Intérpretes do Brasil (VIII): Traços do pioneirismo de Maria Firmina dos Reis
Alder Júlio Ferreira Calado
Não é a primeira vez que nos impacta a tardia tomada de consciência da relevância de figuras históricas da estirpe de Maria Firmina dos Reis (1825-1917). Sobretudo nas últimas décadas temos sido surpreendidos, por meio de recentes pesquisas (dissertações, teses, artigos, livros, documentários…) com descobertas de figuras de nossa história, cujo fecundo legado restou muito pouco conhecido, quando não submetido a um estranho esquecimento ou mesmo apagamento. Este é também o caso de Maria Firmina dos Reis, sobre a qual cuidaremos, nas linhas que seguem, de evocar significativas marcas do seu denso legado. Para tanto, trazemos à tona, inicialmente, alguns dados bibliográficos desta autora, passando, em seguida, a sublinhar relevantes elementos de seu aporte histórico-literário, buscando, ao final, ressaltar alguns ensinamentos a recolher de sua trajetória.
Quem foi mesmo Maria Firmina dos Reis?
Ela emerge, ao mesmo tempo, como expressão e resultado das condições históricas e socioeconômicas de que gozava, naquela época, a Província do Maranhão. Oriunda como uma das capitanias, já no século XVI, o Maranhão, somente a partir do século XVII vai ser alvo de colonização, por conta de suas riquezas naturais (madeira, ouro.), passando nos séculos seguintes a constituir um grande centro de atração cultural e econômico, graças principalmente à economia do algodão, a partir de meados do século XIX, prosperidade notavelmente favorecida em consequência da crise algodoeira decorrente da Guerra de Secessão, nos Estados Unidos, o que obrigou os principais centros europeus de produção têxtil a demandarem o algodão Maranhense, ensejando uma época de muita prosperidade econômica e cultural, no Maranhão. Isto pode ser atestado, inclusive, pelo registro de que, a essa época, circulavam seis jornais naquela região.
Firmina dos Reis, filha de Leonor Filipa, uma mulher negra ex-escravizada (gozando, portanto, de alforria), e provavelmente de João Pedro Esteves, proprietário de engenho. Maria Firmina, ainda muito cedo, restando órfã de mãe, foi transferida para Guimarães-MA para ser criada por uma tia materna. Confirmando-se os avanços culturais da época, a família de Maria Firmina chegou a contar com figuras versadas nas letras, ambiente que também favoreceu o caminho das letras percorrido por Maria Firmina.
Em 1847, Maria Firmina participou, com sucesso, de um Concurso Público para Professora do ensino primário que exigia das participantes idade mínima de 25 anos. Consta que tendo apenas 22 anos, com o apoio de familiares e conhecidos, conseguiu, junto ao arcebispo de São Luiz, um atestando que lhe garantia a idade requerida.
A Partir de então, Maria Firmina vai se revelando, além de competente Professora, portadora de reconhecidos talentos literários, passando a escrever artigos em jornais da região, ao mesmo tempo em que também vai se revelar uma admirada compositora de hinos e canções. Enquanto mestra Maria Firmina também inova, ao ousar manter, por mais de dois anos, aulas mistas, frequentadas por meninos e meninas, iniciativa que escandalizou a época, suscitando uma forte reação, até a exigência do encerramento da experiência.
Maria Firmina, no tocante à sua produção histórico-literária, opta pelo romance por meio do qual atua como uma ferrenha crítica contra as maldades da escravidão no que se revela como a primeira mulher negra abolicionista, não apenas em escala latino-americana, mas também no âmbito dos países lusófonos, a escrever um romance abolicionista. Trata-se de “Úrsula”, publicado em 1859. Antes de ser editado como livro – o que implicou em uma campanha de arrecadação de contribuições -, Maria Firmina, seguindo uma prática habitual da época, publicou em forma de folhetins, obtendo amplo reconhecimento.
