quarta-feira, 24 de outubro de 2018


BRASIL EM MOMENTO TRAUMÁTICO: dilemas, criticidade e ousadia (Notas esparsas, tecidas ao calor das urgências)

Alder Júlio Ferreira Calado

Ao longo da história, inclusive da sociedade Brasileira, dada a própria condição de inacabamento do ser humano alternam-se momentos luminosos e momentos de obscurantismo, a depender das condições sócio-históricas cultivadas. No momento atual, estamos a amargar uma situação tenebrosa. Em permanente busca de superação dos atuais impasses e dilemas, ouso perguntar-me e compartilhar algo do tipo: sob que riscos mais graves, move-se hoje a sociedade brasileira? O que estará por trás desse desvairado belicismo? Que forças o encarnam e em que(m) se apoiam? Como nos foi possível chegar a este ponto? Onde e como buscar forças que inspirem caminhos de superação, a curto, médio e longo prazos? Que forças sociais se mostram com melhores chances de liderar caminhos alternativos a esta onda de obscurantismo e barbárie que nos tem inundado? Eis alguns dos questionamentos que me ocorre externar, sob o impacto da dramaticidade desta hora.

A história se acha pontilhada de exemplos de alternância entre momentos luminosos e momentos de obscurantismo: como extrair lições de caráter libertário? O Universo como uma mega-oficina de tecelagem, como uma imensa rede de fios cósmicos, que vai sendo tecida pela força da sinergia a mover seus tecelões e tecelãs (os seres cósmicos em sua dinâmica relacionalidade), ora numa, ora noutra direção, ora tendendo para uma direção biófila, ora - e aqui, graças apenas a uma de suas espécies, o "homo sapiens" - numa direção necrófila. O "homo sapiens" irrompe, no Universo, como a expressão de sua consciência, como sua espécie pensante. Condição que, historicamente vocacionada a um destino biófilo, em certas condições, graças à sua liberdade, ou melhor, graças ao seu livre arbítrio, pode também induzi-lo a escolhas necrófilas, dotando parte expressiva do Universo de uma sinergia também necrófila, neste caso, transformando-se de "homo sapiens" em "homo demens", a depender das escolhas que faça, em seu dia-a-dia.

É curioso, a este propósito, perceber-se como condutas moleculares podem oscilar ora para uma direção, ora para a direção oposta. Escolhas aparentemente ínfimas de significado se acham recheadas de sentido, numa ou noutra direção. Mesmo inocentes iniciativas de apreço à Natureza, se não se fundam em escolhas criteriosas - principalmente da parte de quem está mais aparelhado, pela sua experiência e pelo seu aprendizado existencial - pode estar colaborando OBJETIVAMENTE para o fortalecimento de uma orientação necrófila, mesmo pretensamente imbuída de propósitos biófilos. Inciativas, por exemplo, que têm lugar em projetos de defesa da Natureza, em que se contribui para a "naturalização" de práticas de animais mantidos em cativeiros, por vezes com argumentos bem-intencionados, podem reforçar a má direção. A condição de "homo sapiens" não irrompe como uma fatalidade, como um determinismo, mas como uma possibilidade, como um chamamento histórico do Universo, que só se cumpre efetivamente quando e onde o "homo sapiens" CULTIVA os passos nessa direção. Caso contrário, pode estar indo na direção oposta, e assim se transformando, conscientemente ou não, em "homo demens". Eis por que é fundamental que estejamos sempre a pensar nossas práticas, com a consciência de que elas se acham necessariamente interligadas. Sendo assim, nosso cotidiano emerge como um cenário no qual cada momento se faz um atestado efetivo de para onde conduzem nossas boas ou más escolhas. Resistir a pensar nossas práticas, fugir deste exercício acabam se transformando em atos suicidas, que a ninguém servem, senão a uma autodestruição pessoal e coletiva. Pensar a prática, pois, é a lição maior a ser recolhida com exercício da reflexão crítica.
O exacerbado recurso à combinação de ódio, mentira e violência não é algo novo, na história das sociedades ocidentais. Alcança raízes remotas. Um dos períodos mais marcantes foi o tempo do ascenso do Nazismo, em especial por meio da figura de Joseph Goebbels (ministro de Hitler). 

Atendo-nos especificamente aos atuais desafios da esfera política, importa também refrescar nossa memória histórica, pelo menos a partir do legado de Goebbels, em que assume proporções exacerbadas, o confronto entre a força da razão e a razão da força, mediante o uso e abuso de uma combinação necrófila extraordinária de elementos, tais como a mentira, o ódio, a violência, o medo, aos quais se recorre como estratégia de dominação.

Especialmente, em situações graves, costuma prosperar de parte a parte a mentira, razão por que se costuma dizer que, em situações de guerra –especialmente guerra ideológica – a verdade se torna a primeira das vítimas. Caso típico do ascenso do Nazismo na Alemanha (onde prosperava o famoso dito “Deutschland über alles” – “Alemanha acima de tudo”...), durante o qual foi confiado a Joseph Goebbels o encargo de chefiar o serviço de propaganda nazista. A ele se atribuem pensamentos do tipo: “A mentira repetida mil vezes torna-se verdade” (Eine Tausendmal Wiederholte Lüge Wierdzur Wahrheit) ou “Se você contar uma grande mentira e repeti-la com bastante frequência, as pessoas acabarão acreditando. A mentira pode ser mantida enquanto o Estado conseguir proteger as pessoas das consequências políticas, econômicas e militares da mentira. Portanto, é vital que o Estado use todo o seu poder para suprimir a dissensão. A verdade é o inimigo mortal das mentiras e, portanto, a verdade é o maior inimigo do Estado.”

Desta receita nazista não faz parte apenas a mentira. A ela se acrescentam, de modo interconectado o ódio, a violência e o medo, cada um utilizado, ao seu modo. Para esta lógica perversa, a mentira tem que vir associada à violência mais estúpida, substituindo a força da razão pela razão da força (recentes declarações assacadas a membros e à instituição suprema do judiciário não são mera coincidência). Igualmente funcional e eficaz a esta mesma lógica, apresenta-se o ódio como estratégia política. Em sua lógica, é fundamental incrementar o ódio aos inimigos (de classe, a misoginia, o racismo, a xenofobia, a homofobia...), ainda que atenuado com palavras adocicadas, para confundir os incautos. Tal elemento favorece potencialmente o medo, a ser infundido, em larga escala, sob alegação de que o mal só pode ser combatido com a violência e com a eliminação dos que se insurgem contra sua “ordem”...

