Intérpretes do Brasil (X): Astrojildo Pereira, uma compreensão anarco-comunista da cultura brasileira
Alder Júlio Ferreira Calado
Nas trilhas desta incursão por alguns intérpretes - homens e mulheres -, de nossa terra e de nossas gentes revisitamos, desta vez, a figura de Astrojildo Pereira, cujo nome completo é Astrojildo Pereira Duarte Silva, de cujo legado buscamos recolher elementos e traços complementares de nossa trajetória histórico-cultural voltamos, por tanto, a exercitar a memória histórica de nossa formação social brasileira como um dos passos decisivos para a transformação processual das relações sociais capitalistas, que seguem semeando e espalhando a barbárie em escalas internacional, latino-americana e brasileira. Nestas nossas incursões rememorativas, sem descuidarmos das diferenças de interpretação entre os autores e autoras revisitados, cuidamos sobretudo de captar os pontos comuns de compreensão de nossa realidade, orientados sobremaneira pelos critérios de interpretação alinhados com a perspectiva histórico-dialética da realidade.
Astrojildo Pereira nasceu em Rio Bonito-RJ, em 1890, procedente de família de classe média, proprietária de terra, vivendo do cultivo e do comércio de bananas. Desde criança, Astrojildo mostrou-se tomado de muita curiosidade, a qual a escola não conseguia satisfazer, razão pela qual interrompe cedo sua frequência à escola (ainda no curso ginasial). Ao mudar-se para Niterói, vai encontrar melhores condições de relacionar-se com a imprensa com uma rica diversidade de leituras, a exemplo dos textos da lavra de Machado de Assis. Tão aficionado se tornou dos escritos de Machado de Assis, que aos 17/18 anos de idade, ao tomar conhecimento de que seu autor preferido agonizava, ousou dirigir-se à casa de Machado de Assis.
Ao bater a sua porta veio alguém - que depois se saberia tratar-se de Euclides da Cunha -, que lhe perguntou o que desejava. Respondeu-lhe ter vindo fazer uma breve visita a Machado de Assis. Tocado por aquela cena, Euclides da Cunha o conduz até ao leito onde agonizava Machado de Assis. O adolescente/jovem Astrojildo, reverente, limita-se a beijar-lhe a mão. Voltando para casa, em seguida. Por muito tempo, Astrojildo guardou em segredo este episódio ocorrido em 1908, no bairro Cosme Velho, onde se situava a residência de Machado de Assis, considerado como o “bruxo do Cosme Velho” por setores da classe dominante de então, em razão das críticas contumazes feitas por Machado ao comportamento e aos costumes hipócritas daquela sociedade.
Ao mesmo tempo, Astrojildo Pereira graças à combinação de suas leituras com a sua postura crítica de arguto observador, vai descobrindo melhor as condições de vida e de trabalho dos pobres de sua época, em sua maioria negros, desempregados e humilhados pelos setores dominantes. Crescem nele a indignação e o compromisso de solidariedade com os “de baixo”, expressos em seus romances, em seus contos e demais escritos. Sentimentos reforçados ainda mais pela crescente atuação do movimento sindical liderado pelos anarquistas, dos quais ele passaria a ser uma liderança-referência. Daí por diante, Astrojildo Pereira passa a ser um militante combativo da causa operário-camponesa, sobretudo pela organização de greves, das quais a mais importante foi a de 1917 - marco relevante das lutas sociais no brasil -, e, ao mesmo tempo, Astrojildo passaria a militar também como jornalista, escrevendo nos principais jornais da região, especialmente nos jornais anarquistas.
Dando mostras também de sua curiosidade internacionalista, em 1911, o jovem Astrojildo, com apenas 21 anos, comete a aventura de viajar a Paris, não obstante os imensos obstáculos que teve que enfrentar. A despeito de sua brevíssima estada, conseguiu contactar e ler relevantes obras das principais figuras anarquistas de então. De volta ao Brasil, prossegue sua militância, seja em busca da organização da resistência, inclusive por meio de sucessivas greves, seja por meio de seus costumeiros artigos publicados na imprensa da região, principalmente nos diversos órgãos da imprensa anarquista. Graças ao seu talento de escritor, seus textos eram muito apreciados, tanto em razão de seu conteúdo, quanto sobretudo pela clareza de seu estilo, bastante acessível aos próprios trabalhadores e trabalhadoras.
Outra marca da personalidade de Astrojildo, por muitos reconhecida e testemunhada, tinha a ver com sua postura afável de lidar tanto com os parceiros quanto com os diferentes, motivo pelo qual Martin Cézar Feijó o trata como “O revolucionário cordial”. Outro traço marcante em sua vida tem a ver com sua sobriedade, com sua postura humilde, com sua fidelidade à Classe Trabalhadora, mesmo quando, por razões questionáveis, foi expulso do PCB em 1930, tendo que passar por uma sorte de ostracismo das fileiras do Partido, sem que nunca tenha desistido da causa comunista. Importa assinalar a gravidade da sua expulsão, uma vez que se tratava não apenas de um membro qualquer do Partido, mais um dos seus principais fundadores, e o seu Secretário Geral por quase oito anos. Durante este período que se estende por cerca de 15 anos, empenhou-se em registrar em livros, e outros textos, sua rica experiência de militante, de jornalista e de crítico literário. De suas obras, devemos destacar :
URSS, Itália, Brasil. Rio de Janeiro, Editora Alba, 1935.
Interpretações. Editora CEB, 1944;
Machado de Assis: ensaios e apontamentos avulsos, Livraria São José, 1959.
Formação do PCB, 1922/1928: notas e documentos, Editora Prelo, 1962.
