BRASIL EM MOMENTO TRAUMÁTICO: dilemas, criticidade
e ousadia (Notas esparsas, tecidas ao calor das urgências)
Alder Júlio
Ferreira Calado
Ao longo da
história, inclusive da sociedade Brasileira, dada a própria condição de
inacabamento do ser humano alternam-se momentos luminosos e momentos de
obscurantismo, a depender das condições sócio-históricas cultivadas. No momento
atual, estamos a amargar uma situação tenebrosa. Em permanente busca de superação
dos atuais impasses e dilemas, ouso perguntar-me e compartilhar algo do tipo: sob
que riscos mais graves, move-se hoje a sociedade brasileira? O que estará por
trás desse desvairado belicismo? Que forças o encarnam e em que(m) se apoiam?
Como nos foi possível chegar a este ponto? Onde e como buscar forças que
inspirem caminhos de superação, a curto, médio e longo prazos? Que forças
sociais se mostram com melhores chances de liderar caminhos alternativos a esta
onda de obscurantismo e barbárie que nos tem inundado? Eis alguns dos
questionamentos que me ocorre externar, sob o impacto da dramaticidade desta
hora.
A história se acha
pontilhada de exemplos de alternância entre momentos luminosos e momentos de
obscurantismo: como extrair lições de caráter libertário? O Universo como uma mega-oficina de tecelagem, como
uma imensa rede de fios cósmicos, que vai sendo tecida pela força da sinergia a
mover seus tecelões e tecelãs (os seres cósmicos em sua dinâmica relacionalidade),
ora numa, ora noutra direção, ora tendendo para uma direção biófila, ora - e
aqui, graças apenas a uma de suas espécies, o "homo sapiens" - numa
direção necrófila. O "homo sapiens" irrompe, no Universo, como a
expressão de sua consciência, como sua espécie pensante. Condição que,
historicamente vocacionada a um destino biófilo, em certas condições, graças à
sua liberdade, ou melhor, graças ao seu livre arbítrio, pode também induzi-lo a
escolhas necrófilas, dotando parte expressiva do Universo de uma sinergia
também necrófila, neste caso, transformando-se de "homo sapiens" em
"homo demens", a depender das escolhas que faça, em seu dia-a-dia.
É
curioso, a este propósito, perceber-se como condutas moleculares podem oscilar
ora para uma direção, ora para a direção oposta. Escolhas aparentemente ínfimas
de significado se acham recheadas de sentido, numa ou noutra direção. Mesmo
inocentes iniciativas de apreço à Natureza, se não se fundam em escolhas
criteriosas - principalmente da parte de quem está mais aparelhado, pela sua
experiência e pelo seu aprendizado existencial - pode estar colaborando
OBJETIVAMENTE para o fortalecimento de uma orientação necrófila, mesmo
pretensamente imbuída de propósitos biófilos. Inciativas, por exemplo, que têm
lugar em projetos de defesa da Natureza, em que se contribui para a
"naturalização" de práticas de animais mantidos em cativeiros, por
vezes com argumentos bem-intencionados, podem reforçar a má direção. A condição
de "homo sapiens" não irrompe como uma fatalidade, como um
determinismo, mas como uma possibilidade, como um chamamento histórico do
Universo, que só se cumpre efetivamente quando e onde o "homo sapiens"
CULTIVA os passos nessa direção. Caso contrário, pode estar indo na
direção oposta, e assim se transformando, conscientemente ou não, em "homo
demens". Eis por que é fundamental que estejamos sempre a pensar
nossas práticas, com a consciência de que elas se acham necessariamente
interligadas. Sendo assim, nosso cotidiano emerge como um cenário no qual cada
momento se faz um atestado efetivo de para onde conduzem nossas boas ou más escolhas.
Resistir a pensar nossas práticas, fugir deste exercício acabam se transformando
em atos suicidas, que a ninguém servem, senão a uma autodestruição pessoal e
coletiva. Pensar a prática, pois, é a lição maior a ser recolhida com exercício
da reflexão crítica.
O exacerbado recurso à combinação de ódio, mentira e violência
não é algo novo, na história das sociedades ocidentais. Alcança raízes remotas.
Um dos períodos mais marcantes foi o tempo do ascenso do Nazismo, em especial
por meio da figura de Joseph Goebbels (ministro de Hitler).
Atendo-nos especificamente
aos atuais desafios da esfera política, importa também refrescar nossa memória
histórica, pelo menos a partir do legado de Goebbels, em que assume proporções exacerbadas,
o confronto entre a força da razão e a razão da força, mediante o uso e abuso
de uma combinação necrófila extraordinária de elementos, tais como a mentira, o
ódio, a violência, o medo, aos quais se recorre como estratégia de dominação.
