“NOTAS PARA O DEBATE BRASIL ANTES DAS ELEIÇÕES”, ORGANIZADO PELO CENTRO MARIÁTEGUI E PELO COMITÊ LULA PRESIDENTE (Paris, no dia 6/11/89).*
Alder Júlio Ferreira Calado.
Uma das singularidades do último período vivido pelos movimentos populares concerne a uma situação aparentemente paradoxal, pelo menos do ponto de vista eleitoral:
- Por um lado, é certo, o avanço extraordinário feito pelos movimento populares, durante os anos ‘80;
- Por outro lado, temos por vezes dificuldade de traduzir estas conquistas em linguagem eleitoral, apenas para evocar este aspecto da realidade atual.
Nesta exposição, eu propõe como observações concernentes à evolução recente dos movimentos populares, no Brasil, tentando enfatizar suas conquistas e seus limites no plano político-eleitoral e o papel da Igreja, neste processo.
1. ALGUNS ELEMENTOS SOBRE A HISTÓRIA RECENTE E AS CONQUISTAS DOS MOVIMENTOS POPULARES NO BRASIL.
No começo dos anos 60, as classes populares, no Brasil e alhures, viviam um período de efervescência, graças a fatores internos e externos (A Revolução cubana, por exemplo). No Brasil, lutávamos pelas reformas de base das quais a reforma agrária vinha em primeiro lugar. A extraordinária mobilização dos camponeses lhes permitia, pela primeira vez, organizar-se em sindicatos.
Uma parte da Igreja Católica apoiava as reivindicações da base, seja por meio do Movimento de Educação de Base (O MEB) seja notadamente através da Ação Católica e suas diversas ramificações, das quais a JUC (Juventude Universitária Católica), a JOC (Juventude Operária Católica) e a ACO (Ação Católica Operária, para adultos).
Os estudantes, organizados na UNE (União Nacional dos Estudantes) , desempenhavam um papel muito ativo. Animados por um traço explosivo dessa conjuntura, a JUC ia mesmo além, à medida que radicaliza suas relações com as classes populares, rompendo com a hierarquia e comprometendo-se com a fundação de uma organização revolucionária- Ação Popular (AP) , de inspiração Maoista.
A direita não fica indiferente de modo algum. Ao estabelecer uma longa ditadura, o golpe de Estado expressa muito bem a conspiração da grande burguesia em conluio com militares, tanto no plano nacional, quanto na escala internacional. Institucionalizando a repressão, a ditadura militar conseguiu desmantelar, quase todas as organizações populares, os sindicatos combativos e os partidos.
Apesar de tudo, durante certo período, a Igreja Católica, ou antes alguns de seus membros comprometidos com a base, representava para uma parcela significativa das classes populares o único espaço de organização possível. É sobretudo a partir daí, que observamos estender-se pelo país, as Comunidades Eclesiais de Base (as CEBs), formadas tanto por grupos de cerca de 30 membros, chegando até uma centena de pessoas pertencentes, ao mesmo tempo, tanto à base da Igreja Católica quanto à base da sociedade que, em nome de sua fé, se reúnem para orar, para ler a Bíblia, a partir de suas experiências concretas, e dos problemas sócio-económicos do quais é repleto seu quotidiano, tanto nas cidades quanto na zona rural.
Por volta do final dos anos 70 ou no início da década atual, estimava-se haver cerca de 70.000 Comunidades Eclesiais de Base, estimando-se em cerca de 4 milhões de pessoas, cuja maioria morando no campo. A essa época, já se experimentava um certo esgotamento do regime militar : já se escutava falar então de uma “abertura” e semelhantes expressões, ainda que a repressão ainda estivesse presente de diversas formas.
Todavia, observa-se desde então o crescimento de toda uma vasta rede de organizações populares. Limitando-nos apenas a uma simples referência, 1978 representa a retomada, em novo estilo de lutas sociais.
Ao redor das greves no ABC, em São Paulo e outros lugares, pela primeira vez desde a institucionalização do terror, as classes populares retomavam suas organizações de base, dentre as quais :
O movimento contra a carestia
Os movimentos de organização das mulheres ;
As associações de bairros de favelas ;
A organização dos negros e dos povos originarios ;
O movimento pela reforma agrária ;
E nela, o papel de animação das Comunidades Eclesiais de Base ;
O processo de formação do PT e da CUT ;
O movimento pelo restabelecimento das eleições presidenciais pelo voto direto - as Diretas-já-, etc.