Em sua obra-prima, “Úrsula”, Maria Firmina empenha-se na crítica contundente ao modo de produção escravista, mediante narrativas próprias da obra literária. Em outro escrito seu “Gupeva”, também vindo a lume ao modo de um folhetim ou de um enredo de novela, publicado em jornais da região, nele, de início, faz questão de pintar um cenário tropical esplendoroso – enaltecendo as belezas naturais da região, a claridade do sol e da vegetação, sugerindo marcas do lugar paradisíaco aqui existente, antes da chegada dos “civilizadores”. Também, em “Úrsula”, cuida de registrar as marcas tenebrosas da trajetória percorrida, desde a Mãe-África, pela personagem “Mãe Susana”.
Aí desponta o contraste: Mãe Susana rememora, com profunda melancolia, o drama dantesco do comércio escravagista. Conta como vivia feliz, em terras africanas: no aconchego de sua família, sua comunidade bem organizada, vivendo em paz, com os seus valores, com os seus costumes, com a sua religião... De repente, a exemplo de tantas outras pessoas, vê-se aprisionada, sequestrada e, juntamente com tantos outros, jogada em um “tumbeiro” (navio negreiro), sujeita a toda sorte de torturas e aflições, durante trinta longos dias – muitos deles e delas não suportam as torturas, e chegam a ser despejados em alto mar. Eis a obra dos “civilizados”, o que faziam com bárbaros...
Maria Firmina dos Reis também escreveu outras obras, a exemplo de “A Escrava”, conto publicado em 1887, por meio do qual segue denunciando os horrores do escravismo. Valendo-se de vários personagens, em especial de uma abolicionista branca que assiste e descreve a perseguição feroz, feita por um capitão-do-mato, a uma escravizada fugitiva que, tida como louca, escapara das garras do algoz. A abolicionista, que observa a cena da perseguição, ao ser indagada pelo perseguidor, fornece-lhe informações contrárias sobre o destino da perseguida. Também observa a chegada do filho da perseguida, também ele um escravizado à procura tresloucada de sua mãe. Ao obter, agradecido, informação precisa sobre o paradeiro de sua mãe, ele finalmente a localiza, escondida em uma moita, quase desfalecida. Acompanhados de perto pela abolicionista, ela os convida à sua própria casa, passando a cuidar dos dois perseguidos. Todos são surpreendidos pela chegada, primeiro do capitão-do-mato, e, em seguida, dada a recusa da abolicionista em cedê-los, é abordada pelo próprio dono dos escravizados, ao qual também entrega-os, acabando por comprar sua alforria.
Oque destacar do legado de Maria Firmina dos Reis?
Antes de ressaltar alguns traços e ensinamentos da trajetória bibliográfica de Maria Firmina dos Reis, permitimo-nos insistir em nosso propósito de compartilhar estas linhas: incentivar, principalmente os jovens militantes de nossas organizações de base, o exercício da memória histórica dos oprimidos como ferramenta de sua libertação. Como costumamos fazer nesta série de artigos, estimulamos nossos destinatários e destinatárias a aprofundarem seus estudos sobre os principais intérpretes do Brasil - homens e mulheres. No caso específico de Maria Firmina dos Reis, sugerimos consultar, dentre diversos estudiosos, os seguintes:
Nascimento Moraes Filho, um dos primeiros biógrafos de Maria Firmina, autor do livro “Maria Firmina – fragmentos de uma vida”, publicado em 1975;
Eduardo de Assis Duarte . Artigo Maria Firmina dos Reis e os Primórdios da Ficção Afro-brasileira (disponível no portal “Literafro” Portal da Literatura Afro-brasileira – disponível no endereço www.letras.ufmg.br/literafro);
Dilercy Aragão Adler, pesquisadora que estudou a vida e a obra de Maria Firmina dos Reis. No livro “Maria Firmina dos Reis: uma missão de amor”;
