Intérpretes do Brasil (IX): A literatura militante de Lima Barreto
Alder Júlio Ferreira Calado
A nona figura que escolhemos para dar prosseguimento à série “intérpretes do Brasil”, nos remete à Afonso Henriques de Lima Barreto, cujo nascimento se dá 7 anos antes do 13 de Maio de 1888 (dia celebrado como o da “Abolição da Escravatura”). A vida e a obra de Lima Barreto constituem uma fonte emblemática de interpretação da sociedade brasileira, ao longo de nossa trajetória histórica, ainda que sua obra se inscreva no primeiro período republicano.
Todo um conjunto de elementos de sua vida e de sua obra ressoa como uma preciosa fonte literária de nossa história. Cada vez mais, vem se firmando a tendência, de historiadores e historiadoras, bem como de pesquisadores de outras áreas, que recorrem a escritos literários como fonte de pesquisa. Também no caso específico de Lima Barreto, o fenômeno se reproduz, a exemplo dos seus principais biógrafos, Francisco de Assis Barbosa (cf. A Vida de Lima Barreto, 1952), Lilia Schwarcz (Triste Visionário, Companhia das Letras, 2017), Beatriz Resende (cf. Lima Barreto e o Rio de Janeiro em fragmentos, autêntica, 2016.), Gabriel Chagas (cf. Pérolas Negras na periferia, editora pontes, 2023)”, entre outros.
Na literatura militante protagonizada por Lima Barreto, grita forte e altissonante seu lugar de fala, principalmente pelo modo apaixonado e apaixonante com que encarava os preconceitos e estigmas de todo tipo, observáveis em sua época - e ainda hoje! Com efeito, não obstante seu relativamente breve percurso existencial - ele faleceu aos 41 anos -, Lima Barreto se entrega, de corpo e alma, ao enfrentamento rigoroso da ideologia, dos valores, dos costumes dominantes em sua época: o racismo estrutural, os preconceitos de classe, de raça, patriarcais, explícita e implicitamente voltados, como ainda hoje, contra os pobres, os pretos, os periféricos, dos quais, Lima Barreto se fez um intérprete exemplar. Em todos os seus escritos - artigos, contos, crônicas, romances, etc, Lima Barreto dá provas abundantes de um grande combatente contra a hipocrisia então reinante.
Ao consultarmos - ontem como hoje - as páginas de jornais da mídia hegemônica constatamos as formas mais sutis e as mais gritantes de que se revestem as relações cotidianas entre ricos e pobres, brancos e não-brancos, os ditos cristãos e os crentes de outras religiões especialmente as de matriz afro. Contra todos os estigmas então dominantes, Lima Barreto se faz crítico contumaz.
Afonso Henriques de Lima Barreto (13 de Maio de 1881-1922) era filho de Amália Augusta, escravizada alforriada, professora do Ensino Primário, e de João Henriques de Lima Barreto, tipógrafo da imprensa do Império, filho e neto de escravizados, gozando de simpatia por parte do Visconde de Ouro que patrocinou os estudos de Lima Barreto em escolas de referência do Rio de Janeiro. Muito cedo, aos sete anos, Lima Barreto perdeu sua mãe, Amália Augusta, em consequência de sequelas do parto de Lima Barreto. Ao terminar o Ensino Médio tenta ingressar, diversas vezes, em um curso universitário (À época somente dois eram oferecidos: o de e medicina e o de engenharia), tendo finalmente conseguido ingressar no curso de engenharia, ao qual pouco depois se sente obrigado a renunciar, por razões econômicas, tendo que trabalhar, em razão das dificuldades econômicas enfrentadas, pois seu pai passa a viver internado no manicômio. Submetido a concurso público, passa a trabalhar na então Secretaria da Guerra (hoje seria Ministério da Defesa), assumindo como função o cargo de amanuense (redigindo e copiando avisos e portarias ministeriais). Seu pai, quando Lima Barreto tinha 21 anos e frequentava o curso de engenharia, não tardaria em manifestar sinais de “neurastenia”, apresentando sintomas que o levaram a ser internado em um “hospital para alienados”, sendo poucos anos depois o próprio Lima Barreto a ser aí internado, por duas vezes, duras experiências sobre as quais reflete em seu último livro “Cemitério dos Vivos”, que restou inacabado, pois, Lima Barreto veio a falecer em 1922.
Lima Barreto ao longo de sua vida sempre se mostrou um iconoclasta, um intrépido crítico dos costumes então dominantes, a algum dos quais, ser humano inacabado ele próprio não escaparia: também Lima Barreto conviveu com atitudes preconceituosas, a exemplo de suas críticas contundentes dirigidas a João do Rio, personalidade que apresentava “comportamento homossexual”.