Todavia, a analisar esses movimentos, limito-me apenas a alguns traços concernentes às Comunidades Eclesiais de Base, sua contribuição a esses movimentos, em particular ao movimento pela reforma agrária.
A luta pela terra e pela reforma agrária, inscreve-se entre aquelas mais antigas e as mais destacadas, cheias de um grande sentido simbólico. Remonta ao inicio da colonização, à qual se opuseram os indígenas e os africanos reduzidos ao regime de escravidão. Nessas lutas de resistência, tornaram-se célebres os “Quilombos”, notadamente o de Palmares, encabeçado por “Zumbi”, que conseguiu travar todo um século de lutas de resistência, assim como a resistência oposta pelos indígenas, por exemplo quando da República dos Guaranis.
Durante os séculos seguintes, haveria outros movimentos outros movimentos camponeses, portadores de certa inspiração milenarista ou religiosa entre os quais figura o movimento de Canudos, Caldeirão, Contestados, em que a terra e a forma de organização comunitária constituíam os elementos essenciais.
As ligas camponesas, fundadas na metade dos anos 50, são testemunhas de como os camponeses sem terra se dedicavam à luta pela reforma agrária, “na lei ou na marra”.
Desde a institucionalização do terror, temos dificuldades de precisar o número de vítimas caídas pela reforma agrária. E no entanto, a ditadura militar, só conseguiu retardar, mas não impedir esse processo. Com efeito, assim como outros movimentos, tiveram que renascer das cinzas, o sangue de centenas de camponeses - des hommes et des femmes- e seus aliados assassinados ao longo desses anos, não cessam de irrigar a terra e a disposição, de milhões de camponeses e seus aliados, de honrar o sangue derramado, pela realização da reforma agrária.
A retomada do movimento pela reforma agrária se intensifica a partir do terceiro congresso nacional dos trabalhadores na agricultura, convocado pela CONTAG - a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura - realizado em Brasília em 1979. Desde então, e sobretudo a partir da fundação da CUT, em 1983, e do Movimento dos Trabalhadores sem Terra - o MST, vai se registrar um número crescente de ocupação de latifúndios.
Bem no coração dessas lutas, travadas pelo MST, com o apoio de outras organizações da sociedade civil, aí encontramos milhares de cristãos e de agentes de pastoral, inclusive numerosas religiosas, pertencentes seja às Comunidades Eclesiais de Base, seja à Comissão Pastoral da Terra - a CPT - seja ainda à ACR - Ação dos Cristões no Meio Rural…
Não é por acaso que entre as centenas de vítimas assassinadas nos conflitos da terra, aqueles constituíam uma parte considerável, também não é por acaso, que não poucos documentos e de estudos do MST sejam co-editados por organizações cristãs, tais como o CEPIS - Centro de Educação Popular do Instituto Sedes Sapientiae, em São Paulo, cujo trabalho consiste também em publicar textos didáticos de subsídios à reflexão e à formação dos animadores e dos militantes do movimento. Dentre os textos já publicados, encontramos “Socialismo e Cristianismo” - escrito por Frei Betto ; “Concepção Dialética de Educação Popular” - Oscar Jara ; “Educação popular na formação das lideranças” - Pedro Pontual ; “Reflexão sobre a violência no campo”, e outros.
A editora Vozes em Petrópolis, pertencente aos franciscanos, ligados à teologia da libertação acaba de publicar um livro - O Massacre da Fazenda Santa Elmira, escrito por Frei Sérgio Görgen, sobre as violências cometidas contra mais de duas mil pessoas que haviam ocupado a fazenda Santa Elmira, no Rio Grande do Sul em março passado.
Mas afinal de contas todos esses cristãos organizados, seja nas Comunidades Eclesiais de Base, seja na CPT e em outros movimentos eclesiais, articulados a outras tantas organizações populares, sindicais e políticas, o que buscam ? Qual é seu objetivo, no que diz respeito ao projeto histórico ?