Crítica impura, autores e problemas, Editora Civilização Brasileira, 1963
Ensaios históricos e políticos, Editora Alfa Omega, 1979.
Após sua experiência em Paris, em 1911, de retorno ao Brasil, Astrojildo intensifica suas atividades de militância, seja como jornalista, seja na organização do movimento anarquista. Acompanha, com interesse relevantes encontros-assembleias e congressos dos trabalhadores, inclusive o famoso Bloco Operário Camponês (BOC), fortalecendo a organização também por meio de sucessivas greves, cominando com a grande greve de 1917 e a insurreição operária de 1918, tendo até experimentado tempos de prisão.
A Revolução Russa de 1917 foi acompanhada ativamente por militantes de todo o mundo, inclusive na América Latina e no Brasil. A despeito das divergências entre anarquistas e marxista-leninistas, Astrojildo seguiu sendo uma liderança de referência de todo o movimento operário de então. A fundação do PCB, antes cogitada para 1918, por conta da repressão que se seguiu contra o levante operário de 1918, só veio a acontecer em março de 1922, de cuja fundação, além de Astrojildo, participaram mais oito pessoas (entre elas, estava também o Pernambucano Cristiano Cordeiro), tendo sido eleito como seu primeiro secretário geral a figura de Abílio de Nequete, que ficaria no cargo apenas poucos meses, tendo sido substituído por Astrojildo Pereira.
A respeito da dissidência dos dirigentes da III Internacional com relação às posições do PCB, em defesa dos maçons comunistas, Astrojildo também faz sua criteriosa avaliação.
A expulsão de Astrojildo tanto da Secretaria geral como das fileiras do partido, constituiu um duro golpe para ele, ao mesmo tempo em que ele consegue superar os efeitos desta amarga experiência, graças principalmente à elaboração e ao exercício da crítica literária, sempre em uma perspectiva anarco-comunista.
Vale a pena destacar a atitude de dignidade de Astrogildo mantendo-se comunista e fiel à classe trabalhadora, passando a escrever seus principais livros neste período de 30-45.
Há de se sublinhar sua dedicação à análise e interpretação da obra de Machado de Assis, justamente durante este período.
Na primeira metade dos anos 60 por iniciativa pŕopria, mas também instigado por amigos, a exemplo de Graciliano Ramos, ele houve por bem, com base em seus arquivos escrever sobre a trajetória histórica do PCB, em livro intitulado “Formação do PCB” em (1962). Outro escrito precioso de sua lavra é sua obra intitulada “Crítica Impura “ (1963) na qual contesta com argumentos convincentes, escritores de referência de postura conservadora, que negavam mérito literário a romances e contos que tematizam os dramas do cotidiano de pobreza, secas e miséria, vivenciadas por seus personagens, que expressavam as agruras e os tormentos, as alegrias e esperanças da população negra, pobre e sertaneja.
Ainda que Astrojildo Ppereira nesta época já não tivesse uma militância de rua, mas atuando firmemente como um organizador cultural, especialmente na Revista “Estudos Sociais”, acabou preso, em 1964, em consequência do Golpe Militar, tendo sido preso até Janeiro de 1965. Acometido de uma doença cardíaca, veio a óbito em 1965 deixando um vasto e denso legado ético, político, e cultural.
O que aprendemos com Astrojildo Pereira ?
Um primeiro ensinamento que podemos recolher do percurso existencial de Astrojildo Pereira é sua contínua aposta/investimento no processo formativo contínuo, que ele exerceu com muita paixão, certo da força libertária do conhecimento. Isto não passa necessariamente pela Escola nem pela Academia. Neste sentido, Astrojildo não foi o único. Sua sede de liberdade o inspirou durante toda a sua vida, ajudando-o a tomar difíceis decisões, sem que jamais tivesse cedido a seus princípios. Mesmo quando expulso da direção do PCB e de suas fileiras, em razão de suas posições conflitantes com as tendências stalinistas que começavam a predominar, fora e dentro do Brasil, Astrojildo soube manter-se como um comunista exemplar, apreciado por um conjunto de intelectuais de grande expressão nacional, a exemplo de Jorge Amado, Carlos Drummond de Andrade, Graciliano Ramos, Nelson Werneck Sodré, entre tantos. Não figurando apenas no plano político, ele também gozava de grande apreço da parte de figuras do mundo literário, a exemplo de Otto Maria Carpeaux.
Expressando nosso agradecimento a diversos intelectuais brasileiros, especialmente aos que se dedicaram a sua biografia, dentre os quais, Martim César Feijó, podemos descobrir preciosos predicados de Astrojildo: Sua Afabilidade no trato com os diferentes (“revolucionário cordial”) sua paixão pela luta contínua em defesa e promoção dos interesses “dos baixo”, sua postura humilde, seu autodidatismo, sua paciência histórica, entre tantos outros. Lembramos, ainda, sua criatividade revolucionária, desde a iniciativa que teve, nos tempos em que Luiz Carlos Prestes vivia exilado na Bolívia, a quem Astrojildo foi visitar, levando-lhe uma mala cheia de livros de relevantes obras de Max, Engels e de outros comunistas, como a estimular o “ Cavaleiro da Esperança” a se introduzir melhor no conhecimento do processo revolucionário, atitude que foi determinate para a entrada de Prestes nas fileiras do PCB.
Por meio destas brevíssimas linhas, buscamos incentivar os militantes de nossas organizações de base a aprofundarem o exercício da memória histórica, em vista de recolherem fecundos elementos de compreensão de nossa realidade, como meio de enfrentamento exitoso de nossos atuais desafios.
João Pessoa, 31 de Dezembro de 2024
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