Especialmente, em
situações graves, costuma prosperar de parte a parte a mentira, razão por que
se costuma dizer que, em situações de guerra –especialmente guerra ideológica –
a verdade se torna a primeira das vítimas. Caso típico do ascenso do Nazismo na
Alemanha (onde prosperava o famoso dito “Deutschland über alles” – “Alemanha acima
de tudo”...), durante o qual foi confiado a Joseph Goebbels o encargo de chefiar
o serviço de propaganda nazista. A ele se atribuem pensamentos do tipo: “A
mentira repetida mil vezes torna-se verdade” (Eine Tausendmal Wiederholte Lüge
Wierdzur Wahrheit) ou “Se você contar uma grande mentira e repeti-la com
bastante frequência, as pessoas acabarão acreditando. A mentira pode ser
mantida enquanto o Estado conseguir proteger as pessoas das consequências
políticas, econômicas e militares da mentira. Portanto, é vital que o Estado
use todo o seu poder para suprimir a dissensão. A verdade é o inimigo mortal
das mentiras e, portanto, a verdade é o maior inimigo do Estado.”
Desta receita
nazista não faz parte apenas a mentira. A ela se acrescentam, de modo
interconectado o ódio, a violência e o medo, cada um utilizado, ao seu modo.
Para esta lógica perversa, a mentira tem que vir associada à violência mais
estúpida, substituindo a força da razão pela razão da força (recentes
declarações assacadas a membros e à instituição suprema do judiciário não são
mera coincidência). Igualmente funcional e eficaz a esta mesma lógica,
apresenta-se o ódio como estratégia política. Em sua lógica, é fundamental
incrementar o ódio aos inimigos (de classe, a misoginia, o racismo, a xenofobia,
a homofobia...), ainda que atenuado com palavras adocicadas, para confundir os
incautos. Tal elemento favorece potencialmente o medo, a ser infundido, em
larga escala, sob alegação de que o mal só pode ser combatido com a violência e
com a eliminação dos que se insurgem contra sua “ordem”...
A tal combinação
explosiva associa-se o componente religioso, que confere uma força toda
especial à estratégia em jogo, uma vez que se tenta convencer os incautos pela
força do sagrado, ainda que em sua dimensão reelaborada e distanciada das
fontes em que se diz inspirar. Trata-se do fundamentalismo religioso...
Ao extremo calor dos
embates, em que o momento nos mergulha, sentimo-nos tentados a esquecer que,
qualquer que seja o desfecho eleitoral, nem o caos apocalítico nem a salvação
vamos ter como consequência, por mais impregnada de um ou de outro desses
horizontes esteja nossa sociedade. Isto nos serve, por um lado, de alento, e
por outro, nos enche de responsabilidade histórica. É compreensível que, no
horizonte imediato, nossas energias se voltem quase exclusivamente para evitar
o risco pior – a face mais reconhecida da barbárie, não tanto estampada num
indivíduo, mas notadamente traduzida em parcelas significativas de nossa sociedade:
este é o verdadeiro escândalo!
Uma leitura
imediatista do que se passa entre nós, no Brasil e no mundo, comporta elevados
e perigosos riscos de reducionismo. À medida, porém, que nos esforçamos por
tomar alguma distância crítica do imediatismo, criamos condições favoráveis
para uma compreensão mais objetiva ou menos insegura de uma interpretação
reducionista da realidade social. Com efeito, uma revisitação a situações
históricas recentes e menos recentes, nos permite refrescar a memória, no
sentido de contermos nossas paixões imediatistas, ajudando-nos a exercitar
nossa criticidade e a fortalecer nossos passos em busca de superação dos
impasses atuais. Isto nos ajuda, sobremaneira, a temperamos nossas energias
criativas, em direção a um horizonte alternativo à barbárie que nos ronda,
afinal esta situação obscurantista não surge do nada...
Se é verdade que a
sociedade brasileira vive momentos cruciais, de profundos impasses, como poucas
vezes, em nossa história, também é verdade, no âmbito do imediato, que o grande
e grave desafio instantâneo é o de tentar evitar o pior dos desfechos
eleitorais – a vitória da insanidade extremada, caminho mais propício à
naturalização do clima de barbárie, que se respira. Em qualquer, porém, dos
casos, a tarefa central das forças que se querem historicamente comprometidas
com a construção de uma alternativa a esta barbárie anunciada, é ousar passos,
a curto, médio e longo prazos, em busca de novo rumo, novos caminhos e novas
posturas, alternativas ao obscurantismo que nos ronda.
Somente a quem não
quer ver, se dá a cegueira suicida que ameaça significativas conquistas democráticas,
ainda que misturadas com entulhos acumulados ao longo das décadas mais
recentes, inclusive por parte de quem se esperava a tarefa de remoção desses
entulhos. Mesmo assim, resulta incomparável assumir como alternativa a isto a
opção por um caminho muitas vezes pior do que o criticado.
João
Pessoa, 24 de outubro de 2018.