Apesar das contradições ainda presentes, poderíamos resumir, afirmando que se trata de um movimento que articula suas motivações religiosas às lutas populares, à medida que tais cristãos se mostram interessados em conhecer criticamente a sociedade circundante para transformar-la, não de acordo com a este ou aquele modelo de sociedade de caráter religioso, mas de acordo com um projeto comum de sociedade, a ser construído democraticamente, por e em função dos interesses das classes subalternas, compostas por cristãos e não cristãos, crentes e não crentes.
Com relação às conquistas, que tratarei de resumir em seguida, não poderiam ser asseguradas, senão graças à interação dialética e pela participação dos cristãos nos movimentos das classes populares. E sobretudo graças ao seu engajamento nas lutas junto com as organizações populares leigas, que se deve atribuir as conquistas seguintes
A desconfiança e, até em alguns casos, a ruptura com os velhos métodos de ação e de tomada de decisão a partir da determinação de um grupo de iluminados que seja;
O despertar de uma nova concepção e de uma nova prática democrática;
A desmistificação do papel individual do líder, em favor de uma gestão coletiva, eleita e controlada pelas bases do movimento;
O zelo por manter a autonomia relativa das organizações populares, no sentido da rejeição a tornar-se correia de transmissão de partidos, dos sindicatos, do Estado, da Igreja, etc;
A tomada de consciência eminentemente política das lutas, a serem travadas de maneira democrática com o sindicato e o partido comprometidos com essas lutas, de sorte que todos esses agentes de transformação participem deste processo com a mesma intensidade, na construção de um projeto comum de sociedade ;
O despertar da consciência no que diz respeito às suas dinâmicas interações da natureza dos fatos políticos, econômicos e culturais (de sexo, de raça e de nação…)
No entanto, é preciso relativizar o alcance de todos esses movimentos, inclusive naturalmente as organizações cristãs simpáticas à teologia da libertação. É preciso, portanto, tomar em consideração seus limites para não sucumbir à tentação de idealisá-las. Agora, vou passar para minha última consideração.
2. LIMITES DAS ORGANIZAÇÕES POPULARES
Não é preciso dizer que os movimentos populares se acham também cercados dos mais diversos limites. Apenas para evocar apenas o aspecto eleitoral, constatamos que, no decorrer dos últimos 12 meses, um fenômeno curioso. Ei-lo : justamente após as eleições de novembro de 1988, em que o PT conseguiu eleger centenas de vereadores e 36 prefeitos nas cidades mais importantes do País, a imprensa brasileira enfatizava o ascenso da esquerda e a preferência pelo PT, tornando-se o preferido entre os partidos de esquerda.
Uma vez lançados, Brizola (PDT) e Lula (PT) restaram os primeiros colocados nas pesquisas eleitorais. No entanto, alguns meses depois, à medida que os candidatos da direita eram lançados, vai mudar o cenário eleitoral : Lula cai nas pesquisas eleitorais, passando de 15% ou 18% a 6%.
Pior : é o candidato Fernando Collor de Mello, o garoto mimado da ditadura militar e da Rede Globo, que dispara nas pesquisas eleitorais. Mesmo sem estar ligado a nenhum partido político, no sentido sociológico do termo, ele passa de 5% das intenções de voto, no começo do ano, a quase metade das intenções de voto, enquanto ele não parava de se apresentar como campeão da moralidade, o “caçador de marajás”...
E por último, há apenas uma semana, isto é a cerca de quinze dias antes do primeiro turno das eleições presidenciais, tomamos conhecimento de que um dos mais de vinte candidatos - o do PMB, ligaod ao Presidente Sarney, havia renunciado à sua condição de candidato, em favor de um famoso empresário, proprietário e apresentador de um canal de televisão (SBT), chamado Silvio Santos, que tinha forte influência sobre milhões de espectadores do seu famoso “Baú da felicidade”, pertencentes em geral às camadas mais pobres da população. É assim que muito se ouve falar do seu extraordinário desempenho nas pesquisas eleitorais.
Vou parar por aqui, colocando duas questões :
Como é que podemos assistir a toda uma tomada de consciência e de mobilização dos movimentos populares e, ao mesmo tempo, constatar que uma vasta multidão acabe ficando de fora deste processo ?
Que condições tornam possível neste quadro de contradições, mesmo que nesta exposição eu só me tenha restringido ao aspecto eleitoral ?
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