Bárbara Loureiro Andreta. Dissertação Visões da escravatura na América Latina: “Sab” e “Úrsula”. (Mestrado em Letras - Universidade Federal de Santa Maria, 2016);
Jéssica Catharine Barbosa de Carvalho. Dissertação Literatura e atitudes políticas: olhares sobre o feminino e antiescravismo na obra de Maria Firmina dos Reis. (Mestrado em Letras - Universidade Federal do Piauí, 2018);
Janaína dos Santos Correia. Dissertação O uso de fontes em sala de aula: a obra de Maria Firmina dos Reis (1859) como mediadora no estudo da escravidão negra no Brasil. (Mestrado em História Social - Universidade Estadual de Londrina, 2013);
Régia Agostinho da Silva. Tese A escravidão no Maranhão: Maria Firmina dos Reis e as representações sobre escravidão e mulheres no Maranhão na segunda metade do século XIX;
Débora Dias Macambira. Dissertação Impressões do tempo. Os almanaques no Ceará (1870-1908). (Mestrado - Universidade Federal do Ceará, 2010);
Carla Cristine Francisco. Dissertação Mãe Susana, Mãe África – a ‘invenção’ da diáspora negra em Úrsula (1859) de Maria Firmina dos Reis. (Mestrado em Aire Culturelle Romane - Université de Provence Aix Marseille I, França 2010);
Norma Telles. Tese Encantações: escritoras e tradição literária no Brasil, século XIX. (Doutorado em Ciências Sociais - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 1987);
Mônica Saldanha Dalcol, na Tese A condição da mulher negra na literatura brasileira em Úrsula, Casa de Alvenaria e Um defeito de cor (2020), a autora realiza um estudo comparativo de três obras de escritoras negras brasileiras, que perpassam três séculos: Úrsula (1859), de Maria Firmina dos Reis, século XIX, Casa de Alvenaria (1961), de Carolina Maria de Jesus, século XX, e Um defeito de cor (2006), de Ana Maria Gonçalves, século XXI.
Carla Sampaio dos Santos. Livro A escritora Maria Firmina dos Reis: história e memória de uma professora no Maranhão do século XIX.
Bárbara Simões. Artigo "A escrita de Maria Firmina dos Reis: Soluções para um problema existência".
Maria dos S. Cruz, Érica Matos e, Ediane Silva - Artigo "Exma. Sra. d. Maria Firmina dos Reis, distinta literária maranhense entre outros pesquisadores e pesquisadoras.
Com base nestes dados e em outros que seguiremos buscando, cuidamos de realçar tocantes ensinamentos do percurso existencial e da obra de Maria Firmina dos Reis. Com ela, aprendemos a enxergar os limites de uma historiografia e dos cânones literários que, a despeito de suas positividades, acabam objetivamente por silenciar ou omitir relevantes figuras de intérpretes de nossa sociedade, principalmente as ricas contribuições de legados por mulheres negras a exemplo de Maria Firmina dos Reis, Lélia Gonzalez, de Carolina Maria de Jesus, e de tantas outras.
Em uma época em que dezenas de escritores negros dos Estados Unidos, ousavam publicar livros e romances narrando suas histórias de vida, eis que Maria Firmina dos Reis tem a audácia de denunciar, pela via do romance, as perversidades cometidas pelo regime escravista suas desumanidades e sua hipocrisia, com o agravante de cometer tais crimes em nome da civilização ocidental e da religião cristã. Seja pela via do romance ou da poesia - ela também foi autora do livro poético “Cantos à Beira Mar” -, ela cumpriu relevante papel libertário.
Também seguimos amargando uma conjuntura de retrocessos, seja em escala mundial, seja em âmbito nacional, razão pela qual nossas organizações de base devem sentir-se cada vez mais instadas a exercitarem esta memória subversiva, começando por superar a letargia de que ainda se acham acometidas.
João Pessoa, 09 de Dezembro de 2024
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