A tal combinação explosiva associa-se o componente religioso, que confere uma força toda especial à estratégia em jogo, uma vez que se tenta convencer os incautos pela força do sagrado, ainda que em sua dimensão reelaborada e distanciada das fontes em que se diz inspirar. Trata-se do fundamentalismo religioso...

Ao extremo calor dos embates, em que o momento nos mergulha, sentimo-nos tentados a esquecer que, qualquer que seja o desfecho eleitoral, nem o caos apocalítico nem a salvação vamos ter como consequência, por mais impregnada de um ou de outro desses horizontes esteja nossa sociedade. Isto nos serve, por um lado, de alento, e por outro, nos enche de responsabilidade histórica. É compreensível que, no horizonte imediato, nossas energias se voltem quase exclusivamente para evitar o risco pior – a face mais reconhecida da barbárie, não tanto estampada num indivíduo, mas notadamente traduzida em parcelas significativas de nossa sociedade: este é o verdadeiro escândalo!

Uma leitura imediatista do que se passa entre nós, no Brasil e no mundo, comporta elevados e perigosos riscos de reducionismo. À medida, porém, que nos esforçamos por tomar alguma distância crítica do imediatismo, criamos condições favoráveis para uma compreensão mais objetiva ou menos insegura de uma interpretação reducionista da realidade social. Com efeito, uma revisitação a situações históricas recentes e menos recentes, nos permite refrescar a memória, no sentido de contermos nossas paixões imediatistas, ajudando-nos a exercitar nossa criticidade e a fortalecer nossos passos em busca de superação dos impasses atuais. Isto nos ajuda, sobremaneira, a temperamos nossas energias criativas, em direção a um horizonte alternativo à barbárie que nos ronda, afinal esta situação obscurantista não surge do nada...

Se é verdade que a sociedade brasileira vive momentos cruciais, de profundos impasses, como poucas vezes, em nossa história, também é verdade, no âmbito do imediato, que o grande e grave desafio instantâneo é o de tentar evitar o pior dos desfechos eleitorais – a vitória da insanidade extremada, caminho mais propício à naturalização do clima de barbárie, que se respira. Em qualquer, porém, dos casos, a tarefa central das forças que se querem historicamente comprometidas com a construção de uma alternativa a esta barbárie anunciada, é ousar passos, a curto, médio e longo prazos, em busca de novo rumo, novos caminhos e novas posturas, alternativas ao obscurantismo que nos ronda.

Somente a quem não quer ver, se dá a cegueira suicida que ameaça significativas conquistas democráticas, ainda que misturadas com entulhos acumulados ao longo das décadas mais recentes, inclusive por parte de quem se esperava a tarefa de remoção desses entulhos. Mesmo assim, resulta incomparável assumir como alternativa a isto a opção por um caminho muitas vezes pior do que o criticado.




João Pessoa, 24 de outubro de 2018.

terça-feira, 16 de outubro de 2018

O FIO EXISTENCIAL DA PERSEVERANÇA NO COTIDIANO DO PROCESSO DE HUMANIZAÇÃO: breves notas, desde uma experiência de busca


O FIO EXISTENCIAL DA PERSEVERANÇA NO COTIDIANO DO PROCESSO DE HUMANIZAÇÃO: breves notas, desde uma experiência de busca


Alder Júlio Ferreira Calado


Diante do ascenso e expansão extraordinários de graves ocorrências de barbárie, que nos acometem, sentimo-nos interpelados historicamente a repensar mais detidamente nossas práticas cotidianas, no horizonte do processo de humanização. Um primeiro aspecto que nos ajuda e nos mantém autovigiliantes, quanto a isto, é que devemos ter presente que processo de humanização não constitui uma fatalidade, um determinismo. Apresenta-se, antes, como uma possibilidade que somos impulsionados a ir assegurando, dia após dia, face a outra possibilidade (esta de feição tenebrosa): a possiblidade de desumanização. Sempre que a isto se referem, autores como Paulo Freire, João Francisco de Souza e outros e outras, fazem questão de assinalar este risco. É o que hoje andamos a experimentar, no Brasil e no mundo. Optar pelo processo de humanização requer de nós, dia após dia, que nos ponhamos a assegurar, a partir de nós mesmos, de nós mesmas, as condições adequadas para a sua realização, sem o que seria inútil esperarmos que o processo de humanização aconteça como num passe de mágica. Tudo vai depender de como e do que nos alimentamos, no chão do dia-a-dia: de nutrientes humanizadores ou de substâncias necrófilas, do que dão testemunho nossas práticas diárias. Pensar a prática, portanto, resulta fundamental. Eis o propósito dessas linhas.
Ocorre-nos refletir, (também) hoje! e compartilhar o desafio do processo de humanização – sempre atentos ao seu inverso: os riscos de desumanização -, desde o fio existencial da perseverança. O processo de humanização - que não é um determinismo, pois onde há o livre arbítrio, nossas escolhas acabam tornando-se uma possibilidade, a ser reafirmada ou contrariada, a cada momento - se dá no chão do dia-a-dia, a depender de nossas múltiplas escolhas, ou melhor: dos critérios que adotamos, e da perseverança com que a ele nos consagramos (ou não).
Pela nossa própria biografia, podemos atestar isto. Se não bastasse, tomemos biografias de figuras que consideramos referências paradigmáticas. Sem pensar nossas práticas, a vida se torna uma sucessão de momentos fragmentados e desprovidos de sentido libertário. Pensar a prática resulta, pois, uma escolha de quem aposta na vida, em busca de plenitude.

Podemos fazer este exercício, por vários caminhos, tomando diversos fios existenciais. Aqui escolhemos, hoje, fazê-lo por meio da perseverança, fio existencial que nos permite consolidar nossas boas escolhas, grávidas de vida libertária, enquanto seres biófilos que queremos ser, que queremos ir sendo. E como encarar a perseverança: Vou começar a fazê-lo, em termos de uma tentativa, pelos critérios do Movimento de Jesus que tanto prezamos.

