

Firmina dos Reis, filha de Leonor Filipa, uma mulher negra ex-escravizada (gozando, portanto, de alforria), e provavelmente de João Pedro Esteves, proprietário de engenho. Maria Firmina, ainda muito cedo, restando órfã de mãe, foi transferida para Guimarães-MA para ser criada por uma tia materna. Confirmando-se os avanços culturais da época, a família de Maria Firmina chegou a contar com figuras versadas nas letras, ambiente que também favoreceu o caminho das letras percorrido por Maria Firmina.


Em 1847, Maria Firmina participou, com sucesso, de um Concurso Público para Professora do ensino primário que exigia das participantes idade mínima de 25 anos. Consta que tendo apenas 22 anos, com o apoio de familiares e conhecidos, conseguiu, junto ao arcebispo de São Luiz, um atestando que lhe garantia a idade requerida.

 

A Partir de então, Maria Firmina vai se revelando, além de competente Professora, portadora de reconhecidos talentos literários, passando a escrever artigos em jornais da região, ao mesmo tempo em que também vai se revelar uma admirada compositora de hinos e canções. Enquanto mestra Maria Firmina também inova, ao ousar manter, por mais de dois anos, aulas mistas, frequentadas por meninos e meninas, iniciativa que escandalizou a época, suscitando uma forte reação, até a exigência do encerramento da experiência.

 

Maria Firmina, no tocante à sua produção histórico-literária, opta pelo romance por meio do qual atua como uma ferrenha crítica contra as maldades da escravidão no que se revela como a primeira mulher negra abolicionista, não apenas em escala latino-americana, mas também no âmbito dos países lusófonos, a escrever um romance abolicionista. Trata-se de “Úrsula”, publicado em 1859. Antes de ser editado como livro – o que implicou em uma campanha de arrecadação de contribuições -, Maria Firmina, seguindo uma prática habitual da época, publicou em forma de folhetins, obtendo amplo reconhecimento.

 

Em sua obra-prima, “Úrsula”, Maria Firmina empenha-se na crítica contundente ao modo de produção escravista, mediante narrativas próprias da obra literária. Em outro escrito seu “Gupeva”, também vindo a lume ao modo de um folhetim ou de um enredo de novela, publicado em jornais da região, nele, de início, faz questão de pintar um cenário tropical esplendoroso – enaltecendo as belezas naturais da região, a claridade do sol e da vegetação, sugerindo marcas do lugar paradisíaco aqui existente, antes da chegada dos “civilizadores”. Também, em “Úrsula”, cuida de registrar as marcas tenebrosas da trajetória percorrida, desde a Mãe-África, pela personagem “Mãe Susana”.

Aí desponta o contraste: Mãe Susana rememora, com profunda melancolia, o drama dantesco do comércio escravagista. Conta como vivia feliz, em terras africanas: no aconchego de sua família, sua comunidade bem organizada, vivendo em paz, com os seus valores, com os seus costumes, com a sua religião... De repente, a exemplo de tantas outras pessoas, vê-se aprisionada, sequestrada e, juntamente com tantos outros, jogada em um “tumbeiro” (navio negreiro), sujeita a toda sorte de torturas e aflições, durante trinta longos dias – muitos deles e delas não suportam as torturas, e chegam a ser despejados em alto mar. Eis a obra dos “civilizados”, o que faziam com bárbaros...

Maria Firmina dos Reis também escreveu outras obras, a exemplo de “A Escrava”, conto publicado em 1887, por meio do qual segue denunciando os horrores do escravismo. Valendo-se de vários personagens, em especial de uma abolicionista branca que assiste e descreve a perseguição feroz, feita por um capitão-do-mato, a uma escravizada fugitiva que, tida como louca, escapara das garras do algoz. A abolicionista, que observa a cena da perseguição, ao ser indagada pelo perseguidor, fornece-lhe informações contrárias sobre o destino da perseguida. Também observa a chegada do filho da perseguida, também ele um escravizado à procura tresloucada de sua mãe. Ao obter, agradecido, informação precisa sobre o paradeiro de sua mãe, ele finalmente a localiza, escondida em uma moita, quase desfalecida. Acompanhados de perto pela abolicionista, ela os convida à sua própria casa, passando a cuidar dos dois perseguidos. Todos são surpreendidos pela chegada, primeiro do capitão-do-mato, e, em seguida, dada a recusa da abolicionista em cedê-los, é abordada pelo próprio dono dos escravizados, ao qual também entrega-os, acabando por comprar sua alforria.


Oque destacar do legado de Maria Firmina dos Reis?