Lima Barreto, em razão de condições favoráveis gozadas pela sua família, desde cedo foi desenvolvendo suas potencialidade literárias, de percepção crítica, de análises percuciente, de observador detalhista e de escritor perspicaz, registrando, seja em crônicas, seja em contos, seja em romances (“Roman à clé”), seja em folhetins, seja em livros e artigos, entrevistas, etc, um amplo repertório dos modos de sentir, de pensar, de agir e de comunicar da sociedade do seu tempo, de maneira a identificar e denunciar todo um cenário de práticas, classistas e racistas patriarcais, recheadas de hipocrisia, de mentiras, de insensibilidade contra a população negra da época, que constituía a enorme maioria do País, fazendo-o amiúde com pretextos religiosos (ambiência de grande influência “cristã” e científicos predominância das teses positivista e do Darwinismo social/Determinismo racial ).
Considerando sua vida agitada e conturbada, resulta impactante observar a contundência da militância literária exercida por Lima Barreto, cujo período de intensa produção se dá entre 1909 e 1921. Tendo em vista que teve que enfrentar alguns períodos de interrupção, seja por conta de sua dependência alcóolica, seja pelas duas internações que teve que amargar, importa estimar uma produção literária de 10 anos, o que representa pouco tempo em relação a diversas figuras de referência, a exemplo de Machado de Assis que viveu 69 anos. Eis um apanhado de suas obras:
Romance
Recordações do Escrivão Isaías Caminha - 1909
Triste Fim de Policarpo Quaresma - 1915
Numa e a Ninfa - 1915
Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá - 1919
Clara dos Anjos - 1948
O Cemitério dos Vivos - 1953
O Subterrâneo do Morro do Castelo - 1997
Sátira
As Aventuras do Dr. Bogoloff - 1912
Os Bruzundangas - 1923
Coisas do Reino do Jambom - 1953
Conto
Histórias e Sonhos - 1920
Artigo e crônica
Bagatelas - 1923
Feiras e Mafuás - 1953
Marginália - 1953
Vida Urbana - 1953
Toda Crônica - 2004 - 2 volumes
Memórias
Diário Íntimo - 1953
Crítica literária
Impressões de Leitura - 1956
Correspondência
Correspondência - 1956
Nas últimas décadas, temos a alegria de constatar novos estudos e pesquisas,tematizando os mais variados aspectos do legado de Lima Barreto. Dentre os autores e autoras que se tem revelado mais empenhados nesta empreitada, ressaltamos, além de diversas teses e dissertações, iniciativas relevantes de figuras tais como Lilia Schwarcz, Gabriel Chagas, Beatriz Rezende, para mencionar apenas três exemplos, sempre em colaboração com diversos grupos de estudos e pesquisas sobre Lima Barreto.
O que aprendemos com Lima Barreto?
Considerando os destinatários alvo desta série de intérpretes do Brasil - nossas organizações de base -, nosso propósito maior segue sendo o de estimular o exercício contínuo da memória histórica dos explorados e oprimidos de nossa e de outras sociedades, como um incessante instrumento de combate e superação do atual modo de produção, de consumo e de gestão societal, em busca de irmos construindo as condições necessárias a este processo. Daí a relevância de também aprendermos com Lima Barreto e sua militância literária, reconhecendo sua força transformadora, presente em diversos pontos do seu legado, tais como:
Sua refinada sensibilidade perceptiva, a partir do chão do cotidiano, das enormes contradições vividas pela sociedade do seu tempo, que ele ousa denunciar, em seus variados escritos;
Para tanto, não teme desagradar “aos grandes do seu tempo”, buscando ser fiel aos fatos e acontecimentos descritos em seus contos, em suas crônicas, romances e outros escritos;
Lima Barreto empenhou-se corajosamente em desnudar as mazelas, a hipocrisia, os vícios revestidos de virtudes, o silenciamento em face dos horrores de sua época: as graves injustiças sociais, as formas de exploração e opressão a que os negros viviam submetidos, os privilégios dos ricos e da classe média, protegidos pelas instâncias do Estado toda sorte de preconceitos contra a população negra e, por outro lado, também ensejando sonhos alternativos de um visionário;
Em seu “Triste fim de policarpo Quaresma”, encontramos uma feliz síntese desses contrastes que teve que enfrentar, a duras penas;
Em “Recordações do escrivão Isaías Caminha”, igualmente, nos deparamos com importantes registros dos desafios enfrentados, cotidianamente, pelos negros para se afirmarem numa sociedade de profunda raízes escravocratas;
Em “Os Bugigangas” Lima Barreto segue compartilhando desventuras e sonhos de uma terra habitável;
Em breve, é no conjunto de seus escritos, que Lima Barreto deixa perene marca de sua crítica social, que, para além de sua época, hoje continua bastante atual.
João Pessoa 17 de Dezembro de 2024.
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