A perseverança exercitada como um dom
Sem desconhecermos a força do protagonismo pessoal e comunitário na produção e cultivo dos fios existenciais, característicos do processo de humanização, para as pessoas e comunidades que se querem seguidoras ou discípulas do Movimento de Jesus, os fios existenciais – todos e cada um-, no horizonte do processo de humanização sem deixarem de ser expressão de busca permanente, graças também ao nosso protagonismo pessoal e comunitário, são tratados, antes de tudo, como dons da Graça divina. Fonte de todo bem e de todo dom. Tal entendimento se acha assentado em diversas passagens evangélicas e no conjunto das Sagradas Escrituras. Atenhamo-nos aqui, de passagem, apenas a algumas situações, episódios e indicações extraídos dos Evangelhos.
Um dos episódios emblemáticos atinente ao dom da perseverança, se acha na parábola do semeador. Suas primeiras tentativas resultaram frustradas, mas sua persistência em continuar buscando a boa terra, ao final lhe sorri, assim também, na vida, os discípulos e discípulas do movimento de Jesus, não devem desistir de semear o bem, a justiça, a paz, a solidariedade, ainda quando as situações se achem as mais improváveis: há de se seguir lutando, semeando, “pois quem procura, encontra. ”.
Importa atentar para o sentido da parábola do semeador, tal como o próprio Jesus a explica aos Seus discípulos e discípulas, em especial ao sentido da qualidade do terreno, ou seja, da preparação ou não preparação de quem houve essa Palavra. Ao nos colocarmos também, enquanto protagonistas de relações sociais alternativas à barbárie que nos circunda, também nos sentimos implicados, nesse episódio, à medida que descuidando-nos de nosso processo formativo contínuo, por vezes, sucumbimos à superficialidade de nossa compreensão e de nossa ação de agentes transformadores; outras vezes, por descumprirmos condições mínimas de práticas organizativas fundamentais, deixamo-nos seduzir por atalhos... 
Outro episódio ilustrativo do dom da perseverança se acha na figura do pai, a esperar, contra toda esperança, o retorno do filho mais jovem, de seus caminhos de aventuras fracassadas. Mais do que esperou, “esperançou”, e, portanto, não foi decepcionado. Neste episódio, também podemos sentir-nos implicados, à medida que examinamos nossa “paciência histórica”, isto é, buscando vencer nossa avidez de realizações imediatistas, de tal modo que, quando as coisas não se dão no ritmo acelerado de nossa avidez, sedemos ao desanimo, sucumbindo ao sentimento de impotência, ou seja, desistindo da luta...
Associado à oração vem também aconselhada a necessidade de vigilância que não deixa de ser também uma forma de perseverança. Aqui, sentimo-nos remetidos a permanente necessidade de autovigilância ou, de modo mais expressivo, do contínuo exercício da mística revolucionária, que nos permite uma constante auto avaliação e a renovação contínua de nossos compromissos com o processo de libertação dos condenados da “terra”.
Seja no âmbito pessoal, seja no âmbito comunitário, o exercício da perseverança se apresenta como condição indispensável ao sucesso de nossas iniciativas. Não basta apenas semear, importa também cultivar a terra que abriga a semente, para que esta germine, floresça e frutifique.
No tenebroso período da Ditadura Civil-Militar, no Brasil, a resistência foi protagonizada por diversos segmentos de nossa sociedade, entre os quais os artistas. Lembremo-nos, a este respeito o exemplo das composições de autores como Chico Buarque. Em uma de suas músicas – “Roda Viva” – ele nos alerta: “A gente vai contra a corrente _ até não poder resistir _ na volta do barco é que sente _ o quanto deixou de cumprir”. Nestes versos, também se faz presente a consciência sobre a importância da perseverança. Nos desatinos e nos reverses históricos, dificilmente a gente escapa de uma parcela de responsabilidade social. Mas, não se trata de um convite à autoflagelação, inútil e estéreo, mas de renovarmos, em novo estilo, nossos compromissos de coerência com o horizonte, os caminhos e a postura com que nos entregamos a esta causa.

João Pessoa, 16 de Outubro de 2018.


sexta-feira, 12 de outubro de 2018


UMA CHAVE DE LEITURA (E REESCRITA) DO LEGADO FREIREANO, NO CALOR DOS DESAFIOS ATUAIS: Qual a contribuição de nossas organizações de base?

Alder Júlio Ferreira Calado

Na perspectiva freireana (não apenas), toda leitura de mundo se acha necessariamente permeada pelas vicissitudes históricas, isto é, sob a dinâmica do movimento do tempo, bem como da marca da espacialidade. Não faria sentido uma análise de uma situação presente, desconectada de seus laços com passado e temperada com um esforço prospectivo: presente-passado-futuro são traços necessariamente interconectados, como condição de uma análise dentro da criticidade desenvolvida (também) em Paulo Freire, não apenas proposta, mas sobretudo testemunhado, ao longo de seu percurso existencial. Resulta, por conseguinte, não apenas possível, mas também necessário, ao nos debruçarmos sobre o calor da atualidade, por mais conflituosa que se manifeste, sem a devida atenção a aspectos tais como:
- de onde vem este presente?
-como foi forjado, até desaguar no que hoje se tem?
- que forças, durante esse período, estiveram confrontando-se, e à luz de que projetos de sociedade?

Tanto no conjunto de suas obras, como em suas intervenções orais (entrevistas, depoimentos, conversações, sem contar sua expressiva atividade epistolar), e sobretudo em todo o seu legado existencial, Freire foi sempre um observador perspicaz da realidade social, atento a seus mais complexos movimentos, extensão e complexidade. O exercício de observação perspicaz, da realidade em movimento, os registros por ele anotados de tal observação não se faziam em nome de um mero exercício acadêmico de constatação da realidade, mas como eficazes instrumentos voltado à transformação substantiva das relações sociais, tanto na esfera econômica, quanto na esfera política quanto na esfera cultural neste horizonte, Freire se mostra organicamente afinado com o espírito da Tese 11, por Marx dirigida em relação Feuerbrach: “Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo.”. A este respeito sinto-me remetido a uma de tantas entrevistas suas em que lhe foi perguntado como se sentia, ao ser reconhecido como o criador de um método de alfabetização. Respondeu que se sentia agradecido por este reconhecimento, mas que sua gula era bem maior do que isto, pois seu compromisso maior estava voltado à transformação da realidade social. De tal movimento faz parte seu zelo pela identificação dos mais distintos nexos presentes e atuantes na produção de nossa realidade. 