Antes de ressaltar alguns traços e ensinamentos da trajetória bibliográfica de Maria Firmina dos Reis, permitimo-nos insistir em nosso propósito de compartilhar estas linhas: incentivar, principalmente os jovens militantes de nossas organizações de base, o exercício da memória histórica dos oprimidos como ferramenta de sua libertação. Como costumamos fazer nesta série de artigos, estimulamos nossos destinatários e destinatárias a aprofundarem seus estudos sobre os principais intérpretes do Brasil - homens e mulheres. No caso específico de Maria Firmina dos Reis, sugerimos consultar, dentre diversos estudiosos, os seguintes:

Nascimento Moraes Filho, um dos primeiros biógrafos de Maria Firmina, autor do livro “Maria Firmina – fragmentos de uma vida”, publicado em 1975;

Eduardo de Assis Duarte . Artigo Maria Firmina dos Reis e os Primórdios da Ficção Afro-brasileira (disponível no portal “Literafro” Portal da Literatura Afro-brasileira – disponível no endereço www.letras.ufmg.br/literafro);

Dilercy Aragão Adler, pesquisadora que estudou a vida e a obra de Maria Firmina dos Reis. No livro “Maria Firmina dos Reis: uma missão de amor”;

Bárbara Loureiro Andreta. Dissertação Visões da escravatura na América Latina: “Sab” e “Úrsula”. (Mestrado em Letras - Universidade Federal de Santa Maria, 2016);

Jéssica Catharine Barbosa de Carvalho. Dissertação Literatura e atitudes políticas: olhares sobre o feminino e antiescravismo na obra de Maria Firmina dos Reis. (Mestrado em Letras - Universidade Federal do Piauí, 2018);

Janaína dos Santos Correia. Dissertação O uso de fontes em sala de aula: a obra de Maria Firmina dos Reis (1859) como mediadora no estudo da escravidão negra no Brasil. (Mestrado em História Social - Universidade Estadual de Londrina, 2013);

Régia Agostinho da Silva. Tese A escravidão no Maranhão: Maria Firmina dos Reis e as representações sobre escravidão e mulheres no Maranhão na segunda metade do século XIX;

Débora Dias Macambira. Dissertação Impressões do tempo. Os almanaques no Ceará (1870-1908). (Mestrado - Universidade Federal do Ceará, 2010);

Carla Cristine Francisco. Dissertação Mãe Susana, Mãe África – a ‘invenção’ da diáspora negra em Úrsula (1859) de Maria Firmina dos Reis. (Mestrado em Aire Culturelle Romane - Université de Provence Aix Marseille I, França 2010);

Norma Telles. Tese Encantações: escritoras e tradição literária no Brasil, século XIX. (Doutorado em Ciências Sociais - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 1987);

Mônica Saldanha Dalcol, na Tese A condição da mulher negra na literatura brasileira em Úrsula, Casa de Alvenaria e Um defeito de cor (2020), a autora realiza um estudo comparativo de três obras de escritoras negras brasileiras, que perpassam três séculos: Úrsula (1859), de Maria Firmina dos Reis, século XIX, Casa de Alvenaria (1961), de Carolina Maria de Jesus, século XX, e Um defeito de cor (2006), de Ana Maria Gonçalves, século XXI.

Carla Sampaio dos Santos. Livro A escritora Maria Firmina dos Reis: história e memória de uma professora no Maranhão do século XIX.

Bárbara Simões. Artigo "A escrita de Maria Firmina dos Reis: Soluções para um problema existência".

Maria dos S. Cruz, Érica Matos e, Ediane Silva - Artigo "Exma. Sra. d. Maria Firmina dos Reis, distinta literária maranhense entre outros pesquisadores e pesquisadoras.

Com base nestes dados e em outros que seguiremos buscando, cuidamos de realçar tocantes ensinamentos do percurso existencial e da obra de Maria Firmina dos Reis. Com ela, aprendemos a enxergar os limites de uma historiografia e dos cânones literários que, a despeito de suas positividades, acabam objetivamente por silenciar ou omitir relevantes figuras de intérpretes de nossa sociedade, principalmente as ricas contribuições de legados por mulheres negras a exemplo de Maria Firmina dos Reis, Lélia Gonzalez, de Carolina Maria de Jesus, e de tantas outras. 

Em uma época em que dezenas de escritores negros dos Estados Unidos, ousavam publicar livros e romances narrando suas histórias de vida, eis que Maria Firmina dos Reis tem a audácia de denunciar, pela via do romance, as perversidades cometidas pelo regime escravista suas desumanidades e sua hipocrisia, com o agravante de cometer tais crimes em nome da civilização ocidental e da religião cristã. Seja pela via do romance ou da poesia - ela também foi autora do livro poético “Cantos à Beira Mar” -, ela cumpriu relevante papel libertário. 

Também seguimos amargando uma conjuntura de retrocessos, seja em escala mundial, seja em âmbito nacional, razão pela qual nossas organizações de base devem sentir-se cada vez mais instadas a exercitarem esta memória subversiva, começando por superar a letargia de que ainda se acham acometidas. 


João Pessoa, 09 de Dezembro de 2024