Nesse sentido, saltam à vista certos conceitos por ele trabalhados, seja de modo explícito, seja tacitamente, mas nem por isso, menos presentes. A começar pela categoria, ou melhor, pelo seu testemunho contínuo do exercício do Diálogo - com os parceiros, com os diferentes, sem deixar de considerar criticamente até os argumentos de correntes antagônicas (sem que isto resulte em parceria!

É pelo exercício incansável do diálogo, que também vamos exercitando nossa criticidade e nossa postura propositiva frente às mais diversas situações desafiadoras, o exercício contínuo do Diálogo se apresenta como condição necessária à superação de nossas próprias insuficiências (“Inacabamento”), bem como do despertar e do assumir de nossas próprias potencialidades (do âmbito pessoal ao comunitário) nossos limites de seres humanos não são enfrentados adequadamente, tampouco superados, no isolacionismo. Precisamos da experiência comunitária, grupal (núcleos, círculos, conselhos populares... não importa o nome), como condição para o reconhecimento dos nossos limites pessoais e coletivos, bem como para lidar com a superação de tais limites, ao longo de nossa existência. É por conseguinte, fundamental o exercício contínuo do diálogo para irmos tornando-nos Gente, protagonista da própria história, agentes de transformação social...

É, também, graças ao exercício contínuo do Diálogo, que nos tornamos aprendizes uns dos outros, seja no tocante a virtudes e dons, seja no tocante também ao aprendizado com os erros alheios e com os nossos próprios erros, caminho para o aprendizado incessante do exercício da autocrítica, outra expressão-chave no universo vocabular freireano, segundo o qual o exercício da própria crítica se inicia com o exercício da autocrítica: inútil esbravejar contra os malfeitos alheios se não sou capaz e não faço qualquer esforço de olhar e reconhecer do quanto que eu acuso dos outros se aloja em mim mesmo...
“Ação cultural”, “Educação libertadora”, “Diálogo”, “Consciência de inacabamento”, “Criticidade”, “Crítica-autocrítica”, “Curiosidade epistemológica”, “Autonomia”, “Inédito viável”, “Esperançar”, “Práxis”, “Utopia”, e tantas outras expressões-chave por ele criadas, por ele desenvolvidas ou por ele assumidas, não correspondem precisamente a meros conceitos acadêmicos: constituem, antes de tudo, experiências por ele assumidas, em seu legado. Isto, todavia, não cai do céu: é fruto de incessante processo formativo (pessoal e comunitário), a ser assumido pelos próprios protagonistas, bem como pelas forças sociais historicamente vocacionadas a irem transformando substantivamente, no chão do dia-a-dia, as relações sociais hegemônicas. Em busca da construção da permanente construção de um novo modo de produção, de consumo e de um novo modo de gestão societal, como alternativos à barbárie do Capitalismo, cujos efeitos vêm ameaçando, cada vez mais, a vida no planeta, bem como as condições mais elementares do processo de humanização. O atual momento, no Brasil e no mundo, se mostra um atestado inequívoco destas ameaças.
No caso do Brasil atual, nossa sociedade vem se mostrando profundamente vulnerável a esta onda de barbárie que ronda todo o mundo. São vastos e preocupantes os sinais de barbárie: a tendência à tudo resolver pelo argumento da força, a crença assustadora na resolução dos impasses, pela força das armas; a tenebrosa e crescente onda de classismo ou horror à causa dos pobres), de sexismo (cf. os alarmantes índice de feminicídio, as diversas formas de violência contra as mulheres), de racismo (o ódio  destilado contra povos indígenas e comunidades quilombolas), de homofobia, de xenofobia...O pior é que, não raro, tais práticas se acham ou se querem estranhamente fundadas em princípios evangélicos, retratando, em nome de Deus, a mais vil idolatria...
Bem sabemos que, tanto no Brasil, quanto na América Latina e no Caribe, quanto no mundo, tais manifestações tenebrosas, não nasceram do nada, mas como expressão e resultado de múltiplos e complexos fatores externos e internos. No caso do Brasil, já tivemos um período em que nossas organizações de base, atuando como agentes de transformação, colhiam sua força do profundo enraizamento nas comunidades, nos núcleos, nos círculos de cultura, nos conselhos populares, etc, período durante o qual tais riscos e tais ameaças estiveram sob controle, visto que graças à atuação coerente desses sujeitos (individuais e coletivos) parte expressiva da sociedade se via alimentada e empoderada de práticas e valores ais como: a solidariedade, o respeito à diversidade, a partilha, a disposição de diálogo, o testemunho profético, o exercício da crítica e da autocrítica, a desconfiança nos espaços estatais como caminho de transformação social, na direção almejada...
Também tal realidade vivenciada naquele período, a despeito de suas fragilidades, estava fundamentalmente ancorada na orgânica articulação de 3 campos de atuação: o campo organizativo, o campo formativo, e o campo de mobilização. Enquanto isto durou, significativas conquistas tiveram lugar. Abandonados ou fortemente reduzidos tais campos, no campo e nas periferias urbanas, nossas organizações de base, historicamente vocacionadas a ir criado condições de efetivas mudanças societais passaram a sofrer sucessivos e perigosos refluxos na falsa crença de que tais mudanças brotariam, não mais de um incessante processo de transformação social (a partir de um novo homem, de uma nova mulher), mas apenas pela mágica da ocupação de espaços governamentais.

É tempo de resistência! Ao mesmo tempo, não será também, tempo de retomarmos, no campo e na cidade, em novo estilo, práticas e concepções grávidas de alternatividade?

João pessoa, 12 de outubro de 2018.

segunda-feira, 8 de outubro de 2018

ONDE E COMO BUSCAR FORÇAS PARA AS RAZÕES DE NOSSA ESPERANÇA? Perguntas úteis em tempos tenebrosos


ONDE E COMO BUSCAR FORÇAS PARA AS RAZÕES DE NOSSA ESPERANÇA? Perguntas úteis em tempos tenebrosos

Alder Júlio Ferreira Calado

Ontem como hoje, a história e nossas próprias vidas seguem sendo experiências em aberto.  A tudo devemos estar preparados, a partir de nossos valores mais profundos. Reconhecendo - e até buscando manter - as positividades características dos tempos de "vacas gordas", sabemos, contudo, que eles comportam riscos de malogro. Eis um desafio de monta! Acostumados ao conforto dos tempos de bonança, mal nos preparamos para períodos de reveses, fazendo ouvidos moucos ao alerta Paulino, de que “Sei viver na penúria, e sei também viver na abundância. Estou acostumado a todas as vicissitudes: a ter fartura e a passar fome, a ter abundância e a padecer - (Filipenses 4:12)”. E, quando assim não tomamos a sério isto se torna fonte perigosa de medos, de sentimento de impotência, de tendência a sucumbirmos ao clima de derrotismo, sentimentos que em nada nos ajudam a enfrentar exitosamente e vencer os reveses que nos sobrevêm.
O momento atual é um desses tempos de extremos desafios, que só vamos poder superar, se reforçarmos nossa guarda de autovigilância e de fortalecimento dos caminhos que apontam para benditos poços de esperança, que nos permitam “dar a razão de nossas esperanças”. Trato, a seguir, de me colocar e compartilhar alguns questionamentos, em busca de pistas que nos ajudem a enfrentar e a superar – ou melhor: a ir superando – as pesadas sombras que enfeiam nosso caminhar, no atual momento:

- Terá sido a primeira vez que sucedem tais reveses ao longo da história e também de nossas vidas
- Refrescando nossa memória histórica, que outros tempos desafiantes – recentes e menos recentes – tivemos, no Brasil e Alhures, e como foram superados
– Será que a superação de tais desafios não requereu duros aprendizados, que tivemos que assumir e pôr em prática, como condição da própria superação?
- Sem deixar de ter sempre presentes os fatores externos de tantos reveses de ontem e de hoje, será que podemos negar ou não tomar a sério, nossa cota interna de responsabilidade por parte desses desatinos?
– Revisitando experiências organizativas e formativas vivenciadas há algumas décadas, protagonizadas por forças sociais e organizações de base de nossa sociedade, que práticas organizativas e formativas, que se acham no centro de tantas conquistas, de que nos orgulhamos, se acham hoje distantes de nós?
- Reconhecendo a necessidade de enfrentarmos velhos e novos desafios, também do ponto de vista político-eleitoral, será que devemos seguir perseguindo este caminho que se tem revelado como nossa prioridade quase única, de modo a aí esgotar nossas melhores energias criativas, ao tempo em que dedicamos meras palavras de ordem ou esforço secundário a plantar e cultivar sementes grávidas de alternatividade, no campo e na cidade, em busca de um novo modo de produção, de um novo modo de consumo, e de um novo modo de organização societal?
- Conscientes de que “arvore se conhece pelos frutos” que resultados seguimos colhendo, no Brasil e no mundo, de uma aposta desvairada no suposto potencial transformador dos espaços governamentais, em detrimento de um crescente e vigoroso investimento nas “correntezas subterrâneas”, voltadas ao fortalecimento das iniciativas de defesa e promoção da dignidade do Planeta e de toda a comunidade dos viventes, protagonizadas por dezenas e centenas de experiências comunitárias espalhadas pelo Brasil e pelo mundo (combate ao aquecimento global sistemático cuidado com os Oceanos, com as nascentes dos rios, com o zelo pelas matas e florestas, com o combate do crescente envenenamento das águas, do ar, do subsolo, das plantas e animais e do próprio ser humano; com a busca crescente de alternativas de convivência com o Semiárido; com o investimento em tecnologias e fontes de energias alternativas; com o compromisso de cultivo e expansão das terapias naturalistas e comunitárias integrativas, com o desenvolvimento de fecundas experiências agroecológicas e da permacultura)?

João Pessoa, 8 de outubro de 2018.

sábado, 6 de outubro de 2018

ECOS DA VIII SEMANA TEOLÓGICA Pe.JOSÉ COMBLIN: memória, compromisso, esperança


ECOS DA VIII SEMANA TEOLÓGICA Pe.JOSÉ COMBLIN: memória, compromisso, esperança

Alder Júlio Ferreira Calado

Após alguns meses de intensas atividades, tivemos, sábado, dia 15/09/2018, a Sessão de Encerramento, contando com a participação de delegados e delegadas das Jornadas Comunitárias, realizadas no campo e nas periferias urbanas; dos vários grupos co-organizadores das Semanas Teológicas Pe. José Comblin, de vários membros de Rede Celebra, Kairós, CECAE, Escolas Missionária de Mogeiro, CEBI, MTC e de outros segmentos da Igreja na Base, além dos convidados palestrantes Alzirinha Rocha de Souza e Vanderlan Paulo de Oliveira, que nos brindaram com fecundas exposições acerca do tema desta oitava edição da STPJC: "Medelliín, 50 anos: vocação e missão das Leigas e Leigos". 

Nas linhas que seguem, compartilhamos algumas informações acerca do processo e da dinâmica de organização desta VIII STPJC, rememorando os passos vivenciados, sublinhando alguns compromissos aí firmados, e ressaltando as sementes de esperança aí lançadas.

Fazendo Memória

Vivenciamos, neste 2018, a oitava edição das Semanas Teológica Pe. José Comblin. Estas experiências almejam manter vivo e fecundo o legado profético do Padre José Comblin (1923-2011). Não por acaso homenageado como “profeta da liberdade”, o Teólogo José Comblin, nascido na Bélgica, viveu mais de meio século entre os pobres da América Latina, especialmente do Brasil, e mais particularmente do Nordeste, tendo oferecido densa contribuição também ao povo dos pobres no Chile, no Equador e outros países. Foi assim que se sentiu chamado como missionário a dedicar o melhor de si ao desafio da causa libertadora dos empobrecidos.

Tendo em vista, por conseguinte, uma gama de experiências missionárias nele inspiradas ou por ele animadas, sempre em diálogo frutuoso com teólogos e teólogas da Libertação e de outras correntes teológicas. A experiência organizativa destas semanas teológicas Padre José Comblin, vem sendo realizadas junto a comunidades do campo e das periferias urbanas, por meio das Jornadas Comunitárias, culminando com a Sessão de Encerramento, durante a qual tratamos de escutar e refletir comunitariamente, os relatos apresentados por delegadas e delegados de compartilhar o que foi vivenciado em cada Jornada Comunitária, após o que recorremos às reflexões dos convidados e convidadas a partir do Tema desenvolvido e das questões levantadas, em cada jornada comunitária.

Nesta VIII STPJC o tema trabalhado foi: “Medellín, 50 anos: vocação e missão das Leigas e Leigos” Tratamos de fazer memória do Legado Profético da II Conferência Episcopal Latino-Americana, realizada em Medellín, na Colômbia, em 1968. Por meio de textos, análises e avaliações, além de instigantes vídeos, cuidamos de revisitar esse tempo de abençoada irrupção profética, em que tivemos a sensação de experienciar um novo pentecostes na Igreja Latino-Americana e no Caribe.

Além de um vídeo sobre o contexto e a experiência de Medellín, cuidamos de revisitar páginas preciosas do seu documento final. De forma didática, foram escolhidos apenas cinco dentre os dezesseis capítulos que integram o Documento Final de Medellín – Pobreza, Justiça, Paz, Juventude e Movimentos Leigos. Cada comunidade encarregada de organizar sua jornada comunitária, tratou de trabalhar um desses capítulos, lendo, refletindo, discutindo e problematizando a partir de sua própria realidade. Nesta mesma ocasião, elegia-se sua ou seu delegado, para compartilhar os pontos principais vivenciados durante a jornada. E assim se fez ao longo do mês de agosto e início de setembro, culminando com a sessão de encerramento, realizada no Mosteiro de São Bento, no dia 15/09.

Em poucas linhas, que aspectos é possível sublinhar destas experiências? Vejamos alguns pontos, começando pelos seus traços, que julgamos de efetiva contribuição à caminhada da Igreja Católica, no Continente:

- Medellín, inspirada na ação profética de minorias episcopais que firmaram o conhecido Pacto das Catacumbas, poucos dias antes do encerramento da última sessão do Concílio Vaticano II, e impulsionada por um contexto Sócio-Eclesial latino-americano de intensa fermentação de movimentos e forças mudancistas que clamavam justiça contra os horrores das Ditaduras Militares, instaladas no Cone Sul, bem como contra as profundas e crescentes desigualdades sociais, sentiu-se comprometida e solidária ao povo dos pobres, passando a ser uma forte ressonância desses clamores;

- Medellín passa a ser tratada, não apenas como uma recepção criativa do Concílio Vaticano II, mas sobretudo como uma busca audaciosa de (re)fundação da Igreja Latino Americana, com rosto próprio, não mais como mero anexo ou difusora de decisões eclesiásticas, por vezes, de viés eurocêntrico;
- De modo progressivo, nos próximos anos, graças principalmente à atuação de suas organizações de base (CEBs, CIMI, CPT, PJMP, ACR, PCIs, Pastoral Operária, CEBI, Comissão Justiça e Paz, Centros de Defesa dos Direitos Humanos, Teologia da Libertação...), vai se fazendo, ainda que com suas insuficiências a “opção pelos pobres”, engajando-se nas causas libertárias do povo dos pobres, ao tempo em que teve que enfrentar as mais diversas adversidades (perseguições, repressões...).

Quanto às suas insuficiências, destacamos as seguintes:

- À luz da Lumen Gentium, em que o “Povo de Deus” precede a própria hierarquia ainda assim, se trata de uma conferência de Bispos, com direito a voz e voto, embora correspondendo a uma pequeníssima minoria do povo de Deus, ao interno da Igreja Católica Romana;

- Por via de consequência, as leigas e leigos aí desempenham um papel ainda aquém de sua missão de Batizados e Batizadas (“sacerdotes, profetas e reis”);

- Em razão de sua estrutura organizativa, ainda resultam prevalente a influência das estruturas paroquiais, pouco favoráveis a uma ação missionária, junto aos mais injustiçados e desvalidos.

Renovando Compromissos
Quando buscamos vivenciar, seja como seres humanos, seja como cristãos, a boa nova anunciada e inaugurada por Jesus, estamos conscientes que o fazemos mais do que como expressão de resultados eventuais, o fazemos numa perspectiva de processo. Isto também se passa, em relação ao que nos sobreveio desde Medellín. Assumindo criticamente nossas tarefas de Povo de Deus ao interno da Igreja Católica e das lutas sociais, cuidamos de renovar nossos compromissos olhos fitos no horizonte do Reino de Deus solícitos ao que nos inspira o espírito do Ressuscitado. Neste sentido, buscamos renovar nossos compromissos, em relação ao que nos instiga Medellín. Destaquemos alguns desses compromissos:

- Melhor exercitar o discernimento, quanto aos ganhos e perdas acumulados nas últimas décadas, na caminhada histórica de nossa Igreja;
- Manter cada vez acesa e vigilante nossa atenção, mais do que sobre fatos isolados sobre os nexos e o caráter desses fatos;
- Estamos conscientes de que isto não se dá espontaneisticamente, mas apenas se nos comprometemos pessoal e comunitariamente, em tomar a sério um processo de formação contínua, seja no campo da realidade social, seja no campo da evolução histórica de nossa caminhada Eclesial, sempre tendo acesso o horizonte do Movimento de Jesus;
- Neste sentido, é tarefa de todos os segmentos eclesiais, mas principalmente das leigas e dos leigos, no sentido de buscar corrigir rumos caminhos e posturas, característicos do modelo eclesiástico ainda largamente hegemônico

Reascendendo nossas esperanças
Nesta incessante busca de contribuirmos para uma Igreja seguidora da Boa Nova, e a serviço da humanidade em especial do povo dos pobres, sentimo-nos cercados de instigantes desafios. Um deles consiste em priorizar o potencial das leigas e leigos sem esperar passivamente que as mudanças brotem e se façam apenas desde cima, mas como expressão e fruto e da ação dos principais protagonistas deste movimento de renovação eclesial. A este respeito, sinto-me remetido a uma palavra encorajadora do Bispo de Roma, por ocasião de um encontro seu com membros da coordenação da Clar, em que ele dizia algo assim: não se limitem a esperar que as instâncias superiores lhes ordenem tarefas, mas tomem a iniciativa de fazer as coisas avançar. Podem, aqui e ali, receber eventuais advertências, e tratem de leva-las em consideração, sem que isto os desencorajem de ousar...

Um dos grandes obstáculos que inibem ou mesmo nos impedem de dar passos fecundos, em direção a um processo de permanente renovação eclesial – “Ecclesia Semper Renovanda Est” -, consiste na praxe de leigas e leigos se limitarem a receber ordens de cima “de Roma, da Diocese, da Paróquia...”, sem ousarem empreender passos de renovação, sob a inspiração da Tradição de Jesus. Isto nos faz manter vistas grossas aos sinais e apelos do Espírito do Ressuscitado, que conduz a caminhada do Reino de Deus e Sua justiça por meio de uma considerável diversidade de ações, sempre em busca de uma unidade, não de uma uniformidade.
Sabemos que o processo de renovação é obra de todos os segmentos eclesiais, não apenas da hierarquia, que não pode e não deve ser tomada como única referência para o exercício da cidadania eclesial. Isto, porém, requer assegurar-nos o compromisso de um incessante processo formativo, principalmente protagonizado por Leigas e Leigos, que constituem a enorme maioria do Povo de Deus, ao interno da Igreja Católica (e de outras Igrejas Cristãs), inclusive em resposta a nossa missão batismal, de sermos “sacerdotes, profetas e reis”, isto é, de assumirmos, na alegria e na esperança, nossas tarefas de cidadãos e cidadãs, também ao interno dos espaços eclesiais.

Tal dimensão cidadã, para ser fiel ao Evangelho, há de ser exercitadas, não apenas ao interno dos espaços eclesiais. Move-nos ao exercício inafastável de cidadania, em qualquer contesto histórico, inclusive às vésperas de novo processo eleitoral. A despeito da diversidade de entendimentos da função eleitoral, há, no mínimo, um imperativo de consciência a ser levado a sério: o grave risco de parcelas consideráveis do nosso eleitorado em se deixarem seduzir por valores claramente contrários à Boa Nova anunciada e inaugurada por Jesus. Referimo-nos a postulantes claramente orientados e fundados em valores tais como: a truculência, o belicismo, o racismo, a misoginia e outras formas de preconceito. A diversidade de opções de voto (ou mesmo de não voto) é compreensível, em alguns contextos, mas tudo tem um limite...

João Pessoa, 6 de outubro de 2018.



terça-feira, 2 de outubro de 2018

INSTITUIÇÃO OU MOVIMENTO: QUAL DESTAS FORMAS MELHOR CORRESPONDE À PROPOSTA DE JESUS? Registros em torno do capítulo X - "Fundador de um Movimento", do livro "Jesus, aproximação histórica", de autoria do teólogo José Antonio Pagola


INSTITUIÇÃO OU  MOVIMENTO: QUAL DESTAS FORMAS MELHOR CORRESPONDE À PROPOSTA DE JESUS? Registros em torno do capítulo X - "Fundador de um Movimento", do livro "Jesus, aproximação histórica", de autoria do teólogo José Antonio Pagola

Alder Júlio Ferreira Calado
 Ao contemplarmos o espectro organizativo das Igrejas cristãs, dois milênios após a apresentação, por Jesus, da proposta do Reino de Deus, e ao revisitarmos os Evangelhos, temos enorme dificuldade de compreender a sintonia entre o que hoje se passa, no cotidiano das Igrejas cristãs, salve exceções, e  a proposta inicial anunciada e inaugurada pelo “Profeta do Reino de Deus”. Fundar uma instituição não parece corresponder ao propósito inicial do Profeta itinerante do Reino de Deus, Jesus de Nazaré. Ele estava antes, tocado pelo Projeto do Reino de Deus e sua justiça. Enviado pelo Pai e guiado pelo Espírito Santo, o “Profeta do Reino de Deus” entrega-se completamente a anunciar e a inaugurar a vinda deste reino. Sua tarefa central, em sua brevíssima vida pública, consistiu fundamentalmente em anunciar ao seu povo - especialmente, aos pobres e desvalidos - mendigos, cegos, paralíticos, surdos-mudos, mulheres, pecadores, em breve, os marginalizados de sua sociedade - que o Reino de Deus já estava presente no meio deles. Tratava-se de sacudir corações e mentes de toda aquela gente da Galileia e da Judeia, razão por que escolheu a vida itinerante com o seu estilo de vida, percorrendo as aldeias e povoados da Galiléia sempre cercado por seus discípulos e discípulas e consideráveis multidões, a ensinar-lhes em que consistia o Reino de Deus. Na verdade, correspondia (e corresponde) a uma profunda revolução, sob vários aspectos:
  • Propunha completa inversão de valores: distanciando-se dos mestres de então, dos escribas e doutores da lei, ciosos de guardar a pureza e a formalidade dos códigos sagrados, Jesus, por sua vez, testemunhava amor, compaixão, solidariedade com a causa libertária dos últimos de seu povo, como sendo a essência de sua mensagem, de suas práticas e de suas pregações;
  • Sua proposta revela-se profundamente chocante para os chefes religiosos, políticos e toda elite econômica. Tarefa nada simples para quem ousa chamar em direção a uma nova sociedade, a um “Novo Israel”;
  • Sobretudo desafiantes mostravam-se as forças em quem confiava tal tarefa: gente oprimida, explorada, marginalizada, vítima de toda sorte de preconceitos.

A quem Jesus confiou a tarefa de libertação?

No cotidiano das preocupações oficiais das Igrejas Cristãs, salvo raras exceções, seu empenho mais frequente em solidarizar-se com os pobres e sofredores segue sendo de caráter assistencialista, inclusive recorrendo aos ricos e poderosos para que “ajudem” os pobres em suas necessidades, neste sentido, não hesitam em apelar para o Mercado e para o Estado por meio de seus representantes, solicitando-lhes socorro aos “mais carentes” ou aos mais “desprovidos da sorte”. O atual Bispo de Roma, Francisco, constitui exceção, ao preferir contar com os próprios pobres através de suas organizações e movimentos, incentivá-los a serem sujeitos de sua própria libertação, tal como sucedeu nos três encontros mundiais por ele organizados, com a participação efetiva de representantes de diversos movimentos populares, procedentes de vários países.

Em sua análise, por sua vez, o teólogo José Antonio Pagola, cuida de relatar no décimo capítulo de seu livro, como Jesus confiou justamente aos mais injustiçados do seu povo, a tarefa de mudar o rumo de vida característico daquela sociedade extremamente desigual, patriarcal, elitista e controladora das consciências, falando em nome de Deus. “Bendigo-Te, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondeste estas coisas aos sábios e aos entendidos e as revelaste aos pequeninos" (Mt. 11, 25). É claro, que tal reviravolta, não se dá de forma mágica, instantânea, mas se trata de um longo processo, de algo que se vai fazendo, ao longo de séculos, desde que efetivamente assumido pelos sujeitos - mulheres e homens seguidores da Proposta de Jesus -, ao longo de séculos. Não se trata de algo imediatista, mas de um processo que se vai construindo, com protagonismo dos principais interessados, guiados pelo Espírito do Ressuscitado.

Ensinando “como quem tem autoridade”, a quê Jesus convidava Seus seguidores?

Pela longa observação e já sólida experiência dos profundos traços necrófilos das bases em que se assentava a vida social do Seu tempo, Jesus se mostrava convencido de que ali já não serviam meros remendos – que só serviriam para tornar ainda maior o raio do tecido roto. Era preciso preparar Seus discípulos e discípulas para irem protagonizando um verdadeira reviravolta naquela vida societal, a partir da profunda conversão interior de cada protagonista. Uma reviravolta desde os valores que caracterizavam as relações sociais do seu tempo. E não adiantava apenas que Ele “apontasse” alternativas a serem cumpridas por Seus discípulos e discípulas, sem que Ele mesmo desse o exemplo, ou seja, ensinasse como quem tem autoridade. Jesus propunha – e segue propondo! – a via revolucionária (de “revólvere”, revolver (cuidado: não confundir com revólver!...), pôr de ponta a cabeça, mas a partir do interior de cada protagonista. Um chamamento radical, na busca de irmos tornando-nos, cada um, um novo homem, uma nova mulher, e, pela força do exemplo, dom da Graça e expressão de nossa acolhida da Graça – e não pela razão da força ou de argumentos retóricos – vamos tornando-nos luz do mundo, sal da Terra, fermento na massa.

E de que conversão se trata? Daquela que brota da convicção de que “É na fraqueza de vocês, que o Amor de Deus se manifesta por completo.” Do nosso empenho pessoal e comunitário em não quedarmos à espera de que as coisas mudem a golpes de magia, desde fora, desde cima, desde os lados, mas a começar do nosso exemplo, de nossa efetiva e cotidiana acolhida da Palavra que transforma. E aí Jesus propõe, em distintos momentos e situações, atitudes radicais. Vejamos alguns exemplos de passagem:
– Jesus, ao chamar Seus discípulos e discípulas, pede-lhes para deixar tudo e, só então, segui-Lo. Mesmo àquele jovem rico que dEle se aproximou, perguntando-Lhe o que fazer para entrar no reino seu, e mesmo tendo respondido a Jesus que, desde cedo, vinha cumprindo todos aqueles mandamentos, Jesus lhe responde faltar-lhe ainda uma coisa: vender suas riquezas, distribuí-las aos pobres, e então juntar-se ao Movimento de Jesus...
- Jesus, também, adverte aos Seus discípulos e discípulas, de que quem quiser segui-lo, deve saber das dificuldades extremas que encontrarão na caminhada;
- Previne-os quanto a evitarem preferir os caminhos fáceis, pois geralmente levam à perdição: “ Entrem pela porta estreita; porque larga é a porta, e espaçoso o caminho que conduz à perdição, e muitos são os que entram por ela (Mt 7:13)
- Adverte-os de que quem quiser ser o maior, torne-se o servidor de todos, porque “ (o Filho do homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate de muitos." (Mt 20:28);
- Advertindo os que alimentam a ilusão de apostar na forma de organização social convencional, Jesus adverte: “Jesus os chamou e disse: "Vocês sabem que aqueles que são considerados governantes das nações as dominam, e as pessoas importantes exercem poder sobre elas. Não será assim entre vocês. Pelo contrário, quem quiser tornar-se importante entre vocês deverá ser servo (Mc 10 42-43) 




Afinal, instituição ou carisma – qual melhor corresponde à Proposta de Jesus?

Como tantas outras, também esta não constitui uma pergunta cuja resposta se limite a um seco “A” ou B”. Uma e outra requerem fundamentação criteriosa. Nada se deve absolutizar. Há experiências institucionais, no universo das Igrejas cristãs, que merecem acolhida, do ponto de vista dos critérios do Reino de Deus. Trata-se daquelas que se forjam na construção do consenso, no “sensos fidelium”, em respeitosas consultas ao conjunto dos Batizados e Batizadas, inclusive aos membros hierárquicos. É, contudo, forçoso reconhecer que isto é exceção. Via de regra, os caminhos da institucionalidade – não apenas em relação ao campo religioso, mas abrangendo ainda vários outros campos da vida social (Estado, Partidos, Escola, etc.), sofrem a grave tendência de se engessar, de se burocratizar, de viciar seus dirigentes, inebriados pela sedução do poder, induzindo-os a se perpetuarem no poder, tratando a instituição como uma finalidade em si mesma, independentemente da perversidade de seus frutos. Tal é o poder de embriaguez que a ocupação dos espaços governamentais exerce sobre a quase totalidade de seus ocupantes, que estes resultam seus reféns, não importando o preço que tenham que pagar. Tentam defender-se de todas as críticas que lhes são lançadas, de todas as maneiras:
- ora negando categoricamente os malfeitos, ainda que constatados a olhos vistos;
- ora tentando defender-se, dizendo que, para alcançarem os objetivos almejados pela sociedade, é preciso fazer concessões (conchavos, alianças, negociatas, pois isto faz parte do jogo político;
- ora tentando convencer os incautos, de que seguem fiéis aos interesses da classe trabalhadora...

O fato é que não arredam de seus postos: eleição após eleição, não se importando com  a gravidade dos escândalos, lá estão eles a postos...

E, por acaso, o fato de ser movimento, por si mesmo, é capaz de blindar os discípulos e discípulos de tais vícios? Não. Também os movimentos são sujeitos a graves equívocos e infidelidades à causa do Reino do Reino de Deus, à medida que se distanciam do grande horizonte de transformação social, e acabam acomodando-se ao atual estado de coisas. A história está repleta de exemplos ilustrativos. De todos os modos, desenho “Movimento!, DESDE OS ALBORES DO ANÚNCIO E INAUGURAÇÃO DO Reino de Deus por Jesus, parece mais próxima da Proposta de Jesus. A este respeito, as tantas narrativas evangélicas se acham plenas de exemplos convincentes.

João Pessoa, 29 de setembro de 2018